Não vou usar meias-palavras: Shutter Island é uma Obra-Prima. É-o do primeiro ao último frame; da primeira à última linha de diálogo; do primeiro ao último som; do primeiro ao último momento. É um filme que se ama verdadeiramente do início ao fim, que envolve, assusta, impressiona e comove, entre vários outros sentimentos. É um filme que só um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo poderia fazer, um filme onde tudo é perfeito desde a fotografia às interpretações e à banda-sonora. Desde o Shining do Kubrick ou o Vertigo do Hitchcock que não se via algo assim; e isso é por si só um elogio do tamanho do mundo.
Nada tenho a dizer de mal a respeito de Shutter Island. Entrei curioso e expectante (é um filme do Scorsese…), saí arrebatado. Por inúmeras vezes ao longo do filme senti estar na presença de uma obra espantosamente bem filmada; em várias cenas achei estar na presença da mais pura perfeição fílmica. Não há outra forma de o dizer: Shutter Island funciona espantosamente bem porque é espantosamente bom em todos, mas rigorosamente todos, os aspectos. É uma experiência sensatorial, emocional e racional; perturba, agarra e impressiona verdadeiramente o espectador com o seu ambiente e com seu notável estudo da natureza humana, da sua loucura e violência, este último um aspecto tão presente no cinema de Scorsese. E além de tudo isto, consegue verdadeiramente comover.
A história é a de Teddy (Leonardo DiCaprio), um agente destacado com o seu parceiro (Mark Rufalo) para o estranho desaparecimento de uma doente do hospital psiquiátrico Ashecliffe, em Shutter Island (ou a ilha Shutter, como preferirem). Sem saberem naquilo em que se estão a meter, os dois agentes tentam ao máximo desvendar um mistério onde, efectivamente, nada é o que parece.
A premissa soa simples e não muito original, mas o argumento em si é notável, e as reviravoltas que a história vai dando agarram facilmente o espectador do início ao fim. As personagens e o filme em si têm características de um filme noir (particularmente na perturbada e complexa personagem principal), e o suspense e o ambiente criado relembram alguns dos maiores thrillers de terror do cinema (Shining, já mencionado, é uma referência óbvia). O filme mete medo e perturba profundamente, mas não por ter sustos nem nada que se assemelhe; fá-lo pela própria trama, pelo mistério, pela forma como Scorsese cria e filma todo o ambiente do filme.
Efectivamente, o filme visualmente é fenomenal. Scorsese filma como ninguém, atento aos pormenores, sabendo onde e como colocar a câmara, e aqui isso vê-se em cada plano. Além disso, a sua imaginação é notável: algumas sequências mais “irreais” (irei discutir a história o menos possível) revelam um primor visual e ideias que só um verdadeiro e absoluto génio teria. Shutter Island é um thriller, mas não assusta apenas: perturba, envolve, aterroriza, cria uma tensão envolta num manto de puro medo. É, nesse aspecto, um filme que não vive de forma alguma à base das típicas fórmulas que se vê hoje em dia nos filmes do género. Shutter Island não é só magistral: é único.
A verdade é que, como já aqui disse, o filme é rigorosamente exemplar em todos os aspectos. As interpretações, por exemplo, são todas elas fenomenais. Nunca fui dos maiores fãs de DiCaprio, e este só me convenceu verdadeiramente em The Departed. Aqui, o actor mostra bem o seu crescimento, interpretando na perfeição uma personagem que é, no mínimo, complexa. É, facilmente, o seu melhor papel até agora. Mas o elenco de secundários não fica nada atrás: todos estão espectaculares, desde Ben Kingsley, sempre com uma presença notável, que aqui tanto encanta quanto arrepia, a Michelle Williams, notável, mesmo sendo das que menos aparece. Scorsese é um mestre a escolher actores e a arrancar deles o melhor que estes podem dar, e volta a mostrá-lo aqui. Destaque também para Mark Ruffalo: um actor subvalorizado que mostra aqui mais uma vez um talento que deve ser mantido debaixo de olho, e, claro, Emily Mortimer, que tem uma das mais belas e poderosas cenas de todo o filme.
A própria banda-sonora é perfeita e escolhida ao pormenor. Em vez dos típicos clássicos do rock’n'roll a que nos habituou, Scorsese usa aqui músicas de vários compositores de música clássica contemporânea (alguns deles também favoritos de Kubrick) para criar um ambiente fenomenal. Mais uma vez, o realizador mostra um conhecimento e uma mestria notável no uso do som nos seus filmes e na importância da banda-sonora para dar ao filme o tom correcto. Em Shutter Island, tudo é negro e envolvente, e dá-se uma fusão perfeita entre o sonoro e o visual.
Martin Scorsese é um mestre, e eis mais uma prova disso. Temos aqui uma Obra-Prima ao nível de um Goodfellas ou de um Raging Bull (num género completamente distinto, claro). Toda a perícia do realizador é aqui mostrada ao máximo, na criação de um filme virtualmente monumental em todos os seus aspectos. São raros os filmes com momentos em que nos sentimos verdadeiramente perante algo de arrebatador, algo que roça a perfeição. Dei por mim por várias vezes neste filme arrebatado dessa forma, absorvido pelos planos deste mestre, pelo que aqui foi criado. É um filme que certamente não agradará a todos – lá por fora dividiu opiniões… – , mas estamos aqui perante um verdadeiro clássico contemporâneo. Com elementos do noir, do thriller, do terror (psicológico), Scorsese criou um filme nada abaixo do incrível. Poderei estar (ou não) sozinho no meu respeito e verdadeiro amor por este verdadeiro noir contemporâneo, que mostra novamente o porquê de Scorsese ser por muitos considerado um cineasta tão talentoso como Kubrick ou Hitchcock.
Shutter Island certamente não agradará a todos (a trama em si não agradará muita gente, principalmente com aquele final…), mas estamos aqui perante o que é, na minha opinião, uma verdadeira Obra-Prima do cinema contemporâneo. Porque, para todos os efeitos, desde Shining que não se via algo assim: um medo tão envolvente, tão visual e sonoro, tão perfeito, num filme que transpira genialidade do início ao fim. Um filme que tanto nos faz tremer como comover; um filme complexo, completo e monumental.
O ano ainda mal começou, mas quase me atrevo a dizer que o melhor já chegou às salas. Shutter Island é, simplesmente, algo que tem de ser visto e, acima de tudo, sentido.
Gonçalo Trindade, espalha-factos.com
Após quatro colaborações podemos dizer que Leonardo DiCaprio e Martin Scorsese são uma dupla de sucesso. Ninguém consegue salientar as potencialidades de DiCaprio como Scorsese, e o actor retribui com uma entrega extrema a cada papel. “Shutter Island” não é excepção.
“Shutter Island” chegou tarde para a corrida aos prémios referentes a 2009, por isso não seria de estranhar que a sua estreia fosse atrasada para o último trimestre, para piscar o olho aos prémios geralmente mais atribuídos aos filmes que estreiam nessa época. Mas apetece-me aplaudir de pé a atitude do realizador, tantas vezes ignorado, de estrear o filme no início do ano. Mas não deixem que a data de estreia vos engane, “Shutter Island” é certamente um dos melhores filmes que vão passar pelas salas de cinema em 2010.
Estamos em 1954, o desaparecimento de uma paciente de uma instituição mental em Shutter Island motiva a visita de dois U.S. Marshals que investigam. A partir deste momento, e desde o primeiro frame ,em que um ferry rompe uma cortina de nevoeiro, sabemos que vamos entrar num mundo diferente. Assolada por uma terrível tempestade a ilha fica isolada, os doentes fogem das suas celas e os dois Marshals são apanhados no meio do caos.
O receio de ver Martin Scorsese afastar-se tão linearmente do que costuma fazer é esbatido nos primeiros minutos. A cinematografia é esteticamente perfeita, a ambiência das imagens e a paleta de cores é soberba. O filme é sufocante, constrangedor, mas todo o ambiente insano, paranóico e sombrio de “Shutter Island” nos aproxima de Teddy Daniels (Di Caprio), um polícia traumatizado com o passado.
A escolha do casting é certeira com Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydon a secundarizarem de forma brilhante mais um desempenho - digno de uma alta nota - de DiCaprio. E o melhor é dizer pouco mais, pois qualquer pequeno “spoiler” pode privar o espectador da experiência de ver “Shutter Island”, embora a vontade de o rever seja automática.
O detalhe de todos os pormenores do filme é brilhante, todos os pequenos trejeitos do filme têm um significado. E acredito que até a semelhança entre Elias Kosteas, que interpreta Laeddis, e Robert de Niro não tenha sido uma mera casualidade.
Martin Scorsese mostra aqui o que de melhor sabe fazer, cinema. Revisitando os elementos dos “filmes noir” e demonstrando uma forma incrível, Scorsese brinca com a câmara, joga com sombra e luz com a mestria que só um verdadeiro cineasta consegue. Manipula o espectador com a história que conta e, como um personagem nos relembra, também nós somos ratos, num labirinto.
Carla Calheiros, c7nema.net
COM DECLARAÇÕES DE SCORCESE E DI CAPRIO
Dennis Lehane escreveu uma novela sobre a loucura. A adaptação seguiu o mesmo rumo. “Thriler” psicológico? Sim, mas não só: “Shuther island” escava mais fundo. É uma assinatura Scorsese. E Exigiu a DiCaprio o papel mais difícil da sua carreira.
Leonardo DiCaprio, actor prodigioso desde criança, sabia que, desta vez, a 'coisa' ia mesmo comê-lo vivo. "Ainda hoje não sei o que dizer do filme. Há coisas que não podem ser reveladas. Como se trata de uma espécie de jogo assinado pelo Martin Scorsese, as peças acabam por encaixar todas umas nas outras... Não posso falar da história", declara DiCaprio. A quarta aventura criativa do actor com Scorsese, "Shutter Island", é um animal híbrido. Uma peça quase surrealista que deixa imensas perguntas por responder. As dúvidas pediram trabalho de tal modo exigente ao actor que, subitamente, ele viu-se mergulhado num caso severo de nervosismo. A história é pulpy. No grande palco da acção, há um hospital de loucos psicopatas. No ecrã, surgirão escarpas, uma tempestade e uma investigação policial inexplicável. E no meio destes tons tão escuros estão as palavras de mais uma tragédia escrita por Dennis Lehane sobre a loucura - a investigação daquilo que não estamos dispostos a encontrar. "Trata-se de uma montanha-russa emotiva. Não acho que seja possível uma pessoa sair do cinema a saber, desde logo, como se sente. Embora, claro, o filme esteja a ser promovido como um thriller psicológico. Mas não tenho dúvidas que, todos os dias, aquilo que o Martin quis fazer foi espreitar para o fundo da alma humana. Quem somos nós como pessoas?", questiona o actor. "Shutter Island" tem estilo dos anos 50 (a acção decorre nessa década), espaços claustrofóbicos, mistérios psicológicos, câmara criativa e uma força dramática que faria inveja ao próprio Hitchcock. É um filme tão específico que, mesmo para um actor fluente em idioma Scorsese, o trabalho apresentou-se, logo à partida, um osso duro de roer. E dali à caricatura era um passo.
Felizmente, nada disso foi difícil de concretizar, sobretudo se pensarmos no grande desafio que se deparou a DiCaprio: a sua personagem, Teddy Daniels, o tal polícia da que investiga na ilha do título o desaparecimento de uma doente mental perigosa, é um homem traumatizado e parece disposto a fazer justiça pelas próprias mãos. Será que o caso da louca perdida se está a apoderar dele de forma, digamos; patológica?
Já se sabe para onde vai DiCaprio quando a personagem lhe é oferecida com um passado tão pesado: direito ao assunto. "Fiquei chocado com a profundidade e o secretismo emocional que tivemos de explorar", referiu o actor quando nos encontrámos em Nova Iorque. "Ao fim de cada dia de trabalho, costumo ter tempo de ir para casa descansar ou fazer outras coisas. Ou passar o serão a rever a agenda do dia que se segue, repetir as linhas do diálogo para saber se está tudo pronto e por aí fora... Neste filme, tudo foi diferente. Passei semanas sem sair do buraco."
Do outro lado da câmara, o 'maestro' foi-lhe dizendo o que queria dele. Scorsese sempre gostou de meditações viscerais, sejam elas sobre a natureza da violência urbana ou de um clã de homens aparentemente fraternais - quando eles não estão a disparar uns contra os outros... Com "Shutter Island", o realizador garante que manteve o olho nos clássicos, como "A Semente do Diabo", por exemplo. Diz Scorsese: "Toda a gente conhece o final desse filme. Mas não é isso que me interessa. O que gosto de revisitar é a natureza das relações hum¬nas. Não sei se 'A Semente do Diabo' é um filme sobre pessoas. Mas é um grande filme sobre a natureza humana. Fala de diversos níveis de desconfiança, de elos que vão sendo quebrados entre as personagens, de diferentes graus de traição entre elas e, claro, da possibilidade de tudo aquilo ser um sonho; a fantasia de uma mulher que está quase a dar à luz". Sonho. Trauma. Entre ambos está a condição humana. A origem das palavras é a mesma, como diz uma personagem neste filme que Scorsese e DiCaprio parecem ter feito em meses de alucinação.
Quando leu o argumento, DiCaprio não fazia ideia que o filme se tinha transformado, na cabeça de Scorsese, numa espécie de labirinto a decifrar. "À medida que íamos descobrindo as diversas camadas da história, tornava-se imperativo que fôssemos cada vez mais longe, no sentido de forçar o espectador a identificar-se com o trauma." DiCaprio confirma assim por que m¬tivo é um dos discípulos mais obedientes da grande escola de actores que, de Robert De Niro a Daniel Day-Lewis, Scorsese tem trazido para o seu ecrã favorito: aquele que não olha para o lado quando chegam as partes mais difíceis. "Nunca, como actor, tinha ido tão longe segundo o ponto de vista emocional", confessa DiCaprio.
Para mostrar a verdade tal como ela é vista por Teddy Daniels foi preciso regressar a Dachau, ao extermínio, aos traumas de guerra. Quando um ser humano testemunha o pior, quais são os mecanismos de defesa e de reordenamento mental a que ele tem de deitar a mão se quiser sobreviver como ser humano? "Foi esta a nossa matéria-prima desde o início das filmagens", acrescenta DiCaprio. "Toda a gente fala na prevalência do estilo nos filmes do Scorsese. A componente visual é uma das linguagens dominantes de um autor como ele. Mas o seu foco é sempre colocado apenas num sítio: na emoção das personagens. Para o Martin, só interessa a grande humanidade da história."
Scorsese confirma que o tema da identidade existencial não é novo, é eterno: "São questões clássicas: Quem somos nós? O que é que temos de aceitar? O que somos forçados a esconder? A natureza humana quer dizer o quê, exactamente? Estas questões já foram colocadas tanto no filme 'O Gabinete do Dr. Caligari' como nas obras de Homero." O que estava em causa não era contar uma história, antes tomar o seu tema relevante nos dias de hoje.
"Shutter Island" foi afastado da corrida aos Óscares (por motivos de calendário alegados pela Paramount), mas o facto não afectou Scorsese, que se revelou satisfeito por ter tido mais tempo para editar a versão final. A primeira montagem tinha três horas. E o adiamento da estreia também não beliscou a confiança de DiCaprio: "Mesmo aqueles que forem ao cinema a pensar que isto é apenas um filme que prega sustos baratos se darão conta que, no fim, a história, acima de tudo, é uma história humana. Algo que o Scorsese de 'Taxi Driver' e de 'Touro Enraivecido' faz melhor que ninguém. Em todos os seus filmes, a condição humana tem um lado obscuro. Scorsese gosta de expor isso. Não está ali para dar conforto aos espectadores."
Rui Henriques Coimbra, Expresso
Título Original: Shutter Island
Realização: Martin Scorsese
Argumento: Laeta Kalogridis, Dennis Lehane (romance)
Direcção de Fotografia: Robert Richardson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Interpretação: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer,
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2010
Duração: 148’
EM COMPLEMENTO
3X3, Nuno Rocha, Portugal, 2009, 6’
É de noite. Um vigilante de um complexo desportivo passa o tempo a atirar bolas ao cesto de basquetebol. Passa tantas horas a fazer isso que se tornou num perito. O tamanho do seu ego vem ao de cima quando mostra os seus dotes a um simples empregado de limpeza, que também como ele, passa ali as noites.
Título Original: 3X3
Realização: Nuno Rocha
Argumento: Nuno Rocha
Direcção de Fotografia: Nuno Rocha
Montagem: Nuno Rocha
Interpretação: João Marçal, Ricardo Azevedo
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2009
Duração: 6’
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