EM CÂMARA LENTA inicia o nosso 56º ANIVERSÁRIO. As melancolias de Fernando Lopes.

3ªf, 21h30, IPJ.

Antecedido pela curta-metragem de Adriano Luz O DIA MAIS FELIZ DA TUA VIDA

Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.O cinema é poesia.

Na véspera da sua morte, Sócrates compartilhava a cela com um tocador de lira. Pediu-lhe então que lhe ensinasse a tocar aquele instrumento. O outro respondeu espantado: "Mas se ireis morrer amanhã, porque quereis aprender a tocar lira?" Ele respondeu: "Tens razão, morrerei amanhã, mas amanhã saberei tocar lira". Este episódio que se conta da vida de Sócrates, relatado no filme de Fernando Lopes, serve de exemplo para a insaciável busca do conhecimento ou, como sintetiza o povo, a ideia de aprender até morrer. Aplicada a Em Câmara Lenta, mais do que o conhecimento em si, a citação, que no filme também é um prenúncio, pode ser entendida como a busca constante da arte e da poesia. Que é o que Fernando Lopes tem feito ao longo da sua obra, de forma mais ou menos assertiva. E que aqui chega a um dos seus esplendores poéticos. Cita-se Alexandre O'Neill à descarada, sobretudo as suas considerações sobre as mulheres, como que lhe dando um papel de inspirador marialva. De alguma forma, Em Câmara Lenta torna-se assim uma homenagem a O'Neill ou, pelo menos, uma manifestação de afeto e cumplicidade. Isto é feito de modo claro e até pouco subtil quando Santiago leva a sua amante ao Parque dos Poetas, em Oeiras, e cita O'Neill em frente á sua estátua. "Sigamos o Cherne"... E o filme segue o cherne até ao fim do mar. Só que o mar é tão extenso que o filme acaba antes que o mar acabe. Mas fica a ideia de nadar sem fim, num deserto de água, com uma pele marinha, nadar como quem foge e como quem se liberta. Nadar até ao nada. "Vou atrás de um peixe grande, e desta vez ou eu o apanho ou ele me apanha a mim".

Há um homem que se perdeu no mar, e outro que tenta encontrar o seu fantasma, mas não é um filme sobre pescadores, mas de mortos-vivos. Fala da perda de uma personagem que sem encontrar o outro não se encontra a si própria. E então fecha-se na improbabilidade dos relacionamentos, que nunca são suficientemente profundos, porque ele próprio não se consegue desprender do mar que o atravessa.

Aqui, a sinopse pouco interessa ou pouco nos diz. Porque, em resumo, até pode parecer vazio, um drama trivial, de triângulos e quadrados que se enrodilham de forma mais ou menos dramática. De angústias plausíveis e reconhecíveis. Não é um filme em que conte a história. Prevalece antes o olhar, a profundidade das personagens, ou melhor, a densidade em concreto de Santiago, figura altamente egocêntrica que chama para si as luzes e as câmaras, como se os dramas que o circundam não tivessem peso. Santiago não é uma figura simpática, queima tudo à sua volta e acaba por morrer queimado.


Não entrando no extremo da private joke, de Os Sorrisos do Destino, em que com algum pragmatismo trivial, Fernando Lopes importou para o filme um facto que lhe aconteceu na vida (o resultado é um dos piores filmes da sua carreira), continua a haver um lado de espelho em Em Câmara Lenta. Sabemos que Fernando Lopes está ali, em Santiago (Rui Morrison), personagem que o representa. De resto, não é por acaso que todas as personagens bebem uísque e é estranha a coincidência de todas as atrizes se chamarem Maria João.

A outra personagem masculina, Salvador (João Reis), faz o contrabalanço com Santiago, é a figura tragicómica, mas igualmente deprimida. O bêbedo alegre e espirituoso. É um grande momento quando, no British Bar, eleva a voz para dizer que tem um anúncio a fazer, e os clientes respondem em coro: "A minha mulher deixou-me!". Uma auto-ironia fantástica. É a personagem mais terna, cheia de pena de si própria, mas que, apesar de tudo, consegue ver o outro. Um fotógrafo que escreve um diário, e vive na esperança de voltar para a mulher, que o deixou por causa da bebida.

À exceção da mulher de Salvador, que nem chegamos a conhecer, as personagens femininas caracterizam-se por uma resignação e submissão algo misteriosa. Laurence, a mulher, aceita a amante de Santiago (ou melhor, o facto de Santiago ter uma amante) com uma naturalidade fiel. Subentende-se uma relação funcional, porventura incompleta ou inconsumada, mas sem plano de rotura. Ambos se conformam, mantendo apenas discussões educadas e elevadas, que até evidenciam cumplicidade.

Constança, a amante, submete-se a um destino que ela própria ditou e que a aprisiona. "Tu és o homem a quem me decidi entregar". E diz isso como uma fatalidade, absolutamente inalterável, um karma, que mais à frente a faz gueixa, na dicotomia entre o amor e a morte. A morte é a vingança do amor. Perante estas mulheres que, passivas, submissas, se rendem ao seu desígnio, Santiago reina de forma desafetada e egoísta, mas não deliberadamente maldosa. O pecado dele talvez seja gostar sem amar, ou amar sem cuidar, deixa-se levar mas não vai. Na viagem que faz, pede dois quartos no hotel, para grande desilusão de Constança. Quer acordar sozinho. Recusa-se a entregar-se totalmente. Em oposição ao avô de Constança, que vão visitar ao lar, e encontram-no a dormir na campa da esposa falecida: esse entrega-se mesmo até depois de a morte os separar.

Visão poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citações abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético próximo de Lá fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os não lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo não prevalece. Há uma poética do vazio e dos espaços sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Em Câmara Lenta é o melhor filme de Fernando Lopes desde O Delfim. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.
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Manuel Halpern, Visão


"Em Câmara Lenta" é uma adaptação livre para cinema do romance homónimo de Pedro Reis, a partir de um argumento assinado por Rui Cardoso Martins. É o novo filme de Fernando Lopes, que muito apreciou o livro e até o comentou, considerando-o "um asteróide romanesco raro e surpreendente na literatura portuguesa." Esta é a história de um homem, Santiago – e assim reza a primeira linha da sinopse - "que se deita ao mar para não voltar." Há muito a dizer sobre aquele homem. Ainda mais sobre aquele mar. Mas sigamos lentamente (como esta câmara), pois a esse ritmo o filme convida. À partida, uma pergunta parecia impor-se sobre todas: que mar foi este, para Pedro Reis, que mar é este agora, para Fernando Lopes? Alguém muito próximo do cineasta nos provou de-pois, do outro lado da linha telefónica, que a pergunta não vinha do acaso: "Digamos que entre o Fernando e o mar há um longo e difícil desentendimento."

"Em Câmara Lenta" é um filme especial para Fernando Lopes e o preocupante estado de saúde atual do cineasta não lhe é fator alheio. Não estamos aqui para falar disso, apenas de um filme, embora haja coisas que condicionam necessariamente outras. Acrescente-se apenas que o cineasta que fez "O Fio do Horizonte" bem pode ter dito nos últimos tempos que viu o horizonte por um fio. E foi num breve encontro inesperado para nós, quando todas as hipóteses de conversa já pareciam barradas, que Fernando Lopes, em sua casa, nos esclareceu a dúvida de uma vez por todas: "Santiago, bon vivant, é afinal um tipo completamente fascinado pela morte. Ele tem a mania do mar e, de um mergulho a outro, à medida que se vai enganando a ele próprio, é na morte que ele pouco a pouco mergulha. Para mim, o mar sempre foi em simultâneo fascinante e aterrador. Uma espécie de morte líquida. Sinto-me à vontade para lhe dizer isto: eu nunca aprendi a nadar."

Passamos a Santiago (papel de Rui Morisson) e ao crawl deste filme. Nada que se farta, oceano adentro, Santiago. Aventura-se em mar alto. O filme nunca dirá o que faz ele da vida e é bem provável que o conforto que esta lhe deu lhe tenha permitido viver sem fazer coisa alguma. Ele é "o último sobrevivente de uma espécie de varões e marialvas". Santiago é casado com Laurence (Maria João Luís). Tem uma amante que o adora acima de tudo e que adora botânica: cha¬ma-se Constança (Maria João Pinho). Frequenta bares de má fama onde encontra frequentemente Ma Vie (Maria João Bastos, a terceira Maria João do elenco). Em torno de Santiago há ainda Salvador (João Reis), seu boémio amigo que abraça amores perdidos com copos reencontrados - podem viver uns sem os outros? Começa logo pela manhã, Salvador, no balcão de um bar que é british e lhe serve de coro: é Salvador quem começa por estabelecer as ligações entre as personagens, no relato de um diário íntimo em que realidade e alucinação se confundem. Talvez a história de "Em Câmara Lenta" seja sua. Talvez sejam suas estas personagens, fantasmas que lhe surgem num momento da vida em que ele já aprendeu a dar outro valor à compaixão. Mas, como ele diz, "o que realmente interessa..." O que nos interessa?

As relações homem/mulher são há muito um assunto central no cinema de Lopes. Depois do ponto alto de "O Delfim" (2002), o aspeto (que consideramos) mais mundano dessas relações tem alimentado o seu trabalho recente: "Lá Fora", "98 Octanas", "Os Sorrisos do Destino". "Em Câmara Lenta" vai noutro sentido. A simplicidade não pediu condimentos e reduziu o texto ao osso. O desenvolvimento das personagens é ténue e 'descomplica-se', por opção própria. Há momentos que se julgam difíceis de seguir: foi um sonho ou vimos mesmo Laurence, de espada em riste, a desafiar gaivotas debaixo de um rochedo da Praia da Adraga? O filme passa a correr e o crawl de Santiago não exigiu mais que 70 minutos de duração: algo ficou por escrever, por filmar? Mas há outro assunto a sublinhar aqui e que importa: o tratamento do tempo - que Fernando Lopes dinamita. Não vale a pena procurar no parágrafo anterior a cronologia narrativa que o filme não dá, pois é através de flashbacks constantes que vão surgir as cenas e a natureza das personagens. Por flashbacks somos levados à story, sob a forma de 'aparições' que ora recordam a estrutura de "Uma Abelha na Chuva" ora os duplos de "O Fio do Horizonte", esse filme em que um homem vivo se descobria no espelho de um homem morto que era ele.


Dorme pouco, Santiago. Sonhos obsessivos não lhe dão repouso. O filme instala cedo a sensação de que o tempo de Santiago é frágil- e é iminente a sua rutura. "Em Câmara Lenta" vive num tempo adiado, que é em simultâneo um tempo de pânico. Pânico de que o tempo acabe, ou pior ainda, pânico que os dias se repitam ad eternum: Santiago é um daqueles homens que sabem que os homens pouco mudam. Para os da sua casta, é coisa certa, sabida e provada. E neste filme em que andam ao contrário os ponteiros do relógio, como tomba o varão e marialva? Verga-se pela indiferença na sua relação com Laurence. Verga-se pelo desespero na sua relação com Constança, essa Flora sem Zéfiro à altura que, num ritual erótico que é um ritual de morte, prova o veneno de um amor que ela quis mas nunca conseguiu viver por inteiro. O que resta a Santiago? O destino do cherne do famoso poema de O'Neill, que o filme cita e acaba com "solidão e mágoa"? O destino do mar? "Acho que hoje vou apanhar um peixe de sangue quente..."

Cineasta importante, cineasta único, cineasta vivo, Fernando Lopes realizou um filme crepuscular chamado "Em Câmara Lenta". Começa com o som do mar vibrante e termina em silêncio de sepulcro, com uma espada sobre cinzas. Uma câmara ardente? Não deixamos as ideias por aqui. É preciso voltar a um mar que se abre à ficção e liberta a realidade de Santiago dos seus limites. A um tempo que eclode e desvanece, de notas soltas. Neste tempo plural, labiríntico, o que Fernando Lopes constrói é um túmulo para Santiago. Um túmulo em que cabem sonhos e pesadelos, festas e desfeitas, a embriaguez e a ressaca do seu coração.

“Em Câmara Lenta" é' um filme que pergunta: 'quem somos nós e por que nos tornámos objetos de nós próprios? Objetos de cobiça e indiferença, objetos de incompreensão e de terror? Não fomos, afinal, neste infinitésimo de mundo que somos, os nossos maiores inimigos? Consciente do seu destino, Santiago desce ao fundo do desejo. Fernando Lopes filma-o com compaixão, em posição fetal, naquela imensidão de mar que é afinal um espaço uterino. É por isso que “Em Câmara Lenta” não nos parece um filme de um termo. Antes o filme de um reencontro, de uma reconciliação.
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Francisco Ferreira, Expresso




Realização: Fernando Lopes
Fotografia: Edmundo Diaz
Argumento: Rui Cardoso Martins, a partir do livro de Pedro Reis
Montagem: Carlos Madaleno
Interpretação: Rui Morisson, João Reis, Maria João Pinho, Maria João Luís, Maria João Bastos,
Carlos Santos, Nuno Rodrigues, Miguel Monteiro, John Frey

Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 71’

O DIA MAIS FELIZ DA TUA VIDA
Nota para a curta-metragem que acompanha o filme e que marca a estreia na realização do actor Adriano Luz. O Dia Mais Feliz da Tua Vida, embora mais terra a terra, é também ele exemplo de uma visão poética e neste caso, de uma angustiante degradação humana. A direcção é precisa, detalhada, com ângulos interessantes e com uma excelente coordenação a nível sonoro (aquele constar pingar da torneira fica na cabeça).
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Tiago Ramos, splitscreen.blogspot



Realização: Adriano Luz
Argumento: Pedro Lopes
Fotografia: André Szankowski
Música: João Loio
Montagem: Ricardo Inácio
Interpretação: Carla de Sá, Miguel Borges, Romeu Costa
País: Portugal
Ano: 2011
Duração: 23´

ABRIL - 56º ANIVERSÁRIO - CICLO Melancolias. IPJ, às 3ªf. 21h30.

DIA 3
EM CÂMARA LENTA, Fernando Lopes, Portugal, 2011, 71’
Visão poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citações abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético próximo de Lá fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os não lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo não prevalece. Há uma poética do vazio e dos espaços sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.
Manuel Halpern




DIA 10
INQUIETOS, Gus Van Sant, EUA, 2011, 91’, M/12
Com boa direcção de actores, belíssima música (partitura original de Danny Elfman e canções de Sufjan Stevens ou Nico), um argumento que sabe não tropeçar nas armadilhas da lágrima fácil de um Love Story mas, ao mesmo tempo, manter todo um programa emotivo como tutano que alimenta a narrativa e um saber (já várias vezes demonstrado) no encontrar de bom relacionamento entre espaço e acção, Inquietos é, afinal, uma bela surpresa. E confirma, depois do já sólido Milk, que o realizador parece ter encontrando uma forma de lidar com os seus projectos para o grande público .
Nuno Galopim

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DIA 17
O MIÚDO DA BICICLETA, Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélgica/ França/ Itália, 2011, 87’, M/12
Depois do “quase-melodrama” que era “O Silêncio de Lorna”, “O Miúdo da Bicicleta” vem confirmar que os irmãos Dardenne encontraram, algures, um coração: já não filmam seres humanos compenetrados na “animalidade” de uma luta pela sobrevivência, filmam seres humanos no momento em que, justamente, a “humanidade” se lhes impõe. A ausência de explicações (cabais), a psicologia impenetrável, os efeitos do acaso, tudo isto são elementos que os irmãos belgas continuam a trabalhar muito bem e a constituir em assinatura natural, nada forçada.
Luís Miguel Oliveira

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DIA 24
LE HAVRE, Aki Kaurismaki, Finlândia/ França/ Alemanha, 2011, 93’, M/12Q
O cinema também foi feito para figurar milagres a Aki em “Le Havre”, arrisca timidamente o seu. Não o revelaremos, nem saberíamos como o fazer. Digamos antes, que em “Le Havre”, Aki se atreve a colorir de esperança o negrume dos dias com uma poesia humanista da qual só ele tem o copyright e que é todo um programa – admirável mundo novo que, lá por não ser natural, não deixa de ter os pés na terra.
Francisco Ferreira




.......................................Sócios 2€ // Estudantes 3,5€ // Restantes 4€

última sessão de homenagem a ANGELOPOULOS - 5ªf: A ETERNIDADE E UM DIA

5ªF, 21H30, SEDE. ENTRADA LIVRE.

Algures em A Eternidade e Um Dia conta-se a história de um poeta que ia aprendendo palavras e as compunha na esperança de que a Verdade as viesse habitar.

A história é, evidentemente, um símbolo, uma metáfora, das muitas que circulam por este filme envolvente, bonito e vazio. Tantas que se justifica dizer que Angelopoulos não tinha uma história para contar, mas que pretendeu organizar um conjunto de janelas fortes na qual inscrevesse sinais que o espectador leria com facilidade, nisso se sentindo em simultâneo inteligente, culto e saciado na sua necessidade de temas profundos (nada menos que o amor, a morte e o sentido da vida andam por ali). Tantas que quase apetece decretar que ao cinema seja interdito o uso de símbolos, que a metáfora seja considerada «persona non grata» da narrativa fílmica - salvo a dos leões no Potemkine, porque, realmente, quando a pedra se move, é razão para ficarmos em silêncio, se não em sentido.

Acontece que a história do poeta é símbolo conveniente para a atitude que julgo detectar nesta fita. Um cineasta internacionalmente consagrado como autor, inegavelmente dotado para a manipulação das matérias com que se faz o cinema, organiza um filme com um saber-fazer excepcional. Ele conhece as regras e os modos.

Começa por nos enlear na fábula (a história da cidade afundada que emerge apenas em noites de lua cheia, ainda antes do genérico), por nos acariciar a dolência pela música, por nos colocar na sempre funcional situação de um homem à beira da morte que rememora infâncias, defronta a solidão e tem inacabada a razão para a sua vida.

Depois, seja a escolha cenográfica, como a sábia utilização do plano-sequência, com ele se inventando o espaço e navegando o tempo, ou a astúcia pictórica (os nevoeiros, os três homens de amarelo que atravessam a noite), tudo labora como um relógio paciente e exacto. Vê-se o maquinismo a funcionar. Ganhar a Palma de Ouro em Cannes é uma das coisas que se lê no mostrador. Mas tal como um relógio não tem surpresas (a precisão do engenho é exactamente para garantir o cumprimento rigoroso da previsibilidade), A Eternidade e Um Dia contabiliza formas para cumprir uma expectativa: um filme de autor consagrado. E, como o poeta, o realizador espera que uma Verdade as habite. Mas não habita.

O que mais me impressiona na fita é pressentir encurralado Theo Angelopoulos, expoente do cinema grego, do cinema europeu, do cinema. Pressenti-lo cativo da sua própria imagem de marca, incapaz de sair do «efeito Angelopoulos», subjugando-nos pelo modo que não pela emoção da inventiva.

Lembro-me, algures, na minha vida de espectador de cinema já longa de décadas, de ter sentido idêntico constrangimento com cineastas tão notáveis como Ingmar Bergman (Lágrimas e Suspiros) e Martin Scorsese (New York, New York).
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 14/8/99


O que nos perturba neste filme, na senda dos outros dois estreados em Portugal e exibidos no Cineclube de Faro, é a dilatação do tempo e a nostalgia que se desprende no acto de uma vida à beira da morte.

Filme que se inscreve assim na obra recente do realizador de O passo suspenso da cegonha e de O olhar de Ulisses. Entrar neste cinema é igualmente uma viagem física e uma viagem pela memória. Obsessão de quem se interroga sobre a desordem de um mundo (os Balcãs) à beira da aniquilação. Do qual é preciso falar no presente, invocando o peso do passado. Por isso, à beira da fronteira, espaço de todas as ruptura, espaço mítico das sombras (belíssimo plano dos que, agarrados à rede, procuram a salvação do outro lado).

Cinema da memória, já se disse, explicitamente na busca das imagens da felicidade do passado, mas também do que ficou por completar.

À procura do filme nunca visto em O olhar de Ulisses corresponde a obra de um poeta desconhecido em A eternidade e um dia.

Ou a urgência de deixar "ver". Ou a urgência de perseguir a imagem ou a palavra do Homem, antes da de Deus.

Filme formalmente muito belo, com planos de "lavar os olhos”, mas provavelmente, demasiado artificial e maneirista para deixar respirar a história. Onde anteriormente Angelopoulos nos fizera arrepiar e emocionar, há neste filme algo de "já visto" e de excessivamente formal. Talvez um exagero de sentimentalismo perpasse este filme, na história do poeta que vai morrer (admirável Bruno Ganz, anjo exilado de As asas do desejo) e dedica o seu último dia a uma criança da rua, refugiado albanês. Uma espécie de último fôlego, de um encontro terminal com o doloroso real, ou de como há ainda uma certa esperança de que alguém nos recorde.

Não será o melhor filme deste autor, mas falamos de um cinema rigoroso e poético como há poucos. A eternidade e um dia ou a missão de um último dia com valor de primeiro face à eternidade do passado, face à eternidade, ela própria. Vã tentativa de eternizar o tempo de "aqui e agora", de deixar um rasto, uma poalha de estrelas nos olhos de alguém.
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Graça Lobo, Boletim Cineclube de Faro – Semana do Cinema Europeu, 1999


Pode traçar-se um caminho na longa carreira de Theo Angelopoulos, desde sempre vincada por uma errância desesperada. As suas personagens sentem-na dentro de si pelo inconformismo com o mundo, estão condenadas a uma emanação muito cara a Homero e à epopeia grega. Os filmes do autor acompanham essa viagem a partir das sensações das personagens, materializam a poesia odisseica sem ultrapassarem a fronteira (símbolo tão importante para Angelopoulos e para este filme em especial) que significa a morte.

A primeira fase da sua obra é totalmente dedicada à história política e social da Grécia - Angelopoulos revelava o seu cunho de autor baseado numa formação marxista, (falamos do seu período criativo durante os anos 70, em especial desse monumental fresco chamado A Viagem dos Actores) desenvolvia um cinema militante recusando qualquer registo melodramático e consolidava um trabalho estético notável, devolvendo um olhar universal sobre a revolta do Homem.

O tempo e o espaço cinematográficos encontravam uma simbiose rara que se tomou uma marca do cineasta, reconhecida ainda nos seus filmes recentes: o pêndulo da memória está em assalto constante por um presente contínuo, auxiliado por soberbos planos-sequência que desvelam, em bifurcação, a vida de cada figura e a sua relação com o mundo circundante. Nunca há uma aproximação realista e directa com o exterior - este está em permanente dialéctica com o âmago das personagens: a dinâmica de tudo o que está de dentro e de fora em cada filme de Angelopoulos, joga-se na fusão espácio-temporal.


Desde Reconstituição, a sua primeira longa-metragem, até Alexandre o Grande, Angelopoulos está envolvido nessa esfera política, bastante ligada a Brecht. Mas, pela sua formação, sente como poucos a queda das utopias em que acreditava. Passa a desenvolver uma relação menos intensa com a história e os seus filmes se¬guintes, sobretudo Paisagem nas Trevas (1988) e O Passo Suspenso da Cegonha (1991), são mais melancólicos. A poesia esconde nestas obras finais uma violência surda que nasce da impotência dos protagonistas (quase todos envelhecidos, somas de um alter ego do autor). Da influência de Brecht na fase anterior, Angelopoulos parece pretender passar em vão ao estigma de Marcel Proust e à sensação de «procura de um tempo perdido».

Depois de O Olhar de Ulisses, A Eternidade e Um Dia prossegue esse passo mas já só surpreende pela sua enorme beleza plástica. A manta de retalhos que se encontrava sobre a Grécia nos filmes da primeira fase (como se o autor visse os fragmentos de um país em evolutivo estado de decomposição) cai aqui numa visão europeísta e demagógica, centra¬da nos recentes conflitos dos Balcãs. Voltamos às imagens em possessão, desta vez as de «outro»Alexandre (interpretação de Bruno Ganz), um poeta que se encontra às portas da morte. Alexandre não consegue acabar um derradeiro poema, iniciado por Dionysios Solomos, o autor do hino nacional grego (séc. XIX). A falta de inspiração, provocada pelo assombro do passado, é perturbada por uma criança albanesa que ele tenta salvar de um destino incerto (a infância tem sido um assunto importante nos últimos anos: Angelopoulos encontra-lhe uma vitalidade perdida nos adultos). Tal como o nevoeiro do «passo suspenso» e a cor pálida que tinge A Eternidade e Um Dia, essa criança dissipa-se a todo o momento. Alexandre oferece-lhe dinheiro por palavras que já não pode encontrar, a criança foge quando ele menos espera.

O espectador que conhece a obra do realizador consegue sentir o problema: A Eternidade e Um Dia está admiravelmente filmado mas o raciocínio é, pela primeira vez em Angelopoulos, ultrapassado pelo embasbaque.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/8/99




Título Original: Mia Aiwniothta Kai Mia Mera
Realização e Argumento: Theo Angelopoulos
Com Colaboração de: Tonino Guerra, Petros Markaris
Imagem: Giorgios Arvanitis
Montagem: Yannis Tsitsopoulos
Som: Nikos Papadimitriou
Música: Eleni Karaindrou
Interpretação: Bruno Ganz, Fabrizio Bentivoglio, Isabelle Renauld, Achileas Skevis
Origem: Grécia/França/Itália
Ano: 1998
Duração: 137’

3ªf, IPJ, 21h30 - APOLLONIDE - MEMÓRIAS DE UM BORDEL. Marias cheias de graça...

Um bordel e Bonello: o habitual erotismo “mortífero”, que convoca referências artísticas e culturais, o romantismo “fin de siècle”, Bataille, a pintura.

“Apollonide” é o primeiro filme do francês Bertrand Bonello estreado em Portugal. Bonello (n. 1968) construiu na última década uma “reputação” que o conduziu a Cannes (em cuja competição oficial “Apollonide” foi estreado), através de filmes razoavelmente sulfurosos, polémicos q.b. (“Tiresia”, sobretudo, mas também “Cindy, the Doll is Mine”, uma curta com Asia Argento), por regra trabalhando um erotismo “mortífero”, para não dizer “pestilento”, convocado e fazendo convocar todo o tipo de chaves e referências artísticas e culturais, o romantismo “fin de siècle”, Bataille, Warhol... Diríamos que pode passar à história como um cineasta singular e importatnte ou apenas como um Borowczyk que caiu no goto (e no gosto) do “jour”. Qualquer dos dois destinos parece possível, e não será “Apollonide”, de resto um filme bastante linear e legível, mesmo bastante “pacífico”, a apressar uma decisão.

É um filme sobre um bordel parisiense do princípio do século XX, o tipo de coisa que nos chegou numa memória mitificada pela literatura, pela pintura, e também, embora forçosamente com outra contenção alusiva, pelo cinema francês das primeiras décadas do século passado. Bonello joga com isso tudo, especialmente a pintura: há muitos planos em que o espectador é convidado a ver o seu impressionismo, e quando Bonello divide o ecrã em dois, três ou quatro (uns quantos momentos em “split-screen”) não há dúvida, o espectador é posto a olhar para quadros. O bordel, de onde não se sai, e o mundo que entra por ele adentro (os homens que o frequentam, as candidatas a prostitutas) são obviamente uma coisa passada, regida por códigos extintos. A maneira como Bonello encena esse mundo e esses códigos tem um sentido do risco interessante: há elegância (mesmo o que é violento, física ou verbalmente, é mais elegante do que bruto) e há, senão felicidade, uma espécie de conforto, o conforto da “normalidade”, de um mundo em que a situação daquela casa e daquelas raparigas encaixa perfeitamente. Pode suscitar - daí o sentido do risco - uma ideia de nostalgia, não muito diferente (claro que “mutatis mutandis”) daquela com de vez em quando Sokurov parece filmar a Rússia imperial: um “paraíso perdido”, em suma. A questão “sociológica”, sendo importante (e particularmente no plano final, uma beira de estrada contemporânea: já não há bordéis, as prostitutas estão na rua e parecem mais tristes do que nunca), é resolvida mais pela poesia e pela alusão. O mundo avança por ali adentro: as doenças, o dinheiro (o senhorio quer aumentar a renda do bordel), as promessas por cumprir (aparentemente, nenhum homem fala a sério quando faz juras de amor a uma prostituta). Quanto mais o mundo avança, mais o bordel se revela como puro teatro (“social” e não só), mascarada cada vez maior até que um baile já pareça mais um “freak show”. Elipse, e o “teatro” transforma-se em “documentário”: é o tal plano final, contemporâneo e realista.

Filme inteligente, por vezes intrigante (a “mulher que ri”, personagem que carrega um mundo referencial), servido por um óptimo “ensemble” de actrizes e, por alguma razão, com vários realizadores no papel dos clientes (reconhecem-se Jacques Nolot, Xavier Beauvois, Pierre Léon...), “Apollonide” merece ser visto. Decidir Bonello fica, mais uma vez, adiado - o que deve ser mérito dele.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon

"I am tired, I am weary,
I could sleep for a thousand years"
'Venus in Furs', Velvet Underground

Há uma pantera ameaçadora a esconder as garras nos sofás de veludo, a ourivesaria é fina, as peles são de cetim e, lá para a frente, as noites também, quando irrompe um velho hit dos Moody Blues. A cena é magnífica, as atrizes estão a esse nível, e o conjunto marca uma data na história do cinema francês recente. Contudo, não foi a anacrónica balada sixties ('Nights in White Satin') que mais nos intrigou. Foi uma frase - a primeira do filme - que se ouve da boca de Clotilde (Céline Sallette), uma das 'meninas', quando ela diz que "estou cansada, podia dormir mil anos". Mil dias podíamos ter demorado desde o último Festival de Cannes a descobrir de onde a frase vinha. Ela ressoava na cabeça sem se denunciar. Há poucos dias, na conversa telefónica que deu a entrevista das páginas anteriores, foi Bonello quem o confirmou: é um verso 'roubado' de 'Venus in Furs'.

Para que serve esta introdução? Para falar do tempo. De um mundo fechado em que todos os dias se assemelham. Como o espaço é fechado, só o tempo permite uma escapatória. Talvez seja o tempo do desejo, e não é por acaso que a narrativa ressoa, precisamente, entre o passado e o presente, entre 1900 e os dias de hoje, entre a pintura de Manet e Degas e os versos de Lou Reed, com uma só missão: inventar um tempo próprio, genuíno, em que o sono é interdito. E, no princípio do filme, quem poderá dizer que quer dormir, entre cristais e champanhe, com segredos permanentes atrás das cortinas, sonhos de esmeradas que substituem sem fim a realidade?

Só que a realidade de "Apollonide" é outra. Quem espera encontrar aqui uma elegia de bordéis passados, uma queda para a nostalgia, um idílio perdido entre quatro paredes ou, simplesmente, a comodidade de um olhar voyeur descobre cedo que se enganou no filme. Bonello não perde tempo a sugerir-nos a tragédia pessoal de uma mulher que ganhou um sorriso criminoso e infame, Madeleine, dita "a judia" (papel incrível de Alice Barnole), embora só a revele por inteiro num choro final tão violento que não deve ter paralelo. Antes dessas lágrimas que ninguém esquecerá já se passou do conforto ao desconforto. Dos seios e dos corpetes, da sensualidade e dos corpos febris já se passou à desfiguração de um rosto. Das notas dos clientes já se passou às moedas das prostitutas (cada uma tem de comprar o seu perfume), às suas dívidas, que se adivinham eternas. Sentimos que o tempo de Bonello é frágil. Que o cineasta sabe bem o tema que tem nas mãos e que tudo fará para evitar sobre ele qualquer tipo de julgamento. "Apollonide" não julga, nem as mulheres, nem o seu drama, nem permite que o cinema o faça, apenas mostra "um mecanismo" (foi o realizador quem o disse) de movimentos de vida que parecem ter ficado suspensos - e ao tempo voltamos, esse derradeiro inquisidor.

O que é "Apollonide", para Bonello? Uma casa de trabalho. Uma casa de vida. Uma casa de luxos, de detalhes, de camaradagem, de concorrência, mas também de declínio e de sofrimento. Por fim, uma casa de terror que se conclui com um plano terrível, capta¬do num boulevard périphérique: estas Vénus em chamas podem até tornar-se mortais, mas nunca serão livres. Não tardamos muito a chegar à conclusão inevitável: "Apollonide', para Bonello, é o cinema. Aquele que soube casar a generosidade e a crueldade na textura do melodrama. Aquele que colocou o seu olhar à altura do destino e foi capaz de testemunhar, pelo ser humano, uma verdadeira paixão.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/1/12


Março de 1900, final da Belle Époque. Entramos no dia a dia das raparigas tristes e deprimidas que dão corpo a um requintado e melancólico bordel parisiense. Madeleine, Samira, Julie, Clotilde, Léa e Pauline são lideradas pela sua Madame, que gere a casa com elegância e um conjunto de regras rigoroso. Pauline é a última a entrar naquele espaço em decadência e a única que de lá sai, de livre vontade e sem ser para a morte.

Estamos perante um espetáculo cruel feito de jovens mulheres presas a uma vida sem saída. Elas são os servos da sua madame que lhes avança dinheiro para perfumes e vestidos luxuosos, mantendo-as em dívida para com ela. São as vítimas das doenças da sociedade e por isso punidas com sífilis, gravidez (razão pela qual se submetem a exames ginecológicos regulares com medo e trepidação) e encontros sexuais humilhantes.

L’apollonide é um clube de cavalheiros que se encontram para conversar, beber e fumar e onde o relacionamento social é tão importante quanto o sexual. Os homens são retratados como fracos e o sexo é mais sobre a realização das suas fantasias do que sobre o ato. A sua passagem pela casa constitui uma fuga a um mundo em mudança. Não passam de almas perdidas, transportando uma imagem de decadência entediada.

O filme interessa-se por mostrar a dinâmica das raparigas como um grupo, e entre elas e os seus clientes (os regulares, os casuais). Não existe propriamente um personagem principal. Depois de ser vítima de um fetichismo erótico doentio e perverso, Madeleine deixa de se encontrar com homens e passa a tratar da cozinha e da roupa, até ser convocada para aparecer como uma aberração numa soirée de sexo libertino. Destaca-se um pouco mais pela violência a que é exposta, mas nem por isso aparece em mais cenas. As outras, excetuando Pauline - que tem uma aparição mais curta, mas de extrema importância - são intercambiáveis e formam quase um só personagem.

É fora de grades, na única cena ao ar livre, que acontece um momento singular de verdadeira alegria. Com uma inocência desinibida, as raparigas podem ser elas próprias e não o brinquedo dos seus opressores.

A fotografia é lúgubre, sensual e fascinante. Rico em texturas, dá-nos os contornos da ansiedade e tragédia destas grandes odaliscas. A lírica da câmara e dos figurinos cria uma claustrofobia exuberante, uma espécie de gaiola dourada onde as prostitutas da alta-classe vivem. Há claras alusões à pintura de Manet, Renoir e Toulouse-Lautrec, tanto na pose e nos detalhes técnicos, como nos figurinos e iluminação.

A inesperada utilização de música moderna em várias cenas cruciais (The Moody Blues – Nights in White Satin ou Lee Moses – Bad Girl) pinta não só um retrato triste do fim de uma época, como relata uma tragédia contemporânea.

Os bordéis estavam em declínio e L’apollonide encontra-se à beira da falência, desde que as mulheres começaram a prostituir-se na rua. Nas cenas finais, trespassa a sensação de um paraíso perdido, não sem se derramar sangue, sem se queimar a pele e presenciar a morte.
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Inês Monteiro, www.c7nema.net


LITERATURA DE BORDEL
Não há sombra de erotismo, antes de uma violência consentida e uma esperança enganada, que Bertrand não fecha no seu tempo. Elabora-o antes de forma a transportá-lo implicitamente para a atualidade, dando-lhe um ar de tese inacabada ou mera curiosidade sobre a 'mais velha profissão do mundo'. Ou apenas um fascínio sobre esta personagem sem tempo nem espaço a que se pode chamar: a prostituta.

Em Histórias de Cabaret, um excelente mas pouco valorizado filme de Abel Ferrara, fecham-nos nos meandros de um clube de strip-tease em decadência, numa cintura claustrofóbica que mostra a teia de relações num microcosmos com códigos próprios que é, simultaneamente, profissional e familiar. Em Apollonide - Memórias de um Bordel, enclausura-nos num bordel parisiense da passagem do século (do XIX para o XX). As últimas são prostitutas, as primeiras apenas dançarinas, ambas vivem do seu corpo e da sua juventude, umas são francesas do século XIX, outras americanas do século XXI. Mas a maior diferença talvez seja mesmo que Abel Ferrara é o realizador independente italo-americano (que até começou pelo cinema pornográfico) enquanto Bertrand é um realizador francês fascinado por Eric Rohmer e Alain Resnais. E isso tudo muda.

Em primeiro lugar, porque há uma intelectualização do discurso. A Bertrand não interessa ser fiel ao retrato de uma prostituta francesa de há 100 anos, usa esse pretexto para a criação de um ambiente, um universo próprio, realista apenas em alguns momentos. Isto apesar de se dar ao trabalho de reconstituir pormenores de época, como os jogos de salão, a decoração, os produtos de higiene, o guarda-roupa. Mas com um despudor semelhante ao de Sofia Copolla, em Maria Antonieta, usa música americana dos anos 60 num ambiente de Belle Époque, cria prostitutas com erudição, apreciadoras de poesia e que chegam mesmo a ler ensaios sobre si próprias (que as ofendem). Nada disto é particularmente perturbante, porque o realizador consegue o mais importante: criar um ambiente específico e faz com que tudo ganhe uma lógica interna naquele universo particular. E talvez assim o expanda, aproximando-nos das personagens, dando-lhes um estatuto universal e intemporal.

Como muitos filmes do género, ao contrário do que se possa esperar, Apollonide - Memórias de um Bordel é um drama anti-erótico. Porque apesar de estar repleto de mulheres nuas e cenas de sexo há uma certa frigidez que o atravessa. Não há sombra de erotismo, antes de uma violência consentida e uma esperança enganada, que Bertrand não fecha no seu tempo. Elabora antes de forma a transportá-lo implicitamente para a atualidade, dando-lhe um ar de tese inacabada ou mera curiosidade sobre a 'mais velha profissão do mundo'. Ou apenas um fascínio sobre esta personagem sem tempo nem espaço a que se pode chamar: a prostituta.

Entre a busca do prazer e a crueldade, domina, por um lado, a ideia de prisão debochada. Por outro há um empolamento sádico, através da história bárbara da 'mulher que ri' e sobretudo no seu enquadramento social. Num filme de muitas personagens, com o peso bem dividido, ela acaba por ser central, focando-nos nos seus sonhos/pesadelos de forma recorrente. Mas é a prostituta, assim em geral, que acaba por ser o verdadeiro protagonista.

Bertrand de forma nada sistemática usa alguns elementos de experimentação, como o ecrã dividido, o anacronismo musical ou mesmo a viagem no tempo. E também alguns bons pormenores, como a pantera que ajuda a criar o ambiente ou os filhos da dona do bordel que intensificam a toada familiar. As atrizes são eficazes em papéis difíceis pela sua ambiguidade. O filme, que não é moralista, talvez nos corrompa. Depende da sua própria habilidade de nos acolher no Lupanar. Quem não conseguir entrar, fica mesmo de fora.
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Manuel Halpern, Visão


À CONVERSA COM BERTRAND BONELLO E LAURE ADLER

ORIGEM
LAURE ADLER: Como surgiu o desejo de fazer um filme sobre esses espaços que em tempos se chamavam lupanares?

BERTRAND BONELLO: Há dez anos quis fazer um filme sobre a reabertura de bordéis na actualidade. Depois desisti. Após filmar “De la Guerre”, o meu filme anterior, quis fazer um filme com um grupo de raparigas, com a dinâmica de um grupo. Foi o meu colega Josée Deshaies, que é também o meu director de Fotografia, que me sugeriu regressar à ideia dos bordéis mas sob uma perspectiva histórica. Comecei assim a pesquisar sobre este tema e encontrei o teu livro. Interessa-me o aspecto de mundo fechado. Onde quer que haja um mundo fechado, pode criar-se uma ficção, um mundo para o cinema. Cabia-me então trabalhar entre factos e ficção, entre a crónica e a narrativa. A representação da prostituta chegou-nos sempre através do olhar dos homens: a maioria pintores ou escritores, que iam a bordéis e que depois iam para casa para trabalhar num quadro ou num livro. O ponto de vista da prostituta foi sempre muito difícil de encontrar.

LA: Elas escapam-nos! É exactamente isso.
BB: Há algo de profundamente misterioso nelas, e é por causa disso que elas têm sido uma figura recorrente na escrita de ficção desde o início da história da Arte. O primeiro filme com uma prostituta foi feito em 1900; o que só mostra que elas se tornaram personagens assim que o cinema foi inventado.

O BORDEL
LA: Representas de forma admirável o facto de o bordel ter sido um espaço para socializar, uma vez que antes de subir para os quartos, as pessoas esperavam, falavam e bebiam.
BB: Alguns homens nem sequer subiam para os quartos; vinham apenas tomar uma bebida.

LA: Aquilo que é mais interessante no filme é o papel específico do primeiro andar e do rés-do-chão. O último é um espaço sumptuoso, um cenário bonito para salientar a beleza das jovens mulheres que lá se encontram para saciar os apetites sexuais da burguesia. Mas o bordel é ao mesmo tempo uma prisão. No primeiro andar elas vivem uma vida estéril enquanto que no rés-do-chão elas têm de interpretar o seu papel. Como conseguiste levar-nos numa viagem – que é ao mesmo tempo real e onírica – por este espaço fechado do bordel?
BB: Tentei dividir o espaço em três partes: os salões, os quartos e aquilo a que chamo de cozinha. Quis manter este balanço, sem estabelecer prioridades. Conseguimos filmar tudo num décor. Desta forma, num só plano, seguimos do sótão, onde elas dormem, para o bem mais luxuoso corredor que leva até aos quartos onde elas trabalham. Quis mostrar que isto coexistia, que elas estavam a uma porta de distância de vestirem uma simples camisa de noite ou um magnífico vestido com jóias de sonho. É um filme sobre contrastes.

VER E SER VISTO
LA: Uma personagem enigmática, a quem acontece algo terrível, começa e termina o filme. Tal como é habitual nos teus filmes, chegámos à questão do “ver e ser visto”.
BB: Está também relacionado com o corpo e com a mente, na medida em que um afecta o outro. Isto está registado para sempre através dos filmes do Cronenberg porque ele fala sempre disto: a forma como a relação com o corpo vai influenciar a mente. Por vezes levando à loucura. Voltando à personagem que mencionaste; enquanto escrevia o argumento, tive sonhos durante duas ou três noites de seguida com “O Homem Que Ri”, a adaptação de um romance de Victor Hugo, feita nos anos 1920. Pensei então em criar a Mulher que ri.

LA: O filme é uma história dentro de uma história para o cinema.
BB: O meu director de Fotografia acredita que todos os meus filmes são assim. Na verdade, é possível que a personagem interpretada pela Noémie Lvovsky seja eu, o realizador, dirigindo este bordel; ela cria os cenários, ela pede dinheiro ao prefeito da mesma forma que eu o pedi ao CNC… e talvez seja possível considerar que a sua clientela é o meu público.

LA: Então também não será por acaso, acredito, que as personagens principais, tais como a madame do bordel ou os principais clientes, sejam interpretados por realizadores.
BB: Apercebi-me disso apenas mais tarde. Foi um pouco por acaso. Por uma razão: acho que todos estes realizadores são bons actores. Todos de uma vez, estávamos todos numa sala e percebemos que éramos 10! Porquê tantos realizadores? Não sei; talvez seja a minha forma de falar sobre cinema.

RAPARIGAS, UM CORPO COLECTIVO
LA: O que é fascinante é que as raparigas são vistas pela madame, uma mulher e uma patroa, que controla as suas fronteiras. No final, os homens são de certa forma os escravos das raparigas; as raparigas conquistam os seus clientes.
BB: Sim, acredito absolutamente nisso. A dureza nasce da própria casa, do cárcere e das condições de vida. Com o meu director de Fotografia, decidimos filmar apenas as raparigas. Por vezes os homens são vistos por trás ou as cabeças são cortadas do plano. Existem, por isso mesmo, poucos campos/contra campos; ficamos com as raparigas e mesmo quando nos viramos é uma rapariga que está no plano também.

LA: E quando há um grande plano de um homem, ele está de máscara.
BB: Exactamente, e isso reforça a impressão de que a prostituta está acima do cliente. Disse às actrizes: “Tenham atenção, eu quero 12 raparigas inteligentes.” Era muito importante para mim: elas não estão a ser enganadas, elas são mulheres fortes.

LA: De qualquer forma, elas são dignas, muito irreverentes e insolentes e muito luminosas; elas sabem quem são. Elas são ao mesmo tempo escravas que vão lutar pela abolição da escravatura. Sabem que podem morrer do seu trabalho. Uma delas consegue escapar, é importante que uma delas o tenha feito, porque esse não tem de ser o destino de uma prostituta.
BB: Ela consegue sair porque o faz cedo. É de facto uma questão de tempo. Um ano depois as dívidas delas são pesadas demais para saírem. Não tem de ser o seu destino mas precisa de ser esclarecido. Uma clareza que surge no filme através de uma rapariga muito jovem que chega ao bordel, rapidamente se apercebe da situação e parte antes que seja tarde demais.

LA: Parece saída de um quadro de Renoir.
BA: O cabelo dela, a pele, o corpo, sim. É muito difícil encontrar raparigas que sejam assim hoje em dia.

LA: Como escolheu as actrizes?
BB: Foi um processo longo. Durou quase nove meses. Primeiro tivemos de encontrar raparigas que corporificassem uma ideia de modernidade, para não enfatizar o aspecto da reconstituição, mas ainda assim capazes de viajar no tempo até 1900. Tinha uma ideia de mistura, actrizes profissionais e amadoras, bem como uma mistura de experiências. Ao mesmo tempo, esta mescla e esta diversidade tinha de levar à consistência de um grupo. Elas tinham de trabalhar em conjunto, numa sinergia. Estava muito mais obcecado com a ideia de formar um grupo do que ter uma protagonista. Ainda assim, e acima de tudo, acho que a escolha foi direccionada pelo facto de cada uma das actrizes, enquanto pessoa, ser interessante. Às vezes não sabemos bem porquê mas uma rapariga entra na sala e tu pensas: é ela. Mesmo antes de teres feito testes de imagem.

LA: É um corpo colectivo.
BB: Era muito importante para mim não fazer um filme coral, com personagens e figurantes. Quis tratar os seis papéis principais e os restantes da mesma maneira. Esforcei-me da mesma forma para as escolher e dirigir.

LA: Todas as actrizes do filme parecem modelos de quadros de Manet, Monet e Courbet. É por isso que as quiseste fora do espaço da casa para respirar, em todos os sentidos do termo?
BB: Era importante levar o espectador para o exterior para que se sinta melhor a atmosfera de prisão que se sente no bordel.

LA: E mostra também a inocência das raparigas, porque elas estão completamente rodeadas por esta natureza protectora.
BB: Disse-lhes: “Esqueçam as prostitutas, sejam mulheres jovens.” Algo entre a alegria e a inocência passou para a cena.

DESEJOS E FANTASIAS
LA: Podes achar isto surpreendente mas para mim este é um filme sobre caras. Ainda que o corpo seja um tema importante no filme, a questão da face mantém-se recorrente, quase assombrante.
BB: Em relação aos corpos, pensei muito no seguinte: o que deveria ser mostrado nas cenas dos quartos? Quis evitar as clássicas cenas de sexo e também, mais uma vez, mostrar as coisas do ponto de vista delas. É por isso que as caras se impuseram por si só.

LA: Arranjaste formas de filmar o desejo dos clientes sem mostrar relações sexuais. É um filme muito casto.
BB: Muito modesto. Procurei cenas quase teatrais e fetichistas. Quase ao estilo de Buñuel. Há pouca nudez porque assim está mais próximo da realidade; elas tinham roupas bastante fendidas. Os homens também não se despiam muito, demorava demasiado tempo. As pessoas faziam amor vestidas. Assim aquilo que vemos mais são as fantasias que os homens queriam ver realizadas: “Quero uma gueixa…, quero uma boneca…” As fantasias revelam tanto sobre o sexo quanto corpos a simularem um acto em frente à câmara. Isto pode por vezes ser visto como um olhar pervertido mas existem também jogos, como a banheira cheia de champanhe, por exemplo.

LA: É também um filme de um pintor.
BB: Olhámos para muitas pinturas, o enquadramento, a composição, a cor, as poses…

LA: Manet, Monet, Renoir?
BB: Entre outros, e existem muitos outros, não tão bons; ainda assim tudo foi interessante para mim. No que toca ao período de tempo, estou mais ligado a detalhes específicos do que à ideia mais abrangente de reconstituição.

LA: É um filme sobre fantasia e isso é particularmente difícil de representar. Uma sequência repete-se de forma insistente; a sequência interpretada por Louis-Do de Lencquesaing que insiste em olhar – um pouco como Courbet – para o interior da vagina de uma mulher. O teu filme fala igualmente acerca da ligação inseparável entre prostituição e maternidade.
BB: Sim. Ele diz: “Quero ver o interior do teu sexo para poder pintar a tua cara.” Como se fosse aí que pudesse ver a alma. Será que elas eram maternais? Um pouco, provavelmente. Olho para todos estes homens como seres um pouco perdidos. Por exemplo, gosto do momento em que a personagem do Louis-Do já não consegue mais obrigar-se a ir para casa.

A MÚSICA DAS ALMAS, UM FILME CONTEMPORÂNEO
LA: Colocas música contemporânea a meio e no final do filme. Serve para mostrar a contemporaneidade do tema? Ou para mostrar que não é um filme de época?
BB: Aquilo que me preocupa, nos filmes de época, é o aspecto de reconstituição. Quando estava a escrever o filme, ouvi muita desta música soul dos anos 60 e a soul dos cantores negros americanos sempre me trouxe de volta às raparigas. Quando uma delas morre, elas começam a cantar uma música americana da escravatura à volta dela. Não temos de usar um quarteto de cordas só porque estamos em 1900. Não foi apenas para modernizar a ideia; é apenas porque estas mulheres evocam-me esta música. Talvez esteja relacionado com a escravatura.

LA: Com as novas leis e propostas de lei para pôr os clientes a pagar impostos, acabas por estar em sintonia com as notícias da actualidade. Os bordéis voltam a ser falados e o teu filme termina precisamente com o plano de uma prostituta a trabalhar numa rua nos dias de hoje.
BB: Sim, Porte de la Chapelle. No final, uma das raparigas pergunta a outra: “O que vais fazer agora?” e a outra responde “eu não sei.” 100 anos depois, ela continua a fazer a mesma coisa. Para mim, era a ideia de destino ficcional, umas conseguem escapar enquanto outras vão ser prostitutas para toda a sua vida. Achei interessante falar do destino de uma mulher que nunca escapará embora sonhe muito com essa fuga.


De Mizoguchi a Max Ophüls, de Godard a Hou Hsiao-Hsien, foram muitos os cineastas que visitaram a mais velha profissão do mundo. Desta vez, quem presta homenagem à 'mulher pública' é o francês Bertrand Bonello. O seu opus 5, magnífico, mergulha numa maison close na passagem do século XIX para o XX. É um filme sobre o desejo, o feminino e o cinema. Recheado de máscaras e espelhos num tempo que se esvai entre os dedos, fatalmente atraído pela ordem do destino, "Apollonide - Memórias de Um Bordel", sensação do último Festival de Cannes, apresenta-nos ainda um elenco estupendo de jovens atrizes que vão deixar marca no cinema francês. Realizou e assinou o argumento de "Apollonide -Memórias de Um Bordel". Além disso, é também produtor. Todos os filmes que fez desde a sua estrela na longa-metragem, em 1998, com "Quelque Chose d'Organique", têm-se revelado projetos muito pessoais. "Apollonide" é talvez o mais pessoal de todos. Qual foi o clique, a primeira ideia de base que o inspirou?

À partida, pensei apenas em fazer um filme com jovens mulheres. Não tinha ainda uma estrutura exata nem havia chegado à questão da prostituição. Recuperei depois um velho guião que tinha na gaveta sobre as maisons closes. Pensei então num trabalho histórico sobre aquelas casas de passe parisienses do século XIX. Em simultâneo, queria tentar fazer um filme assumidamente francês, que se instalasse no coração do país. Pensei que, graças a isso, "Apollonide" me poderia dar uma escapatória. Contudo, não foi isso que aconteceu. Tornou-se no meu filme mais íntimo.

Há em "Apollonide" um jogo de invenção importante com o tempo. Que de resto é bem marcado, desde o início, na passagem do "crepúsculo do século XIX" à "alvorada do século XX". Mas, embora os elementos do filme de época estejam lá, não é num filme de época que nos sentimos.

Tentei inscrever "Apollonide" no passado e ao mesmo tempo quis dar-lhe uma ressonância moderna para que tivéssemos a impressão de um tempo presente. Um filme de época é algo que me mete medo. Mas o tempo traz também outra coisa em "Apollonide": um ponto de fuga. O filme foi rodado num huis dos. Num espaço sem espaço. Foi preciso encontrar no tempo uma forma de respiração. Ou seja, tentei encontrar o espaço no tempo, se assim quiser. Durante a escrita do argumento, e depois da montagem, esta ideia tornou-se uma obsessão com uma fórmula: registar o quotidiano que passa e simultaneamente criar a sensação de que a noção de tempo se perdeu. Este foi um dos maiores desafios da mise en scène. Dentro de um bordel, os dias confundem-se com as noites.


Mas há um momento de exteriores em que as prostitutas saem, numa passagem renoiriana, para uma partie de campagne...

É uma passagem histórica que está bem documentada: as raparigas dos bordéis tinham o hábito de saírem uma vez por mês num passeio pelo campo. Decidi incluir esse momento. A saída reforça ainda mais a condição em que elas viviam e a sua reclusão.

Na pesquisa histórica que efetuou, foi fácil encontrar elementos sobre as casas de passe? O filme é abundante em detalhes: ficamos a conhecer o momento em que as raparigas comem, quando dormem, como se penteiam, como se lavam, as roupas e objetos que usam na profissão...

Consultei alguns livros, sobretudo ensaios como "La Vie quotidienne dans les maisons doses de 1830 à 1930", de Laure Adler, uma jornalista que investigou e inventariou detalhadamente o quotidiano e o funcionamento da prostituição no século XIX. Consegui depois aceder aos arquivos da polícia daquele tempo. São documentos apaixonantes que nos revelam o destino de muitas raparigas como aquelas. Tive acesso a cartas e a diários íntimos da época, e, como é óbvio, não falta literatura e pintura sobre o tema. Mas nunca procurei histórias. É certo que o filme acrescenta a tudo isto sonhos, o romanesco, mas eu precisava de ser exato nos detalhes. Só com esse rigor, até quase podermos sentir o peso dos objetos, consegue um filme de época dar uma sensação de realidade, de algo que é contemporâneo.

O elenco feminino é um triunfo absoluto, sentimos que as atrizes conseguiram criar uma espécie de família entre elas...

Foi o que tentámos fazer: gerar um grupo. O casting foi muito longo. Um dos princípios de seleção foi o de adivinhar quem melhor se adaptaria a esse grupo. As atrizes foram logo informadas de que não haveria papéis principais ou qualquer outra hierarquia. Foi como preparar um bouquet com flores muito diferentes, mas harmonioso. A solidariedade do quadro coletivo começou, de facto, no casting.

Disse que os seus filmes "são cerebrais", que a ficção se passa sempre a um nível Interior. Poderia desenvolver esta ideia, um pouco vaga, a propósito de "Apollonide"?

O que eu quis dizer é que os décors deste filme, os décors da maison close, são como uma sala de cinema. Um local em que se entra, sem janelas, sem comunicação com o exterior... e depois fecha-se a porta. Os clientes que frequentam o bordel vão lá para quê? Para escaparem à realidade. O bordel pode então funcionar como um cérebro autónomo, que permite deambulações geográficas e mentais. Como o cinema.

De todas as personagens, Madeleine, "a Judia" interpretada pela estreante Alice Barnole, aquela a quem rasgaram a boca deixando-lhe um sorriso trágico, assume um poder que lança e conclui a ficção. Ela é a coluna vertebral do filme?

Sim. Não costumo ser permeável a sonhos, mas a Madeleine vem do sonho de um filme que vi em criança chamado "O Homem Que Ri", feito em 1928 por Paul Leni. Pensei depois: "Porque não tentar fazer uma versão feminina? Uma mulher que ri?" A personagem vem daí. Abriu-me pistas para a ficção e para o seu lado mais afetivo. Sou sensível a tudo o que pode desfigurar um rosto humano, e quando esse rosto é o de uma prostituta abre necessariamente uma dimensão suplementar ao drama.

Os clientes que frequentam o bordel são especiais. Muitos são cineastas. Encontramos Jacques Nolot, Xavier Beauvois, Pierre Léon, Damien Odoul, Vlncent Dieutre... Noémie Lvovsky, a proprietária do bordel, é também cineasta. Tal como Pascale Ferran, que lê um texto...

Foi um pouco por acaso. Nolot, Beauvois ou Lvovsky são também atores de grande nível. Das atrizes à volta dos 45 anos que eu procurava para o papel de Noémie, ela era a que me parecia mais capaz de expressar um lado maternal que fosse ao mesmo tempo severo. Beauvois tem uma presença doce e inquietante. Já Nolot é um ator extraordinário. Descobri depois que estava a criar ali um mundo de cineastas que também são meus amigos, uma variação de olhares, e decidi levar a ideia até ao fim. Mas há outro motivo, mais importante que o filme de amigos: no caso dos clientes, não há verdadeiras personagens masculinas. São só presenças. Fantasmas. Se tivesse contratado atores para o efeito, acho que teria tido problemas. Acabariam por perguntar-me: "Afinal, qual é o meu papel?" Ao passo que o convite foi antes este: "Venham passar um bocado na maison close. Venham visitar a rodagem do meu filme."

Antes de ser cineasta, você foi músico. Ocupou-se da seleção musical do filme, e há canções que não são nada evidentes ali dentro, como 'Nights In White Satin', dos Moody Blues. Qual é a explicação para a escolha?

O anacronismo não vem por provocação. Foi uma escolha emocional. Eram canções que eu estava a ouvir durante a escrita do argumento. Também não tenho uma explicação lógica para a música soul que abre e fecha o filme, além de um lado afetivo e dilacerante que lhe encontro. A música negra americana dos anos 60 tem uma relação forte com a escravatura... Talvez a origem da escolha para o filme seja essa.

E o uso do split-screen? Ninguém está à espera dele num filme de época.
Vem de duas coisas: do trabalho de dilatação do tempo, de que já falámos, e de uma ideia que me faz pensar nas câmaras de vigilância, como no "Big Brother". Aquela casa é uma prisão. Como tal, queria mostrar que as raparigas, mesmo quando sozinhas, estão sempre a ser observadas. A casa é um local sem nenhuma privacidade. Há coisas neste filme que me colocaram problemas: o medo do teatro, por exemplo. O split-screen ajudou-me a ultrapassar esses problemas.

Para si, o que é que se deve pensar sobre a prostituição perante um filme como este? Quis apresentar um retrato sobre a prostituição a todos os níveis, político, sexual, económico?

"Apollonide" não é um filme de mensagem. Não faz uma apologia das casas de passe. O que me interessa aqui é o funcionamento e a engrenagem da prostituição. E ser o mais justo possível perante esse mecanismo. Contudo, na sequência final, há um salto brutal para a realidade de hoje...

É um salto brutal que surge por vários motivos. Se olharmos para a personagem de Clotilde, interpretada por Céline Sallette, ela diz no fim que já não sabe o que está a fazer. Há depois um corte na ação e descobrimo-la cem anos mais tarde na rua. Para mim, foi uma maneira de mostrar que o seu destino é ser prostituta para o resto da vida. Por outro lado, pressenti que o filme corria o risco de ficar fechado em si próprio, no seu casulo, e que era preciso confrontá-lo com a realidade, com os dias de hoje. Na sequência final, não quero dizer que a prostituição há cem anos era melhor do que é hoje. Não há nenhuma nostalgia. O mundo ficou diferente. Mas a prostituição não mudou.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/1/12


Bertrand Bonello nasceu em 1968. Estudou música antes de se tornar um realizador, tendo realizado o seu primeiro filme em 1998, “Quelque chose d’organique”, para o qual escreveu o argumento e compôs a música. O filme foi seleccionado para a secção Panorama do Festival de Cinema de Berlim. Em 2001, o seu segundo filme, “Le Pornographe”, o retrato de um realizador de cinema pornográfico na reforma, interpretado por Jean-Pierre Léaud, foi apresentado na Semana da Crítica em Cannes e venceu o prestigiado Prémio FIPRESCI da Crítica Internacional. No ano de 2003 Bonello realizou “Tiresia”, que competiu pela Palma de Ouro em Cannes. Regressou a Cannes em 2005 com uma curta-metragem de homenagem à fotógrafa Cindy Sherman, “Cindy: the Doll is Mine”, com Asia Argento. Em 2007, o cineasta realizou e produziu um novo projecto, “My New Picture”, apresentado no Festival de Cinema de Locarno. Bertrand Bonello dirigiu ainda “De La Guerre”, com Mathieu Amalric e Asia Argento, seleccionado para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Há um ano, a sua curta “Where the boys are” foi seleccionada para o Festival de Locarno. APOLLONIDE – MEMÓRIAS DE UM BORDEL é a sua quinta longa-metragem.



Título Original: L’Apollonide (Souvenirs de la maison close)
Realização, Argumento e Música: Bertrand Bonello
Fotografia: Josée Deshaies
Montagem: Fabrice Rouaud
Som: Jean-Pierre Duret, Nicolas Moreau, Jean-Pierre Laforce
Interpretação Hafsia Herzi, Céline Sallette, Jasmine Trinca, Adele Haenel, Alice Barnole, Iliana Zabeth, Noémie Lvovsky
Origem: França
Ano: 2011
Duração: 122’
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questionário (rápido preenchimento) recebido por mail:

"Chamo-me Catarina Paixão, sou aluna de mestrado no curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Católica do Porto e estou a desenvolver um projeto que tem como finalidade a valorização, evolução e divulgação do Cinema Português.

Por forma a perceber as preferências dos consumidores desenvolvi um questionário, para obter dados necessários à realização do projeto."

aqui.

5ªF, excepcionalmente às 21H - O OLHAR DE ULISSES procura a inocência original - e as razões da perda dela.

5ªF, SEDE, !!21h!!, HOMENAGEM A ANGELOPOULOS. Entrada livre.

“Também a alma, se quer reconhecer-se, deve olhar para a outra alma.” Platão.

Com esta citação abre o brilhante trabalho de Theo Angelopoulos a que deu o nome “O Olhar de Ulisses” e com o qual procura uma inteligente e invulgar actualização da viagem de Ulisses, retratada na “Odisseia”, de Homero.

A viagem inicia-se pela fronteira com a Albânia, mas continuará a ser intercalada com imagens de um filme mudo, de 1909, onde se vêem fiandeiras. Irão funcionar como um refrão ao longo da obra, um reavivar de um olhar perdido no tempo. Afinal este é um filme sobre o olhar, o olhar de Ulisses em busca de um outro olhar, de um outro cineasta, olhar perdido no tempo e preservado em três caixas metálicas que nunca chegaram a conhecer a luz do dia, ou a luz do projector que lhes restituiria a vida. Ele sabe que os irmãos Manakis não se interessavam particularmente por política ou questões rácicas. Eles fotografavam pessoas. Registavam tudo. Todas as transformações, todos os contrastes. É esse olhar que o cineasta procura. O primeiro olhar. A inocência perdida.

Uma citação de Homero encerra este “Olhar”: “Quando regressar, virei com outro nome e com um outro fato. Voltarei. Esta é história da humanidade. Uma história que não termina”.

“O Olhar de Ulisses”: uma obra-prima do cinema. Um olhar grandioso sobre a viagem do homem sobre a terra. A inteligência, a sensibilidade, a beleza em cada fotograma, em cada cena, em cada olhar.
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Lauro António (http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/)


Quando vi este filme no Festival de Huelva-95 fiquei absolutamente estarrecida. Convenci todos os meus colegas da direcção [do ccf] que também lá estavam a vê-lo e não resisti a acompanhá-los - revi O Olhar de Ulisses num espaço de três dias.

Há muito tempo que não via um filme que me dissesse tanto. Plasticamente não duvido que é uma obra-prima do cinema - relembro apenas uma das cenas iniciais (em que Angelopoulos remete para um facto verídico passado com a estreia do seu anterior filme, O Passo Suspenso da Cegonha) com um plongé sobre os guarda-chuvas dos manifestantes, ou a célebre ideia da estátua de Lenine, amarrada a um navio de carga e transportada rio abaixo, ou as imagens de Sarajevo com as pessoas (ou os fantasmas?..) a serem criadas a partir da névoa, ou... Enfim, relembro um conjunto de imagens antológicas.

Mas, por mais belas, impressivas ou geniais que sejam as imagens, elas não resumem o filme porque «Angelopoulos é um cineasta para quem produzir uma imagem envolve sempre a possibilidade de rencontro com uma pulsão original - do amor, dos lugares, dos olhares, das imagens que nascem da colisão entre o que lembramos e o que nos é dado a ver pela primeira vez. Desse paraíso fundador perdemos até os nomes e dizer, por exemplo, "Europa", não passa de um gesto piedoso a que a crueza das imagens responde com o silêncio das pedras ou a incerteza do nevoeiro. », como tão bem explicou João Lopes. Neste filme não interessam tanto as imagens, mas o poder das imagens.

Toda a metáfora do filme parte assim de uma viagem a todos os títulos iniciática de um cineasta anónimo (A. é a resposta «Ninguém» que Ulisses dá a Polifemo) em demanda da sua história pessoal e da história de um continente. Ou, o que é o mesmo: viagem de Ulisses em demanda da sua história pessoal, história de um continente. Um Ulisses empreendedor, perplexo, apaixonado e apaixonante (espantoso o desamparo de Harvey Keitel) que encontra ruínas e simulacros de imagens onde antes havia vida, mas que encontra a imagem da mulher amada em todas as mulheres que com ele se cruzam; que descobre os fantasmas familiares na imagem do seu próprio passado, no reino dos mortos; que no cenário devastado de Sarajevo (pouco importando se, afinal, é Mostar ou Vukovar) pode aceder às imagens das bobines dos irmãos Makaris e reencontrar um olhar pioneiro do qual terá que se questionar.

E Ulisses somos também todos nós neste olhar a que nos colamos, também nós um pouco à deriva, náufragos de uma imagem/verdade que idealizamos, de uma epopeia em que gostaríamos de ser actores, num tempo lento de olhar para uma derrocada; decerto, não com a dor exposta de um Underground de Kusturica em que a parábola se nos impõe como exacerbação, mas num outro registo, numa viagem rumo a um tempo de (re)invenção da imagem, íntimo, manso e nostálgico que é afinal a maior dor, porque a mais bela.
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Graça Lobo, Boletim Cineclube de Faro – Semana do Cinema Europeu, 1.11.96


O motor com que Theo Angelopoulos coloca a sua "odisseia" em funcionamento é simples e digno do mais puro "road movie": A., um cineasta greco-americano, interpretado por Harvey Keitel, calcorreia os Balcãs à procura de três lendárias bobines de filme nunca reveladas dos irmãos Manakis, tidos como pioneiros do cinema grego. Diga-se que a existência dessas três bobines era uma hipótese fundamentada por estudiosos dos irmãos Manakis e, no decurso das filmagens, Angelopoulos conseguiu mesmo encontrá-las na Cinemateca de Belgrado - tinham sido confiadas ao antigo director, havia muitos anos, por um dos Manakis. Pormenor significativo, uma vez que a obra desses pioneiros é vista como uma demonstração do “ecumenismo" balcânico do início do século: filmaram em vários países e várias regiões, registando o quotidiano numa altura em que povos diferentes levavam uma vida em comum - como referiu Angelopoulos, "havia pelo menos um destino comum, representado pela ocupação turca durante vários séculos".

E esse, acima de tudo, o motivo que leva Angelopoulos a interessar-se pelas bobines dos Manakis: seriam fruto de um olhar hoje impossível, um olhar harmonioso e primordial capaz de religar e transmitir um sentimento de união a todos os fragmentos contemporâneos. Angelopoulos começa "O Olhar de Ulisses" com imagens do mais antigo filme conhecido dos Manakis. Entre elas e as míticas bobines perdidas está a viagem, a odisseia em busca de um olhar que reflicta o nosso, tanto o do protagonista como o dos espectadores.

A personagem de Harvey Keitel chama-se, simplesmente, A. Para Angelopoulos, baptizar a personagem dessa maneira é uma forma de o esvaziar do "excesso de sentido" que o nome sempre comporta: "A", por ser a primeira letra do alfabeto e para ecoar a resposta que, na "Odisseia", Ulisses dá ao ciclope quando este lhe pergunta como se chama: "Ninguém." Sendo "ninguém", A. é também "toda a gente": o olhar de alguém estranho ao universo balcânico – grego de origem, A. emigrou há mais de 30 anos para a América - que vale pelo de qualquer espectador.

Elemento fundamental para que a personagem funcione como funciona é a presença de Harvey Keitel, "extraterrestre" no mundo de "O Olhar de Ulisses", não só em relação à geografia, mas também em relação a um cinema como o de Angelopoulos. Tal como a sua personagem, Keitel faz uma viagem de descoberta, e de igual modo rumo a uma mesma ideia de procura das "raízes": embora criado em Brooklyn, é filho de mãe romena, cujo país natal visitou pela primeira vez durante a rodagem do filme.

Se há um lado documental forte em "O Olhar de Ulisses", que faz com que os cenários e os ambientes se respirem com tanta veemência, esse lado está ainda ligado à presença de Keitel. E difícil distinguir onde acaba o desamparo da personagem e começa o do actor. E esse choque é das coisas mais estimulantes de "O Olhar de Ulisses", até por permitir que o filme mantenha sempre um pé no "real", mesmo quando Angelopoulos cede à sua tendência para as abstracções - cujo exemplo mais evidente será a sequência da estátua de Lenine numa barcaça pelo Danúbio abaixo. O Olhar de Ulisses, não é menos verdade que nos mostra um Angelopoulos mais voltado para o lado físico das coisas do que é costume. Para isso contribuirá a importância de que se revestem os cenários e os lugares percorridos pelo filme.


Num filme com estes objectivos, seria fundamental captar um pouco da "verdade" de cada lugar; no limite, essa tarefa seria mesmo um dos principais objectivos: deixar aparecer essa "verdade" com a menor interferência possível, mesmo que tenha de "inventar" para que ela apareça. Angelopoulos consegue-o por vezes de maneira fulgurante. A entrada na Albânia, por exemplo, com a paisagem desolada a desfilar até se chegar a uma cidade suja, feia e deserta, com o fabuloso plano da velhota - a quem Keitel dera boleia e que ia à procura da irmã - sozinha no meio da praça. Mas o ponto alto é decididamente a sequência de Sarajevo, na verdade rodada em Mostar e Vukovar. Exemplo de como se podem criar as condições que reflictam o espírito de um lugar sem que seja esse o lugar onde se filma.

Angelopoulos parte de uma ideia brilhante: o nevoeiro que cobre a cidade e faz de um dia cinzento um dia de festa, pois devido' à falta de visibilidade a população fica ao abrigo dos "snipers". A sequência culmina num plano magistral, em que o director da Cinemateca de Sarajevo e a sua família são mortos sem que vejamos seja o que for. O plano "branco", em que apenas podemos ouvir os diálogos e os tiros, corresponde ao olhar de Keitel, obstruído pelo nevoeiro. Esse plano, para além de uma solução narrativa de refinadíssimo pudor, é uma das mais eficazes imagens sobre o drama de Sarajevo: como se fosse tão indescritível que não pudesse sequer ser filmado. Fica apenas o eco e a impotência dos que, como a personagem de Keitel, estão condenados a ser espectadores, passivos e exteriores.

Angelopoulos, tal como A., ia à procura de uma resposta que pensava estar nas bobines dos irmãos Manakis. O último plano do filme mostra-nos A. projectando as ditas bobinas, que no entanto nos são elididas, recitando um monólogo da "Odisseia". Final em aberto, mas também sinal de que a Europa já não .se reconhece em olhares de ressonâncias míticas. As feridas são tão profundas que a harmonia já só pode ser reconquistada artificialmente. E esse o drama de que fala "O Olhar de Ulisses".
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Luís Miguel Oliveira, Público, 25.04.96




Título Original: To Vlemma tou Odyssea
Realização Theo Angelopoulos
Argumento: T.A., Tonino Guerra, Petro Markaris
Fotografia: Yorgos Arvanitis
Som: Thanassis Arvanitis
Montagem: Yannis Tsitopoulos
Música: Eleni Karaindrou
Interpretação: Harvey Keitel, Maia Morgenstern, Erland Josephson, Thanassis Vengos, Yorgos Michalakopoulos, Dora Volanaki
Origem: Grécia/ França/Itália
Ano: 1994
Duração: 176’
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Conferência ANTÓNIO PRETO: Texto e Imagem: o caso Manoel de Oliveira. 6ªf, 23, 18h.

Sala Polivalente da Biblioteca da Penha da UAlg.

Entrada livre.


Integrada no projecto Livros em Cadeia: apresentação do Livro Manoel de Oliveira: O Cinema inventado à letra, de António Preto (ed).

O Palestrante
António Preto é doutorado em Estudos Cinematográficos pela Universidade Paris-Diderot – Paris 7, sendo actualmente docente do Mestrado em Realização: Cinema e Televisão, da Escola Superior Artística do Porto e do curso de Comunicação Audiovisual e Multimédia da Universidade Lusófona do Porto. Desenvolvendo uma investigação em torno das relações entre literatura e cinema na obra de Manoel de Oliveira, publicou o livro Manoel de Oliveira: O cinema inventado à letra, que agora apresenta em Faro, tendo ainda comissariado, a convite da Fundação de Serralves, a exposição Manoel de Oliveira / José Régio: Releituras e fantasmas (2009). A par disso, tem organizado mostras de cinema como programador independente.

O Livro
Manoel de Oliveira é o único cineasta em atividade a ter realizado a travessia do cinema mudo ao sonoro e do preto e branco à cor, no entanto, a sua celebridade é hoje, em Portugal, tão grande quanto desconhecida é a sua obra. Este volume da Coleção de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves traça um percurso pela obra de Manoel de Oliveira que incide sobretudo numa análise formal de algumas das configurações mais caraterísticas da estética oliveiriana. Secundarizando a cronologia de realização dos filmes e privilegiando as questões ligadas à imagem, está estruturado em seis capítulos, todos eles profusamente ilustrados com imagens de quase todos os filmes realizados por Oliveira até à data da edição (2008).


Livros em Cadeia é um projeto financiado por


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Colaboração


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MARIAS CHEIAS DE GRAÇA também declaram a guerra. 3ªf, 21h30, IPJ.

DECLARAÇÃO DE GUERRA
Valérie Donzelli
França, 2011, 100’

COMENTÁRIO DA REALIZADORA
Este filme é inspirado numa história verídica – a minha.
É a história de um amor jovem, o de Julieta e Romeu, arrancados de forma dura da sua felicidade despreocupada e forçados a confrontar o inesperado e brutal caos da vida.
A doença do seu filho, Adam, vai obrigá-los a lidar com um desafio terrível, para se tornarem adultos. Mas, por mais traumatizante que seja, o seu sofrimento vai permitir que eles cresçam. Vai revelá-los a si mesmos – a sua força, a sua coragem. “A vida enorme e cheia de perigos”, e é apenas na batalha que o nosso verdadeiro heroísmo se revela.
Valérie Donzelli

"Declaração de Guerra" começa com uma mãe a conduzir um miúdo de oito anos a um exame radiológico num hospital. Depois o filme muda completamente de direção e narra o encontro, a paixão e o nascimento de um bebé a um jovem casal. Logo vêm as perturbações que causa na vida deles a irrupção da criança e, um pouco mais para diante, logo defrontam um obstáculo verdadeiramente grave: um tumor no cérebro é diagnosticado no miúdo, aos dezoito meses. A partir daqui, "Declaração de Guerra" transforma-se num drama lancinante. Não é, todavia, uma avalanche - aquele casal não se defronta com a morte de um filho, mas com uma tarefa longa, penosa, desgastante, anos a fio de toda a vida centrada numa criaturinha numa cama de hospital. O filme não é um terramoto emocional, o espetador sabe, daquela cena inicial, que a criança sobrevive. Também não é um gesto de piedade por um miúdo de tenra idade - há o bom senso de nunca explorar o sofrimento de quem está doente e os fáceis sentimentos do público. Antes, fala do abalo que a situação causa no pai, na mãe e no casal como entidade de partilha de sentimentos, eventualmente da destruição de laços ante a insuportabilidade da aflição, do descontrolo face ao destino e, muito em especial, da corrosão que um quotidiano que nenhum deles deseja introduzir na sua relação. E fá-lo de uma maneira equilibrada, consciente das sensibilidades que se podem ferir, usando os mecanismos do cinema de um modo que tem um pendor documental e um apelo de ficção e as vertentes ponderadas com sensatez. Veja-se tudo o que diz respeito às estruturas hospitalares, de um ponto de vista físico e burocrático, que parece de quase documentário; veja-se o encontro entre os dois protagonistas na discoteca, ou a correria dela pelos corredores do hospital até ao desfalecimento, coelhos tirados da cartola de um ficcionista. Em qualquer caso, assinale-se o sentido das proporções que sempre se revela, nunca deixando o filme descarrilar para qualquer das facilidades que a sua dramática história propiciaria. Esse sentido de medida - a que também se pode chamar pudor - tem, provavelmente, tudo a ver com o facto de os criadores de "Declaração de Guerra" falarem de algo que lhes é próximo, na realidade, falarem de si próprios. Aqueles atores que vemos no filme (Valérie Donzelli e Jérémie Elkaim - o casal protagonista) viveram mesmo uma situação assim e o miúdo de oito anos que nele aparece (Gabriel Elkaim) é o filho de ambos que conseguiu a remissão de um cancro no cérebro. Mais: escreveram o argumento em parceria e Valérie Donzelli é a realizadora. Todavia, sempre declararam que não se quiseram expor em primeiro grau e que o filme é inspirado nos acontecimentos autobiográficos, mas, a partir do momento em que o decidiram fazer, se tornou num trabalho de construir uma história que agradasse ao público. "Declaração de Guerra" chega-nos depois de ter tido honras de abertura na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2011 e uma boa receção de público nas salas francesas. Mas terá sido essa vontade de agrado que levou ao happy end delicodoce que esteve prestes a pulverizar o capital acumulado durante os quase cem minutos que o antecederam? É bem possível. A final de contas, a narração em off diz que eles saíram destruídos da provação, mas o filme exime-se de o mostrar.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


No ano em que o cinema francês parece dar cartas em todo o lado, tanto fora com “O Artista”, como em casa com um estrondoso sucesso chamado “Amigos Improváveis”, a Academia Francesa resolveu levar à candidatura para o Óscar de Melhor Filme outro título, este “Declaração de Guerra”.

O projeto é altamente pessoal para Jérémie Elkaïm e Valerie Donzelli. Juntos escreveram e protagonizaram o filme que ela realizou. Mais tocante é ainda perceber que a experiência retratada no filme se baseia na vivência real dos atores, e do seu filho Gabriel.

Romeu e Juliette são bonitos, jovens, apaixonados. Algum tempo depois chega um bebé e o casal parece caminhar para a felicidade plena. No entanto é diagnosticado ao bebé de 18 meses um tumor no cérebro e começa a “guerra”.

Sem cair no mais puro dos lamechismos que a delicadeza do tema abordado impunha, “Declaração de Guerra” é um retrato real de um casal jovem e inexperiente que se vê a braços com a trágica doença do filho. Sem nunca baixarem os braços, os jovens enchem-se de otimisto e aceitam o desafio de lutar todos os dias pelas melhoras do filho. Mas claro que isso tem um preço para ambos.

Desiludam-se se pensam que estamos perante um filme sobre a doença, ao invés temos aqui o retrato da perspetiva dos pais, e que explora, entre a respeitável distância e o buraco de fechadura as entranhas da relação, e a forma como esta vai sendo desgastada pelas circunstâncias que vivem.

O trabalho de Elkaïm e Donzelli é de enorme mérito em todas as frentes. Destaque para a forma como escreveram e compuseram os seus papéis, com esperança e recusando-se a puxar descaradamente à lágrima e à pena como os melodramas domingueiros a que estamos habituados. A ver!
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Carla Malheiros, c7nema.net


«Declaração de Guerra» é acima de tudo um filme de amor a vida, principalmente porque aborda um tema difícil, concretamente um tumor no cérebro de uma criança. Valérie Donzelli, realizadora e actriz, e Jérémie Elkaïm, actor, interpretam os papéis que viveram na vida real, já que ambos são os pais da criança que sofreu o cancro…

«Declaração de Guerra» é uma obra que tinha tudo para ser melodramática, mas acaba por ser um verdadeiro manifesto de vida. Um filme humano, preenchido de amor. Não é certamente por acaso que Valérie Donzelli e Jérémie Elkaïm sejam Julieta e Romeu, respectivamente, no filme. E também não é coincidência que o seu filho, o primeiro, chame-se Adão.

A história retratada no filme foi a que passaram Donzelli e Elkaïm. Por isso, estamos perante um filme honesto, pois ambos sabem perfeitamente os dramas e as angústias que viveram quando souberam que o seu filho estava entre a vida e a morte antes de completar dois anos. Até então, o casal vivia uma verdadeira história de conto de fadas, típica de qualquer adolescente.

Desde logo Donzelli revela ao espectador que a batalha foi ganha, já que vemos o seu filho a realizar mais um exame, já com cerca de 13 anos, logo na cena inicial. Só depois a realizadora começa a contar o que viveu juntamente com Elkaïm, o que de certo modo retira toda a angústia que o filme poderia trazer.

A realizadora assume sem complexos que «Declaração de Guerra» é uma homenagem ao filho e por isso paira o optimismo ao longo do filme. Apesar das dúvidas e das incertezas, há sempre uma palavra, um gesto, um movimento que leva os protagonistas em frente, na luta constante pela sobrevivência de Adão.


Mesmo quando os médicos não mostram grandes expectativas, Donzelli e Elkaïm mostram confiança e vontade de vencer. Aliás, o equilíbrio encontrado pela realizadora entre a dor e o optimismo é uma das bases de sustentação do filme, caso contrário a película cairia muito provavelmente para o drama. São raros os momentos de sofrimento, algo de certo modo contra-natura em obras deste teor…

«Declaração de Guerra» é assim um filme sobre a Vida tendo como sustento o Amor. O amor pelo filho, mas também entre dois jovens que foram obrigados a crescer de forma inesperada. Um filme para espantar de vez com qualquer fantasma, ao mesmo tempo que serve de exemplo e incentivo para milhares de pessoas. Um hino aos lutadores da vida.
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Diário Digital



Título Original: La Guerre est Declarée
Realização - Valérie Donzelli
Argumento - Jérémie Elkaïm, Valérie Donzelli
Fotografia - Sébastien Buchmann
Montagem - Pauline Gaillard
Som - André Rigaut
Interpretação: Valérie Donzelli, Jérémie Elkaïm, César Desseix, Gabriel Elkaïm, Brigitte Sy, Elina Lowensohn, Michèle Moretti, Philippe Laudenbach, Bastien Bouillon, Béatrice de Staël, Anne Le Ny
Origem: França
Ano: 2011
Duração: 100´
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