FOGO NO MAR | 28 FEV | 21H30 | IPDJ



FOGO NO MAR
Gianfranco Rosi
Itália, 2016, 93’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Fuocoammare
Realização e direcção de fotografia: Gianfranco Rosi
Montagem: Jacopo Quadri
Design de som: Stefano Grosso
Assistente de realização: Giuseppe del Volgo
Chefe de produção: Fabrizio Federico
Ano: 2016
Origem: Itália
Duração: 93’

FESTIVAIS E PRÉMIOS

Festival de Berlim – Urso de Ouro, Prémio do Júri Ecuménico, Prémio da Amnistia Internacional, Prémio do jornal Berliner Morgenpost
Festival de Toronto – Selecção Oficial
 




NOTA DE INTENÇÕES
Fui a Lampedusa pela primeira vez no Outono de 2014 para explorar a ideia de realizar um filme de 10 minutos, pedido para exibir num festival internacional. A ideia do produtor era fazer um pequeno filme que trouxesse uma imagem diferente de Lampedusa, para uma Europa preguiçosa e cúmplice, que tinha uma ideia distorcida e confusa em relação à crescente crise migratória. Isto também se aplicava a mim. Para mim, Lampedusa era há muito um conjunto de vozes e imagens geradas por peças televisivas e manchetes chocantes sobre morte, emergências, invasões, e manifestações populistas.
No entanto, uma vez na ilha, descobri uma realidade que estava muito longe daquela que encontrava nos media e na narrativa política, e percebi que seria impossível comprimir um universo tão complexo como Lampedusa em apenas alguns minutos. Percebi que iria precisar de uma imersão completa e prolongada naquela realidade. Não seria fácil. Sabia que tinha que encontrar uma forma de entrar.
Depois, como acontece muitas vezes no cinema documental, ocorreu algo inesperado. Fui às urgências devido a um caso de bronquite e conheci o Dr. Pietro Bartolo, o único médico da ilha, e que nos últimos 30 anos tinha estado presente em todos os momentos que os migrantes eram resgatados. É ele quem determina quem é enviado para o hospital, quem fica de quarentena, e quem é declarado morto. Sem saber que eu era um realizador à procura de uma possível história para contar, o Dr. Bartolo contou-me as suas experiências nas emergências médicas e humanitárias. O que ele me contou, e as palavras que usou, afectaram-me profundamente.
Estabeleceu-se entre nós uma relação, e eu percebi que ele poderia ser uma personagem do filme. Depois de uma hora e meia de discussão intensa, o médico virou o ecrã do seu computador para mim e mostrou-me imagens aflitivas, nunca mostradas a ninguém, para que eu pudesse “sentir” a realidade da tragédia dos migrantes. Nesse momento, percebi que tinha que transformar a curta de 10 minutos no meu novo filme.
Depois de preparar a produção, mudei-me para Lampedusa e arrendei uma pequena casa junto ao porto, onde fiquei. Queria contar a história desta tragédia através dos olhos dos habitantes da ilha, cuja forma de ver as coisas passou por uma mudança massiva ao longo dos últimos 20 anos.Graças à ajuda de Peppino, um anjo da guarda da ilha que mais tarde se tornou o meu assistente de realização, gradualmente fui contactando os habitantes, e fui conhecendo os seus ritmos, rotinas, e forma de ver os acontecimentos. Tal como aconteceu com o Dr. Bartolo, tive outro encontro fundamental, com o Samuele, um rapaz de 9 anos filho de um pescador, que me conquistou. Eu percebi que através dos seus olhos ingénuos poderia contar a história da ilha e dos seus habitantes com mais liberdade. Segui-o enquanto brincava, com os seus amigos, na escola, em casa com a avó e no barco com o seu tio. O Samuele permitiu-me ver a ilha de uma forma diferente e com uma clareza que não tinha encontrado antes. Através dele, as outras personagens foram introduzidas no filme, uma a uma.
A minha decisão de mudar-me para Lampedusa mudou tudo. No ano que passei na ilha, suportei o longo inverno, ficando depois a conhecer o verdadeiro ritmo dos fluxos migratórios. Era necessário ir para além do hábito dos media de correr para Lampedusa apenas quando há uma tragédia. Ao viver lá, percebi que a palavra emergência não tem significado. Cada dia é uma emergência. Todos os dias acontece algo. Paracompreender um sentido real da tragédia é preciso não só estar perto, mas ter um contacto constante.
Apenas desta forma pude compreender melhor os sentimentos dos habitantes da ilha, que têm visto esta tragédia a repetir-se ao longo dos últimos 20 anos.

Depois do início de operações de resgate como “Mare Nostrum”, que tentam interceptar os barcos no mar,os migrantes deixam de ser vistos em Lampedusa. Passam como fantasmas. Eles desembarcam num caisno velho porto, são transportados para o centro de detenção para assistência e identificação, e uns dias mais tarde são encaminhados para o continente. Sobre os desembarques, e filmei dezenas, a única forma de compreender os centros de acolhimento é ir lá e vê-los de perto. É muito difícil filmar dentro de um mas graças à autorização que obtive das autoridades Sicilianas, pude mostrar o centro, os seus ritmos e regras, os habitantes, as religiões e as tragédias. Um mundo dentro de outro, desligado da vida quotidiana da ilha. O maior desafio foi encontrar uma forma de filmar este universo que pudesse transmitir não só um sentido de realidade e verdade, mas também humanidade.
No entanto, rapidamente percebi que a fronteira – que em tempos foi a própria Lampedusa, quando os barcos chegavam à ilha – tinha-se mudado para o mar. Pedi autorização para embarcar num navio da marinha italiana que operava na costa africana, e passei um mês no Cigala Fulgosi, participando em duas missões. Aí, também tive que aprender os ritmos, regras e hábitos da vida a bordo até nos depararmos comtragédias, uma após a outra. A experiência de filmar esses acontecimentos não pode ser descrita aqui.
Nos meus filmes, muitas vezes retrato mundos circunscritos, quer o sejam de forma literal ou idealmente. Estes universos, por vezes tão pequenos como um quarto, têm a sua própria lógica e movimentos internos. Capturá-los e transmiti-los é a parte mais complicada do meu trabalho. Aconteceu isso com a comunidade de pessoas que filmei no deserto americano (em Below Sea Level), um mundo isolado com as suas próprias regras onde a fronteira era uma afiliação com uma ideia ou a condição de alguém. Também foi assim com o narco-assassino feito informador, encurralado num quarto de hotel, encenando os seus crimes e explicando as regras da sua comunidade criminal (El Sicario). O mesmo pode ser dito para a comunidade que vive nas margens de uma estrada à volta de Roma (Sacro GRA). Então, em Lampedusa, dei por mim a perceber o funcionamento, se posso chamar-lhe isso, de um outro conjunto de mundos concêntricos, com as suas próprias regras e um sentido de tempo próprio: a ilha, o centro de detenção, o Cigala Fulgosi.
É impossível deixar Lampedusa, assim como é impossível identificar o momento exacto em que a rodagem está completa. Se isto é válido para todos os meus filmes, é especialmente verdade para este.
Houve um incidente que me fez perceber que o círculo estava quase completo. Uma vez que foi depoisdo encontro com o Dr. Bartolo que decidi fazer este filme em Lampedusa, para concluir o filme senti queera necessário regressar a esse encontro. Fui visitar o Dr. Bartolo, mas desta vez com uma câmara, que liguei para filmar o seu testemunho, a sua história. E, tal como antes, ao olhar para o ecrã do seu computador onde estão arquivados 20 anos de resgates, Bartolo, com a sua imensa humanidade e serenidade, foi capaz de comunicar a magnitude da tragédia, e o dever de prestar assistência e abrigo. Exactamente o que eu precisava para fechar o filme.
Gianfranco Rosi






CRÍTICA

Em 2013, o italiano Gianfranco Rosi conseguiu uma proeza invulgar: o seu documentário "Sacro Gra" foi o primeiro a arrebatar o Leão de Ouro na longa história do Festival de Veneza. O tema era o dia a dia das pessoas que vivem nas imediações da auto-estrada que circunda a cidade de Roma. Agora, com "Fogo no Mar", o ambiente é bem diferente: trata-se de mostrar a chegada dramática de muitos refugiados à ilha de Lampedusa, ao largo da Sicília.
Mais uma vez, Rosi conseguiu um prémio importantíssimo: no passado mês de Fevereiro, "Fogo no Mar" recebeu o Urso de Ouro do Festival de Berlim. Dir-se-ia que o impacto do seu trabalho resulta da mais universal das opções: o documentário é sempre entendido como uma amostragem das atribulações de personagens singulares.
Assim acontece em "Fogo no Mar". O salvamento dos que se lançaram ao Mediterrâneo, em frágeis embarcações, é mostrado de forma directa e esclarecedora, sem sensacionalismos (em nome de quê?) nem generalizações fáceis; em paralelo, conhecemos as rotinas e inquietações de alguns habitantes de Lampedusa, a começar pelo admirável Samuele, um rapaz fascinado pela vida dos pássaros.
Deparamos, assim, com uma narrativa documental que talvez possamos classificar como uma derivação jornalística. No sentido mais depurado que tal classificação pode envolver: para Rosi, a espessura dos factos é essencial, sem qualquer cedência a "simbolismos" fáceis. Ou seja: o cinema dá-nos a ver situações que conhecemos de muitos jornais televisivos, mas agora com outra densidade informativa e uma tocante verdade humana.
João Lopes, rtp.pt/cinemax


ENTREVISTA A GIANFRANCO ROSI
Como e quando é que decidiu fazer este filme sobre um jovem rapaz na ilha de Lampedusa, e como é que isso se ligou com a “crise dos refugiados” que atravessam o mar Mediterrâneo e têm chegado à ilha nos últimos tempos?
Gianfranco Rosi: No início, eu queria fazer uma curta-metragem de dez minutos. Mas, na minha primeira viagem à ilha, apanhei uma bronquite aguda que me levou ao hospital onde conheci o Dr. Pietro Bartolo. Começámos a falar e ele disse-me que nos últimos vinte anos tinha examinado não apenas os habitantes da ilha mas também os migrantes. Depois de uma longa conversa, deu-me um cartão de memória cheio de fotografias do estado dos migrantes encontrados pelos guardas costeiros. Ao ver aquelas fotografias apercebi-me rapidamente de que seria impossível condensar tudo: o filme precisava de ter mais de dez minutos de duração.
Eu queria mesmo contar a história desta crise através dos olhos dos habitantes da ilha. Então mudei-me para Lampedusa no início de 2015 e comecei a filmar. Em relação ao rapaz, o Samuele cativou-me imediatamente, mas não tinha a certeza da dimensão ou da importância do papel que ele teria no filme. Mas depois de o ver uma vez a brincar com pássaros, soube que tinha de incluir no filme histórias de miúdos na ilha.
Os seus projectos mudam muito durante a construção do filme?
No meu caso, a câmara digital levou à improvisação e reforçou a minha confiança nos meus próprios instintos durante a rodagem. Em Fogo no Mar eu filmava de acordo com a minha intuição: deixava as coisas acontecerem naturalmente. Num dia filmava num navio militar e no outro ia para o centro de acolhimento porque tinha conhecido pessoas que me levavam lá. Nunca disse “hoje vamos fazer isto”. Apenas deixava a história seguir o seu curso, usando situações do quotidiano, como o encontro do médico com o Samuele, e filmando-as: é o tipo de coisa que nenhum actor poderia representar. No entanto, usar uma câmara digital leva a que se filme mais e, consequentemente, a que se monte mais. Na minha opinião, toda essa fase de montagem deveria ser realizada durante a rodagem.

Para mim é necessário que cada fotograma, cada plano, conte uma história. Talvez tenha reparado que há muito poucos cortes dentro de cada cena em todos os meus filmes. Cada uma delas tem um início e um fim, é um itinerário preciso. O mais difícil é ter uma situação à nossa frente e perceber que esse momento tem de ser uma compressão de vários momentos.
Com excepção das notícias e do médico que cuida tanto dos locais, incluindo o jovem Samuele, como dos refugiados, parece não haver muito contacto entre uns e outros...
Para perceber bem isso, creio que é importante saber que nos últimos anos as condições de desembarque dos refugiados sofreram grandes mudanças. De facto, há cinco anos, os barcos que transportavam migrantes desembarcavam todos os dias numa parte diferente de Lampedusa, o que facilitava o contacto entre eles e os habitantes da ilha. Mas desde que a operação “Mare Nostrum” foi posta em prática, no seguimento da tragédia de 13 de Outubro de 2013, a fronteira foi deslocada para um local mais distante da ilha, e os barcos que transportam os migrantes são agora interceptados no mar pelos navios militares. Assim que o barco pára, os militares transferem-nos para o seu navio e levam-nos até ao porto, onde se encontra um autocarro que os conduz até a um centro. Lá, são identificados e, depois de alguns dias, são transportados para outras instalações na Sicília ou noutra parte de Itália. Como vê, não há nenhuma forma de contacto entre ambos e, à excepção do médico, os migrantes não alteram o quotidiano dos habitantes da ilha. Isto é uma esquematização daquilo que está a acontecer na Europa: as pessoas têm uma imagem negativa de todos os migrantes que tentam forçar a entrada na Europa, mas eles são invisíveis, como sombras que ninguém vê.
Medeia Magazine, trad. de Inês Viana