a hora do lobo de bergman: loulé aqui tão perto. 3ªf, 18h.

Escolha de Daniel Barroca. Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

“Os antigos a chamavam de ‘a hora do lobo’. É a hora em que a maioria das pessoas morre… e a maioria nasce. Nesta hora, os pesadelos nos invadem”.
Exatamente na metade do filme, quando o insone pintor Johan Borg (Max Von Sydow) fala sobre a hora lupina à sua esposa Alma (Liv Ullmann), sob a luz fremente de um único palito de fósforo, Bergman finalmente nos engole para o outro lado do redemoinho sobre o qual apenas circundávamos até então. E o filme todo é como um singrar entorpecido em direção aos núcleos subterrâneos da mente, diluída, aqui, na solvente atmosfera da madrugada.
Começo dizendo que A Hora do Lobo é um dos meus filmes favoritos de sempre, e o melhor do sueco doido em questão. Não apenas pelo salto incontido sobre o surrealismo, mas por manipular como nenhum outro os demônios e pesadelos de um personagem, transformando-o num mergulho inédito (ao menos nunca visto tão intensamente) adentro dos traumas, dos conflitos, dos medos e, essencialmente, da solidão.

Porque mais que pela paz ou pelo bem do seu trabalho, o isolamento naquela ilha traz Johan para um isolamento em si próprio. Daí que é irrelevante a existência ou dos “canibais”, ou da sua mulher ou até dele mesmo quando tudo se afunila (ou se “expande”, que pode ser o termo correto) num verdadeiro universo mental, que embora chamado de “irreal”, talvez seja o nível mais puro e nuclear de todos.

E uma das coisas mais notáveis em A Hora do Lobo é a indefinição de quando, precisamente, começa o alucínio, o vazamento da matéria-prima flutuante dos sonhos para a densa materialização na tela. Isso se de fato começa, ou ainda se está ali desde o início… assim como Bergman não deixa nenhum detalhe que decida derradeiramente que Alma viva apenas na imaginação de Johan, ou que Johan só exista na inconsciência de Alma (cujo nome, aliás – também utilizado na obra-prima Persona – já pressupõe a subdivisão de uma única pessoa em duas, ou se considerarmos os moradores do castelo, várias).
Basicamente tudo se esclareceria se soubéssemos quem, afinal, escreveu aquele diário. Mas acontece que por natureza A Hora do Lobo é um filme de sombras, e Bergman está sempre interessado em perguntas, não em respostas, de modo que a resume grosseiramente a mera pretensão de ‘decifrar’ a obra (e na verdade qualquer outro filme, porque cinema é feito pra se sentir, não para se decompor como a uma equação). Respostas, neste caso, são a mais sólida e impermeável imposição de limites; cercanias num terreno onde a imaginação deve ser livre para se alastrar a galopes.
De todo modo (e se já levemente percorrida até aqui por varizes de trincos), a identidade deste protagonista secreto se estilhaça no momento em que Alma põe os olhos no caderno de Johan (com a ajuda da velha do chapéu, originalmente um dos demônios do seu marido), e é precisamente quando a manipulação do tempo (este deus absoluto) é disparada numa potência até hoje desconhecida e talvez irrepetível na história do cinema (apesar de David Lynch ter feito um trabalho inexplicável em Império dos Sonhos, mas isso é outra coisa). Porque A Hora do Lobo é todo sobre o tempo projetado na lâmina da mente e refratado em uma nuvem de pedaços. Taxá-lo simplesmente de “não-linear”, aliás, é quase um insulto, como pedir para que o próprio Bergman desça e lhe assombre à noite, e quem conhece sabe que o diretor sueco é um fantasma eterno e onipresente sobre quem o assiste (alguns momentos do próprio A Hora do Lobo são especialmente traumáticos).
Mesmo que não esteja saliente como mais tarde, uma delicada névoa de pesadelo já pesa sobre o filme desde o início, mostrando-se mais forte durante a cena do jantar. De cara Bergman entorpece o espectador numa ciranda ao redor da mesa, deformando e diluindo os rostos como se uma pintura ainda fresca de Johan (o que, por um lado, não deixa de ser literalmente verdade) fosse girada sobre o próprio eixo. A partir daí, a imagem quase sempre se solvendo é uma prevenção de que os sentidos e os valores baseados num mundo concreto começam a se desmanchar.
É assim pela cadência célere dos diálogos, dos movimentos de câmera abruptos e dos closes opressivos, resultando num efeito de quase vertigem como que a noite vista detrás dos olhos de Johan (embora a câmera não seja propriamente subjetiva). O que se segue é uma madrugada envolta num manto surrealista todo baseado no comportamento bizarro dos moradores do castelo. O teatro de marionetes inclusive brinca com as noções do espectador de até quando as projeções da mente invadem o terreno do concreto, e neste caso é o próprio Bergman que compõe esta cena assumidamente ficcional, na luz que se apaga sozinha como por ordem do ‘diretor’, na marionete viva, na música de uma banda ou aparelho inexistente (de novo, o próprio Lynch faria algo semelhante – mas bem mais evidente – no clube do silêncio de Cidade dos Sonhos). É ele quem convida a nos soltarmos de quaisquer amarras ao sobrepor o nível ‘cinema’ ao nível do sonho e da imaginação, forjando-os indissociáveis a partir daqui. Ou se crê no cinema como extensão do imaginário, ou se abandona A Hora do Lobo.

E o filme é intensamente perpetrado de um feitiço, como que cercado de bruxos, círios e pentagramas. Porque, sob a luz encantada da hora lupina, as coisas mudam de cor, de forma, a densidade das massas toma outros valores, as ligações com o mundo real são corrompidas. Quando “Vargtimmen” se acende na tela, um último resto de sanidade se apaga.
Perdidos na escuridão dessa hora, Alma e Johan conversam e conflitam traumas como se memórias perigosas fossem todas trazidas de volta pondo a mente à beira de uma eclosão. A cena catalítica de A Hora do Lobo envolve exatamente o pior dos fantasmas de Johan: a infância, também angular em toda produção artística do próprio Ingmar Bergman (sabe-se que Bergman sofreu demais nas mãos do pai, um pastor luterano fanático). A confissão do episódio do armário é uma confissão do diretor, e a morte do garoto, uma tentativa de exorcismo (o que já é praticamente um resumo do que guiaria sua filmografia).
A cena em questão é das coisas mais perturbadoras e insuportavelmente tensas já filmadas. E é lindo. Pescando num golfo, Johan se vê extremamente incomodado pela presença de uma criança. O garoto se aproxima, observa o quadro e o cavalete com certa curiosidade, conta os peixes fisgados, mexe nas botas, troca olhares indecifráveis com o pintor. Quando ele simplesmente pára nas costas de Johan, o crescente de um zumbido laminal estoura na trilha. O contraste entre a imobilidade dos dois e a aceleração sonora já quase navalhando os ouvidos apenas torna tudo ainda mais incômodo, angustiante, nocivo. E a seqüência da luta é especialmente tóxica para os sentidos. Há toda uma harmonia perfeitamente sincronizada entre a ação e a trilha, que golpeia os ouvidos conforme Bergman agride nossas retinas. Mas o teor realmente assombroso de toda a cena é a visão inexplicável do garoto afundando e emergindo na água igualmente morta e com um aspecto grotesco de óleo diesel (a fotografia do lendário Sven Nykvist joga a maior parte dos tons de cinza no lixo). E o sueco decreta: os porões da memória são sempre os piores cadafalsos.

A partir de então Johan submerge-se totalmente, embebe-se no visgo dos próprios traumatismos e afoga-se na saliva dos seus demônios, reencontrados, aliás, um a um pelo seu percurso doentio através do castelo. E é impressionante a precisão de como a lógica torpe de um pesadelo tenha sido representada. As peculiaridades dos seres, a régia toda deformada dos diálogos e o sopro mediúnico do lugar são pilares de uma construção atmosférica sem nenhum paralelo, transformando o terço final de A Hora do Lobo numa das experiências cinematográficas mais intensas e absurdas às quais alguém pode ser submetido.

E a imagem, a partir daqui, toma uma proporção imperativa, mostrando-se inesquecível durante várias situações criadas pelo diretor. A sucessão de ações no limiar do tétrico e do divertido, do repulsivo e do sedutor, do melancólico ao colérico (e Bergman realmente patrola as fronteiras das sensações; aproxima, mistura e dissolve os extremos numa massa homogênea) termina por compor uma tatuagem na pele da memória, e o sentimento evocado ao se olhar para este painel é qualquer coisa à qual ninguém pôde, ainda, nomear.
O que se segue é uma queda livre e irreversível no abismo interior. E no fio do vértice, aparentemente morta sobre uma mesa, nua e linda, iluminada apenas por uma lâmpada incandescente, está uma mulher. O olho do vórtex, o ponto de união do verso e antiverso desta mente que se encontra em pleno desmoronamento. Verônica Vogler é um portal, uma passagem só de ida para outro mundo. E partindo da esquizofrenia do próprio filme, não se sabe ao certo se é a opção definitiva de Johan pelo pesadelo ou finalmente sua fuga dele.
E é lindo, apesar de todo o horror, da violência, de toda tristeza implícita na contemplação quase sádica deste mórbido espetáculo do colapso de uma constelação mental; é lindo pensar que um filme que comece e termine num tom documental tenha sido inteiro concebido no interior de um sonho.


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