Deste Lado da Ressurreição, Terça - Feira, 29.01.13, IPDJ



DESTE LADO DA RESSURREIÇÃO, Joaquim Sapinho, Portugal, 2011, 118’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Joaquim Sapinho

Argumento: Joaquim Sapinho; Luís Araújo; Mónica Santana Baptista; Rui Alexandre Santos
Fotografia: Leonardo Simões
Montagem: Rui Alexandre Santos




Origem: Portugal
Ano: 2012
Duração 118’


SINOPSE
Rafael (Pedro Sousa, campeão júnior de surf do Guincho) é um jovem surfista perdido no mundo, desenquadrado de tudo e de todos. Com uma grande violência interior, que se reflecte no seu corpo e na maneira como surfa, busca um sentido para a sua vida. E será ali, entre a praia do Guincho, o Convento dos Capuchos e a serra de Sintra, que vai finalmente encontrar o seu lugar...
Quarta longa-metragem de Joaquim Sapinho, depois de "Corte de Cabelo (1995), "A Mulher Polícia" (2003) e "Diários da Bósnia" (2005), "Deste Lado da Ressurreição" teve a sua estreia mundial na selecção oficial do Festival de Cinema de Toronto no Canadá, na secção Visions, dedicada aos filmes que, nesse ano, contribuíram para a expansão das possibilidades poéticas do cinema. O filme foi escolhido como um dos dez melhores do ano na revista nova-iorquina "Film Comment" e teve antestreia nos EUA nas mais prestigiadas cinematecas do país: a Harvard Film Archive (Cinemateca da Universidade de Harvard) e Anthology.


TRAILER

DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES
Os média dão do surf uma imagem de riqueza, sexo e vaidade. Mas eu passei dez anos no Guincho com a comunidade surfista, e vi que os verdadeiros surfistas são pessoas que romperam com a sociedade. Não têm dinheiro. Quase não comem. Levantam-se todos os dias de madrugada para ir surfar. Ficam horas no mar, à espera das ondas, em contemplação, sozinhos no frio. Mas ao mesmo tempo, quando a onda vem, há uma violência única de entrega a uma força incontrolável da natureza. Só saem da água quando estão totalmente esgotados, destruídos. No dia seguinte fazem o mesmo. O mar do Guincho é o mais inclemente, rejeita aqueles que não têm a humildade de aceitar esta violência. Quando conheci o Pedro Sousa, campeão júnior de surf, conheci este outro lado. E um dia apercebi-me que tinham um segredo. Havia um lugar no topo da serra onde às vezes iam passar a noite. Eram as ruínas do Convento dos Capuchos. O Pedro Sousa não me sabia explicar porque se sentiam atraídos por aquele sítio. Um dia, também eu subi a serra, saltei o muro do convento, e sentei-me no claustro, preparando-me para passar ali a noite. Veio uma coluna de nevoeiro, das que vão passando no topo da montanha, que num segundo fez desaparecer o claustro, e depois o próprio convento. Na confusão das portas e das janelas escondidas, vi os monges nas suas tarefas quotidianas, abstraídos da minha presença, mas totalmente absorvidos numa oração interior. Tão rapidamente como veio, o nevoeiro levantou-se e desapareceu, levando os monges consigo. Eu sabia que o Pedro Sousa era um desses monges. Foi assim que começou o "Deste Lado da Ressurreição".

Joaquim Sapinho

 CRÍTICA


Há um casal de irmãos muito novos, perdidos um do outro, e perdidos na procura de um sentido para a vida. Há uma família quase ausente nas imagens - pouco funcional perante os atribulados desígnios da atualidade que nos esmaga no frenesi sem muito nexo e não deixa tempo para meditar, saber de nós mesmos. E há uma belíssima reflexão sobre a vida, a morte, a comunicabilidade.
Eis o centro da última obra de Joaquim Sapinho, “Deste Lado da Ressurreição”, um filme de territórios. Soberbos e definitivos territórios do espírito e da paisagem, que nos marcam a alma mais ainda do que o olhar cinematográfico. Transmite-nos uma espécie de delicada e crua exaltação, e muita dessa alquimia tem a ver com o processo como aborda os territórios onde fixa o olhar. O realizador explica: “No cinema que faço é como se eu já não escolhesse, são os sítios que me escolhem a mim, não consigo lidar com a ideia de tomar decisões prévias para fazer o filme. Os sítios é que atraem, sou testado por eles; O Guincho, o convento na serra de Sintra testam-me. E sobreviver a essa possessão é o trabalho do próprio filme.” Partir para filmar no maior despojamento, sem dinheiro, nem sequer uma planificação? “Claro que, quando ponho a câmara, estou a responder através do que vejo. E vejo a violência, uma tensão em que eu e os corpos dos atores estão a ser testados...
É complicado explicar. Como dizia Fritz Lang, são lugares de felicidade, no sentido em que há uma intensidade maior, em que me sinto exposto, frágil, e não desejo controlar a situação.”
Ouve-se e sente-se a presença tutelar do cineasta António Reis, seu mestre: “As formas falam, os planos falam, os sítios falam, e o meu trabalhar +e ouvir, olhar e saber registar”.
Estamos perante um filme espiritualmente telúrico e ao mesmo tempo de fortes sensações físicas...quase sentimos o frio da água, o vento na cara. Mais do que ‘figurantes’, os elementos da natureza são atores com dimensão esmagadora que dá justa continuidade à especificidade dos corpos das personagens principais, à deriva em busca de si próprias.
Disseram, do filme, que apresenta três ordens: a científica e do conhecimento (na escola), a da natureza e a do sagrado. Realça Sapinho: “É aqui que entronca com António [Reis], na ideia de que os espaços manifestam sistemas de viver e de saber. Ao querer trabalhar nestas três ordens é como se quisesse abordar como viver, pergunta tão bela de que estamos tão amputados agora em Portugal, parece que não temos possibilidades nem tempo para nos confrontarmos com ela!” Quando Rafael corta com a sociedade é como se pensasse que há solução, “uma redenção através da natureza, mas ela está de nós separada, é autónoma. Ele pensa depois que há uma saída, não lhe permite fazer as pazes com os outros”.
O filme fala também de solidão e, se expõe como uma chaga metafísica a consumação máxima da espiritualidade, retrata cruamente a solidão, no sentido da ‘não solidariedade’. Sapinho sabe disso: “A nossa sociedade, ao proibir a solidão, ao obrigar-nos a estarmos sempre em comunicação, impõe uma espécie de destruição da vida interior que leva a uma forma de estar com os outros que é falsa”. No filme assiste-se a um tempo de solidão perante a morte: “Acho extraordinário que a sociedade de consumo tenha colocado as pessoas das novas gerações nuas, diante do nada. Já não é necessário chegar a uma idade avançada para o confronto com a morte. Os adolescentes de hoje estão já diante da morte, não há nenhum sentido nesta sociedade de consumo. É como se tais perguntas fossem também postas demasiado cedo em relação à capacidade de se responder.” A adolescência devia ser um momento de esperança, de expansão em relação à vida, um lugar de experimentação entusiasmada. “Mas já foi tudo vivido nas imagens, então nada tem valor. No filme, os protagonistas embatem contra a realidade, explodem com ela. Vivemos isso, e eu quis testemunhá-lo.” A necessidade de comunicar ininterruptamente provoca o pânico da solidão, quando esta não é um mal também pode ser uma forma acertada de respirar. “Dá-nos liberdade”, diz Sapinho.
As frases são esparsas entre as pessoas, quase murmúrios, mas estão muito presentes os sons da natureza. São sons vividos pelo realizador, mentalmente trabalhados e assumidos. São frequentemente rudes, mas nem mesmo os da tempestade que desaba sobre o corpo mortificado do noviço Rafael é tão agressivo ou se impõe tanto quanto o som do látego contra a carne penitente, num sofrimento apenas ouvido, mal desvendado pelas sombras. “Tem que ver com o facto de o som, para mim, ser uma banda como a da imagem. Eu diria que são duas bandas de imagem. O som também invoca imagens. É como se eu as pusesse, ao sobrepô-las, em conflito. Como se, numa mise en scène, trouxesse para primeiro plano certos sons, por literal escolha de filmagem”.
Este é um filme em que o espectador é levado a ouvi-lo: “Queria que as pessoas dissessem ‘ouvi o mar’ como se estivessem dentro do mar. Ou, ainda mais perturbador – por simultânea razão de pudor e de dificuldade – ouvir o que é respirar ou sentir a corda cortando a pele numa mortificação. Destruo e reconstruo o som para que fique numa espécie de tridimensão. Porque filmar uma pessoa é filmar a presença, que pode estar mais visível na sua respiração ou num murmúrio. Quando filmo, procuro saber qual é a maneira que possibilita tornar mais presente a pessoa ou uma situação, e muitas vezes o som tem de vir para primeiro plano.
António Loja Neves, Expresso, 17/11/12


22.01.13| 21:30| IPDJ| O Cineclube de Faro apresenta



DIA 22 DE JANEIRO
CÉSAR DEVE MORRER, Paolo e Vittorio Taviani, Itália, 2012, 76’, M/12
 

FICHA TÉCNICA
Realização: Paolo e Vittorio Taviani
Ideia Original e Argumento: Paolo e Vittorio Taviani
Com a Colaboração de Fabio Cavalli
Fotografia: Simone Zampagni
Montagem: Roberto Perpignani
Música: Giuliano Taviani , Carmelo Travia ,
Intrepretação: Cosimo Rega, Salvatore Striano,  Giovanni Arcuri, Antonio Frasca, Juan Dario Bonetti, Vittorio Parrella, Rosario Majorana, Vincenzo Gallo
Origem: Itália
Ano: 2012
Duração: 76’


SINOPSE
Uma sala de teatro na prisão de Rebibbia em Roma. Uma encenação de Júlio César de Shakespeare chega ao fim do meio de grandes aplausos. As luzes baixam e os actores, que se transformam novamente em presos, são acompanhados às suas celas.
  NOTA DOS REALIZADORES
Uma grande amiga relatou-nos uma experiência teatral que tinha vivido algumas noites antes. Disse-nos que tinha chorado, coisa que não lhe acontecia há muitos anos. Fomos a esse teatro no interior da prisão de Rebibbia, em Roma, na Ala de Alta Segurança.
Após passarmos por uma séries de portões e zonas de isolamento, chegámos junto de um palco onde estavam cerca de vinte prisioneiros, alguns deles a cumprir penas de prisão perpétua, a recitar a Divina Comédia de Dante. Tinham seleccionado alguns cantos do “Inferno” e estavam naquele momento a reviver o sofrimento e o tormento de Paolo e Francesca, do Conde Ugolino, de Ulisses – todos eles no inferno da sua própria prisão...
Cada um falava no seu próprio dialecto, tecendo, ocasionalmente, paralelismos entre a história poética evocada pelos cantos e as suas próprias vidas. Lembrámo-nos das palavras e das lágrimas da nossa amiga. Sentimos a necessidade de descobrir, através de um filme, como a beleza dos seus desempenhos nascia daquelas celas prisionais, através daqueles marginais que vivem tão distantes da cultura.
Sugerimos Júlio César de Shakespeare ao Fabio Cavalli, o encenador que trabalha com os prisioneiros.
Levámos o projecto a cabo com a colaboração dos presos, filmando nas suas celas, no pátio da prisão, nos recantos da Ala de Alta Segurança e, por fim, no palco. Tentámos contrastar a obscuridade das suas vidas de prisioneiros com a força poética das emoções evocadas por Shakespeare – amizade e traição, o assassínio e a angústia das escolhas difíceis, o preço do poder e da verdade. Ir tão longe com uma obra destas significa também examinarmo-nos, sobretudo quando uma pessoa tem de abandonar o palco e regressar à clausura da sua cela.
Paolo e Vittorio Taviani


CRÍTICA:

Quando os irmãos Taviani se dirigiram à prisão de Rebibbia para assistir a uma representação pelo grupo de teatro dos detidos nunca pensaram defrontar aquela realidade. Rebibbia não é uma prisão qualquer: é onde, numa ala de alta segurança, estão os grandes assassinos, os capi da Máfia ou da Camorra, com longas penas por crimes graves. “Foi uma nossa amiga que nos falou daquele grupo de teatro e nos levou lá”, disse-me Paolo Taviani numa breve conversa, no domingo passado, em Lisboa. “E tive uma das maiores emoções da minha vida. Havia um recluso que lia versos da “Divina Comédia' de Dante. Era o episódio de Paolo e Francesca, os dois amantes condenados ao Inferno, o que torna o seu amor impossível. E, antes de ler, voltou-se para o público e disse: 'Vocês julgam conhecer bem estes versos, até os estudaram na escola, mas não. Só nós que aqui estamos condenados a longas penas é que percebemos completamente a dor de que fala Dante. Porque nós estamos no Inferno, nós sabemos o que é ter sido separados das nossas mulheres e nunca mais lhes termos podido tocar.” E começou _ a dizer os versos, mas não como Dante os escreveu, disse-os traduzidos no dialeto de Nápoles, a verdadeira língua materna daquele homem. Foi um choque para nós, que, como Dante, somos toscanos. Mas depois, pouco a pouco, a harmonia, a música do dialeto napolitano, a paixão com que era lido fizeram-nos redescobrir Dante. E ficámos emocionados até às lágrimas. Foi uma coisa tão forte que decidimos que era preciso comunicar essa emoção. Nem sequer sabíamos que tipo de filme queríamos fazer - mas queríamos muito fazê-lo. Sentimo-nos regressar aos tempos de juventude, trabalhar quase sem dinheiro, embarcar numa aventura voluntarista que nem sabíamos onde ia chegar.”
Escolheram então montar um filme em volta de “Júlio César”, de Shakespeare. Porquê essa peça? “Primeiro porque se passa em Roma, é uma história italiana. Depois porque os lugares que eram referidos, eles conheciam-nos, tudo se tornava mais espontâneo.
E, depois, a peça fala de um tirano e na decisão de o matar, de traição, de amizade, de engano, com personagens que lhes podiam corresponder, ao ponto de, num certo momento, um dos presos me ter dito que Shakespeare era um amigo que há quinhentos anos tinha escrito tragédias que eles tinham vivido. E até as palavras lhes são familiares. Quando Marco António, na célebre tirada na cena dos funerais, diz que Brutus era un uomo d’onore, esse é o termo com que os membros da Camorra se designam entre si”.
O processo foi baseado na determinação e na paciência, não é fácil criar laços com aquele tipo de condenados. Paolo conta mesmo que, quando se tratou de estabelecer o elenco, foi necessário definir relações de poder. “Houve um momento em que eu disse a um deles que ia fazer de Octávio e ele disse-me que não. Mas porquê? Porque nós decidimos que quem o faz é fulano. Foi preciso dizer-lhes que no filme éramos nós quem mandava. Queremos a vossa colaboração, as vossas opiniões, mas depois o boss é só um, neste caso até somos dois, Paolo e Vittorio Taviani. O cinema é assim. Então o ator que faz de Cássio voltou-se para nós e disse: “Vocês têm de perceber com quem estão a falar; eu, por exemplo, já fiz três órfãos, referindo-se aos três assassínios por que estava condenado. Respondemos que sabíamos perfeitamente onde estávamos e quem eram eles. Mas que ou aceitavam as regras ou, então, adeus. E fomo-nos embora. Foram tempos desesperantes, pensámos que tinha ido tudo por água abaixo. Mas quatro dias depois telefonaram-nos da prisão a dizer que os detidos queriam outro encontro. Fomos recebidos com um aplauso. E aquele ator, que era um capo da Máfia, disse-nos: Aceitamos. Mas só aceitamos por uma razão. É que quando falara, connosco no outro dia olharam-nos de frente, nos olhos. A maior parte das pessoas não faz isso, baixa os olhos. Vocês merecem ser capi. E a partir daquele momento entregam-se por completo, nunca mais houve qualquer problema.”
“César Deve Morrer” é um filme que parece seguir o processo de encenação de uma peça teatral no ambiente especial de uma cadeia. Nunca o espectador se esquece disso, não há processo de sublimação pela arte ou de redenção naquelas imagens, simplesmente o desfibrar de sentimentos, a modulação humana de uma tragédia literárias muito conhecida com as histórias de vida de quem a está a encarnar. Todavia, nada é improvisado, todos os diálogos foram escritos e reproduzidos. “ Mas são todos verdadeiros, este é um filme em que tudo é verdade e tudo é falso. Todas as histórias e as situações que os reclusos contam no filme foram-nos contadas por eles antes, aconteceram”, precisa Paolo Taviani. Depois de uma escolha, colocadas na boca deste ou daquele no momento que pareceu dramaticamente justo, deram a “César Deve Morrer” a peculiar sensação de que há uma possante realidade por baixo da ficção – como se existissem várias camadas, vários extratos na sedimentação da nossa aproximação ao filme. Quando Brutus grita que matou César, sentimos nos olhos do intérprete que ele sabe o que isso é, que viveu o gesto do assassínio. Esse facto dá a este filme uma enorme capacidade de perturbação, porque se trata de algo na confluência entre o que procura um documentarista – a verdade do real – e o que busca o ficcionista – a credibilidade do fingimento. E nós sabemos. E isso é intensíssimo.
“César Deve Morrer” venceu o Festival de Berlim deste ano, foi vendido por dezenas de países, está a estrear-se um pouco por todo o mundo. Um impulso invulgar na carreira de uma dupla de cineastas que, Paolo com 80 e Vittorio com 83, recebem, por estes dias, convites e propostas de todo o lado.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 3/11/12


ENTREVISTA A PAOLO E VITTORIO TAVIANI

Contem-nos a história deste projecto.
Aconteceu tudo por acaso, como com o nosso filme anterior, “Padre Padrone”, quando conhecemos o linguista Gavino Ledda, um pastor nascido na Sardenha. Desta vez – graças a uma conversa telefónica com uma grande amiga nossa – estabelecemos contacto com um universo que só conhecíamos através dos filmes americanos, apesar de Rebibbia, uma prisão nos arredores de Roma, ser bastante diferente daquelas que víramos no ecrã. No entanto, quando a visitámos pela primeira vez, o ambiente pesado de uma vida atrás das grades abriu alas à energia e à agitação de um acontecimento cultural e poético: os prisioneiros estavam a recitar alguns dos cantos de “Inferno” de Dante. Mais tarde, ficámos a saber que eram presos da Ala de Alta Segurança, na sua maioria ligados ao crime organizado - Mafia, Camorra, Ndrangheta – e condenados, na maior parte, a prisão perpétua. As suas interpretações instintivas eram instigadas pela necessidade dramática de contar a verdade e canalizadas pelo trabalho firme e regular do seu encenador “interno”, Fabio Cavalli. Quando saímos de Rebibbia, percebemos imediatamente que queríamos saber mais acerca deles e da sua situação; fizemos, então, uma segunda visita e perguntámos-lhes se queriam trabalhar numa adaptação cinematográfica de Júlio César de William Shakespeare. A resposta imediata de Fabio e dos prisioneiros foi inequívoca: “Vamos já começar!”
Os actores que vemos no filme são todos prisioneiros? E no que respeita às audições, aconteceram tal e qual vemos no filme?
Os actores que se vêem no nosso filme são todos presos da Ala de Alta Segurança. Para sermos mais precisos, gostaríamos de acrescentar que o Salvatore “Zazà” Striano – que interpreta o papel de Bruto – já cumpriu a sua pena na prisão de Rebibbia. Condenado inicialmente a 14 anos e 8 meses, cumpriu 6 anos e 10 meses. É agora um cidadão livre, depois de uma amnistia geral; o mesmo se aplica ao Estratão. O único “estranho” é um dos professores de teatro da prisão, o Maurilio Giaffreda. No que respeita às audições, há alguns anos que adoptámos um método bastante simples mas muito eficaz:
pedimos aos actores que se identifiquem, como se estivessem a ser interrogados por agentes  alfandegários; depois pedimos-lhes que se despeçam de um ente querido, e explicamos que, da primeira vez, têm de mostrar sofrimento e, da segunda, raiva. Neste caso, fizemos uma primeira escolha de actores e o Fabio Cavalli mostrou-nos as fotografias de alguns presos que tinha já seleccionado e que acabaram por ser escolhidos sem grande trabalho. Quanto aos outros, durante a audição dissemos-lhes que se quisessem, e por uma questão de privacidade, podiam dar-nos nomes falsos; ficámos muito impressionados por todos eles terem inistido em partilhar os seus nomes verdadeiros, o nome dos seus pais e os seus locais de nascimento. Após algum tempo, chegámos à conclusão que para eles o filme poderia ser uma forma de lembrar às pessoas que vivem no exterior que eles estavam a levar as suas vidas no silêncio da prisão.
Foi só depois de os vermos passar à frente da câmara, um por um, que acabámos por conhecê-los e compreendemos a realidade do seu sofrimento, a sua natureza delirante e colérica.
Seguiram o argumento de perto ou recorreram à improvisação, como se estivessem a filmar um
documentário?
Seguimos o argumento. Escrevemos um argumento como noutros filmes; depois, como é normal, quando começámos a filmar, com a câmara ligada e os actores a dizer o texto, o argumento tornou-se numa coisa diferente, também por causa dos locais de filmagem, da iluminação e da falta de luz.
Com o devido respeito por Shakespeare (que sempre foi para nós um pai, um irmão e depois – à medida que envelhecemos – um filho), apoderámo-nos do seu Júlio César, desmontámo-lo e reconstruimo-lo. Claro que mantivemos o espírito da tragédia original, assim como a narrativa, mas, ao mesmo tempo, simplificámo-la, afastando-a um pouco do ritmo das encenações clássicas. Tentámos construir esse organismo audiovisual a que chamamos filme, que é o filho degenerado de todas as artes que antecederam o cinema. Um filho degenerado que Shakespeare teria, certamente, adorado! O Fabio Cavalli foi extremamente prestável ao traduzir todas as falas para o calão do dialecto dos vários prisioneiros-actores. Eles perceberam qual era a nossa intenção e deram-nos interpretações inesquecíveis com vários graus de emoção e entrega. Graças a eles, às várias verdades que expressaram e às suas interpretações inesperadas, o argumento evoluiu. Para ser ainda mais claro, gostaria de dar um exemplo: o adivinho, o “Pazzariello” napolitano que leva a palma da mão ao nariz e que faz uns gestos inquietantes para pedir à plateia que fique em silêncio, não estava no argumento.
No entanto, ele fez-nos lembrar uma das muitas personagens loucas de Shakespeare, um Yorik por exemplo, que se escapou de uma das suas tragédias. É quase um tributo e um desejo daquele génio para todos nós.
Porque escolheram Júlio César de Shakespeare?
Nunca tivemos outra peça em mente. E a nossa escolha surgiu da necessidade: os homens com quem queríamos trabalhar tinham um passado – recente ou distante – a ter em conta; um passado caracterizado por más acções, erros, ataques, crimes e relações estragadas. Daí termos de os confrontar com uma história igualmente poderosa, mas que vai numa direcçao oposta. E nesta versão cinematográfica italiana do Júlio César de Shakespeare, levamos ao ecrã as relações fortes e deploráveis que os seres humanos entre si estabelecem e que incluem a amizade, traição, poder, liberdade e dúvida. E também o assassínio. Muitos dos nossos prisioneiros-actores foram antes “homens honrados”; e na sua denúncia, António parafraseia os “homens honrados”. No dia em que filmámos o assassínio de César, pedimos aos nossos actores, munidos de adagas, que tentassem encontrar o mesmo impulso matador. Logo a seguir, apercebemo-nos do que tínhamos dito e desejámos poder retirá-lo. Mas não foi necessário, porque eles foram os primeiros a reconhecer a necessidade de enfrentar a realidade.
Em consequência disso, decidimos segui-los ao longo dos seus dias e noites extraordinariamente compridos. Queríamos que o nosso trabalho fosse levado a cabo naquelas minúsculas celas para cinco pessoas, nos corredores, no pátio onde passam algum tempo ao ar livre, ou enquanto esperavam pelas visitas dos seus familiares.
Como é que trabalharam com o Fabio Cavalli?
Para lhe dar uma ideia da nossa cooperação e do entusiasmo do Fabio, vou contar-lhe o que ele nos disse quando lhe apresentámos o nosso filme pela primeira vez. “Podemos filmar a sequência da Batalha de Filipos nas colinas das traseiras da prisão; pedimos permissão ao director para que todos os prisioneiros possam participar...”.
Mas como esse não era o ponto de vista que queríamos adoptar para o nosso filme, o Fabio entendeu imediatamente a nossa abordagem e aceitou-a, graças à sua sensibilidade intelectual e ao profundo conhecimento do meio do espectáculo. Descrevemos-lhe o que queríamos para a história e o Fabio colaborou connosco na escrita do argumento; ajudou-nos a descobrir alguns dos cantos mais secretos da prisão, organizou o encontro com os prisioneiros, escolhendo aqueles que eram mais adequados para alguns dos papéis. Antes de a escolha final de actores estar completa, ele tentou encenar algumas sequências com um grupo selecto de prisioneiros, mas, acima de tudo, com a ajuda do seu assistente, concentrou-se na encenação das sequências finais do filme. Numa fase mais tardia, mostrou-nos um esboço do cenário com duas colunas romanas construídas com fibra de vidro colorida, o mesmo material dos escudos dos soldados. E, por fim, deu um último passo: desistiu do seu papel de encenador e tornou-se um actor que interpreta o importante papel de encenador no filme. Ele tem um desempenho excelente... até porque os seus actores estavam a protegê-lo! Ele disse-lhes: até ao dia de hoje, tenho sido o vosso encenador; agora vamos trabalhar num filme e usar uma linguagem completamente diferente. Desta vez, serão eles que nos vão dirigir”. Quando terminámos a produção, saímos um pouco nervosos da prisão, tentando perceber se, na realidade, o Fabio sonharia secretamente sair também para trabalhar em companhias de teatro do “mundo livre”. Mas ficámos a saber que ele regressou a Rebibbia, para encenar com os prisioneiros a versão original de Jílio César. “A sequência mais bela – disse-nos ele com um sorriso provocador – é aquela em que Bruto etá de frente para Calpurnia”. Tivemos de eliminar essa sequência porque tínhamos um grupo de actores exclusivamente masculino.
Expliquem-nos porque decidiram ter as personagens a falar com os vários dialectos dos prisioneiros?
Nos meses que antecederam a rodagem, íamos com frequência a Rebibbia. Durante essas visitas, passávamos por diferentes zonas da Ala de Alta Segurança e, através das portas entreabertas, conseguíamos vislumbrar os presos, homens jovens e velhos deitados silenciosamente nas suas camas. “Deviam chamar-nos observadores de tecto – disseram-nos certa vez – já que passamos metade do dia deitados na cama a olhar para o tecto...” Depois de ouvirmos essas palavras, éramos assaltados por um sentimento de culpa enquanto percorríamos livremente as escadas de cima abaixo. Mas numa manhã em particular, descobrimos numa cela mais espaçosa algo que noz fez sorrir de espanto e cumplicidade: seis ou sete presos sentados à volta de uma mesa a ler um texto colocado no meio da mesa. Mais tarde, descobrimos que o texto era o nosso argumento e que aqueles homens eram os nossos actores que estavam a traduzir as suas falas para os respectivos dialectos (napolitano, siciliano, da Apúlia) com a ajuda de outros conterrâneos – que não tinham sido seleccionados para o filme.
Este trabalho foi coordenado e supervisionado – como sempre – pelo Fabio e o Cosimo Rega (que faz de
Cássio). Este episódio também ajuda a perceber o significado do filme. E mesmo antes, quando vimos os testes filmados, ficámos surpreendidos pela positiva ao ouvir Próspero e Ariel discutirem em napolitano, ou o Romeu e o Polónio segredarem, gritarem e a dizer palavrões em Siciliano ou no dialecto de Apúlia... Percebemos que a pronúncia errada dos dialectos que era aplicada às falas não diminuía o tom da tragédia, mas que, pelo contrário, dava a essas falas uma nova verdade. E escutámos essas falas com uma consciência mais profunda.
O prisioneiro-actor e a sua personagem desenvolveram uma ligação profunda através de uma linguagem comum e acompanharam mais facilmente o desenrolar do drama, que, em Shakespeare, sempre teve também uma dimensão popular. Portanto, não fomos nós que decidimos usar os dialectos, mas sim os nossos actores que se apoderaram do argumento e adpataram-no às suas respectivas naturezas.
O filme foi filmado integralmente na prisão? Quais foram – se é que os houve – os maiores desafios artísticos e de produção? As autoridades colocaram algum limite ao acesso da câmara?
O filme foi integralmente rodado em Rebibbia. Passámos quatro semanas em Rebibbia: chegávamos de manhã e saíamos à noite, completamente esgotados, mas felizes e satisfeitos. Certo dia, comentámos: “Estamos a fazer este filme com a mesmo audácia e imprudência dos nossos primeiros filmes”.
Quanto à câmara, tivemos a liberdade de a levar para todo o lado: as várias alas, as escadas, os cubículos, o pátio, as celas, e a biblioteca. Com uma excepção: a zona de acesso interdito onde os prisioneiros que estão na solitária são mantidos em isolamento. Ninguém pode vê-los, nem nós. Do exterior, um dos guardas prisionais mostrou-nos as janelas das celas dos vira-casacas, mergulhadas num silêncio profundo. Só suspendíamos as filmagens quando os prisioneiros das outras alas tinham de passar pelos corredores para irem para o pátio ou à casa de banho, ou quando alguns dos nossos actores recebiam visitas dos familiares. Quando regressavam, estavam profundamente emocionados, comovidos, melancólicos ou zangados. Voltavam aos seus papéis mas o olhar parecia ir para outro lado, e perdiam a espontaneidade terna e selvagem das suas interpretações.
O plateau de uma rodagem é um lugar onde florescem amizades e cumplicidades e este filme não foi excepção. Um dos guardas balbuciou: “Não se aproximem muito deles; tenho uma excelente relação com eles, e às vezes sinto piedade e compaixão, até amizade... Mas depois tenho de me lembrar de manter uma certa distância e pensar naqueles que sofreram e sofrem mais do que eles, ou seja, as vítimas e as suas famílias...”. Isto é verdade, no entanto, quando o filme chegou ao fim e tivemos de abandonar a prisão e os nossos actores, foi uma despedida dilacerante. Subindo as escadas de regresso à sua cela, o Cosimo Rega – que faz de Cássio – levantou os braços e gritou: “Paolo, Vittorio: de amanhã em diante, nada será igual!”.
Quando decidiram que a maior parte do filme seria a preto e branco?
Porque a cor é realista e o preto e branco é irrealista. Isto pode parecer uma declaração autoritária, mas, pelo menos neste filme, é verdade. Quando chegámos à prisão, sentimos que haveria o risco de caírmos num realismo televisivo e fugimos a isso usando o preto e branco que nos deu mais liberdade para inventar e filmar neste ambiente absurdo que era a prisão de Rebibbia, onde César não é morto no cenário de Roma antiga, mas nos minúsculos cubículos onde os prisioneiros passam o tempo ao ar livre. Ao usar o preto e branco, sentimo-nos livres para filmar numa cela onde Bruto repete o seu monólogo com sofirmento e paixão: “César deve morrer”. Optámos por imagens a preto e branco fortes e violentas que, no final, acabam por ganhar uma cor mágica no palco, enaltecendo a alegria furiosa dos prisioneiros espantados com o seu sucesso Mas a escolha do preto e branco também se prende com razões narrativas: queríamos sublinhar a passagem do tempo, o salto atrás, de uma forma fácil e directa. Esta não é, obviamente, uma ideia nova, estamos conscientes disso, mas às vezes gostamos de trilhar caminhos conhecidos.