Desassossego - parte 7, as entrevistas ao realizador

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.







ENTREVISTAS

Começou, há 30 anos, com um encontro entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, passou por Dickens, Diderot, Agustina (introduzir aqui Carolina Salgado é quase sacrílego). Agora, João Botelho regressa à língua que é a sua pátria com Filme do Desassossego.

O realizador ousou entrar no infinito particular de Bernardo Soares. Numa fase complicada da sua vida, o Livro do Desassossego caiu-lhe em cima: "Salvou-me a vida". O livro, os fragmentos, as palavras, toda aquela "depressão serena e tormentosa", a transcendência, a melancolia, o estranhamento, a incomodidade de uma cidade que acolhe e é hostil vão andar em digressão por telas de todo o país. E de um não-livro, de uma ruína literária João Botelho ergueu um filme que não é de época mas que é fora de época. E de um livro-caos, encontrou o seu pedaço de cosmos, sem fim, nem meio, nem princípio - exactamente por esta desordem.

Desta fez tentou o impossível ao adaptar ao cinema um livro que muitos sustentam que nem existe?
Não é impossível. As pessoas pensam sempre que é difícil adaptar literatura ao cinema, quando os textos são muito bons. Difícil é não ter medo dos textos. Diz-se que para fazer um bom filme é preciso utilizar um mau romance. Hitchock é que sabia disso, de romances de cordel fazia obras primas do cinema. Pegar em obras muito fortes da literatura é arriscado. Há inconvenientes que são os de fazer cinema em Portugal: os filmes são raros, há pouco dinheiro, é cada vez mais difícil filmar... Mas há uma vantagem que é a de ser ir arriscando, de ser fazerem protótipos e não séries e repetições, e tentar que os filmes sejam importantes. Por exemplo, com a Conversa Acabada, há 30 anos, interessou-me pegar no modernismo português como afirmação de algo inovador da cultura portuguesa. Peguei na relação entre o Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, que tinha a ver com a criação e a amizade. Foi talvez a coisa mais arriscada que fiz na vida. Agora apeteceu-me voltar à carga. Senti-me novo, outra vez...

Lembra-se de algum caso em que um bom livro tenha dado um bom filme?
Sei lá... Rebecca de Daphne du Maurier. Hitchcock fez-lhe uma boa adaptação.

O Leopardo de Visconti?
Nem sei se o filme nem é melhor que o romance. Mas neste caso, eu não fiz um filme do Livro do Desassossego, eu fiz uma parte do Livro do Desassossego, aproveitei bocados. O Livro do Desassossego tem uma vantagem sobre as outras coisas, é um livro que não tem princípio nem meio nem fim. O Richard Zenith vai na sétima versão, cada um pode fazer um livro de desassossego diferente, pegar naquilo e ordená-lo por metonímicas, associações de ideias, cronologias, racords de luz e de música...

Qual foi a sua ordem?
Foi a ordem que Pessoa me indicou. (risos) A sério. Uma é a ideia do tempo que me ajudou a estruturar o filme todo. O tempo do sonho nunca é o tempo da vida. No cinema também não. O filme é estruturado em três dias e três noites na vida de Bernardo Soares, mas podem ser três minutos. Na primeira cena faltam três minutos para as três da manhã e na última, o relógio marca três. E, na verdade, o filme dura uma hora e 59 minutos... São caixas dentro de caixas...

O filme acompanha as deambulações quase sonâmbulas de Bernardo Soares...
Ele não é um heterónimo, é quase um Fernando Pessoa, mora em Lisboa na mesma rua ("sou da rua dos douradores como a humanidade de inteira"), tem quase a mesma profissão de Pessoa, que não é guarda-livros mas também trabalha num escritório, leva uma vida miserável, de abnegação, de isolamento. E essa ideia de viagem que não vai ter a lado nenhum também me ajudou. "Comboio andando ao Cais do Sodré. Chego a Lisboa mas a nenhuma conclusão" Uau! (risos)

Fernando Pessoa odiava viajar...
Mas se calhar sem sair do mesmo lugar foi a pessoa que mais viajou. A ideia de tempo e de viagens que não existem, esse fingimentos interessaram-me muito na construção deste filme. Porque no cinema também é tudo a fingir. A única verdade do cinema é a relação entre o espectador e aquilo que vê. De resto, não se viaja, não se morre no cinema, não se vai para a cama no cinema a não ser nos pornos. E houve uma frase muito bonita que me confirmou o desejo de ser democrátrico quando filmo: "Devem-se iluminar as polainas com a mesma luz que se iluminam as caras dos santos". E eu tentei fazer isso toda a minha vida. Os ricos e os pobres devem ter a mesma dignidade de luz. O cinema é luz e sombra e pessoas aflitas lá dentro. E o Livro do Desassossego é isso também: luzes e sombras e uma pessoa aflita. Mas a melhor frase de todas, aquela que me deu o filme, diz que os grandes textos dele "só existem lidos em voz alta ou em voz baixa desde que se ouçam". Portanto, só no cinema ou no teatro fazem sentido. Têm uma musicalidade, e uma outra camada completamente estranha em relação ao que está escrito. O que está escrito tem um sentido ou um não sentido ou o quiser, mas ganha-se outro quando se começa a falar em voz alta. Mesmo com o meu sotaque do Alto Douro, a gente começa a falar e cria-se uma dimensão estranha.

Mas se só lhe tivessem interessado as imagens filmava com o ecrã em preto como o João César Monteiro... As palavras também lhe inspiraram imagens?
Não sei se consegui ou não, mas tentei não ilustrar nada, o texto devia ganhar, e estar sempre acima de qualquer coisa. Apenas criei situações em que os textos pudessem ser ditos. Tentei tornar Lisboa o mais abstracta possível, tornando-a muito inquietante. Quando ele sai desesperado da igreja depois de resposta sobre a existência de Deus dada por um coro de crianças diabólicas, mudo a geografia da cidade, a casa dos bicos está em cima da calçada de São Francisco... Isso tem a ver com ideia de modernidade, de cubismo, com esta Lisboa de cartão como planos esmagados em cima uns dos outros. Lisboa não é muito bonita casa a casa, mas é deslumbrante com as casas todas juntas. Deu-me essa ideia de distorcer Lisboa, também através de vidros pintados à frente da câmara, planos filmados a partir de espelhos, sombras artesanais projectadas na parede. Coisas de estranheza. Eu não gosto muito das coisas, gosto das ideias das coisas. Fui buscar o escritório mais sinistro que podia encontrar em Lisboa, no Arquivo Militar em Chelas, com salas e salas monumentais e corredores muito estreitos, que desse a sensação de esmagamento às pessoas que lá trabalham. O sótão onde Bernardo Soares vive, angustia-o pelo vazio. O restaurante Sol Mar, nas portas de Santo Antão podia ser um décor de hoje, de ontem ou daqui a 40 anos. A ideia era sempre criar estranheza. Como o travelling da fila das sopa dos pobres nas arcadas do Terreiro do Paço e a rapariga nua debaixo de um casaco de peles a passar...

Mas esse já é um toque muito seu...
Essa cena foi-me inspirada num filme em que há um concurso de aristocratas para ver quem traz a coisa mais excêntrica. Ganha o que leva um pobre... Ricos e pobres divertem-se da mesma maneira. Têm suas drogas, apenas as dos ricos são mais requintadas.

Um é a sopa dos pobres outro o manjar dos ricos...
Mas é tudo igual. Só a pose de divertimento nos ricos é diferente da dos pobres.

A Alexandra Lencastre faz de centro de mesa...
A Alexandra é uma querida. É uma brincadeira por causa da Mulher que Queria Ser Presidente dos EUA e também uma homenagem à própria Alexandra.

Alexandra Lencastre, Catarina Wallenstein, Ana Moreira, Mónica Calle, Margarida Vila-Nova, Rita Blanco... Quase que dá vontade de perguntar que actriz não entra no seu filme?
A Maria João Luís que é óptima, por exemplo, quem me dera...

Mas descobriu um Bernardo Soares admirável...
O Cláudio Silva é um grande actor mas não lhe têm ligado muito. É um rapaz predestinado para representar, tem uma excelente voz, é calmo e inquietante. É um grande actor mas que andava um bocado perdido por aí...Vi-o numa peça de Shakespeare, no Dona Maria, Tanto Amor Desperdiçado, e ele fazia um papel deslumbrante. Eu disse: "É este!". Teve uma doença infantil que lhe deu uma pequena deficiência física. Ele é muito bonito e dramático - assim uma mistura entre Gael Garcia Bernal e Johnny Depp. Tem uma grande coragem de interpretação. Entrou mesmo no personagem, foi um óptimo portador. Dei-lhe uma pequena indicação: "Ó Cláudio, no cinema os olhos são mais importantes que o resto. Não pestanejes". E ele não pestanejou o filme inteiro. Apenas duas vezes quando o fumo do tabaco lhe incomodava os olhos e, mesmo assim, pestaneja em câmara lenta, que é uma coisa que só a Anna Magnani conseguia.

Ao longo deste processo nunca se sentiu um profanador, ao dar um cosmos a um livro-caos?
Quis fazer um filme sério a partir daquele que é talvez a obra mais importante da literatura portuguesa do século XX. Mas não lhe dei sentidos, aquilo não tem repostas só perguntas. Queria encontrar uma Lisboa que fosse justa com o texto. Nem realista, nem vouyeurista. Queria inquietar. Os filmes não devem confortar as pessoas. Kafka diz que a literatura deve rasgar, dividir, partir incomodar, em última instância levar suicídio. Depois há uma criança que diz 'Ó pai... ' (Risos) As pessoas não devem ficar indiferentes nem consumidoras. O sexo no filme é seco, duro, não é voyeurista... Há uma violência física extraordinário, sem uma única palavra. Queria que o texto fosse mais importante. Como o grande plano da boca da Catarina no texto da Educação Sentimental dito na íntegra. É ali, na língua, na saliva, no lábio, é dali que sai a voz, a origem...

Porque que é que as mulheres são sempre assim nos seus filmes, lábios vermelhos, vestidos de cores saturadas e penteados exuberantes?
Porque ficam mais giras (risos). São ideias de mulheres, não são mulheres. Quando fiz A Mulher que Queria Ser Presidente... fui acusado de misógino. Não era nada, aquilo era a Sarah Palin dez anos antes. Era igual, juro-lhe, era uma ideia do que iria acontecer.
Quando fiz o Tráfico, ninguém diria que Portugal ia ficar assim, mas ficou... Nós realizadores temos tempo para pensar, portanto podemos anunciar qualquer coisa. Gosto de estilizar, de ser abstracto. Passo a vida fazer a uma coisa nos meus filmes: dar um rebuçado ao espectador e depois tirá-lo de repente. Só têm um defeito: vê-se a estrutura toda, onde está a câmara, de onde vem a luz, como é montado...

Isso é bom ou mau?
Há pessoas que dizem que é mau porque retira às pessoas a capacidade de se evadirem, mas eu sou contra o cinema da ilusão, sou a favor do cinema da matéria. Gosto de pintura abstracta. Quando ouço musica não penso em nada. O problema do cinema é que concretiza de mais. Na literatura há uma liberdade que o cinema não tem. Diz-nos: "Aquele senhor anda com sapatos castanhos e camisa verde" e nós podemos imaginar centenas de tons de castanhos e de verde. No cinema não, é aquele castanho e aquele verde. A ideia é chegar a esta abstracção. Mas nunca se consegue a abstracção que outras artes conseguem. Tem sempre de contar, tem sempre de mostrar. O cinema é uma arte com pecado. No princípio para se ver cinema metia-se uma moedinha e tornava-se logo negócio, nunca se conseguiu libertar desse lado, porque é caro e tem de haver retorno. Depois é uma arte vampírica, não é uma coisa pura, vai buscar ao teatro, à música, à poesia... É uma ladroagem. Eu sou um vampiro. Por exemplo, este filme está estruturado em torno de dois pintores: um é Gerhard Richter sobre o desfoque e a percepção, por isso é que Pessoa limpa os óculos no início. Outro é Lucian Freud para a posição e aquele torcer dos corpos. E depois há um com que ando toda a vida que é o "sr Caravaggio". que me ensinou o que era a sombra e a luz, a luz pontual que ilumina uma mão e um olho. E depois há aquela memória que se me vai acumulando, a arte pop, cores fortes, os lábios vermelhos, os homens cinzentos e mulheres exuberantes...

No filme há 12 minutos de ópera, três fados, uma música estranha de Lula Pena, outra de Caetano, um bocadinho de rap numa cozinha - mas não é um musical. Em que género o inscreve?
Em nenhum. Podia ser assim como as peças do Brecht em que há sempre zonas musicas que comentam a cena anterior, Aqui as partes musicais, ligam, mais do que comentam. O Eisenstein fez a montagem de atracções, do pára e arranca, como a vida. Só que é cinema, não a vida. Logo é abstracto.

Conta-se que o Eisenstein queria filmar também algo tão impossível como O Capital...
Seria uma coisa genial. Garanto-lhe que se pode fazer um grande filme sobre O Capital, juro-lhe. As pessoas têm a mania que o cinema é uma coisa só, uma arte de se contar histórias, mas não é...

Talvez agora com o trecho "a minha pátria é a língua portuguesa" no seu filme as pessoas reparem que é um texto nada patriótico...
Porque Pessoa foi tudo, de direita, de esquerda, do centro e viva a contradição! Um génio! Eduardo Lourenço diz que esse trecho é a maior invenção desde as Descobertas. Ele diz que não se importava nada que nos invadissem, que viessem os espanhóis, desde que não o incomodassem pessoalmente. E acaba esse trecho com uma frase notável: "Eu não escrevo em português, escrevo eu mesmo". Depois há partes de um individualismo absoluto, sobre o isolamento e a capacidade de criar. No meu filme, ele acaba a dizer 'Deus sou eu , ah, ah ah'... (risos) É preciso ter muita lata...

Também é preciso ter muita lata para ter entrado neste universo pessoano?
Calhou-me... Caiu-me na cabeça. Estava numa fase estranha da minha vida, naquelas fases em que a pessoa nem sabe se está velho se está novo, e comecei a ler o Livro do Desassossego, em simultâneo com a Corte do Norte. Aquilo salvou-me. O que é o meu sofrimento ao pé deste? Aquele grande texto está para lá de nós. É um livro da abdicação e do prazer enorme de se estar sozinho. É um prazer enorme da solidão. É um tratado de escrita.

Fernando Pessoa dizia que Bernardo Soares era ele "sem afectividade nem racionalidade". Parece que sobra pouco para a sua personagem?
Sobra tanto, minha querida, sobra tanto... É a transcendência. A arte abstracta também não tem afectividade nem racionalidade e eu choro perante um Pollock. É emoção pura, arrepia-me, fico angustiado. Há coisas que nos deixam num estado superior da vida, levam-nos para cima. Há coisas que estão para além da expressão dos sentimentos... Há uma frase que diz que "quando a arte era a observância cuidada das regras havia poucos artistas e eram muito bons, quando a arte se transformou numa expressão dos sentimentos é uma porcaria, toda a gente pode ser artista porque toda a gente tem sentimentos..."(risos). Há coisas que estão para lá dos sentimentos, são construções...Quantas horas terá levado Pessoa a escrever isto, quantos neurónios terá gastado? Para escrever assim só mesmo levando uma vida anónima e desinteressante. E quando morreu aos 47 parecia que tinha 80...Como o Da Vinci parecia que tinha 100.

Porque é que optou por não estrear o filme no circuito comercial?
Esta é uma opção comercial, garanto-lhe. Os circuitos comerciais estão reduzidos a centros comerciais. A Corte do Norte foi esmagada por centros comerciais. Hoje quem vai ao cinema são crianças entre os 8 e 18 e querem ver entretenimento, com pipocas, telemoveis, galhofas, e medos e sustos. São contos para crianças, conta-se tudo em três minutos. No tempo dos grandes clássicos cada plano tinha dez ideias, agora uma ideia dá para um filme inteiro. Muitos efeitos, muitas imagens, três mil planos, os miúdos hoje só se concentram com o desfilar das imagens, se a pessoa lhe der um plano fixo, são incapazes de ver o vento nas árvores. Têm um cérebro, se calhar, muito maior do que o meu, mas não tem pensamento abstracto, não projectam geometricamente no espaço, não entendem as contradições e a dialéctica, mas têm gosto. Este filme vai ter mais espectadores e receitas nos cineteatros do país. E vou ter uma coisa fantástica que já não tenho há muito tempo: pessoas em silêncio a ver e ouvir.

Mas face a isso, essa opção, é uma desistência ou uma resistência?
É uma dissidência. Quando se é resistente perde-se sempre, ensinou-me Jean-Marie Straub. Porque é que eu hei-de de ter 10 mil espectadores se posso ter 40 mil? Se não posso ganhar as maiorias, quero ganhar as minorias.

Ana Margarida de Carvalho, Visão


É uma das obras mais arriscadas da filmografia de João Botelho: "Filme do Desassossego", adaptação do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, tem estreia absoluta no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, na próxima quarta-feira, dia 29. É uma obra central da literatura portuguesa, das mais traduzidas a nível mundial, que chega agora ao cinema, dando corpo a Bernardo Soares, o quase-heterónimo que Pessoa criou para espelhar a sua vida diária em Lisboa, e às projecções que Botelho construiu da cidade. Num gesto radical, o cineasta recusou distribuir o filme nas salas de cinema do país e optou por criar o seu próprio roteiro alternativo: depois da estreia, o filme será exibido numa rede de salas de espectáculo e de cineteatros espalhada pelo continente e pelas ilhas.

Como se adapta o "Livro do Desassossego"? É um livro em que tudo é relativo e o relativo é absoluto....
Podia fazer um filme de 50 horas ou 50 filmes de uma hora. O "Livro do Desassossego" não é um livro definitivo, é um livro aberto. Podíamos ir pela cronologia de vida, por associação de ideias. Mas quis uma cronologia na progressão: há um hiato de 15 anos entre a primeira fase do texto e o final, mais maduro. Qualquer um de nós pode fazer um "Livro do Desassossego": o Pessoa permitiu isso, é um puzzle sem fim nem solução. E isso é muito agradável no cinema. Tinha isso como ponto de partida: a ideia de que o cinema é aberto. Há três coisas no "Livro do Desassossego" que me levaram a esse risco. A primeira é a sua ideia de luz: devem iluminar-se as caras dos santos e as polainas das pessoas normais da mesma maneira. Pessoa ia ao cinema - o Richard Zenith [investigador pessoano e organizador da edição do "Livro do Desassossego" na Assírio & Alvim] disse-me que havia textos inéditos dele sobre cinema. Depois, havia um texto sobre a distorção do tempo. Como o tempo do cinema nunca é o da vida, isso deu-me a estrutura do filme. Parece que se passa em três dias e três noites, e depois em três minutos, mas na verdade passa-se no tempo real do filme. Por fim, havia uma afirmação fundamental: o "Livro do Desassossego" só existe em voz alta. Isso permitiu-me brincar com canções e óperas.

Essa oralidade torna a adaptação cinematográfica difícil devido à presença da declamação. É um filme em que toda a cidade tende para a literatura, o que pode ser sufocante.
Mas a ideia é sufocar. O grande risco está em não permitir que os actores interpretem o texto; não queria que acrescentassem sentidos abusivos. Por outro lado, queria tornar o filme o mais abstracto possível, com índices de realidade e de inverosimilhança e uma geografia de Lisboa fora do tempo, que tanto pode ser de há 30 anos como de daqui a 50. O filme são fragmentos em série, tal como a escrita de Bernardo Soares. Bernardo Soares está cada vez mais angustiado, e, quando parece que atinge o sossego, fica de novo desassossegado. Dá-nos armadilhas sucessivas, como quando diz "a minha pátria é a língua portuguesa" e a seguir "não escrevo em português, escrevo eu mesmo". O grande problema é ser digno do texto e não o violentar. Se calhar, o ideal seria fazer como o João César Monteiro, só com negro e texto. Mas precisava de uma Lisboa abstracta que permitisse a circulação de alguém que não é uma pessoa igual ao Pessoa, mas um quase-igual.

De onde vem a sua relação com o livro?
Estava numa crise de vida, comecei a ler o livro e não parei. O meu sofrimento, ao pé daquele, era ridículo. Salvou-me porque era um livro muito violento sobre a abdicação. Diz que não é preciso dançar, basta ver dançar. A grande dificuldade foi escolher o que deitar fora, trabalhei seis meses até chegar a uma solução razoável. Sei que é apenas uma das hipóteses de filmar o "Livro do Desassossego". Há textos que deixei quase integrais, como "Educação Sentimental", um dos mais comoventes que já li. Queria chegar à origem, fazer o grande plano da matéria do texto na sua boca. Chegar a isso foi muito atractivo.

Como é que se consegue ser livre a adaptar um livro com uma carga cultural tão pesada?
É-se livre quando se arrisca. O texto é do "Livro do Desassossego", mas fiz alterações para haver ligações. Ser livre é usar uma premissa que aprendi com Godard: pôr tudo num filme. Lumière é o meu início do cinema, mas este filme está cheio de Méliès: há vidros pintados à frente da câmara, sombras projectadas com papéis e um projector no chão. Tenho coisas feitas à mão, algo que me interessava experimentar. Há muitos planos feitos contra o espelho para dar uma inquietação da imagem. Não tinha muitos meios, mas gosto de filmar as ideias, como a ideia da morte e a ideia do sexo, sem "voyeurismo". Isso sim é complicado.

Como é que se filma o sonho?
Não há um único sonho, são cenas de ficção. Bernardo Soares inventa conversas como, por exemplo, a de Rita Blanco com Miguel Guilherme sobre a literatura e a gramática. Bernardo Soares diz: "Eles nunca disseram isto, inventei esta cena porque achei que deviam falar assim" . Interessava-me a possibilidade de uma ficção quase sem ficção. O cinema é uma associação de ideias, gosto que o cérebro circule, que não existam soluções mas inquietações. É um filme cheio de perguntas sobre a forma e as situações. No final, o livro não é dele: Pessoa inventou uma personagem e Bernardo Soares inventou as pessoas. E o que é decisivo nele é a maneira de escrever. Nem é o que está escrito - é a maneira como ele escreve. No texto da morte do Luís II da Baviera, dei conta de que podia dividi-lo em rimas musicais, como nas canções do filme. Queria afirmar a musicalidade de Pessoa.

Existe também uma ficção da cidade, cenas em que as paisagens de Lisboa se sobrepõem.
Interessou-me um texto dele sobre o cubismo. Filmei quase tudo a 50 metros de minha casa. É uma liberdade do cinema: ele vive na Rua dos Douradores, mas filmei-o noutro sítio. O escritório é o Arquivo Histórico Militar em Chelas, o mais angustiante que encontrei - são corredores de 80 metros de prateleiras com a nossa vida. Quis mudar a geografia de Lisboa porque Pessoa foi o maior viajante do mundo sem nunca ter saído da cidade. A sua escrita tem muitos níveis: psicanálise, psicologia, sociologia, textos de direita, de esquerda, anárquicos. É a fragmentação de um mundo sem centro, tal como o mundo de hoje. E isso é uma premonição em relação ao futuro.

Não existe o perigo de recriar a Lisboa de Pessoa como um postal?
Sei que Pessoa frequentava o Terreiro do Paço e gostava de estar no Cais das Colunas. Pôr a Lula Pena a cantar "O Criador de Argonautas" quando a personagem está em contraluz em relação à paisagem serve para atenuar isso. Pode parecer um postal, mas por outro lado é o meu Infante, é a perda do mar.
Quando abordo a solidão do Pessoa quanto à ideia de Deus, fui buscar a Igreja da Inquisição mais negra, com mais passado e peso cultural sobre Lisboa, onde houve um incêndio e se faziam os autos de fé. Quis uma geografia que destruísse a ideia do postal bem feito. É evidente que não podia fugir à Rua dos Douradores, aquela rua miserável e pequenina que foi uma grande parte da vida dele.

Acha que a Lisboa de Pessoa ainda está presente?
Sim. Ele pensava o futuro. Há uma luz que se faz em certas pessoas, como quando se faz as "Demoiselles d'Avignon" e se muda a pintura do mundo. Sei que os heterónimos já existiam, mas Pessoa criou um mundo de escrita, uma nova maneira de ligar as palavras portuguesas. Tive a sua arca comigo quando fiz "Conversa Acabada" (1982) e nem se sonhava com o "Livro do Desassossego", só se ouviu falar dele alguns anos depois... Encontrei folhas que pareciam can¬ções do Cole Porter. Ele meteu-se em tudo, era um cérebro descomunal.
Outro elemento do presente é a maneira como associa as actrizes às imagens a que estão associadas na representação ou na vida: a Mónica Calle como corpo nu, a Margarida Vila-Nova como mãe, a Ana Moreira como rapariga pálida, a Alexandra Lencastre como centro da mesa...
É a democracia do texto - utilizar os actores como são. O Cláudio da Silva, que interpreta o Bernardo Soares, anda com a manca que realmente tem. Quando diz que tem dificuldade em andar, é um texto meu, tive de justificar um actor que teve pólio na infância. Esse defeito (ou virtude) físico permitiu-me criar um desequilíbrio, sem o disfarçar. Trata-se de não esconder ou alterar as pessoas, poderem ser elas a dizer um texto de Pessoa. Peguei na minha família de actores e juntei outros, como a Maria Antunes, que trabalha no Lux e é a minha Vénus de peles. Quando filmo, pego sempre em dois pintores: peguei em Lucian Freud para filmar os corpos e em Gerhard Richter para a desfocagem. Depois destruí-os, porque é algo que não sei fazer, mas há sempre um ponto de partida de re¬erência. São matérias e convocações que me ajudam. Há coisas do Griffith neste filme, são memórias.

Como objecto cultural, o "Livro do Desassossego" também tem uma função escolar. O filme não vai passar nas salas de cinema e vai ser distribuído numa rede de teatros e escolas.
Vou fazer sessões à tarde em que vou falar de cinema, e também para os alunos das escolas e das faculdades. Há filmes que precisam disso. Fiquei muito triste com "A Corte do Norte" (2008): é uma boa adaptação de um livro da Agustina Bessa-Luís e fez uma merda de espectadores, desculpe a expressão. Já chega de salas de coca-colas, perdemos as salas todas. No centro do Porto, não há uma sala de cinema; em Lisboa, só em centros comerciais. É preciso criar dignidade no cinema, Inspirei-me no "Miserere" da Cornucópia, há uns meses, no Teatro Nacional D. Maria II. Estavam lá miúdos, uma confusão enorme, telemóveis ligados. Começou a peça e calaram-se, viram-na religiosamente. A dignidade da sala impôs respeito. E é também a ideia do cinema ambulante: uma carrinha e um projector, Somos apoiados pelo Estado, por isso devemos fazer serviço público. Não se pode estar numa sala a ouvir o texto de Bernardo Soares a comer e a beber.

As salas de cinema já não são dignas dos filmes?
Não. É uma coisa para aventuras infanto-juvenis. A maioria das pessoas que vão ao cinema são miúdos. Os adultos têm mais relação com as séries televisivas americanas, onde há mais cinema clássico, do que em filmes com três mil planos. Hoje, ir ao cinema é consumir, tanto faz comprar sapatos como ver um filme. Desapareceu a ideia da sala escura, a dignidade do espectáculo. Os adultos vêem em casa, com agrado, os "Sopranos" e o "The Office", que é uma invenção inacreditável do ponto de vista cinematográfico; eles olham para a câmara e não se sabe se é verdade ou mentira. Os miúdos vão às salas porque é uma aventura de adolescentes. Há miúdos que acham que o cinema começou com o Tarantino!

Mas que futuro é que as salas têm se cineastas que carregam a história do cinema já não passam lá os seus filmes?
É preciso fazer novas salas.

Mas se tirarmos os espectadores delas...
É preciso inventar circuitos de arte e ensaio que não sejam de consumo imediato. Quero chegar ao máximo número de pessoas, nunca penso fazer 300 mil espectadores, mas quero, pelo menos, 30 mil, não três mil. E a maneira de o fazer é com projecções no país inteiro. Depois, faço uma sessão na Aula Magna para 1.400 pessoas. Vou também a outras universidades arrastar as pessoas para uma sessão.

Vai seleccionar os seus espectadores...
Quem me dera que fosse para todos, mas não querem. Se eu pusesse o filme numa sala comercial, destruíam-me.

Numa sala comercial com 20 espectadores. 19 podem detestar o filme, mas há um que adora. Pode mudar a vida desse espectador.
Mas os 19 que detestam incomodam a pessoa que adora. Quero um sítio onde as pessoas sejam livres, sem telemóveis a perturbar a atenção. Como dizia o ManoeI de Oliveira, bastam dois espectadores para o filme existir, mas temos de chegar ao maior número de pessoas possível. Em Portugal, se o cinema não for apoiado pelo Estado, não existe. Os filmes que se dizem comerciais dão mais prejuízo do que os filmes de arte e ensaio. Não saem de cá e o mercado português não dá para pagar um décimo do filme. Somos apoiados pelo Estado, por isso temos de devolver a atenção que o Estado nos dá para ganhar o maior número de pessoas. Trata-se de dar a possibilidade de existir a um cinema que pensa.

Mas custa-lhe não poder fazer isso com outros filmes? Porque o "Livro do Desassossego" é um objecto que, à partida, permite...
Pode ser a inauguração de uma rede. Comprámos um projector para ir de sala em sala, vamos tentar pagá-lo com a exibição. Há teatros fantásticos: uns dão a receita, outros compram a exibição. Numa sala de cinema, o distribuidor dá apenas um quinto do bilhete ao produtor.
Francisco Valente, Público


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