20 DEZEMBRO - O DIA MAIS CURTO EM FARO











O DIA MAIS CURTO
20 DEZEMBRO
22 H
SOCIEDADE RECREATIVA ARTÍSTICA FARENSE






















PROGRAMA

PANORAMA NACIONAL - (Duração 80ʼ · M/12)
CAROSELLO, Jorge Quintela, Portugal/Itália, 2013, FIC, 7'
O CANTO DOS 4 CAMINHOS, Nuno Amorim, Portugal, 2014, ANI, 12'
O CORO DOS AMANTES, Tiago Guedes, Portugal, 2014, FIC, 23'
KALI, O PEQUENO VAMPIRO, Regina Pessoa, Portugal/Canadá/França, 2012, ANI, 9'
MIAMI, Simão Cayatte, Portugal, 2014, FIC, 15'
FULIGEM, David Doutel e Vasco Sá, Portugal, 2014, ANI, 14'


EUROPA EM CURTAS - (Duração 75ʼ · M/12)
VENTO, Robert Löbel, Alemanha, 2013, ANI, 4'
NÃO HÁ LUGAR PARA O GEROLD, Daniel Nocke, Alemanha, 2006, ANI, 5ʼ
PÔR DO SOL VISTO DO TELHADO, Marinus Groothof, Holanda, 2009, FIC, 11'
ATLAS, Aike Arndt, Alemanha, 2011, ANI, 8'
PICKPOCKET, João Figueiras, Portugal, 2010, FIC, 19'
CURTA-METRAGEM, Olaf Held, Alemanha, 2013, FIC, 3'
CARGO CULT, Bastien Dubois, França, 2013, ANI, 11'
KIKI DE MONTPARNASSE, Amélie Harrault, França, 2012, ANI, 14'


PREÇO: 1€ com oferta de 1 cocktail


Apoio:



O QUARTO AZUL || 16DEZEMBRO || 21H30 || IPDJ


O QUARTO AZUL
Mathieu Amalric
França, 2014, 76’, M/16


FICHA TÉCNICA
Título Original: La Chambre Bleue
Realização: Mathieu Amalric
Argumento: Stéphanie Cléau e Mathieu Amalric, baseado no romance "La Chambre Bleue" de Georges Simenon
Montagem: François Gedigier
Fotografia: Christophe Beaucarne
Música: Grégoire Hetzel
Interpretação: Mathieu Amalric, Léa Drucker, Stéphanie Cléau, Laurent Poitrenaux, Sere Bozon
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 76'




FESTIVAIS E PREMIOS
Festival de Cannes 2014 - Selecção Oficial – Un Certain Regard



CRÍTICA
No princípio a cena é ardente: um homem e uma mulher entregam-se à coreografia do sexo como se não houvesse mais mundo. Como se a tarde adúltera daquele pequeno quarto de hotel, azul, fosse uma redoma, uma campânula, um espaço sem antes nem devir dentro do qual a pulsão libidinosa não tivesse entraves, nem códigos, nem regras. Mas não há lugares isolados, mesmo nos pequenos hotéis de modestas cidades de província onde se não mora e que concedem que os amantes se possam encontrar sem risco de indiscrições ou sobressaltos. Porque há sempre um marido que indaga, uma mulher que suspeita, uma criada de quarto que entrevê por porta entreaberta, um susto imprevisto, uma fuga apressada pela porta das traseiras, quantas vezes quase de calças na mão...
No princípio de “O Quarto Azul” não há nada que se não saiba, da experiência, do cinema — Claude Chabrol quantas vezes filmou situações dessas? — só que, de muito cedo, também sabemos que aquela paixão torvelinhou noutras graves direções. Crime sim, mesmo se, durante muito tempo, não tenhamos os contornos exatos do que ocorreu, nem quem morreu nem quem matou.
Ancorado numa novela de Georges Simenon — a França profunda, pequeno-burguesa e desencantada, está lá quase por inteiro — “O Quarto Azul” não se caracteriza pela história, mas pelo argumento, pela estrutura acrónica onde, todavia, não nos perdemos pois há uma constante linha temporal que somos capazes de reconstruir mentalmente. A perícia é atribuível a Mathieu Amalric e Stéphanie Cléau, que adaptaram a novela ao cinema, ao mesmo tempo que davam corpo à dupla de personagens centrais.


Ao engenho do guião se atribuirá, igualmente, o sal principal da narrativa, ou seja: o filme segue, caninamente quase, o protagonista masculino (Julien/ Mathieu Amalric), no seu labor profissional, familiar e nas escapadas lascivas, mas é criatura que não nos interessa, que nos parece pequena e errática, pusilânime; ao invés, é ela (Esther/ Stéphanie Cléau) que pouco vemos, que desconhecemos para lá de uma nudez em êxtase, de um olhar em enigma, de uma deliberada vontade de controlar a vida, que apetece mais saber. Saber, até, da intenção de crime, da planificação de uma trama onde ela nos aparece carnívora e ele presa, mas onde talvez haja outras aranhas a tecer as suas próprias teias e a trocar os fios. Essa vontade de saber do espectador nunca se reduz, todavia, ao esquematismo do whodunnit: quem é o culpado? É basto mais largo o espectro das coisas que indaga, nevoeiro cativante onde navega de proa franca, ultrapassando portas fechadas, o quente e o frio, fugazmente entrevendo o abismo, o vórtice, entre as coxas de Stéphanie Cléau — exposição voraz, quase indecorosa, turbulenta. É essa vastidão de interrogações que o torna profundamente original no vasto universo dos filmes policiários, dos thrillers, em particular. Para mais, numa linguagem despachada, eficaz, jamais simplista — o filme dura 76 minutos, invulgarmente pouco, porque liberto de toda a ganga — “O Quarto Azul” revela-se um filme surpreendente, a mostrar que as produções de Paulo Branco continuam, no melhor dos casos, a desafiar expectativas.
Jorge Leitão Ramos, Expresso



ENTREVISTA AO REALIZADOR
Mathieu Amalric realiza e interpreta ao lado da sua mulher, a dramaturga Stéphanie Cléau, esta história de dois amantes malditos que se deixam arrastar pela paixão e se envolvem num jogo perigoso e eterno, tão comum a Hitchcock como a Mizoguchi. “O Quarto Azul” adapta uma célebre novela de Georges Simenon, escrita pelo belga em 1963. Conversámos com o cineasta em maio, poucos dias depois da estreia do filme em Cannes, na secção Un Certain Regard.
As personagens de “O Quarto Azul” parecem cansadas, sobretudo a de Julien Gahyde, o marido infiel que você interpreta. Ou melhor, talvez estejam já desiludidas perante a realidade - palavra que, aliás, é insistentemente repetida no livro de Simenon...
Desde a primeira página, sim. Eu acho que Julien vive cada cena em estado bruto, sem se colocar questões, sem tentar compreender o que está a fazer nem suspeitar que um dia vai ter de prestar contas por isso. Tudo é verdade e realidade para ele. Ora, creio que é isto que fascina em Simenon, uma espécie de cólera incontrolável que nos pergunta: porque é que é preciso acrescentar palavras às coisas da vida que todos nós, seres humanos, conhecemos? Para que a sociedade continue a funcionar, as palavras são necessárias. Como escreve Georges Simenon no livro, numa frase extraordinária que acabei por cortar do guião, “as pessoas gostam muito de saber que agimos por uma razão precisa”. E Julien não age por uma razão precisa.

Na ação de “O Quarto Azul”, temos a vida que se vive e a vida que o inquérito policial retrospetiva. O seu filme é hábil a cruzar as duas. Ora, isto faz-me pensar noutra coisa: a justiça pode julgar mas não poderá jamais compreender aquele casal, porque não viu o que nós vimos.
Sim, é isso. O visível não tem uma só camada. Há um duplo tempo no livro e no filme, e eu disse a mim mesmo que me poderia divertir a exaltar isso com os instrumentos do cinema. Quando adaptámos o argumento, a primeira coisa que a Stéphanie Cléau e eu fizemos foi extrair os diálogos do livro sem indicações de espaço e de tempo para averiguar se eles resistiam à época em que Simenon os escreveu, em 1963. Apercebi-me então que há um diálogo complexo entre o in e o off na estrutura do livro. E que nesse diálogo estão a sensualidade, a violência e a tragédia.
Estrutura essa que não é comum em Simenon. As suas narrativas são quase sempre lineares. Mas a de “O Quarto Azul” é elíptica...
A narrativa anda ao contrário da cronologia, e isso é raro nas suas novelas. Os factos anulam-se, ou melhor, mordem-se — para fazer referência a uma passagem do livro que guardo no início do filme, quando Esther morde Julien e cai no lençol uma gota de sangue. Isto agradava-me à partida como espectador: estar a ver alguma coisa e em simultâneo a duvidar do que vejo. As respostas às perguntas aparecem frequentemente deslocadas do tempo, e o que Julien diz não corresponde exatamente aquilo que faz. Ou seja, julgamos que passamos o filme todo na cabeça daquele homem, mas não estamos realmente dentro dela, por- que nos vamos colocando questões sem parar. Isto para mim é puro prazer, um prazer primário de espectador.
Ficamos perante uma história de desaparecimentos?
Sim, o fim do filme salienta isso. Aquelas personagens vão desaparecer.
Porque é que alterou o nome da personagem que no livro de Simenon se chama Tony?
Vou contar-lhe uma coisa também a propósito de fantasmas: durante as minhas pesquisas para o filme, descobri, acidentalmente, que Simenon adorava Stendhal. A coincidência disto tudo é que eu estou já há três anos a trabalhar numa adaptação para cinema de “O Vermelho e o Negro”, certamente o projeto mais complexo em que me meti até hoje. O que é curioso é que a cena do julgamento de “O Vermelho e o Negro” é muito próxima da sensação que temos ao ler “O Quarto Azul”. Foi por isso que resolvi alterar o nome da personagem e chamar Julien a Tony. Julien Sorel é o nome do protagonista de “O Vermelho e o Negro”. Mas as coincidências não acabaram aqui. No tribunal em que filmámos, as paredes estão pintadas com abelhas em fundo azul. Isto não está no livro de Simenon. Mas foi um signo incrível: há o quarto azul, que é um espaço de desejo, e no filme um tribunal azul, que é um espaço de acusação.


Estas coincidências levam-nos para outro aspeto importante no filme: o da relação entre o privado e o público. Que tem várias nuances: 1) é você quem realiza e interpreta a personagem principal; 2) a personagem da amante de Julien é interpretada por Stéphanie Cléau, que é a sua própria mulher na vida real. Sem abuso, pode dizer-se que há um pouco da sua vida neste filme, ou não?
Sim, e isso é perturbador. E tudo se desenrolou assim, muito depressa. Não era suposto este filme existir. Foi o Paulo Branco, uma pessoa a quem eu devo quase tudo no cinema, que insistiu, que me passou o livro e disse: “Pega neste, acho que está aqui um filme a fazer e que o deverias fazer agora.”
Porquê?
Porque ele está ao corrente do tormento e da obsessão que estou a viver com a adaptação de “O Vermelho e o Negro”.
Mas você tem trabalhado como um louco ultimamente. Filmou com Polanski, com os irmãos Larrieu, com Wes Anderson...
Mas sempre como ator, não como cineasta. E trabalhar como ator não é trabalhar como um louco. Ser ator é viver num estado de irresponsabilidade extraordinário! O verdadeiro trabalho é feito pelos outros. Agora, levantar-me às 7 horas da manhã e pensar em planos de cinema... é outra coisa. Mas estou a desviar-me a sua pergunta anterior, da história da autobiografia. Como é óbvio, refleti sobre ela perante “O Quarto Azul”. Quase tive vergonha. Estar ali, expor-me assim, expor a Stéphanie... Claro que pensei nisso. Mas depois deixei de pensar. E sabe porquê? Graças ao género policial, graças a Simenon. Senti-me protegido, como se o género fosse um filtro. A Stéphanie, que é dramaturga, adaptou dezenas de textos contemporâneos ao teatro:
Dos Passos, James Ellroy, Lobo Antunes... Está a ajudar-me também em “O Vermelho e o Negro”. Vivemos juntos, discutimos o trabalho juntos. E as coincidências não param: é que, quando encontrei a Stéphanie há uma dezena de anos, “O Quarto Azul” foi um dos primeiros livros que lhe passei. Descobrimo-nos agora, com contrato assinado, a trabalhar sobre esse livro, ela como argumentista, eu como realizador. A ficção começou a contaminar a nossa realidade, digamos assim. As frases de Simenon pareciam frases nossas. Começámos a pensar em rostos para as personagens, e a Stéphanie disse-me que eu devia fazer o marido infiel. Aceitei, nada de novo, sou ator, as pessoas conhecem a minha cara. Era preciso que a atriz que faz de minha mulher fosse também muito conhecida — e convidámos Léa Drucker. E a amante? E a ameaça do desconhecido? Foi Stéphanie por sua vontade, que a interpretou, embora ela não tenha experiência na interpretação.

Mudando de assunto: é impressão minha ou ao longo de todos estes anos, tem interpretado muitas personagens feridas pelo sentimento amoroso? Mathieu Amalric já é sinónimo de sofrimento de amor? Tem uma explicação para isto?
Não sei. Não sou um sinónimo de serenidade, é certo. O meu filme “Tournée’ também falava disso, da falta de serenidade. E há alguma coisa no mundo mais forte do que dois corpos que se atraem? Os irmão Larrieu, com quem trabalho bastante, sabem por vezes contornar isso, descobrir a harmonia — como em “Un homme, un vrai”, por exemplo, um filme de que gosto muito. Por isso, gosto de filmar com eles: acho que sabem arrancar-me à minha melancolia, a um sentimento sombrio que acho que é muito português. A Simenon interessa outra coisa: o trágico. O trágico que se instala pela obstinação, pelo suspense. O trágico da natureza humana, que não se altera. O livro dele tem agora 50 anos, nós adaptámo-lo aos dias de hoje, seguimos os procedimentos da polícia e da justiça de hoje, mas não podemos esquecer que o livro, como quase todos os de Simenon, se passa na província. E esta é imutável.
Por falar em suspense, filmou no formato 4:3, que é o do fiIm noir americano e que quase ninguém utiliza hoje. Porquê?
Não foi por uma questão de memória do cinema, embora já me tenham falado disso. A escrita de Simenon é tensa, densa e tive vontade de me aproximar dos atores, de cerrar o espaço, de cercar os corpos. O 4:3 obriga-nos a filmar de mais longe, mas ganhamos em altura nos enquadramentos e os corpos ficam mais belos. Era o formato que me convinha.
Francisco Ferreira, Expresso


A TEMPORADA DO RINOCERONTE, 9 DEZEMBRO, IPDJ, 21H30



A TEMPORADA DO RINOCERONTE
Bahman Ghobadi
Irão/ Iraque/ Turquia, 2012, 90’, M/14


FICHA TÉCNICA
Título Original: Fasle Kargadan 
Realização e Argumento: Bahman Ghobadi
Montagem: Valérie Loiseleux
Fotografia: Touraj Aslani
Interpretação: Behrouz Vossoughi, Monica Bellucci, Yilmaz Erdoğan
Música Original: Kayhan Kalhor
Origem: Irão/ Iraque/ Turquia
Ano: 2012
Duração: 90’






DECLARAÇÃO DO REALIZADOR
Depois do meu último filme “Os Gatos Persas”, fui forçado a tomar a difícil decisão de deixar o Irão. Paris, Berlim, Nova Iorque…longe de casa… tentei encontrar um lugar que poderia chamar de meu. Finalmente decidi estabelecer-me em Istambul.
Mas a dor de ser arrancado da terra natal é como um veneno que inunda a mente e o corpo. Sentia- me só e como se a vida estivesse a escapar-se para fora de mim. Tive que expressar as pressões que eu sentia, as sensações confusas, entorpecentes e esmagadoras, que nos acompanham quando nos são cortadas as raízes e afastados os entes queridos.
Quem é Sahel? Sahel é um lutador. Lutando com ele mesmo na maior parte do tempo, tentando provar que ainda está vivo e que o seu espírito não pode ser comprometido. Dentro das quatro paredes da prisão que o constrangem, Sahel busca a liberdade, deixando a sua mente caminhar pelos caminhos livres da sua memória, “colados” às imagens de sua amada esposa. Essencialmente, Sahel tenta duplicar o tempo e luta contra a gravidade.
Mas se eles não o executaram na prisão, a própria natureza cobrou a sua factura.
Apesar dos seus esforços, os 30 anos de isolamento condenaram-no à “morte”. Eventualmente é um “morto-vivo”. Ele percorre caminhos onde a terra é fria e os seres sem alma, trocam entre si, não o amor e a felicidade, mas o desgosto.
E essa força inevitável da gravidade arrastava-me a mim também. Eu encontrava-me, igualmente, às portas daquela terra deserta.
No entanto, este filme foi a minha chance de olhar a morte nos olhos. Eu mergulhei completamente no medo e na perda. E, finalmente, eu pude surgir renascido. Com este filme, simplesmente tentei sobreviver.




É um filme intimista de um realizador que se viu obrigado a sair do seu país para o filmar. A Temporada do Rinoceronte é, mais do que uma história de amor trágica, um retrato sobre as sequelas que a Revolução Iraniana teve na vida de várias pessoas.
Após ter sido condenado a 30 anos de prisão por ter publicado poemas políticos, Sahel sai finalmente em liberdade e depara-se com uma cruel realidade: a sua mulher Mina, pensado que o marido havia morrido na prisão, fugiu para a Turquia. Determinado a reencontrá-la, o poeta viaja para Istambul em busca do amor da sua vida.
Bahman Ghobadi teve que sair do Irão pelo facto dos seus filmes serem contra o governo atual. O mesmo aconteceu com Behrouz Vossoughi (que interpreta a personagem principal Sahel), que saiu do mundo do cinema no final da década de 70 aquando da Revolução Iraniana, tendo recusado vários papéis até ao convite de Ghobadi.
Este é, portanto, um filme bastante importante e pessoal por todos os envolvidos. É também baseado na vida de um poeta iraniano que na nota de abertura do filme tem o pseudónimo de Sadegh Kamangar. Os seus poemas são geralmente declamados durante o decorrer de toda a fita e por vezes são mesmo adaptados ao ecrã em cenas belíssimas e, ao mesmo tempo, surreais. Mas mesmo com este surrealismo, nunca uma estrofe é descontextualizada, Ghobadi sabe exatamente quando utilizar cada verso e orquestra momentos profundos ao longo da sua obra.
A montagem bastante eficaz do filme sabe alternar entre estes momentos mais metafóricos e o enredo principal, ajudando por vezes a compreender um pouco melhor o que vai na cabeça das personagens. Isto porque há uma quantidade reduzida de diálogos em A Temporada do Rinoceronte. O filme vive à base das ações dos protagonistas e nas imagens brutais que o realizador nos mostra de uma forma quase cruel, como as torturas de Sahel na prisão ou os seus planos subjetivos nos momentos em que se depara com a nova realidade: a de que a sua mulher seguiu com a sua vida pensado que o marido havia morrido na prisão. São partes comoventes de um filme que por vezes é um verdadeiro murro no estômago, tendo em conta que a vida de Sahel não é um caso singular.
Um dos maiores trunfos do filme é a sua fotografia. É difícil tirar os olhos do ecrã graças ao trabalho de Touraj Aslani, que utilizou um incrível paleta de cores para dar mais significado a algumas cenas de A Temporada do Rinoceronte.
A realização de Bahman Ghobadi é igualmente assinalável. Uma das mais interessantes opções que o realizador tomou na elaboração deste seu trabalho foi a forma diferente com que tratou o antes e o depois da prisão de Sahel. O poeta é a personagem principal do filme enquanto a ação decorre na atualidade, mas os flashbacks que nos levam até à década de 70 focam essencialmente o chauffeur Akbar, empregado da família de Sahel, e o seu relacionamento Mina, por quem tem um paixão secreta. Ghobadi mostra-nos assim um triângulo amoroso em várias perspetivas e em tempos diferentes e faz com que conheçamos melhor cada personagem.


O elenco não é composto por muitos atores. Behrouz VossoughiMonica Bellucci Yilmaz Erdogan são os verdadeiros líderes do filme, com performances incríveis. Não havendo muitos diálogos no argumento de Ghobadi, as personagens foram essencialmente construídas a partir dos gestos dos seus intérpretes e dos pequenos detalhes que cada um transmitiu.
A Temporada do Rinoceronte é um dos filmes mais incríveis do ano. Tem algumas das imagens mais bonitas do cinema dos últimos anos e não vai deixar ninguém indiferente. A belíssima realização de Bahman Ghobadi (que continua a provar ser um dos mais importantes realizadores iranianos da atualidade) aliada ao exímio trabalho de fotografia, às grandes interpretações  do seu elenco e à poesia de Sadegh Kamangar fazem desta sua obra um retrato comovente sobre o amor e as injustiças da vida.
 Sebastião Barata, espalhafactos.com/

ESTREIA NACIONAL - 3 DEZEMBRO - CABRA MARCADO PARA MORRER


3 DEZEMBRO – 21H30 - IPDJ
ESTREIA NACIONAL

CABRA MARCADO PARA MORRER
Eduardo Coutinho, Brasil, 1985, 119’, M/12

No  dia 3 de Dezembro celebra-se 30 anos da estreia do emblemático filme.

FICHA TÉCNICA
Direção e roteiro EDUARDO COUTINHO
Fotografia FERNANDO DUARTE (1964), EDGARD MOURA (1981)
Montagem EDUARDO ESCOREL
Som direto JORGE SALDANHA
Produção executiva ZELITO VIANA
Produtor associado VLADIMIR CARVALHO
Narração FERREIRA GULLAR, TITE DE LEMOS, EDUARDO COUTINHO
Música ROGÉRIO ROSSINI



O filme se constrói através de um constante diálogo entre os seus dois tempos: 1962/64 e 1981/82. No Cabra-60, o cinema pretendia engolir a realidade. O projeto do CPC da UNE tinha uma vocação pedagógica, baseada num conceito intelectual do que seria a arte popular. A vida, luta e morte dos camponeses seriam encenadas por eles mesmos, orientados por uma cartilha estética que lhes era completamente estranha, embora repleta de ótimas intenções. A história de João Pedro Teixeira seria recontada segundo os cânones de uma dramaturgia do martírio, com personagens claramente divididas entre patrões e empregados, exploradores e explorados, vilões e heróis. Apesar de algu­mas cenas absorverem diálogos improvisados pelos próprios atores, as imagens remanescentes nos mostram uma decupagem clássica, enquadramentos às vezes eisensteinianos. O roteiro previa uma narração musical conduzida por um “cantador”, figura célebre da cultura popular nordestina que estava sendo resgatada pelos filmes do Cinema Novo. Enfim, uma visão politicamente romântica da realidade camponesa.
Já no Cabra-80, é a realidade que se apresenta para engolir o cinema. Trata-se agora não mais de prover o povo com a reconstituição artística de suas experiências, mas de buscar no povo a emoção e as lembranças de um tempo estilhaçado. O novo propósito é recolher os fios de uma memória que se dispersou, tanto no povo quanto na cabeça do realizador. Se o Cabra-60 era fruto da vontade de um grupo (o CPC) de expressar a vivência popular, o Cabra-80 é o desejo de um homem (Coutinho) de abrir-se à vivência popular propriamente dita.
Por duas vezes, Coutinho e o montador Eduardo Escorel apresentam imagens de uma página do roteiro do Cabra-60, o que contrasta com a ausência de qualquer roteiro em 1981, como afirma oralmente o diretor. Em seu novo périplo, Coutinho distancia-se do monolítico para recolher o con­traditório. Encontra não só pessoas que se mantiveram fiéis a seus velhos ideais, como outras que abdicaram das aspirações coletivas em troca de prosperidade individual ou da paz da retirada. Não teme topar com meias-verdades que se expressam por meio de silêncios, expressões constrangidas ou clichês sentimentais. Cabra saiu à procura de gente real, não de estereótipos sociais.
Essas diferenças, contudo, não justificam os argumentos de muitos críticos que, em 1984 e depois, apontaram no uso do material de 1964 uma crítica ao formalismo do cinema de esquerda da época.
Esta foi, sem dúvida, uma interpretação estreita, que não levava em conta o dado mais importante do arcabouço de Cabra Marcado para Morrer, ou seja, o contexto. O projeto do Cabra-60 era a quin­tessência do cinema político do momento, assim como o Cabra-80 era a retomada do mesmo cine­ma político segundo os imperativos do seu tempo. No Brasil de 1964, tentava-se construir um país mais justo e um cinema que unisse criatividade e utilidade. No Brasil dos anos 1980, procurava-se romper o silêncio de um regime opressor e fechar feridas.
Além disso, a equipe de 1964 não dispunha de som direto, nem o cinema verdade tinha plantado raízes no Brasil. Eduardo Coutinho ainda não fizera sua passagem transformadora pelos programas Globo Repórter, que o ensinariam a se aproximar das pessoas e a compreender que a sua pers­pectiva fazia parte do processo do documentário e, como tal, deveria ser explicitada. Cabra-80 é o resultado de todas essas transformações, no país e no cineasta.
O filme se articula não como tese sociológica ou exposição intelectual, mas como uma história con­tada unicamente por quem a viveu (ou a ela sobreviveu, gente do campo e gente de cinema). Não há qualquer depoimento de autoridade ou estudioso, nenhum “explicador” a aportar um discurso “de fora”. A narração off comparece em três vozes distintas. Coutinho dá sua perspectiva pessoal sobre o trabalho feito em cada fase do filme; o poeta nordestino Ferreira Gullar, autor de um folheto de cordel que forneceu o título do filme, situa as informações de contexto geral; o também poeta Tite de Lemos lê os textos de imprensa, encarnando, a grosso modo, a voz do inimigo. Essas diferenças personalizam e conferem à narração uma dramaticidade ligada aos conteúdos, em lugar da “voz de Deus” neutra e autoritária que se impõe nos documentários clássicos.
Neste filme, Coutinho inaugura uma de suas marcas, que é a presença freqüente diante da câmera, sempre muito próximo do entrevistado. Cabra é uma sucessão de encontros explícitos do documen­tarista com seus interlocutores. O que assistimos, portanto, é não apenas a aventura de uma história que se costura através de encontros em cinco estados brasileiros, mas também a aventura de um filme que vai se articulando passo a passo, com uma equipe plenamente corporificada diante de nós.
Há momentos culminantes nessa exposição do processo. Um deles é na delicada entrevista com José Mariano, o ex-lavrador que interpretou João Pedro no filme de 1964 e agora insiste em se desassociar de qualquer movimento reivindicativo. Coutinho interrompe a conversa para corrigir um problema de som e acaba perdendo o elã de Mariano. É visível o desespero do diretor ante o iminente fracasso da entrevista, muito embora ele próprio ofereça leitura distinta da cena (ver en­trevista). Daí Coutinho pode ter retirado uma lição: jamais interromper um diálogo espontâneo por razões técnicas. Outro momento crucial é a segunda intervenção de Abraão, o filho mais velho de Elizabete, jornalista de perfil psicológico visivelmente problemático. Ele se refere a “discussões” com Coutinho sobre dinheiro, o que faz supor algum tipo de pagamento pelo acesso à família. Em futuros filmes, Coutinho passaria essa informação de modo ainda mais claro ao espectador, indi­cando sua convicção de que o documentário é sempre uma negociação – nos sentidos metafórico e também contábil.
Cabra veicula uma reflexão implícita sobre a influência das circunstâncias na verdade passível de ser colhida por um documentário. Elizabete é vista em três diferentes “personagens”, de acordo com a situação. Junto ao autoritário Abraão, na primeira entrevista de 1981, ela soa reticente e in­timidada. Cautelosamente, enaltece a abertura política que tornou possível sua reaparição pública. No dia seguinte, ao reencontrar a equipe, está calorosa e consciente do que a câmera espera dela. Mas, ainda aí, seu depoimento é formal, como em qualquer reportagem da televisão. Só bem mais tarde, ao despedir-se do pessoal da filmagem, quando dá o trabalho por terminado – sem perceber que a câmera continuava a filmá-la de dentro do carro –, ela assume uma postura que se acostuma­ra a dissimular nos longos anos de clandestinidade: põe em dúvida a atual democracia com miséria e sem liberdade, e, recobrando os gestos de líder política, reafirma a necessidade de prosseguir na luta até o fim.
A franca exposição desse processo, entre outras coisas, faz de Cabra bem mais que um simples do­cumentário. Nele está contida toda uma teoria dessa modalidade de cinema, algo que modificaria profundamente as atitudes dos documentaristas brasileiros nos anos a seguir.
Cabra Marcado para Morrer desdobra seis grandes linhas narrativas que se intercalam e se comple­mentam. São elas:
- A história das filmagens de Cabra-60;
- As memórias de Elizabete a respeito de seu passado com João Pedro e a Liga de Sapé;
- A história da desapropriação do engenho Galiléia, ocorrida em 1959;
- Os relatos do que sucedeu com cada um após o golpe de 1964;
- A busca dos filhos dispersos de Elizabete;
- A revelação da real identidade de Marta/Elizabete na cidadezinha do Rio Grande do Norte.
O tratamento documental não é o mesmo para todas essas linhas narrativas. A memória das fil­magens da década de 60 tem feições mais próximas do documentário expositivo clássico, em que as imagens se ordenam segundo um fluxo previsto em roteiro de montagem e são balizadas pelo texto do(s) narrador(es). Já as lembranças de Elisabete e do pessoal de Galiléia fluem ao sabor das entrevistas, embora reeditadas em conformidade com a sucessão de blocos do filme. É um compor­tamento exemplar do documentário interativo.
Por outro lado, os encontros de Coutinho com os filhos dispersos de Elisabete no Rio e em São Paulo abrem no filme uma nova janela sobre os resultados da imigração, com seu cortejo de cartas, mágoas e desintegração. Esse material está mais próximo da reportagem de televisão como pratica­da no Globo Repórter. A eficácia do filme depende, aí, do impacto emocional do encontro. É quando Coutinho mais interfere dentro do quadro, posto que a cena é produzida pela presença da câmera. Não se trata de flagrar, mas de deflagrar, como no receituário do cinema-verdade.
Cabra condensa, portanto, várias modalidades de documentário na tentativa de se resolver como narrativa, a única possível para sua complexa tarefa. O diretor expressa claramente essa busca numa de suas peregrinações à cata dos filhos de Elisabete. Na entrada de uma fábrica, o porteiro pergunta-lhe o canal de televisão para que trabalha. Coutinho responde por aproximações: “É tipo TV. É reportagem, mas é cinema”. Naquele momento, de fato, as linguagens ainda eram um objeto de pesquisa e experimentação na cabeça do documentarista.
A montagem de Cabra, fluente e clara, abre camadas de significação para além do que cada imagem representa em primeira instância. É curioso, por exemplo, que as cenas ficcionais em preto-e-branco de Cabra-60 ilustrem os relatos orais de fatos reais, de tal maneira que as enxergamos um pouco como ficção, um pouco como “provas” do que está sendo contado. O estatuto do cinema como ferramenta historiográfica pode ser discutido a partir desse caso modelar. Marc Ferro já havia dis­corrido sobre o teor documental que a ficção assume com o tempo, razão pela qual se pode afirmar que todo cinema tende a se transformar em documentário. Por outro lado, o coeficiente de realidade do que nos é mostrado em Cabra-80 não nos impede de perceber a forma dramatúrgica com que Coutinho elabora seu filme, às vezes muito próxima do que entendemos como ficção.
Vejam-se as tomadas em que a câmera simula a queda de João Pedro Teixeira no local onde foi as­sassinado, assim como o ponto de vista de quem o tocaiava à margem da estrada. Ou o convite a que velhos camponeses de Galiléia repetissem a última frase de Elizabete no filme de 1964: “Tem gente lá fora!”. Ou, ainda, o momento em que um dos atores do velho filme, agora operário no interior do estado de São Paulo, parece dublar a si próprio na cena da construção de um alpendre. O crítico Jean-Claude Bernardet, autor de uma das melhores análises de Cabra 2, chamou a atenção para o papel do espetáculo como fornecedor de coerência e significação à história. A presença em quadro do projetor cinematográfico em vários momentos do filme (desde a seqüência de abertura, por sinal) sublinha essa mediação do espetáculo. É de filme a filme que Cabra fecha uma fratura da História. Suturar o filme interrompido confunde-se com fechar um fosso da realidade.
O trabalho intertextual alcança também a literatura, a partir de mais um acaso recolhido. O filho de um lavrador havia guardado consigo, por 17 anos, dois livros deixados pela equipe em Galiléia. Um deles, Kaputt, de Curzio Malaparte, narra no prólogo a história – um tanto legendária – de como Malaparte teria contrabandeado seus manuscritos através da Europa em guerra e escapado da Gestapo com a ajuda de camponeses.
As muitas ressonâncias de Cabra Marcado para Morrer colocam-no na mesma linhagem de docu­mentários como À Chacun son Borinage, de Wieslaw Hudon, que em 1978 reencontrou os mineiros belgas cuja greve Joris Ivens e Henry Storck haviam documentado em 1933; e Aran, de Georges Combe (1979), que registrou mudanças culturais na ilha irlandesa em que Robert Flaherty filmou O Homem de Aran, em 1934. Coutinho, porém, não se limitou a revisitar o cenário de um filme alheio. Sua aventura foi um acerto de contas consigo mesmo, a recuperação de um fantasma para o mundo dos vivos.
Carlos Alberto Mattos, O homem que caiu na real, 2003

A VIDA INVISÍVEL, de Vítor Gonçalves || 2 DEZEMBRO || 21h30 || IPDJ


A Vida Invisível
Vítor Gonçalves
Portugal, 2013, 99’, M/14

FICHA TÉCNICA
Realização: Vítor Gonçalves 
Argumento: Vítor Gonçalves, Mónica Santana Baptista, Jorge Braz Santos 
Fotografia: Leonardo Simões 
Montagem: Rodrigo Pereira, Rui Alexandre Santos 
Música: Sinan C. Savaskan 
Interpretação: Filipe Duarte, João Perry, Maria João Pinho
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 99’


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Roma - Selecção Oficial
Festival de Roterdão - Selecção Oficial 



NOTA DO REALIZADOR
No hospital, ao preparar uma cena, vi a câmara sobre o tripé numa sala que desconhecia. Duma janela viam-se umas árvores e como fundo o mar agreste. Virei a câmara para os ramos agitados pelo vento. A excitação nascera de alguma coisa que vislumbrara e a que só poderia aceder através da materialidade do plano. Nem pensava que fosse destinado ao filme.
Era como se estivesse noutro território de trabalho, no qual o mistério do que eu filmava residisse no facto de tudo ter a ver com uma sugestão e nada ser afirmado com certeza.
Era como se eu desejasse fazer um filme secreto.
Durante a montagem, os planos deste outro filme fizeram a sua aparição abrindo espaços de possibilidade para as ideias em formação.
O sentido, sempre no processo de se tornar uma coisa nova, veio um dia, como por atração, fixar-se, colocando o plano das árvores no seu lugar. Ele era agora capaz de participar ma expressão de um momento decisivo da personagem. Aquele em que ela se torna sensível à ideia da sua própria mortalidade e isso lhe oferece a possibilidade de se sentir viva.


CRÍTICA
Vítor Gonçalves, o cineasta de "Uma Rapariga no Verão" (1986), regressa com "Uma Vida Invisível", protagonizado por Filipe Duarte — um belo filme, desencantado e cristalino, sobre um presente visceralmente português.
Quando descobrimos um novo filme português, é quase inevitável que (nos) perguntemos: que Portugal vemos na história que o filme nos conta? No caso de "A Vida Invisível", de Vítor Gonçalves, apetece responder através de um paradoxo enraizado na fascinante complexidade dos resultados; por um lado, deparamos com a saga abstracta de alguém que tenta encontrar um sentido para a sua identidade; por outro lado, a sua trajectória revela-se indissociável de um aqui e agora muito concreto, visceralmente português.
Esta é a história de Hugo (Filipe Duarte) e da sua relação distante, mas cúmplice, com o seu superior hierárquico, António (João Perry). A doença terminal de António vai desencadear um efeito revelador: de algum modo, a evolução do seu estado de saúde funciona como um bisturi do próprio destino de Hugo, e tanto mais quanto este, ao reencontrar Adriana (Maria João Pinho), parece acreditar na possibilidade de voltarem a ter uma vida conjunta...
É uma história a que acedemos, não exactamente tendo Lisboa como pano de fundo, mas como se a cidade fosse o lugar de uma vertigem (invisível, apetece dizer) que contamina todos os gestos de todas as personagens. Exemplo modelar dessa respiração narrativa é o conjunto de planos sobre as obras no Terreiro do Paço, por assim dizer expondo uma lógica de desnudamento e reconstrução.
"A Vida Invisível" possui, assim, a dinâmica de uma crónica social em que, explicitamente ou não, reconhecemos algumas componentes da nossa conjuntura: a solidão urbana, a desagregação dos laços familiares, o esvaziamento humano das relações profissionais... Ao mesmo tempo, tudo se passa como se Vítor Gonçalves nos quisesse mostrar o desejo imenso de sair dessa teia, a par da dificuldade de cada um formular tal desejo — ou partilhá-lo com outro.


Quase três décadas passadas sobre "Uma Rapariga no Verão" (1986), Vítor Gonçalves regressa, assim, a uma escrita da intimidade, habitada por ecos díspares da nossa actualidade. "A Vida Invisível" é a prova muito real de que é possível filmar o que somos (ou imaginamos ser) sem ceder aos estereótipos dramáticos ou morais que, todos os dias, circulam pelas telenovelas. Decididamente, isto não é a rotina televisiva — isto é cinema.
João Lopes, rtp.pt/cinemax/




ENTREVISTA AO REALIZADOR
Na primeira cena de “A Vida Invisível”, o protagonista, interpretado por Filipe Duarte, diz “estes filmes não me saem da cabeça”. Essa frase supõe uma série de saberes quanto ao que vem a seguir. Isso já estava no argumento? A escrita do argumento é a base do seu cinema?
É evidente que passo muito tempo a pensar no argumento — e a escrever. É um grande trabalho solitário, mas fui tendo conversas com a Mónica [Santana Baptista] e com o Jorge [Braz Santos] e é por isso que os nomes deles aparecem no genérico. Mas o argumento, para mim, nunca está fechado. É um organismo vivo, tem vida própria, o trabalho sobre o argumento não é prévio, atravessa todo o processo de construção do filme, da rodagem à montagem e à pós-produção.
Mas, quando faz um plano de rodagem, tudo se passa como é hábito? Por exemplo, na quarta-feira à tarde roda-se a cena 24 no décor X, com os atores Y e Z, certo?
Sim, mas, para mim, o argumento não são umas páginas que fecham a cena, mas umas páginas que abrem para a cena. Nunca se trata de filmar uma cena que já está completamente definida. Há qualquer coisa de misterioso na passagem da ideia à materialidade da expressão, através dos atores, de um sofá, da presença de uma luz. É nesse confronto com a materialidade, com o grão de uma voz, com a forma como um ator se senta ou fala que a cena vai existir.
È nítido que nada está por acaso em “A Vida Invisível”. Gostava de saber se isso é fruto de uma organização minuciosa da cena ou se, pelo contrário, a cena resulta do encontro da ideia original com algo que de repente se descobre...
Por um lado, é evidente que eu organizo o mundo, estou obcecado por organizar o mundo configurado no filme. Mas, para mim, filmar é ser capaz de trabalhar num território de que ainda não sei como vai ser encontrada a forma final de expressão.
Aqueles corredores do ministério, a estética arquitetónica das portas e das paredes, são algo que associo aos interiores do Estado Novo. Mas aquela luz esverdeada não estava lá e é um cromatismo que se traduz como a cor exata de um mundo que se desagrega, é a luz da putrefação. Aquela luz é uma escolha...
Exato. Foi muito importante o trabalho que tive de fazer com a luz, em particular na relação entre a luz do ministério e a luz da casa do protagonista. E muito em particular na expressão da ideia de espaço fechado, na relação com um mundo exterior onde existe uma luz que chega a queimar quando vai contra as cortinas, quando atravessa os estores e queima a imagem, face a uma obscuridade, uma tonalidade interior que é onde o protagonista vive, onde está inteiramente instalado. Tive sempre a noção de que a luz na expressão da história era decisiva, era essencial.
Deixe-me voltar o início do filme e às imagens que são uma herança do personagem de João Perry e se tornam quase assombrações do protagonista. Quando partiu para a rodagem, já sabia que essas imagens iam ser fundamentais na dramaturgia?
Não, por isso é que é preciso manter um espaço criativo ligado ao inconsciente, não fazer um filme apenas no domínio da razão.
E ator, nesse primeiro plano na escada, já sabia que ia haver uma voz off e o que ela dizia?
Não, não... A voz off foi uma decisão muito posterior.
Então o que é que o ator tem de exprimir? Ou não tem de exprimir nada?
Nessa cena, o que eu estava a trabalhar com o Filipe Duarte era uma de insónia, ali no ministério, em que ele não era capaz de voltar para casa, casa que é, ao mesmo tempo, protetora e que sente como prisão. A ideia era essa. Bastou.
E as imagens que o personagem de João Perry deixa em herança, como surgiram?
Por um lado, o filme está constantemente a fazer referência ao espaço de uma vida que não é vivida. E havia um problema, ao nível da dramatização: como falar dessa vida que não é vivida?, como dar expressão a essa sensação tão intensa da interioridade do protagonista? Por outro lado, a determinado momento, comecei a sentir a necessidade de uma realidade que tivesse a ver com o espaço aberto, a natureza, a materialidade das rochas, o mar.
Mas não queria que isso fosse diretamente tangível, isto é, queria que a evidência das imagens em super-8 fosse de uma qualidade diferente da evidência das outras imagens. Daí o grão excessivo, a dimensão artificial...
...há mesmo alterações cromáticas manipuladas, fabricadas...
Exato. Todavia, estas imagens também estão a falar do tempo, têm uma dupla realidade, há o espaço e o tempo. Não sabemos de quando elas são, mas sabemos que são antigas, que são antes. Mas eu também queria que essas imagens adquirissem, para o protagonista, o valor de um sonho acordado. Isto é, aquilo que acontece no filme, o facto de, no fim, ele compreender que nunca mais vai voltar a ver a Adriana, que a perdeu, esta compreensão interior é feita através daquelas imagens. Elas são fundamentais porque participam de todos estes sentidos. 
Fale-me um bocadinho da música. Tanto quanto julgo saber, Sinan C. Savaskan nunca tinha feito nada para cinema...
Quando ele viu o filme e começámos a falar do modo como a música ia ser inserida, houve uma ideia decisiva: a suspensão da nota. Eu não estava interessado em colocar a música de uma forma sentimental e a questão era a de saber como ela iria ser capaz de participar da expressão de uma vida suspensa, aquela suspensão interior, fora do tempo, em que o protagonista se encontra. A ideia de uma nota que se alonga e se suspende e se alonga vem daí. Depois descobri que queria utilizar a música nos espaços vazios e que, portanto, devia ter também uma realidade autónoma que permitisse trazê-la para o primeiro plano e ser capaz de existir por si. Não quis música subsidiária da ação ou do protagonista.
Embora não seja um filme de atores, os atores são essenciais. Como é que os escolheu?
Já tinha trabalhado com o João Perry em “Uma Rapariga no Verão”. Já conhecia o Filipe Duarte de o ver em teatro e em cinema. Os outros foram escolhidos por casting. Mas não é isso que lhe interessa, claro, quer saber é a dimensão criativa da escolha do elenco. Usualmente escolhe-se um ator porque ele tem características físicas ou traços de personalidade que se adequam perfeitamente a uma personagem. Para mim, não é isso. Trata-se de encontrar alguém que vai ficar com a personagem, sim, mas o mais importante é o que vai trazer e de que eu não estava à espera. É como se houvesse uma espécie de perceção daquilo que eu ainda não vi na personagem mas que ele vai pensar e fazer.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 7/6/14