VOLTA À TERRA | 3 SETEMBRO | 21H30 | Q - ESPAÇO CULTURAL


VOLTA À TERRA
João Pedro Plácido, Portugal, 2014, 78'


Dia 1 Setembro, Antigo Cemitério de Cacela velha, 22h
Dia 3 Setembro, Q - Espaço Cultural - 21h30


FICHA TÉCNICA:
Realização e Imagem: João Pedro Plácido 
Argumento: Laurence Ferreira Barbosa, João Pedro Plácido 
Montagem: Pedro Marques
Com: Daniel Xavier Pereira, António Guimarães, Daniela Barroso, Uzenses
Origem: Portugal
Ano: 2014
Duração: 78’




Festivais & Prémios

Doclisboa’14 – Prémio Liscont e Prémio Escolas/IADE para Melhor Longa-Metragem da Competição Portuguesa
Trento Film Festival - Gentiana de Prata para melhor contribuição técnica e artística
Porto post doc [Portugal, 2014]
Visions du Réel [Suiça, 2015]
ACID Cannes [França, 2015]


CRÍTICAS
Um documentário sobre uma aldeia isolada do Alto Minho. Mas que é afinal sobre um jovem agricultor que ama viver da sua arte agrícola. Ou, talvez, um documentário sobre uma parte de Portugal que ainda vive da partilha da terra e de uma utopia da existência em comunidade. O lugar é Uz, o rapaz é o Daniel. Volta à Terra é uma visão em estado de graça e com um humor aberto pelos "clichés" da vida na terra. E é também uma viagem pessoal do seu realizador, João Pedro Plácido, de regresso à terra da mãe e ao local das suas férias. Sem clichés sobre a visão da "província", Plácido coloca-nos sem filtros no meio da terra e do gado. O filme, de forma orgânica, atravessa-se como um "agrada-multidões". Quem o viu no DocLisboa percebeu o efeito mágico sobre o público. É impossível não ficar tomado por estas personagens...
Rui Pedro Tendinha, dn.pt/


Volta à Terra é um dos fenómenos mais curiosos do cinema português recente: vencedor do concurso nacional do Doclisboa 2014, apresentado no Porto/Post/Doc, tem criado à sua volta uma pequena “vaga de fundo” internacional culminando na sua aclamação em Cannes 2015 onde foi exibido numa das secções paralelas. Há alguma razão para isso: o filme inscreve-se na tendência dos “cinemas do real” que neste momento está no centro dos debates sobre o documentário, no modo como faz um retrato directo, imersivo, sem adornos, da comunidade agrícola da aldeia da Uz. Mas esse olhar intensamente curioso, grandemente centrado na personagem de Daniel, um jovem pastor de uma pureza quase inacreditável, tem algo de distanciamento alienígena, entomológico, de outsider urbano que observa uma realidade alheia. Volta à Terra recorda muito Aquele Querido Mês de Agosto de Miguel Gomes, mas sem a mesma afeição e a mesma ternura, substituídos pela sofreguidão de registar aquela realidade sem verdadeiramente a resgatar do estatuto de mera curiosidade. 
Jorge Mourinha, publico.pt/

ENTREVISTA AO REALIZADOR
Prémio para melhor longa-metragem portuguesa no DocLisboa, Volta à Terra é a homenagem do realizador de 36 anos à aldeia minhota Uz - onde os telhados são de colmo e o consumismo não bateu à porta.
Enquanto director de fotografia que nunca quis ser realizador, por que abriu a excepção com este filme?
A vontade de fazer um filme na aldeia de Uz, em Braga, vem desde os 13 anos, quando recebi a minha primeira câmara de vídeo. Os meus avós maternos, que me educaram no centro de Lisboa, viveram lá até eu nascer. Se ali passei todas as férias escolares, hoje levo a minha filha que está a descobrir a liberdade do campo. Sempre quis prestar homenagem àquelas pessoas.

Uz tem 54 habitantes. Deles escolheu seguir de perto Daniel, um jovem agricultor e pastor, e António, um emigrante regressado à terra.
Sei o nome e a idade de toda a gente, porque fiz um censo para o meu trabalho. No início queria fazer o retrato de três gerações. Havia duas crianças de nove anos que saíram durante a montagem. Queria espelhar que mesmo com diferentes idades haveria algo em comum em todos eles. Conheço o Daniel desde que nasceu: ele é feliz, consciente do que tem e não tem e do que poderia ter, sem no entanto querer mais. Esse é talvez o maior problema ocidental, querer sempre mais. É muito sábio da parte dele saber aquilo de que quer cuidar. Ao mesmo tempo, o Daniel tem um discurso idêntico ao de um senhor de 70 anos; nesse sentido António espelha o futuro dele. António voltou, comprou a maior quinta na Uz e transformou-se num escravo do trabalho.
Quis, então, homenagear...
Uma forma de ser não consumista, antes respigadora, não individualista, antes comunitária, de uma consciência profunda do meio envolvente, de uma empatia com a natureza e com os animais, no fundo mais primordial. É engraçado que a Uz só existe porque as pessoas ao mesmo tempo que se sentem seguras em relação ao que têm são extremamente conservadoras. E talvez esse seja um bom conservadorismo. O filme foi rodado no ano de máxima austeridade, 2012, e temos um lugar onde a crise não existe entre as pessoas.
É desse primordialismo que nasce uma rodagem repartida pelas quatro estações?
Para retratar a vida de um agricultor é preciso apanhar essas quatro fases, tal como a movimentação, a chegada e a partida de pessoas na aldeia. A mim interessava-me essa dinâmica ao longo do ano. No Inverno não há acontecimentos sociais além da ida à missa. Na Primavera começam os trabalhos em colectivo. No Verão aparecem os visitantes. No Inverno volta-se a uma espécie de solitude, os campos estão em pousio.
O título é uma referência a esse ciclo da vida?
Volta à Terra porque retrata um modo de vida que encontramos em qualquer lugar remoto onde as pessoas vivam da terra; porque enquanto espectadores creio que todos temos ou conhecemos alguém com origens rurais e ver o filme é como um regresso a elas; e finalmente porque é o que o lavrador faz antes de lançar as sementes.
Levou o Daniel à estreia no festival DocLisboa. Como seria se o tivesse levado a Cannes, onde o filme passou na secção paralela ACID?
Se o Daniel tivesse ido a Cannes, a primeira coisa que ele diria uma hora depois de ter chegado seria a de que se queria ir embora, tal como aconteceu em Lisboa. Lembro-me de ele perguntar, estávamos na Praça de Espanha, 'mas para onde é que vai esta gente toda de táxi de um lado para outro?'.
Em Cabeceiras de Basto não existe cinema?
Acho que o mais próximo é em Guimarães. Muitos da Uz foram pela primeira vez ao cinema aquando da estreia no Porto/Post/Doc. Fizeram uma viagem de uma hora e meia com uma carrinha organizada pela Câmara Municipal, pela Junta de Freguesia e pela produtora O Som e a Fúria, que lhes ofereceu o almoço.
Como correu a sessão?
Foi a experiência mais cinemática da minha vida ter uma sala cheia de pessoas que falam com a tela por que acham que o que está nela está ali presencialmente. Entre risos incontáveis até pessoas que saem da sala lavadas em lágrimas, a paleta de emoções não podia ter sido mais vasta.

Em que medida levou um guião pré-feito, abriu espaço ao imprevisto e a partir deste dirigiu uma narrativa?
O guião é uma base para o que explorar e que olhar tomar. Tudo o que filmei estava à espera que acontecesse como aconteceu, tirando aquelas frases, aquelas falas que, não tendo possibilidade de as escrever, se revelaram boas surpresas e possíveis fios condutores. Foi o que aconteceu ao notar que o Daniel falava constantemente na falta de uma rapariga. Não tendo muitas possibilidades de conflito, centrei-me nesse aspecto e limitei-me a empurrar essa realidade para a frente da câmara.
Revê-se em 'Aquele Querido Mês de Agosto', de Miguel Gomes?
O filme do Miguel surge mais como uma confirmação de que era possível fazer em terreno português o que o Abbas Kiarostami me tinha mostrado aos meus 16 anos, com A Vida Continua, pegando em pessoas que não actores e pondo-as a viver o seu próprio papel. As primeiras obras dele, até O Sabor da Cereja, fizeram-me dizer: 'É este tipo de cinema que quero fazer'. Não quis repetir as fórmulas de Les Paysans, de Raymond Depardon, com planos fixos de mais de dez minutos, retrato do que é ser um lavrador onde a mecânica está na palavra. Nem de As Quatro Voltas, de Michelangelo Frammartino, que também é muito lento e em que a câmara está muito distante das pessoas. Interessava-me um filme em que o principal dispositivo fossem as pessoas, a força do trabalho, sem uma postura de estudo etnográfico ou ambiciosa intelectualmente. 
sol.pt/

MAGIA AO LUAR | 30 AGOSTO | Q - ESPAÇO CULTURAL | 21H30

ANYWHERE, Francisco Ferreira, Portugal, 2014, 9’ 

MAGIA AO LUAR
Woody Allen, 2014, EUA, 97’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Magic in the Moonlight
Realização: Woody Allen
Montagem: Alisa Lepselter
Fotografia: Darius Khondji
Interpretação: Colin Firth, Emma Stone, Marcia Gay Harden
Origem: EUA
Ano: 2014
Duração: 97’









CRÍTICA


A transparência e as máscaras do amor

Woody Allen está de volta com uma deliciosa comédia romântica, de novo em cenários europeus — "Magia ao Luar" passa-se no sul de França e tem Emma Stone e Colin Firth nos papéis principais.
Mesmo não menosprezando (longe disso!) as maravilhas que conseguimos encontrar sempre em qualquer filme de Woody Allen, é difícil não pensar que os seus trabalhos regulares na Europa — desde "Match Point" (2005) — nem sempre terão sido feitos nas condições mais equilibradas ou mais propícias. Como se a intimidade de Nova Iorque desse lugar, deste lado do Atlântico, a uma superficialidade algo turística...
O certo é que, através de "Magia ao Luar", rodado no sul de França — com um notável trabalho de direcção fotográfica assinado por Darius Khondji —, Woody Allen reconcilia-se connosco. Aliás, em boa verdade, reconcilia-se com a sua própria arte da escrita, propondo uma aventura romântica que tem tanto de nostalgia do classicismo de Hollywood como de conto moral sobre a transparência e as máscaras do amor.Tudo se passa em finais da década de 1920, num ambiente em que o bem-estar financeiro vai a par de uma crença chic nas forças do além... Stanley, interpretado por um Colin Firth de inesperada e deliciosa auto-ironia, é um ilusionista apostado em desmascarar Sophie, personagem que Emma Stone compõe com charme q. b., uma medium que se tornou famosa entre as famílias mais abastadas da Côte d'Azur.
Woody Allen filma o ziguezague da comédia romântica, não exactamente como uma antologia de personagens mais ou menos caricaturais, antes como um exercício filosófico em que cada um experimenta os limites, porventura o logro, da sua própria verdade. Daí o gosto de uma certa teatralidade que perpassa pelas situações do filme — cada ser humano existe, afinal, como personagem mais ou menos forjada para os outros.
O encanto de "Magia ao Luar" resulta desse cruzamento calculado entre o que se apresenta ligeiro ou mesmo frívolo e toda uma intensidade que, de uma maneira ou de outra, vai contaminando as relações humanas — além do mais, em tempo de tantos ruídos "especiais", é bom encontrar um filme capaz de devolver à palavra a sua singularidade expressiva e também o seu charme.

João Lopes, rtp.pt/cinemax

A JANELA INDISCRETA | 27 AGOSTO | Q - ESPAÇO CULTURAL | 21H30

O QUE ARDE CURA
João Rui Guerra da Mata, Portugal, 2012, 26’


A JANELA INDISCRETA
Alfred Hitchcock, EUA, 1954, 112’, M/12 

FICHA TÉCNICA
Título original: Rear Window 
Realização: Alfred Hitchcock
Argumento: John Michael Hayes (segundo o conto It Had to be Murder, de Cornell Woolrich) 
Montagem: George Tomasini
Fotografia: Robert Burks
Música: Franz Waxman
Interpretação: James Stewart, Grace Kelly, Thelma Ritter, Wendell Corey, Raymond Burr, Irene Winston 
Origem: EUA
Ano: 1954
Duração: 112’


Pode chamar-se-lhe um “filme de câmara”, de tal forma tudo se circunscreve à visão a partir da sala onde o herói, um fotógrafo com a perna em gesso devido a um acidente (James Stewart), passa o tempo bisbilhotando a vida dos vizinhos até ao momento em que se depara com um crime. A notável articulação entre os espaços do interior do apartamento de Stewart e o pátio e as traseiras dos vizinhos é o resultado de um dos mais fabulosos trabalhos de set designing da história do cinema.


O olho mágico de um voyeur profissional
L.B. Jeffries é um fotógrafo reconhecido, mas num acidente de trabalho partiu uma perna e agora está imobilizado. A sua única distracção resume-se a espreitar, pela janela, a vida dos vizinhos. Mas eis que a suspeita de um assassínio no prédio em frente dá início a uma investigação empolgante, onde se questiona o voyeurismo – de Jeffries, do espectador e do próprio Hitchcock
Se espreitar a vida e a intimidade dos outros é algo frequente nos filmes de Alfred Hitchcock, não é menos verdade que o cineasta o faz questionando sempre as intenções e as consequências dessa prática. Até que ponto, afinal, o voyeurismo pode ser um acto inocente, eventualmente solidário, ou um exercício egocêntrico, sem respeito pelo outro? Em Janela Indiscreta/Rear Window (1954), o mestre do suspense põe o dedo na ferida. Hitchcock filma a vida que existe “do outro lado do pátio”, a partir da janela – e também do olhar – do fotógrafo L.B. Jeffries (James Stewart), imobilizado no seu apartamento, com uma perna engessada, por causa de um acidente de trabalho.
“O que se vê na parede do pátio é uma quantidade de pequenas histórias, é o espelho de um pequeno mundo”, disse o realizador para justificar o interesse de Janela Indiscreta, nomeado para o Oscar de melhor realizador, argumento, fotografia e som. 
Estamos, portanto, no complexo universo de Hitchcock [...] abre-se então a “janela” que esconde os segredos de um dos filmes preferidos do cineasta, atraído pela ideia do espectador ter o mesmo ângulo de visão do protagonista e, como este, poder adivinhar a ocorrência de um crime. 
Explica-se no livro que um dos objectivos de Hitchcock em Janela Indiscreta era fazer uma “rodagem subjectiva”, situando o público no “espírito da personagem”. O escritor e biógrafo do cineasta, Bruno Villien, vai mais longe e afirma: “O voyeurismo do público faz eco ao do criador. É, em princípio, o cineasta que espia as suas criações, faz com que estas sofram, filma-as para deleite dos espectadores.”
Inicialmente, Hitchcock tinha a intenção de filmar edifícios reais, mas a má iluminação dos exteriores obrigou-o a rodar o filme num plateau, que incluía os 30 apartamentos que L.B. Jeffries avista da sua janela. Este foi um dos maiores cenários construídos pela Paramount até então e, como realça o realizador francês François Truffaut, serviu para Hitchcock filmar “uma visão desencantada da conciliação entre os sexos”. Enquanto o casal Jeffries e Lisa (interpretada pela actriz fetiche de Hitchcock, a bela Grace Kelly) se debate com diferenças sociais e de carácter, do outro lado do pátio o desentendimento entre um vendedor de amostras e a sua mulher acamada pode ser o motivo para um assassínio...
Janela Indiscreta baseou-se no conto policial It Had to be Murder, do americano Cornell Woolrich. Adaptada para cinema pelo argumentista John Michael Hayes, a história original tinha apenas 40 páginas. Hitchcock resume-a assim: “(...) o assassino, ao sentir-se descoberto, queria matar o herói desde o outro lado do pátio com um revólver. Mas o herói conseguia erguer com o braço um busto de Beethoven, colocando-o de perfil na janela. Era Beethoven quem recebia finalmente o tiro.”
Embora diferente, o final de Janela Indiscreta é igualmente surpreendente. Além do mais, como afirma Truffaut, o que torna este filme especial “não são os horrores que James Stewart avista da sua janela, mas o espectáculo das fraquezas humanas.”

Conversas de Hitchcock e Truffaut 
Numa entrevista feita pelo realizador e argumentista francês François Truffaut a Alfred Hitchcock, este explica porque Janela Indiscreta é uma experiência totalmente “cinematográfica” e se tornou um dos seus filmes preferidos.
ALFRED HITCHCOCK - Temos o homem imóvel que olha cá para fora. É a primeira parte do filme. A
segunda parte faz surgir o que ele vê. A terceira mostra as suas reacções. Isto representa o que conhecemos como a mais pura expressão da ideia cinematográfica.
Conhecem o que Pudovkine escreveu acerca disso. Num dos seus livros sobre a arte de montagem, conta a experiência feita pelo seu mestre Liev Kulechov. Consistia em mostrar um grande plano de Ivan Mosjukine e depois mostrar a seguir o plano de um bebé morto. No rosto de Mosjukine vê-se a tristeza. Tira-se o plano do bebé morto e mostra-se um prato com comida. No mesmo grande plano de Mosjukine lê-se a fome.
Funcionei do mesmo modo com os grandes planos de James Stewart. Olha pela janela e vê, por exemplo, o cãozinho a descer num cesto para o pátio. Volta-se a Stewart que sorri. Depois, em vez do cãozinho a descer no cesto, mostra-se uma rapariga quase nua a bambolear-se diante da janela aberta: segue-se o mesmo grande plano de James Stewart a sorrir, só que agora é um sorriso malandro (....).
Temos de admiti-lo... James Stewart é um voyeur. Lembro-me de uma crítica por causa disso. A senhora Lejeune escreveu no London Observer que Janela Indiscreta era um filme horrível porque havia um tipo que passava todo o filme a espreitar pela janela. Sim, o homem é um voyeur, mas não seremos todos voyeurs? (...) Aposto que nove em cada dez pessoas se vissem do outro lado do pátio uma mulher a despir-se antes de ir para a cama ou simplesmente um homem a arrumar o quarto, não conseguiam deixar de olhar.
(HITCHCOCK, de François Truffaut, Granada Publishing, 1978)

O CONTO DA PRINCESA KAGUYA | 23 AGOSTO | Q - ESPAÇO CULTURAL | 21H30

ESTÓRIA DO GATO E DA LUA
Pedro Serrazina, Portugal, 1995, 5’ 

Um poema. Uma estória feita de silêncio e de cumplicidade. Luz e sombra, o apelo da noite, a lua como paixão… Esta é a estória de quem tentou tornar o sonho realidade, a estória do gato e da lua.


O CONTO DA PRINCESA KAGUYA
Isao Takahata, Japão, 2013, 137’, M/6

PRÉMIOS
Grande Prémio Monstra 2015
Oscares: Nomeado para o Melhor filme de Animação


FICHA TÉCNICA
Título Original: Kaguyahime no Monogatari
Realização: Isao Takahata
Argumento: Isao Takahata, Riko Sakaguchi
Música: Joe Hisaishi
Vozes: Aki Asakura, Kengo Kora, Takeo Chii, Nobuko Miyamoto
Origem: Japão
Ano: 2013
Duração: 137’


CRÍTICAS

Depois de Miyazaki, um novo exemplo máximo do artesanato zen da animação japonesa, numa belíssima e arrebatadora miniatura sobre o que nos faz humanos.
Se Hayao Miyazaki continua a ser visto internacionalmente como o “mestre” da animação japonesa contemporânea, o seu cúmplice (e associado no Studio Ghibli) Isao Takahata tem sido injustamente relegado para um “segundo plano” que em nada lhe fica atrás.
Autor de O Túmulo dos Pirilampos (1988), considerado uma das obras-primas absolutas do cinema de animação moderno, Takahata esteve 15 anos a trabalhar neste Conto da Princesa Kaguya – desde já um dos mais belos filmes que vamos poder ver em sala este ano, cuja delicadeza de toque e deslumbre visual o faz transcender a mera dimensão de conto de fadas oriental que lhe está na origem. Exemplo máximo do artesanato gráfico do estúdio Ghibli, O Conto da Princesa Kaguya explora um traço suave e livre sobreposto a uma sucessão de delicados fundos aguarelados, de uma economia visual sugestiva e inspirada, para contar a história de uma menina magicamente enviada a um pobre cortador de bambu e à sua mulher, que tudo fazem para lhe dar a educação de princesa que o seu estatuto sobrenatural lhe parece atribuir. É uma história de aprendizagem que prolonga a tradicional concepção zen da necessidade de um constante equilíbrio com o mundo natural, ao mesmo tempo que, de modo quase imperceptível, explica as alegrias e as tristezas de se ser humano através das experiências da princesinha. Dito desta maneira, parece um filme para miúdos – e certamente que também o é – mas a prova maior da excelência de Takahata é que O Conto da Princesa Kaguya não é “apenas” um conto de fadas animado: é, sobretudo, uma miniatura de arrebatadora simplicidade sobre o que nos faz humanos contada com poesia benévola, como se o cineasta japonês nos enfeitiçasse durante quase duas horas e meia nas quais nada está a mais nem a menos. 
É, apenas, um enorme, grandíssimo filme que deveríamos saber receber com o respeito que merece. 
Jorge Mourinha, publico.pt


Chega às salas de cinema portuguesas uma das obras de animação mais encantadoras e impactantes deste ano. O último filme de Isao Takahata, O Conto da Princesa Kaguya, esmaga-nos com a sua imensa beleza e peculiaridade e é já uma película mandatória para todos os amantes de cinema. 
Encontrada dentro de uma cana de bambu brilhante, uma pequena bebé prometida a ser princesa mas que é criada por um velho cortador de bambu e a sua mulher numa vida modesta e humilde. Do campo à grande cidade, ela encanta todos os que consigo se cruzam, incluindo cinco pretendentes nobres a quem Kaguya pede missões aparentemente impossíveis, para tentar evitar o casamento com um estranho que não ama. Além dos cinco pretendentes, a jovem chama a atenção do próprio príncipe herdeiro… mas qual será mesmo o destino da Princesa Kaguya?
Numa época de dificuldades para os Estúdios Ghibli, casa fulcral da história da animação japonesa,Takahata, seu co-fundador, estreia a sua última obra. O realizador do Túmulo dos Pirilampos anunciou, depois da retirada de Hayao Miyazaki, que também não realizaria nem produziria mais longas-metragens. O Conto da Princesa Kaguya assume-se assim como um emocionante e emocionado adeus ao trabalho de um dos maiores génios do desenho e do cinema japonês. O seu tom nostálgico, melancólico e até fatídico pintam o cenário idílico desta despedida ternurenta e amargurada.
E é no final da sua carreira que Takahata volta às origens. Numa época em que a animação é dominada pelo digital e o uso do 3D é extremamente revitalizante ver uma obra como esta, onde o realizador optou por uma animação artesanal que nos remonta às origens deste tipo de cinema. O traço do mestre é simples mas seguro, minimal mas extraordinário, imperfeito mas de uma perfeição extremamente bela. O uso dos neutros e a pouca saturação da cidade ao contrastar com a vivacidade das cores do campo, os rabiscos meio soltos e os negros abundantes em cenas mais impactantes em termos da ação, todos estes pormenores fazem com que a parte técnica de Kaguya comungue com a sua escrita.
É esta comunhão que torna este filme tão especial e único. É a sua harmonia estética e narrativa que faz com que o espectador fique tão embrenhado na história da princesa. A banda-sonora vem também ajudar a criar toda uma atmosfera trágica ao conto de Kaguya e tudo se torna numa incrível reflexão sobre a efemeridade da vida, sobre a escassez do momento e o inevitável e trágico fim de tudo. Kaguya, a personagem, é uma metáfora lindíssima de variadas coisas. Ela é a carreira de Takahata, ela é a sua vida, ela é o seu amor, ela é as suas frustrações e inseguranças. Mas acima de tudo, Kaguya é uma metáfora para todos nós, ela representa a vida no seu sentido mais lato, representa as nossas aventuras e desventuras, amores e desamores, seguranças e inseguranças, felicidades e infelicidades que vivemos durante este caminho a que chamamos de vida.
O argumento e a linha da narrativa abrem assim todas estas portas aos espectadores para que os mesmos façam um exercício de reflexão e se unam numa quase sessão de meditação. É este aspecto metafórico e alegórico da jornada de Kaguya pelo planeta terra que nos maravilha quando saímos da sala, um maravilhamento que nos acompanhará por muitos e bons anos, tornando esta obra um possível clássico instantâneo da obra de Takahata. É durante o seu início ambíguo, o desenrolar atípico e o clímax emocional que O Conto da Princesa Kaguya vai construindo esta ponte que une a história e o interior das emoções do espectador. Rematando, pois, num brilhante e extraordinário final que vai dar a resposta a todo o filme, um final carregado de emotividade e um magnífico olhar sobre as despedidas, os desligamentos e os pontos finais.
Takahata é exímio como realizador e inteligentíssimo como argumentista. Ele sabe mexer com o coração do público, ele conhece-nos – a generalidade da raça humana – até ao nosso mais profundo sentimento e sabe jogar com eles. E este filme é isso, um jogo de sentimentos e emoções que nos levam numa montanha russa bastante calma e contemplativa. Se não fossem os ocasionais momentos de humor, o público correria o risco de dispersar completamente da história ao perder-se nas suas próprias paixões, mas até nisso o argumento é de uma eficácia extrema.
Em suma, O Conto da Princesa Kaguya é das mais bonitas e sinceras cartas de amor escritas ao cinema e à vida. É uma homenagem ao encanto do nosso planeta e à nossa existência enquanto espécie. É uma reflexão também ela amargurada e nostálgica sobre a inevitabilidade do fim, tudo acaba e nada é eterno. Este é um dos melhores filmes do ano e das melhores animações da década, o último filme de Isao Takahata só nos confirma as saudades que vamos todos ter se osEstúdios Ghibli findarem.
Ricardo Rodrigues, espalhafactos.com/

YVONE KANE de Margarida Cardoso | 20 AGOSTO | Q - ESPAÇO CULTURAL | 21H30

YVONE KANE
Margarida Cardoso, Moçambique/Portugal/Brasil, 2014, 117', M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Margarida Cardoso 
Argumento: Margarida Cardoso
Montagem: João Braz 
Fotografia: João Ribeiro 
Interpretação: Beatriz Batarda, Irene Ravache,Gonçalo Waddington, Francilia Jonaze,Mina Andala, Samuel Malumbe, Susan Danford, 
Ano: 2014
Origem: Moçambique/Portugal/Brasil
Duração: 117'

FESTIVAIS
Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Sta. Maria da Feira - Melhor Actriz
Festival do Rio
Tallinn Black Nigths Film Festival 



CRÍTICA

O cinema português volta a lidar com memórias dos tempos coloniais: "Yvone Kane", de Margarida Cardoso, protagonizado por Beatriz Batarda e Irene Ravache, é um filme brilhante sobre a dificuldade de lidar com essas memórias.
Mantemos uma relação ambígua com o passado colonial português: por um lado, sabemos que a sua memória está, algures, no labirinto da história, dos seus factos e imaginações; por outro lado, sentimos, mesmo se não o sabemos explicar, que tal memória existe em défice, como se tivéssemos medo ou pudor de dela nos aproximarmos.
Sustentado por um elenco de invulgar equilíbrio e subtileza, o novo e magnífico filme de Margarida Cardoso, "Yvone Kane", nasce dessa ambiguidade, projectando-nos num país africano, abstracto, mas em tudo e por tudo marcado pela história colonial portuguesa (até porque é um país onde se fala português). Não é uma evocação de factos precisos, antes uma teia de acontecimentos em que, a certa altura, o que realmente acontece tem tanto de palpável como de indecifrável.
Há uma sugestão de enigma policial: Rita (Beatriz Batarda) é uma mulher que se empenha em descobrir o que se passou com Yvone Kane, militante muito activa do processo de independência daquele país; ao empreender a sua viagem, vai encontrar-se com a sua própria mãe, Sara (Irene Ravache), que ali ficou, vivendo um processo de apagamento emocional que ora parece voluntário, ora inexorável.
Em última instância, "Yvone Kane" expõe o modo como Rita e Sara, face à herança enigmática de Yvone, se confrontam com a resistência da própria memória — como se, ao mergulharem no passado, corressem o risco de perder as razões da sua identidade. O filme de Margarida Cardoso é sobre isso mesmo: a vontade de apropriação de uma herança histórica e, ao mesmo tempo, a consciência desencantada de que há coisas que já não voltam e que, num certo sentido, se perderam para sempre. Em resumo: uma galeria de solidões encenada como um exercício metódico de revelação.
João Lopes, rtp.pt/cinemax




ENTREVISTA A MARGARIDA CARDOSO
Yvone Kane chegou aos cinemas dez anos depois da primeira longa-metragem de ficção da cineasta Margarida Cardoso. Trata-se de um revisitar a uma Moçambique traumatizada pelos horrores da guerra colonial e pelas promessas não cumpridas.
O C7nema teve o privilégio de falar com a realizadora sobre o seu mais recente filme, a sua confrontação com os fantasmas do passado, o seu regresso "indefinido" a Moçambique e o seu olhar ao panorama atual do cinema português.
Como surgiu a ideia deste filme? Como foi regressar a Moçambique?
Surgiu exatamente do facto de eu não ter regressado. De ter feito imensos projectos lá. Ao longo deste tempo todo, tenho trabalhado sempre em vário projetos de lá e foi então que fui construindo esta ideia de uma grande atração pelos espaços, não é bem paisagens, mas territórios distantes, locais mais abandonados, e tudo isso. E a partir daí decidi fazer um filme que passasse na atualidade. Todo os outros filmes que tinha feito ou eram uma reconstituição dos anos 60 ou exploravam um período pós-colonial. Então senti a necessidade de fazer algo que decorresse nos dias de hoje. Comecei a construir as peças para filmar uma coisa que fosse ctual, captar um mundo com condimentos mais do real e enfim.
Como profissional sentiu alguma diferença entre a produção A Costa dos Murmúrios e este Yvone Kane?
Sim, há muitas diferenças. Em A Costa dos Murmúrios tinha uma época que era a colonial, e então os murmúrios eram os últimos sons antes do fim, ou seja, antes do silêncio. Acontece que depois da época colonial veio um silêncio para os portugueses. Nós utilizávamos muito a História para descobrir algo no tempo, agora não. Também me interessou aqui seguir para outro fim de época, não a colonial, mas neste filme, que se passa na atualidade, tentei falar do fim da nossa relação ideológica com África. Aquelas pessoas que estiveram lá e que acreditavam naquelas causas, naquelas ideologias, no Homem Novo e a igualdade entre as classes. Todas as vezes que essas pessoas tentavam construir esses países, que agora são ultra-capitalistas, são ultra-liberais, enchi-os com "sonhos e ideias comunistas". Então, com este filme tentei retratar um fim de uma época de ideologias e de sonhos. E são épocas muito diferentes, muito marcadas. Moçambique teve um Guerra Civil durante muito tempo e agora é um país que se considera em fase de construção, ou seja, muito diferente da época colonial.
Quem é Yvone Kane? Como se inspirou para criar a personagem?

Essa personagem é inspirada, digamos, nas suas ações, no que ela faz individualmente. Foi inspirado nos "milhões" de filmes que vi quando fiz o Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema. Tive que ver praticamente tudo que havia no arquivo, como também muitas reportagens durante a luta armada e fiquei assim com uma ideia concreta, logisticamente, do que passa numa manifestação, como funcionam estes movimentos, o destacamento feminino e estas coisas todas. A partir daí comecei a criar uma personagem que é uma mistura entre várias coisas que tenho andado a estudar. Estou a fazer um documentário sobre uma angolana que em 1977 foi assassinada. Ela era uma revolucionária, a Sita Valles, e uma mistura de outras figuras que existem do sindico feminino, como a Josina Machel, que era a ex-mulher do Samora Machel. Então juntei essas personagens e criei uma personagem mítica, uma personagem fictícia, que engloba isso tudo. Yvone Kane vai sendo também revelada durante o filme numa pessoa essencialmente verdadeira. Porém, não é uma heroína.
Sentiu dificuldades na produção deste filme? Se sim, quais?
Senti todas as dificuldades [risos], mas não vou numerar uma lista de compras. Sim, senti muita dificuldade. A primeira dificuldade foi o financiamento do filme. Depois, finalmente conseguimos uma colaboração com o Brasil e a próxima questão foi que atravessamos um período de bastante crise na altura em que foi filmado. Começámos as preparações em 2011 e só conseguimos terminá-lo em 2014. Portanto, foram 4 quatros. Em 2012 demorei muito a fazer a pós-produção, por falta de verbas, e foi então passando o tempo. A maior dificuldade do filme foi essa, não em termos económicos, mas nesse financiamento, em desbloquear verbas. Sim, foi difícil.
Porquê a atriz brasileira Irene Ravache como uma das protagonistas?
Porque queria uma pessoa que fosse muito parecida com a Beatriz, que interpretasse a mãe dela e curiosamente a verdadeira mãe da Beatriz não se parece nada com ela [risos]. Nos filmes a gente tenta ir mais além da verdade. A propósito, em Portugal não temos um leque de atrizes tão grande naquela casa dos 70. Teria que encontrar alguém com 70 anos com a mesma simetria da Beatriz e com vitalidade. Queria uma pessoa que transmitisse que estaria a morrer e ao mesmo tempo fora traída pela própria morte. Que poderia viver por ainda mais tempo e que tivesse físico para isso.
Em Yvone Kane, você filme muito os reflexos, ou através de janelas e redes. Essa pratica pode ser vista como uma protecção para si ou para as personagens?
Tal como nos outros filmes, eu gosto do eco das coisas violentas e gosto de uma coisa que os ingleses denominam muitas vezes que é a aftermath, depois da catástrofe. Eu não me interesso pelo momento em si do conflito, mas pelo que resta disso, o que sobra disso em ecos, reflexos. De certa forma também os reflexos criam uma cinematografia que não é direta. Estás sempre por detrás de qualquer coisa. Acho que tudo isto faz parte do que quero dizer com o filme. Todo ele não é claro, nada é explicado e interessa-me realmente, como dizes, estar protegida. Quando acontece alguma coisa de importante, a minha reação é de colocar a câmara muito longe e não perto. Não estou interessada em abordar acontecimentos muito fortes.
Neste filme você recorre a poucos planos fixos. Porém, a sequência final é um longo plano fixo. Existe algum significado nessa imagem concreta - a de restaurar uma piscina como uma espécie de exorcismo?
Sim, a piscina é o plano mais simbólico do filme, mas antes disso devo dizer que o filme é praticamente constituído por planos fixos, eu é que não tinha muita maquinaria. Por isso utilizamos muito a câmara à mão, sendo que os planos são muito secos, muito quadrados visualmente, porque é muito distante. O plano da piscina é tão longo quanto aos outros. O filme tem é uns planos com uma duração muito grande. Mas o tal plano é simbólico porque é evidente. As pessoas enterram o passado, digamos a memória, e fica tudo enterrado. Provavelmente também os "fantasmas", a personagem descobre documentos e isso pode gerar qualquer coisa, mas a partir daí quis, ao invés de acontecer qualquer coisa que pudesse revelar quem é que matou a Yvone, que não soubéssemos nada e voltássemos à aragem e nos guiássemos pela memória final.
Considero Yvone Kane um filme sobre perdas. O filme teve como base alguma perda sua ou um estado de espírito seu?
Sim, acho que é a experiência de perder, mas não diretamente. Não tive perdas diretas, mas tive consequências, por isso é que gosto de falar delas. Tive as consequências de perder muitas coisas à volta. Perder sobretudo um território identitário, o que não tenho, mas que sinceramente é uma boa ajuda não o ter. A mim inspira-me um pouco não ter essa identidade, um atual território identitário, porque ficas sempre condenada a procurar coisas. Não há ninguém que te dê uma resposta clara e então tens que procurar. Nesse aspeto, a perda mostra-se mais como uma ausência de um ponto referenciado.
"A vida é estranha, não é?" Sente-se em Yvone Kane uma certa desmistificação do misticismo. Existe uma sequência que revela isso. Com isto quer dizer que é pessimista?
Sim. Sou e é bom ser. Creio muito que os outros são capazes de fazer melhor e o pior. Então fico sempre disposta a essa dualidade, quer dizer, fico numa tristeza, uma dificuldade muito grande em aceitar tudo o que é muito violento, duro. Tudo o que há de mau nas pessoas e ao mesmo tempo uma alegria da noção da vida. Tudo muito maravilhoso, muito fantástico, os mistérios da vida que a gente nunca consegue saber onde estão as respostas. Acho isso fantástico e quando aquele rapaz disse que uma coisa que nunca esqueces é que por mais que estejas ligado a uma pessoa, tu estás sempre sozinho [a cena]. Não é dramático, mas é verdade. Ele amava a Yvone, a Yvone amava-o. A verdade é que eram capazes de tudo, mas quando a Yvone sumiu, ele estava a fazer outra coisa, e não havia nada que os ligasse. É a natureza da vida. E quando ela diz à mãe que "fizeste o que pudeste", é isso. As pessoas fazem o que podem. Há laços que são impossíveis, simplesmente não existem.
Joaquim Pinto afirmou recentemente em Berlim numa entrevista ao C7nema que «o cinema português, pelo menos no que diz respeito aos financiamentos oficiais, não é insensível a grupo de interesse». Partilha a mesma opinião?
Eu não creio muito, quer dizer, acredito que existe esse tipo de lobbies e interesses, como existe em todo o lado como tudo. Agora, não tenho assim nenhum complô acerca disso. O que tenho a dizer da minha parte é que tenho mais problemas comigo do que com os outros. A minha grande luta é lutar contra os meus problemas. É trabalhar bem, é conseguir escrever coisas boas, como também fazer filmes bons. É fazer um bom trabalho. Isto aqui é a minha luta, sendo que não tenho muita queixa dos outros. Raramente digo "ai não me deram o subsídio". Por acaso tive sempre sorte. Mas isso não é um problema. O problema é lutar contra ti. Ás vezes dizemos que não fazemos o filme por isto ou por aquilo, isso resulta porque metade das coisas que não consegues é lutar contra ti mesmo. Não acredito nisso, nessa "força" enorme. Mas atenção, eu acho que há lobbies em todo o lado.
Como vê as mudanças implementadas na questão dos júris dos concursos do ICA que tanta celeuma criaram em alguns meios?
Não estou muito preocupada. Mas parece que as associações dos realizadores podiam escolher os representantes ou anunciar alguns nomes. Eu por mim não percebo nada. O que percebo é o porquê de funcionar com júris. Porque legalmente tem que funcionar. Mas no meu sistema ideal preferia que houvesse comissões, por exemplo, trianuais, que fariam uma politica trianual, que decidissem quem filma, quem é que não filma e quem é que vai filmar. Pessoas que não fossem os mesmos júris para cada concurso, mas que terminassem passados três anos e saber a politica a seguir. Quanto aos concursos em que uma pessoa apresenta os projetos, e que tanto faz se aquilo é de uma cor ou cinema comercial, são coisas que não fazem sentido nenhum, pois as pessoas vão rodando e nenhuma dessas está a dar pontos indiscriminadamente nos currículos. Num currículo, bem podes ter um ou ter dez [filmes], conforme lhes apetece. Portanto, se estás a ser julgada por um júri o teu currículo tanto vale ter cinco como dez [filmes]. É conforme os concursos. O que é que uma pessoa pode dizer a isto, não é?
Tem algum projecto de sonho que devido à conjuntura não conseguiu ainda concretizar? Há algum projecto no futuro?
Tenho muitos, mas vai disto que estava a dizer, que por vezes tem que se abdicar de algumas coisas. Por exemplo, para além de filmar também dou aulas. Às vezes o meu trabalho na escola toma muito tempo para eu fazer outras coisas. Teria que abdicar disso, ou pelo menos tirar um ano. Mas tenho com certeza outros projetos. Tenho um inserido neste último concurso, que é um documentário e acabei de escrever uma ficção, a qual vou apresentá-la no próximo concurso.
Como vê os festivais e que papel desempenham no cinema português?
Os festivais acabam por ser isso, uma rede. Como curadores de arte, os curadores de festivais escolhem os filmes a ser projetados e isso aí é política pura e dura. As pessoas podem ter olhos para o teu filme mas há sempre milhões de filmes tão bons como o teu, ou tão maus como o teu, a concorrer. Por isso, mesmo que o teu filme seja muito bom, ele deve estar protegido para poder "vingar". E isso é o jogo mais politico que se possa imaginar. É muito complicado, é preciso ter uma rede e depois os filmes vêm com aquele rótulo de festival e aparece sempre um distribuidor que só compra o filme que teve em festival X, ou seja, os festivais acabam por condicionar o distribuidor, assim como tudo. É quase como um rótulo. Penso que o papel deles nunca é demonstrar filmes às pessoas que nunca viram tais, mas sim, simplesmente uma coisa política, porque muitas vezes esses festivais grandes, como em Veneza, temos sessões em que não aparece lá ninguém. É apenas o esquema todo à volta.
Hugo Gomes, c7nema.net/