(porque a Leonor Noivo poderemos ser nós a 'entrevistar' ao vivo :D
Para encerrar 2009, o Ano Europeu da Criatividade e Inovação, ao lado de uma releitura de "Grandes Esperanças” de Charles Dickens, propomos uma conversa em 7 actos com Tiago Hespanha (Coimbra, 1978), jovem realizador de documentários.
Após uma licenciatura em Arquitectura pela Universidade de Coimbra e dois anos de prática nesta área Tiago Hespanha decide concorrer a um atelier de cinema promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian sob a direcção dos Atelier Varan e decide trocar a arquitectura pelo cinema. Em menos de quatro anos realizou três curtas metragens - Quinta da Curraleira (2006), O Presente Que Veio de Longe (2008) e Visita Guiada (2008) – que estiveram presentes em diversos festivais nacionais e internacionais como o IndieLisboa ou os États Géneraux du
Film Documentaire de Lussas em França. Ao abrigo do programa de estágios internacionais da DGArtes, Inov-art, partiu para Paris, onde se encontra até ao final do ano a colaborar de novo com os Ateliers Varan.
Em Fevereiro viaja para Barcelona para continuar o seu périplo de residências internacionais.
Tiago pertence à famosa “geração Erasmus” partilhando com um grande número de criadores uma nova concepção de mobilidade e de identidade. Entre Norte e Sul, Este e Oeste europeus o domicílio deixou de ser fixo, porém, como reflecte em Visita Guiada a questão do ponto de partida e dos mitos originais de um país são revistos e filmados por alguém que questiona o valor de uma geografia histórica e política.
Dezembro de 2009
Por Sílvia Guerra
Desde a realização da curta Quinta da Curraleira (19 min.), de 2006, aquando do teu primeiro estágio nos Atelier Varan, surge a questão da identidade nacional sob a metáfora dos
pombos correios que voltam sempre ao pombal, em certa medida como a nova geração de “estrangeirados”. Cruzamos horizontes para tentarmos compreender como poderemos ver a
paisagem neutra, ou com bandeiras fictícias do futuro? Como interpretas esta questão da identidade?
Hoje mesmo falei com alguém que me disse que detesta viajar porque quando viaja tudo lhe parece extremamente artificial. Não aprofunda nada e sempre que viaja farta-se de chorar. Terminou a dizer que levou toda a vida para aprofundar os pequenos objectos que acumulou ao longo dos anos. Esta foi uma resposta que me desestabilizou porque sempre pensei exactamente o contrário, sempre tive ânsia de viajar como se ao viajar fosse alargando o mundo. Mas
acredito, e aí concordo com ela, que a viagem se faz sempre no interior e por isso nem sempre é preciso sair do sítio, viaja-se muito com o cinema, com os livros, com a música... Ao contrario de nós, os pombos correios não têm a iniciativa de partir para lado nenhum, eles limitam-se a voltar sempre ao ponto de partida, da viagem só conhecem o regresso. Para mim o regresso nunca é um retorno ao mesmo sítio, ou melhor é um retorno ao sítio de onde parti mas nem esse sítio, nem eu, já não somos os mesmos.
Para mim a questão da identidade tem algo a ver com esta permanente alteração, porque a identidade reside em cada um de nós e altera-se connosco, mas também tem a ver com os veículos por que se transmite e as coisas em que se deposita. Vou só dar um exemplo,
no filme Visita Guiada a questão da identidade era um tema de trabalho, interessava-me trabalhar no filme a forma como os guias intérpretes de turismo transmitem aos turistas o que é Portugal.
Era-me impossível saber como é que cada turista representava o país a partir do que via e ouvia mas havia alguns pontos comuns, por exemplo, todos os guias que visitavam a igreja do Mosteiro dos Jerónimos paravam em frente ao túmulo de Camões e faziam os seus discursos, cada um à sua maneira e consoante o momento - claro! - no fim todos os turistas fotografavam o túmulo. Naquele momento todos sabíamos que o Camões não está ali e que o túmulo é do séc. XIX, mas
nem por isso, em face daquele “objecto”, deixámos de nos sentir próximos de Camões, e essa é uma sensação também física. Aquele objecto naquele sítio é um depositário de identidade. A identidade tem algo a ver com esta sensação de proximidade, com a identificação de uma coisa que está ali a apontar para outra que está dentro de nós e que é diferente para cada um. Cada cultura vai acumulando objectos depositários de identidade e dentro de cada cultura também cada pessoa. Nestes três filmes, de formas muito diferentes, trabalhei algumas sequências a partir desses objectos, do seu reencontro em situações diferentes, do cruzamento do que é a sua materialidade e a sua representatividade.
Cinema-Realité, a fórmula é hoje quase anacrónica. Será a realidade a única ficção que ainda nos resta?
O Cinéma Realité foi uma expressão como um grito de autonomia, uma excitação partilhada pela visão de um novo campo de possibilidades que se abria nos anos 60. Finalmente o cinema era
possível em qualquer sítio e em qualquer momento, parado ou em movimento! E o que, em parte, esse cinema veio mostrar foi que a realidade é composta de todas as ficções individuais que cada um monta a partir dela. Fazer um filme, documentário ou ficção, é sempre (re)criar a realidade, construí-la de outra forma, isto é, ficcioná-la. Manipular o tempo e o espaço, a informação e a sugestão, a sensação e a emoção, para criar ficções do real.
No filme documentário muitas vezes o recurso à voz off parece ser a ponte pretendida com o íntimo pessoal. Em Visita Guiada esta voz off desaparece para ser a voz dos personagens
reais/fictícios? Onde está localizada esta fronteira entre realidade e ficção? A fronteira entre a realidade e a ficção tem sentido?
Não. O cinema é por princípio a arte da ficção e no entanto o dispositivo técnico foi criado na tentativa de representar fielmente a realidade, só que quebrando o tempo e o espaço, o cinema catapulta a realidade para o território da ficção. Não acredito numa fronteira muito definida entre a realidade e a ficção, ambas existem uma dentro da outra. Tanto no cinema de ficção como no documentário o grande desafio é criar algo em que o espectador acredite. À partida quando
vamos ver um documentário estamos preparados para acreditar e por mais incrível que seja acreditamos sempre no que estamos a ver, na ficção o jogo é mais complexo porque deixamo-nos acreditar ainda que saibamos que é mentira. É impressionante, há coisas que só são possíveis de acreditar em documentário, coisas / acontecimentos / afirmações / situações que montadas numa ficção nenhum espectador acreditaria. Tenho visto filmes muito bons em que os realizadores baralham os termos, jogam com os princípios do documentário e da ficção, estou a pensar por exemplo num filme que vi esta semana o “Les Bureaux de Dieu” da Claire Simon, ou no “Jogo de Cena” do Eduardo Coutinho.
Na questão da voz off o que gosto mesmo num filme é de sentir a voz do autor, seja off ou in ou sem que ele fale por palavras, ou seja, gosto de sentir que o que me está a ser dado viver corresponde à visão e à subjectividade do autor. É esse assumir da sua visão de mundo que me
aproxima do seu íntimo. Há dias uma realizadora dizia que quando mostramos um filme nosso ficamos nus perante os espectadores.
No meu filme O Presente Que Veio de Longe utilizo a minha voz para contar uma história, é uma voz off porque não apareço a falar, só aparecem as minhas mãos, mas essa voz, na verdade foi captada em directo, pertence àquelas imagens. Na altura decidi fazer o filme assim porque tudo se passa numa oficina de construção artesanal de cavaquinhos e eu queria que a construção do filme também fosse artesanal.
Como vês a situação do cinema em Portugal, economicamente, politicamente e pessoalmente? Sinto que há muita gente a fazer primeiros filmes e isso é muito bom, mas o problema é como fazer os segundos e os terceiros e por aí adiante. Como é que pode viver a fazer filmes é a grande questão económica, política e também pessoal.
Nestas tuas experiências de ateliers e residências vives numa certa mobilidade de domicílio permanente. Como é criar nestas condições? Qual é a experiência que te foi mais gratificante?
Essa constante alteração dos contextos em que trabalho é uma coisa que me dá imenso prazer. Acho que essa possibilidade foi uma das razões que me fez afastar da arquitectura, custava-me passar os dias fechado no atelier, sentia-me demasiado longe da vida, como se o mundo me escapasse. Por outro lado também sinto necessidade de consolidar algumas coisas, como relações de trabalho, o investimento num espaço de trabalho onde possa acumular e organizar coisas, o diálogo com outras pessoas que criam à minha volta... Todas estas são coisas que precisam de tempo de sedimentação, de um investimento continuado.
No entanto estas duas saídas, este semestre em Paris e o próximo ano em Barcelona, são oportunidades únicas e os tempos em que acontecem só se escolhem em certa medida, depois há que seguir. A possibilidade de fazer este estágio com os Ateliers Varan beneficiando de uma bolsa do programa Inov-art é uma oportunidade daquelas que não se repetem muitas vezes. Isto porque estas bolsas são boas, o que me permite usufruir da cidade onde estou, e porque o trabalho foi proposto por mim. Esta é aliás a grande virtude deste programa que dá condições e liberdade aos bolseiros para decidirem o que querem fazer.
Os problemas vêm depois porque as condições que este programa dá nada têm a ver com as condições de trabalho que existem em Portugal.
E agora respondendo directamente à pergunta, o trabalho com os Ateliers Varan tem sido bastante gratificante. Este é um sítio altamente estimulante para quem trabalha em cinema documental. Os Ateliers Varan são um núcleo de realizadores e montadores de cinema que paralelamente aos seus trabalhos pessoais constroem e partilham este espaço como uma possibilidade de redescoberta, experimentação e discussão do cinema. Esta minha passagem pelos Ateliers Varan foi como um mergulho numa utopia que eles vêm construindo há quase
30 anos. Ao acompanhar as actividades diárias dos Varan conheci imensas pessoas, acompanhei formações e desenvolvi projectos que lhes propus, que se tornaram comuns e que vão continuar. O que é mesmo gratificante aqui é estar num meio em que o diálogo é fluído e a experiência do cinema é o mais importante.
A interdisciplinaridade das artes, o cinema no museu, Zidane, Um Retrato do Século XXI (de Philippe Parreno e Douglas Gordon), entre a feira de Basel e as salas de cinema. Para ti que
vês a paisagem da arquitectura como um cenário do qual conheces a prática, que conheces o teatro como actor, e que no cinema captas a vida em movimento sob a tua respiração, como
vês esta modernidade transversal?
Tendo um percurso tão difuso como esse que aqui resumes (ele é talvez ainda mais difuso) a transversalidade é uma coisa que incorporei e em que deixei de pensar. Ás vezes pergunto-me porque é que me propuseram determinado projecto ou como é que vim parar onde estou
a trabalhar mas também já percebi que isso faz parte do processo de apropriação e adaptação a uma linguagem. Só não gosto muito do termo transversalidade porque faz-me sempre pensar num corpo deitado, adormecido, a trespassar uma série de domínios. O que mais me interessa na possibilidade de trabalhar em várias áreas são os encontros que isso possibilita, normalmente são relações em que se descobrem muitas coisas, e algumas delas só vêm depois a desenvolver-se mais tarde.
Mas há uma coisa em que a euforia da “transversalidade” ou da “multidisciplinaridade” é altamente desinteressante e que tem a ver com o tornar-se um valor em si mesmo. Houve uma altura em que todas as companhias de teatro compraram projectores de vídeo e em todos os espectáculos tinha de haver uma projecção, ao mesmo tempo, todas as novas salas de espectáculos se tornaram multifuncionais.
Enquanto isso os antigos cinemas e cine-teatros foram sendo abandonados ou transformados em hotéis e restaurantes. Tive um professor de arquitectura em Paris que dizia que um espaço multifuncional é quase sempre um espaço sem função nenhuma.
Quanto aos filmes não tenho dúvidas que a imersão do espectador no filme é um factor fundador do cinema, os personagens no ecrã são por definição maiores que o espectador e isso tem as suas consequências.
O filme Zidane vive e alimenta-se do dispositivo cinema, é na imersão do espectador, no filme como experiência física e emocional, que ele ganha significação.
Brecht dizia (na Ópera dos Três Vinténs, 1928) que o que mantém a Humanidade viva é a comida. O que é que mantém, na tua opinião, hoje, o cinema vivo?
A quantidade de pontos de vista que há no mundo e o fascínio produzido por um dispositivo técnico que é mágico e se relaciona directamente com o inconsciente.
Está neste momento, até Março de 2010, na Cinemateca de Paris uma grande exposição sobre a lanterna mágica e o filme pintado. É incrível ver a quantidade e a variedade de aparelhos e técnicas que desde o séc. XVII se inventaram para se projectarem imagens e as pôr em movimento. Todo esse percurso, mais do que da história do cinema, faz parte da história de um observador que não deixou de se redefinir ao longo do tempo, e essa alteração continua hoje, é a nossa própria percepção que se está a alterar. E o cinema ao mesmo tempo que participa deste processo reflecte também os seus efeitos. Não só no cinema se reflecte uma visão do mundo como ele é também matéria que usamos na construção do mundo que vemos.
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