Dr. Estranho Amor, Stanley Kubrick, 31 Março, IPDJ, 21h30

DR. ESTRANHOAMOR
Stanley Kubrick
EUA/Reino Unido, 1964, 94’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título original: "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb".
Realizador: Stanley Kubrick.
Argumento: Stanley Kubrick, Peter George, Terry Southern, baseado no livro “Red Alert” de Peter George
Monatgem. Anthony Harvey
Fotografia: Gilbert Taylor
Música: Laurie Johnson
Interpretação: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, Keenan Wynn, Slim Pickens. 
Origem: EUA/Reino Unido
Ano: 1964
Duração: 94’




Durante vários anos da Guerra Fria, a tensão entre EUA e União Soviética foi latente, existindo uma "paz armada" que exigia um enorme esforço da diplomacia de ambas as nações para evitar que este conflito deflagrasse numa luta armada e fosse utilizada a bomba atómica. A paranóia em relação à corrida ao armamento, disputas tecnológicas e ideológicas, e sobretudo em relação à bomba atómica surge satirizada de forma mordaz, inteligente, com momentos de puro brilhantismo e requinte por Stanley Kubrick em "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb", onde nada nem ninguém parece escapar ao sentido crítico do cineasta. Desde os militares, passando pelos políticos e até os ideais defendidos, poucos escapam a esta sátira filmada belissimamente a preto e branco, que tal como na maioria das obras de Stanley Kubrick pouco ou nada parece ter
envelhecido. Diga-se que no final não ficamos a adorar a bomba atómica, mas sim esta peculiar obra cinematográfica, que é capaz de ironizar e brincar com assuntos sérios, geralmente sem ser ofensiva mas por vezes extremamente corrosiva, deixando-nos perante um Peter Sellers a mostrar boa parte da sua enorme versatilidade para a representação e Stanley Kubrick a expor algumas doses de genialidade. 
[...] Curiosamente, muito dos diálogos e da construção dos personagens foram fruto do improviso de Peter Sellers, com este a colaborar com Stanley Kubrick no desenvolvimento dos mesmos, com o argumento a prever exactamente explorar o génio do actor, juntando-se um realizador maravilhoso com um actor assombroso. Dos três personagens interpretados por Sellers, Strangelove é o elemento que mais se destaca, ou não fosse este indivíduo na cadeira de rodas a personificação do lado negro destas políticas desastrosas aplicadas na Guerra Fria. 
[...] marcada por um humor negro inteligente, capaz de tocar em elementos relevantes e preocupantes da Guerra Fria e dos perigos de uma possível Guerra Nuclear, criando uma obra brilhante e criativa que inicialmente até foi idealizada como um thriller político, mas que com o desenvolver da obra Stanley Kubrick decidiu por uma feliz mudança de rumo, resultando numa das grandes comédias da história do cinema. O facto de Dr. Strangelove ser considerado como uma das comédias mais relevantes do pós-Guerra não é fruto do acaso.

 Nota-se que existe todo um trabalho de pesquisa para explorar as temáticas, não faltando referências várias ao período histórico, uma capacidade notável para extrair o melhor que os seus actores têm para dar e uma paradigmática utilização do espaço da narrativa, sobressaindo todo o cuidado colocado na elaboração dos cenários. 

Quem domina o filme é Stanley Kubrick, cuja minúcia que coloca nos seus filmes resulta numa das suas obras maiores, apresentando um certo cepticismo em relação aos avanços tecnológicos e à forma nefasta como estes podem ser utilizados, em particular no que diz respeito à bomba nuclear. O filme foi lançado originalmente em 1964, numa fase onde a crise dos Mísseis de Cuba ainda estava muito viva (e provavelmente terá estado na memória de Kubrick e Terry Southern durante a elaboração do argumento), bem como a paranóia colectiva, o medo de uma possível deflagração de uma guerra nuclear, algo que surge expresso com enorme eficácia em "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb". Stanley Kubrick consegue pegar num conjunto de assuntos sérios e brincar com estes, sem descurar a criação de alguns elementos mais tensos e dramáticos, mas sempre sem perder o tom corrosivo desta sátira hilariante, composta por momentos e diálogos icónicos, dominada por magníficas interpretações de um conjunto de actores que souberam incutir personalidades vincadas aos seus personagens.
...em "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb" essa paranóia surge acompanhada por políticos algo incompetentes, militares muito peculiares e um ex-nazi pronto a personificar o pior da humanidade e ficamos com um retrato soberbo, corrosivo e inteligente da paranóia nuclear durante a Guerra Fria, naquela que é uma das grandes obras-primas de Stanley Kubrick.
Aníbal Santiago, bogiecinema.blogspot.pt/ 

ESPÍRITO DE '45, de Ken Loach - Teatro Municipal - 21h30 - 24 Março


O ESPÍRITO DE '45
Ken Loach, Reino Unido, 2013, 94', M/12


FICHA TÉCNICA
Realização:  Ken Loach
Montagem: Jonathan Morris 
Fotografia: Stephen Standen 
Música: George Fenton 
Imagens de Arquivo: Jim Anderson
Pesquisa: Izzy Charman 
Origem: Reino Unido
Ano: 2013
Duração: 94'


FESTIVAIS
Festival de Berlim 




TRAILER


NOTA DE INTENÇÕES
A Segunda Guerra Mundial foi uma luta, talvez a maior e mais considerável luta colectiva em que este país esteve envolvido. Apesar de outros terem feito sacrifícios maiores, o povo da Rússia, por exemplo, a determinação de construir um mundo melhor era tão forte aqui como nos outros países. Nunca mais, acreditava-se, iríamos permitir que a pobreza, o desemprego e o fascismo desfigurasse as nossas vidas.
Ganhámos a guerra juntos, juntos podíamos ganhar a paz. Se conseguíamos planear campanhas militares, não conseguiríamos também construir casas, criar um serviço de saúde e um sistema de transportes, fazer o que era necessário para a reconstrução? 
A ideia central era a do bem público, em que a produção e os serviços beneficiariam todos. Não deveriam uns poucos ficar ricos em detrimento de todos os outros. Foi uma ideia nobre, popular e aclamada pela maioria. Foi o Espírito de 45. Talvez seja altura de o relembrar hoje. 

Ken Loach


CRÍTICAS
Ken Loach documenta a ascensão e queda do sonho de uma sociedade mais justa na Inglaterra do pós-guerra.
Não seria preciso este documentário sobre a Inglaterra do imediato pós-Segunda Guerra para confirmar o britânico Ken Loach como um dos poucos cineastas genuinamente activistas ainda em actividade.
Mas apesar dos dois anos de atraso com que nos chega, a verdade é que O Espírito de ‘45 – provavelmente o seu melhor filme em largos anos – transcende o activismo para falar aos nossos dias de austeridade, contando a história da vitória do Partido Trabalhista nas primeiras eleições após o fim da guerra e o modo como ela redesenhou a paisagem social e política britânica.
A intenção do governo de Clement Attlee era prolongar no pós-guerra o espírito de unidade e coesão que embalou Inglaterra de 1939 a 1945, numa espécie de “grande experiência democrática” que veio mudar os parâmetros do velho império entretanto desaparecido. Loach contrasta a esperança desses “amanhãs que cantam” com o seu desmantelamento dessa sociedade às mãos do governo de Margaret Thatcher, sem ilusões quanto às “batalhas a travar” mas sugerindo que só reclamando esse espírito utópico se poderá inverter a “curva descendente” da sociedade. A força das imagens de arquivo e dos testemunhos recolhidos é suficiente para transcender o classicismo algo rígido da apresentação, mas sente-se mais alma em O Espírito de ‘45 no que na última meia-dúzia de ficções assinadas pelo cineasta britânico.
Jorge Mourinha, publico.pt/



O Espírito de '45, um documentário realizado por Ken Loach em 2013 e que chega agora ao mercado português com todo este atraso, faz uso de imagens de arquivo das condições de vida no pós guerra no Reino Unido para traçar um panorama do espírito da população naquele crucial momento histórico. Para Loach, que para além das imagens de arquivo vai dando forma à sua argumentação a partir de testemunhos de pessoas que partilharam um projeto político e comunitário conjunto, um dos aspectos fundamentais neste espírito de 1945 foi o sentido de comunidade e do trabalho para o bem comum – princípios basilares do Estado Social erguido pelo governo de Clement Altee. O documentário aborda duas questões fundamentais, a partir de dois momentos bastante distintos: a centralidade do Estado Social para uma nova Grã-Bretanha acabada de sair da Segunda Grande Guerra, mais solidária e empenhada em construir um futuro próspero para todos; e a subida ao poder do governo Thatcher, e a progressiva erosão desse legado material e simbólico. O propósito, de declarada inclinação política, é o de contribuir para que esse entusiasmo pela construção de um futuro possam servir de exemplo e de inspiração para os dias de hoje.
Altee, que sucedeu a Churchill nas primeiras eleições do pós-guerra, implementou um conjunto de políticas à altura da vontade de profunda mudança daqueles tempos, com destaque para um extenso programa de nacionalizações e da criação do NHS, o sistema de saúde nacional britânico. Loach recolhe um conjunto de depoimentos de cidadãos que beneficiaram das melhorias das condições de vida que resultaram dessa política, que ao longo de três décadas foi capaz de impulsionar o crescimento económico britânico. Excertos do manifesto do Partido Trabalhista para as eleições de 1945, que são ocasionalmente narradas e sobrepostas a imagens de arquivo, têm uma particular ressonância para com os dias de hoje: "As dificuldades nos períodos entre-guerras não foram atos de Deus, nem de forças ocultas. Foram antes o claro resultado da concentração de demasiado poder económico na mão de poucos"; ou ainda, "o custo daquilo a que designamos por 'liberdade económica' para a população democrata é demasiado elevado se for alcançado à custa da miséria e desperdício do potencial de milhões".

Formalmente, é um documentário de alguma banalidade. Loach coloca as questões sempre atrás da câmara, num registo que que associamos frequentemente à televisão e não tanto ao cinema. Os depoimentos recolhidos são também eles a preto e branco, em continuidade com os fantasmas das imagens de arquivo, como se os ideias e valores daquelas pessoas pertencessem já a um passado lamentavelmente irrecuperável. Nos momentos finais, Loach regressa às mesmas sequências com que abre o documentário, que dizem respeito às comemorações pelo fim da guerra, mas neste último olhar as imagens já são a cores: talvez ainda haja esperança.
O melhor: Uma evocação inspiradora de um período importante na história contemporânea.
O Pior: Nada a apontar
José Raposo, c7nema.net

O HOMEM DECENTE - 17 MARÇO - 21H30 - IPDJ


O HOMEM DECENTE

Vanessa Lapa, Áustria/Israel, 2014, 94’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização: Vanessa Lapa
Argumento: Vanessa Lapa, Ori Weisbrod
Montagem Sharon Brook, Noam Amit
Fotografia Hermann Poelking-Eiken
Som: Tomer Eliav
Música Original: Jonathan Sheffer, Daniel Salomon, Gil Feldman
Origem: Áustria/Israel
Ano: 2014
Duração: 94’










CRÍTICA
" (...) Na vida, é preciso ser decente, corajoso e ter bom coração", escrevia Heinrich Himmler numa das suas cartas. Palavras sábias que demonstram sobretudo uma humildade de espirito, mas convém sublinharem que Himmler é o braço-direito de Adolf Hitler. O homem por trás dos conselhos de decência foi em tempos apelidado como o arquiteto da "Solução Final", o visionário do extermínio de uma "raça" que ele próprio considerava prejudicial para a ascensão de uma outra, pura e soberana (tendo também sido um dos mentores da concretização dos campos de concentração).
Um Homem Decente, um título irónico e de certa forma trocista ao legado deste homem de mente indecifrável, é um documentário que nos reúne um ponto vista único através da leitura de cartas, fotografias e diários encontrados na casa de família dos Himmler, em 1945. Para além de uma biografia de um dos rostos das atrocidades cometidas e da proliferação do idealismo Nazi na Alemanha e noutras partes da Europa, o filme de Vanessa Lapa remete-nos como um documento sobre os efeitos e réplicas de um regime, descrevendo uma época fatídica e memorável para a Humanidade do século XX.


A descrença dos alemães pela sua Nação após a humilhante derrota da Primeira Guerra Mundial, o desejo de uma nova guerra como uma demonstração de bravura, o realçar dos valores patrióticos que só Adolf Hitler conseguiu estabelecer no seu povo e a premonição de um novo mundo, erguido de uma tremenda poça de sangue, são alguns dos fatores que o filme analisa pelos olhos de Himmler, os quais também avaliam a sua própria figura. Tal como um feitiço que se vira contra o feiticeiro, Lapa utiliza o seu legado de forma reflexiva aos seus pensamentos, elaborando não um "monstro", mas um homem de um poder intelectual invejável, embora, distorcido.
Resumidamente, O Homem Decente é uma autocrítica póstuma, não deixando de ser impressionante o retrato orquestrado sem um pingo de maniqueísmo ou manipulação. Eis um registo linear e formalista que se incorpora como um diário visual de alguém que o Mundo dificilmente poderá esquecer. Quanto aos julgamentos, só o espectador poderá faze-lo, obviamente sob advertências.

Hugo Gomes, c7nema.net/

O ÚLTIMO DOS INJUSTOS - 10 MARÇO - IPDJ - 21H30

O ÚLTIMO DOS INJUSTOS
Claude Lanzmann
França/Áustria, 2013, 220', M/12


FESTIVAIS

Festival de Cannes - Selecção Oficial 

FICHA TÉCNICA
Realização: Claude Lanzmann
Fotografia: William Lubtchansky,  Caroline Champetier
Montagem: Chantal Hymans
Som: Antoine Bonfanti, Manuel Grandpierre, Alexander Koller
Origem: França/Áustria
Ano: 2013
Duração: 220’







CRÍTICA
Como quase todos os filmes de Claude Lanzmann, O Último dos Injustos é um descendente de Shoah, o seu monumental trabalho sobre o Holocausto, e sobre as memórias do Holocausto, estreado em 1985.
 Mas se nalguns filmes que assinou depois de 1985 Lanzmann voltou a segmentos específicos de Shoah, em O Último dos Injustos o material dado a ver, e sobre o qual o filme se constrói, ficou inédito. Trata-se, essencialmente, do registo filmado de várias sessões de conversa entre Lanzmann e a extraordinária personagem de Benjamin Murmelstein, que fora o derradeiro “Ancião dos Judeus” do ghetto-modelo de Theresienstadt. As conversas tiveram lugar em 1975, quando, no início da preparação do que viria a ser Shoah, Lanzmann localizou Murmelstein em Roma e foi ter com ele. Como Lanzmann assinalou por altura das primeiras apresentações de O Último dos Injustos, Murmelstein afigurou-se-lhe um indivíduo de tal modo colossal que acabou por não incluir nenhum do material com ele em Shoah, pensando um dia fazer com Murmelstein o filme que ele merecia, que era, Lanzmann dixit, “um filme só para ele.”

O Último dos Injustos é então esse filme. É o retrato dum homem com uma história extraordinária, é um documento de história oral, é uma investigação sobre alguns aspectos particulares do Holocausto, e é, não o negligenciemos, um fascinante jogo de pingue-pongue entre um entrevistador (Lanzmann) e um homem (Murmelstein) perfeitamente consciente das “zonas de sombra” do seu percurso. Figura ambígua, que houve (Gerhard Scholem, por exemplo) quem defendesse que devia ter sido julgado e condenado, Murmelstein, apesar de bastante “apertado” por Lanzmann, acaba por ser como que “absolvido” por ele: o final do filme, no que é um pormenor raríssimo em toda a obra de Lanzmann, mostra os dois num último passeio por ruínas romanas, e a câmara fica a vê-los a afastarem-se, com Lanzmann a passar o braço pelo ombro de Murmelstein. Não fica nenhuma ambiguidade sobre a admiração do realizador pela sua personagem.
Em relação aos procedimentos habituais de Lanzmann — tão crucialmente expostos em Shoah  O Último dos Injustos introduz algumas variações relevantes. Aquela opção radical de incluir quaisquer imagens de época foi abandonada, e neste filme encontra-se mesmo um pequeno documento, feito pelos próprios nazis, que mostra o ghetto de Theresienstadt numa absurda (sinistra e absurda) manobra de propaganda, que pretendia dar a ver como o ghetto era de facto “modelo” e todos ali tinham uma vida agradabilíssima. Outro aspecto importante é o facto de Lanzmann se pôr, a ele próprio, “em cena”, em imagens contemporâneas (Lanzmann já com oitenta e muitos anos) que criam um diálogo curioso com as imagens de 1975 onde Lanzmann aparece como homem jovem, sugerindo que O Último dos Injustos comporta também uma dimensão autobiográfica, como se o realizador reflectisse também sobre a sua vida e obra.
Mas essas cenas contemporâneas, onde Lanzmann faz um pouco de tudo (cicerone na visita à actual cidade de Terezin ou às sinagogas de Viena; reconstituição quase “teatral” de acontecimentos sucedidos no ghetto), também fazem uma espécie de ponte, da “memória histórica” à “memória material”, como que salientando que o Holocausto, apesar da crescente distância temporal, não é uma abstracção de livros de História mas, pelo contrário, uma presença. E nesse sentido, certos momentos, como a demorada cena numa sinagoga vienense, dão-se a ver como um testemunho de sobrevivência cultural: eis aqui, ainda, a cultura judaica que os nazis quiseram destruir. Contando uma história de morte, O Último dos Injustos celebra, no fim de contas, a sobrevivência e a vida.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt