Trás-os-Montes, região esquecida e despovoada, vítima de promessas políticas incumpridas. O anúncio da construção de uma barragem ameaça a centenária linha ferroviária do tua. A identidade do povo transmontano está em risco de submergir.
Crítica

Cheio de cinema, humor, melancolia, emoção, ritmo, música (composta à medida das imagens), indignação legítima, informação útil, rádios locais com discos pedidos que unem quem ficou na terra aos que trabalham no estrangeiro e gente pitoresca e genuína que se manifesta sem papas na língua ("A barragem, que atirem com ela ao rio, que se f...", diz um velhote a certa altura), Pare, Escute, Olhe é um filme político mas apartidário, de intervenção mas não propagandístico, cuja causa é o bem maior de todos nós. Senhor Mexia, tire lá meia hora e vá vê-lo.
Eurico de Barros, Diário de Notícias
O documentário que agitou o Doc
Um filme - "Pare, Escute e Olhe", de Jorge Pelicano - e os três prémios que ganhou no DocLisboa 2009 abriram a polémica: está o festival de cinema documental contaminado pela televisão e a premiar um produto de TV? Não, dizem os defensores: o filme não só é cinema como tem uma capacidade de comunicar com o público, coisa que muitos não têm. Está sim, contrapõem os críticos, quando o que devia fazer era valorizar quem experimenta fora dos formatos. Que festival deve ser o Doc?

Documentaristas, produtores, críticos, espectadores dividiam-se, uns em defesa do filme de Jorge Pelicano - sobre a desertificação do interior e em defesa da linha de comboio do Tua que corre o risco de ficar submersa debaixo de uma barragem - outros classificando-o como "reportagem de televisão". Houve até quem saísse da sala ao fim de pouco tempo. Enquanto muito do público aplaudia o filme na sessão e discutia com o realizador o futuro da linha do Tua, no Facebook abria-se um debate sobre o que deve ser o programa editorial de um festival de documentário: serve para ver cinema ou para ver televisão?
"O DocLisboa é um festival de documentário. E o documentário ou é cinema ou não é documentário. [O filme vencedor] não é um documentário, é um produto de televisão", afirma o produtor Pedro Borges, da Midas Filmes. "É grave as pessoas acharem que já não há diferença entre um documentário e um programa de televisão".
"O filme do Jorge Pelicano não é um produto televisivo típico", diz, por seu lado, Sérgio Tréfaut, director do Doc. "Recusamos imensos programas de televisão, feitos para um canal de televisão. Este é um filme, é um trabalho que demorou três anos a ser feito". Não há dúvidas, para Tréfaut, de que "‘Pare, Escute e Olhe' não tem uma duração televisiva, nem formato clássico de televisão - tão característico das últimas décadas de retratos de artistas. É um documentário político, engajado, com linguagem provocadora, directa e informativa, herdada da televisão mas pouco habitual em Portugal".
Catarina Alves Costa é documentarista. E o que a surpreendeu não foi a presença do filme no festival, que considera legítima; foi o facto de ter ganho três prémios. "Não acho que seja um programa de televisão e não acho que o facto de estar no festival seja um problema. O que acho estranho é ter ganho logo os três prémios. Porque é um filme que vem de uma linha de reportagem, sem uma relação de proximidade com as pessoas, sem uma atitude cinematográfica clara. É um acumular de provas. É a lógica da reportagem, que mostra que há um problema e aponta uma solução".

O Doc mostra de tudo, contesta Tréfaut, embora "exclua regularmente documentários feitos apenas para televisão". Mas, na opinião do director, "o pior é quando se nota que alguém quer apenas ‘ser artista' ou ‘ter estilo' sem entrar em diálogo com ninguém". Acha "deprimente ver que alguém se preocupa mais com a sua aparência, com o estilo da sua assinatura, com ‘o que está na moda', do que com o sentido, o valor e o interesse da obra que está a tentar produzir".
O festival que organiza está "vivo, não está mumificado ou preso a categorias estéreis". E dá como exemplo quatro filmes da competição nacional, com características muito diferentes - uns mais experimentais, outros menos - mas que, acredita, têm todos potencial para estrear em salas e "juntos fazerem dezenas de milhares de espectadores": "Pare, Escute e Olhe", "Com Que Voz", de Nicholas Oulman, "Lisboa Domiciliária", de Marta Pessoa, e "48", de Susana Sousa Dias. Este último, acrescenta, "provavelmente o mais ousado e vanguardista que recebemos, foi ovacionado pelo público e até reconhecido como uma obra prima pela imprensa brasileira, como é o caso de Amir Labaki na ‘Folha de São Paulo'".
Falta de produtores?
E, no entanto, foi o filme de Pelicano que o júri entendeu premiar. Porquê? Guy Knafo, francês e ligado à distribuição televisiva a nível mundial através da sua empresa 10 Francs, era um dos três membros do júri e explica ao Ípsilon, por telefone a partir de França, as razões da sua opção. Quando ouve falar de dúvidas sobre o prémio lança: "Alguém se deu ao trabalho de ver até que ponto o filme tem ritmo, fala de histórias humanas e universais, até que ponto a montagem é boa, poderosa, ao serviço de uma causa verdadeira, universal?" Desabafa: "Que felicidade quando uma história nos é bem contada!".

E isso leva a outro problema que Walravens identifica no documentário português: "Os realizadores têm material muito interessante mas percebe-se que não há um produtor ou um editor que lute com eles para tentarem fazer o melhor filme para a audiência". Este trabalho de um produtor que participa, discute e orienta o realizador "está menos desenvolvido em Portugal do que na Holanda e isso tem um efeito negativo na qualidade dos filmes".
Não entende isso como forma de limitar a criatividade do autor. "Se alguém quer escrever um livro ou pintar um quadro, óptimo, não está a gastar o dinheiro dos contribuintes. Mas se quer fazer um filme deve pensar que o que está a fazer custa dinheiro". Um festival como o Doc tem uma estratégia para tentar chegar ao maior número de pessoas. "Porque é que há-de tanta gente estar a esforçar-se para que um filme seja visto por mais pessoas e o único que não se preocupa com isso há-de ser o realizador?".
Vê, por outro lado, como positivo que no caso do filme de Jorge Pelicano haja o financiamento de uma televisão (a SIC) mas que "deu ao realizador a liberdade de fazer o que queria". Este filme, acrescenta, "provou que não interessa quem paga, interessa que o realizador tenha o tempo que precisa para fazer o melhor filme possível".

Nos festivais europeus "há muita coisa igual, e isso tem a ver com o poder das televisões", é também a opinião de Daniel Blaufuks, fotógrafo e autor do documentário "Um Pouco Mais Pequeno do que o Indiana". "Isso pode ser feito em Portugal, mas é isso que querem? Uma linguagem uniforme e televisiva?".
Uma visão do mundo
Para alguns dos críticos, a questão mais importante não é a de saber como é que o filme de Pelicano ganhou três prémios. É, antes, saber como foi seleccionado para o Doc. Maria João Madeira fez parte do comité de selecção (como em anos anteriores) e assume a escolha colectiva que inclui o "Pare, Escute e Olhe". No entanto, nota que "grande parte dos filmes que surgem são nitidamente contaminados por um discurso televisivo, o que em parte tem a ver com o apoio das televisões, a esperança [dos realizadores] de que os filmes venham a passar na televisão".
Um documentário "tem um olhar, propõe uma visão do mundo. É diferente de estar a escalpelizar um assunto de uma forma mais próxima da prática jornalística". O ter ou não uma tese a defender não é a questão. "Há toda uma escola de documentário militante". A verdadeira diferença é que um documentário "transporta um olhar e tem uma pulsão cinematográfica", há nele "uma relação que se estabelece com o tempo e com o espaço".
É disso que, como espectador do Doc, vai à procura Daniel Blaufuks. "O que se pede é que as coisas tenham qualidade". Dito isto, considera o Doc um festival "mais virado para a política do que para a poesia, mais para o real, para as coisas a quente, do que para a introspecção". Ressalva aquilo que faz a diferença em relação a esta opção: a secção Riscos, programada por Augusto M. Seabra, que "vai escolhendo produtos mais artísticos, mais próximos do cinema".
Em 2006 o Doc rejeitou o anterior filme de Pelicano "Ainda Há Pastores". Ana Isabel Strindberg fazia parte da direcção do festival nessa altura e revela que o filme não foi aceite precisamente por "ter uma linguagem audiovisual e não cinematográfica", algo que não se integrava "no Doc, que é um festival de cinema". A diferença? "A linguagem audiovisual quer dar muita informação de forma muito rápida. E por vezes não há um ponto de vista".
A contribuição do crítico e realizador Lauro António para este debate é a prova de que se pode olhar para o mesmo objecto de uma perspectiva oposta. Programou o "Ainda Há Pastores" para o Cine-Eco, em Seia, no mesmo ano em que foi recusado no Doc e assistiu ao primeiro grande sucesso público de Pelicano. "Seleccionei-o porque achei que era um excelente documentário sobre uma realidade portuguesa [os pastores], com grande solidez de construção". Na altura, sem conhecer o realizador e sem qualquer ideia preconcebida, considerou que o filme tinha "uma certa honestidade de olhar e procurava sair da snobeira nacional, não ostentando uma atitude de superioridade sobre nada", sem "os tiques formais de alguns documentários portugueses que querem ser muito intelectuais e profundos e às vezes não chegam a nada". Acompanhou depois o realizador ao Brasil, onde o filme passou no FICA, em Goiás, e confessa que nunca tinha visto "uma reacção tão entusiasta em relação a qualquer filme português".

O Doc "não é um cineclube de arte para os amigos", remata Sérgio. Tem a ambição de "falar sobre o que se passa no mundo, interferir sobre a sociedade, alterar costumes, enriquecer o debate público." Sim, mas Catarina Alves Costa lamenta que quando "se quer ser [um festival] para o grande público acabe por se standartizar o que se mostra". E se há fragilidades nos filmes portugueses, se faltam produtores criativos, "isso resolvia-se com mais exibição, mais discussão." O problema é que "neste momento há falta de discussão no meio do documentário."
Alexandra Lucas Coelho, Ípsilon
Direcção Fotografia, Edição e Realização: Jorge Pelicano
Assistente Realização: Rosa Teixeira Da Silva
Pesquisa e Desenvolvimento: Jorge Pelicano e Rosa Teixeira Da Silva
Música Original: Manuel Faria, Frankie Chavez, Francisco Faria
Produção: Costa do Castelo Filmes
Produtor: Paulo Trancoso
Captação de Ambientes: Filipe Tavares, Joaquim Pinto Mistura
Edição de Som: João Ganho
Arquivo Ferroviário: Joaquim Mendes, Bob Docherty, Fernando Nunes, Marco Prata
Co-Produção Sic Televisão Apoio Financeiro Fica
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