OS DIAS DE CHOPIN: CHOPIN – A VONTADE DE AMAR. dia 30, IPJ, 21h30. Entrada livre.


Co-organização com Associação Música XXI


CHOPIN – A VONTADE DE AMAR
Jerzy Antczak, Polónia, 2002, 118’, M/12


Uma complexa teia de falsas paixões está no centro deste drama, que relata a tempestuosa relação amorosa entre o virtuoso pianista Frederic Chopin (Piotr Adamczyk) e a extravagante escritora feminista Aurore Dupin (Danuta Stenka), que se chamava a si própria George Sand.

Depois de vários anos de relações promíscuas que escandalizaram a sociedade parisiense, Sand apaixonou-se perdidamente por Chopin, já nessa altura um reconhecido artista, pensando estabilizar a sua já desfeita vida familiar. Mas apesar da intensidade dos seus sentimentos e do brilhantismo dos seus génios artísticos, o seu amor foi sempre atribulado e recheado de invejas e ódios.


"O Grande Kilapy"


Na língua angolana kimbundu, Kilapy significa “golpe”, “pedir emprestado sem pagar”. É o que o jovem Joãozinho fez nos anos 1960, mesmo nascido em berço de ouro e sendo um galanteador bon vivant. Não media esforços para desviar dinheiro do Banco Nacional de Angola e entregar aos amigos necessitados, como um Robin Hood moderno. Preso por esse motivo, posteriormente foi libertado como herói nos braços do povo, a maioria combatente da vitoriosa luta pela libertação de Angola, que culminou com a Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal.

Esse intrigante personagem é o tema de "O Grande Kilapy", filme do premiado realizador angolano Zezé Gamboa, onde a capital paraibana será palco das filmagens que começam neste domingo. Joãozinho é interpretado por Lázaro Ramos e o elenco conta com atores de vários países lusófonos, como Buda Lira, Adriana Rabello, Maria Ceiça e Antônio Pitanga do lado verde-amarelo do cast, os angolanos Pedro Hossi e Carlos Paca, o cabo-verdiano Sabri Lucaso, o moçambicano Alberto Magassela e os portugueses João Lagarto, Patrícia Bull, Filipe Crawford, Manuel Wiborg, Jorge Silva, Pedro Carraça, entre outros.

Ano passado, o diretor veio prestigiar o 4º Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (Cineport), e se encantou com a beleza de João Pessoa. Tanto que notou a semelhança geográfica e arquitetônica com a Luanda colonial, terra do protagonista. Com os devidos contatos estabelecidos durante o festival e o apoio local de órgãos municipais, estaduais e privados, a capital da Paraíba atuará por uma semana a serviço do longa, que também tem locações em Portugal e Angola.

“É cativante essa simplicidade e cumplicidade de vir aqui filmar”, analisa o ator Buda Lira. “Além da possibilidade de atuar com atores de outras culturas”, disse.

Segundo o produtor executivo Fernando Andrade, não só o elenco é internacional: técnicos europeus, angolanos e brasileiros trabalham atrás das câmeras.

Não é de hoje que Gamboa tem um pé no Brasil. Seu primeiro filme, "O Herói", teve atuações das brasileiras Maria Ceiça e Neuza Borges. A película foi a vencedora do prêmio de júri para melhor filme estrangeiro no prestigiado Festival de Sundance de 2008. E foi neste evento que Danny Glover se disponibilizou para viver o pai de Joãozinho em "O Grande Kilapy". Infelizmente o ator estadunidense, que atuou recentemente em "Ensaio sobre a Cegueira", de Fernando Meirelles, não pode encarnar o papel por problemas de agenda. Coube o personagem ao brasileiro Antônio Pitanga.

A previsão para apreciarmos as edificações coloniais da capital na lente angolana de Gamboa é para abril de 2011. 

(Reportagem de Audaci Junior para o Jornal da Paraíba, em 18/09/2010)


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As Ruínas de Manuel Mozos. Uma obra-prima de 60'. Um filme único. Sábado no Lethes às 21h30. PRESENÇA DO REALIZADOR.

Entradas - 1€ sócios, 3,5€ não-sócios.

Bilhetes à venda no Teatro das Figuras e no Teatro Lethes no dia da sessão a partir das 20h.


PRESENÇA DO REALIZADOR!
(apoio da Direcção da Cultura do Algarve)

Fragmentos de espaços e tempos, restos de épocas e locais onde apenas habitam memórias e fantasmas. Vestígios de coisas sobre as quais o tempo, os elementos, a natureza, e a própria acção humana modificaram e modificam. Com o tempo tudo deixa de ser, transformando-se eventualmente numa outra coisa. Lugares que deixaram de fazer sentido, de serem necessários, de estar na moda. Lugares esquecidos, obsoletos, inóspitos, vazios. Não interessa aqui explicar porque foram criados e existiram, nem as razões porque se abandonaram ou foram transformados. Apenas se promove uma ideia, talvez poética, sobre algo que foi e é parte da(s) história(s) deste País.


"Ruínas" começa com a implosão das torres da Torralta em Tróia. Em seguida vemos uma campa de um cemitério do Porto, ao mesmo tempo que ouvimos o relato da trágica história associada, a história de uma tal Henriqueta Souza, uma mulher que guardou a cabeça do amante como relíquia.

"Ruínas" é um documentário cujas "personagens" são uma série de edifícios e estruturas deixadas ao abandono em diversos pontos do país. É um filme contemplativo, habitado por memórias fragmentadas de um passado recente, que parecem prestes a desvanecer-se, conjuntamente com as ruínas que vemos ao longo dos 60 minutos do filme.

O documentário leva-nos até ao Bairro do Alvito, à estação da CP de Barca d'Alva, ao que resta do Sanatório de Albergaria, ou a uma pousada de Porto de Barcas, prestes a ser engolida pelo mar. Passamos também por cinemas, igrejas, complexos balneares e casas abandonadas.

Em lugar de fornecer uma contextualização, do motivo que levou ao aparecimento e o que tornou obsoleto todos estes espaços, Mozos opta por uma associação livre das suas imagens com relatos vários. Ouvimos desde livros de receitas do século XVII, a poemas de Ruy Belo e de Teixeira de Pascoaes, ou à carta de um director de uma recém-remodelada pousada, endereçada a um potencial cliente.

"Ruínas" recebeu o prémio Tobis de Melhor Longa-Metragem Portuguesa do IndieLisboa 2009. o prémio da competição internacional do festival FidMarseille e uma menção especial do júri do Filminho - Festa do Cinema Galego e Português.

Alexandre Costa, Expresso

Manuel Mozos nas ruínas das grandes esperanças
O cineasta Manuel Mozos filmou edifícios em decadência e ofereceu-lhes histórias. Nesse cruzamento de imagens e de textos fala-se, em "Ruínas", de um país mais de misérias do que de grandezas. Isto é Portugal. "De grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado". Belíssimo.

Há quanto tempo ninguém andava por aqui? Quem se lembra ainda do que aqui se passou?
Manuel Mozos tem por hábito ir anotando num caderno coisas destas: lugares, uma notícia que leu numa revista, uma referência de um texto. O que queria fazer em "Ruínas" - o filme, uma produção de O Som e a Fúria, que estreou esta semana - era cruzar essas coisas. Queria filmar os espaços vazios, sim, mas queria povoá-los, dar-lhes vozes, sons, fazê-los habitar por fantasmas que, se calhar, não eram os fantasmas desses espaços - eram outros, que obrigaram os primeiros a chegar-se para o lado e a deixá-los instalar-se também.

"Ruínas" é uma sucessão de imagens de espaços que o país deixou para trás, que esqueceu, mas que não desapareceram. Muitos permanecem, de pé, numa dignidade silenciosa, abandonados mas não vencidos. Ninguém passa por eles, mas eles ainda ali estão.

"O que me interessa, quer nos espaços quer nos outros materiais que utilizo no filme, é serem coisas que acho interessantes e que se diluem, se perdem. Achava importante dar-lhes alguma vida, tentar que não desaparecessem completamente", diz o realizador. Não se trata de um olhar nostálgico ou saudosista, sublinha. "Mas são sítios que têm um lado poético, de coisas que existiram, que fizeram parte de histórias deste país."

Inicialmente pensou usar excertos de filmes antigos, postais, ou até encontrar pessoas que pudessem contar histórias sobre aqueles sítios. Pensou, inclusivamente, em alargar o filme a outras coisas que estavam a desaparecer, "profissões, jardins, matas, falar da transformação de certas coisas, da construção de campos de golfe ou do efeito das auto-estradas nos percursos dos animais", não numa perspectiva sociológica mas apenas como uma constatação de que é assim. Mas à medida que ia filmando foi abandonando essa ideia. O filme foi-se tornando cada vez mais depurado até chegar ao essencial: espaços vazios e sons.

O que vemos e o que ouvimos
E o que faz a força de "Ruínas" é esse cruzamento, sempre ligeiramente deslocado, entre o que os nossos olhos vêem e a história que estamos a ouvir. No Restaurante Panorâmico de Monsanto, enquanto a câmara mostra uma escadaria, a janela panorâmica, os murais, uma voz lê uma ementa de um livro de receitas do século XVI - uma lista de iguarias que, para Mozos, "se conjugava com aquela monumentalidade".

Às vezes, como no caso do sanatório das Penhas da Saúde, o que ouvimos - neste caso: relatórios médicos com todos os pormenores sobre o estado de saúde dos doentes à entrada e à saída do internamento - tem a ver com a história do sítio. Outras vezes é apenas uma história que podia pertencer àquele lugar, e só por acaso não pertenceu - como a carta a perguntar quais os preços de um fim-de-semana para um grupo de amigos num hotel, lida sobre a imagem da Estalagem de São José, em Porto da Barca, junto ao mar, um sítio onde Mozos chegou a ficar alojado antes de o estabelecimento fechar e começar a resvalar para o esquecimento.

"Na recolha de textos interessava-me ir para coisas que não ficam como grande literatura, procurava mais literatura de cordel, epistolar, relatórios, ementas". Ficaram três poemas. O resto são textos como o edital "Ao povo do Barreiro sobre o lançamento de uma bomba", de 1934, ou uma carta com um pedido de empréstimo - "coisas um pouco fúteis, do dia-a-dia, que as pessoas guardam, mas que nunca ficarão como nada de importante a não ser para quem faz e para quem recebe".

Os "makavenkos" ["Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos", de Francisco de Almeida Grandella, 1919], por exemplo, aparecem mais do que uma vez, sem qualquer ligação aparente com o que estamos a ver. Mas este clube de "bon vivants", formado para os prazeres da comida, fundado em 1884 por Grandella e alguns amigos, apareceu naturalmente no processo de pesquisa de Mozos.

"Vi uma vez numa revista uma notícia sobre a construção de um sanatório que nunca tinha sido terminado no Cabeço de Montachique, e percebi que o Grandella, dos Armazéns Grandella, tinha feito parte das pessoas que se juntaram para esse projecto."

Mais tarde, descobriu numa livraria o livro de Grandella e interessou-se primeiro pelo lado da gastronomia. Só depois encontrou uma série de outras histórias. "Havia uma lenda de que haveria um cofre enterrado no Cabeço de Montachique com moedas a que eram para pagar o sanatório. O edifício é estranhíssimo, tem uma configuração de estrela, o que tem a ver com [sociedades secretas como] as maçonarias, as carbonárias." Soube que o realizador António Macedo fizera lá um filme, e quis vê-lo. Depois filmou o sanatório que nunca chegou a existir, mas as imagens acabaram por praticamente não entrar no filme, à excepção de dois planos ao cair da noite - como se o edifício não conseguisse libertar-se da maldição de nunca conseguir materializar-se.

Um país pequeno
Mas os textos dos "makavenkos" ficaram, entre a história de "Henriqueta, uma heroína do século XIX" e o livro de ciências naturais para a 4.ª Classe do Ensino Primário e Elementar do ano de 1961. Com esses textos, os espectadores são conduzidos para a história que o realizador quer contar, seguem atrás dos fantasmas que ele ali quis projectar. Mozos não tem dúvidas sobre isso. "Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado." As mesmas imagens com outro texto contariam outra história. Durante a montagem experimentou vários textos (houve um enorme trabalho de pesquisa prévia sobre os lugares, com Ana Gomes e Dulce Mendes) combinados com diferentes imagens. "A construção ia-se fazendo por experiências, justaposição de imagens com sons, até eu achar que ficava assim. Mas era um jogo que podia tornar-se infindável."

O que ficou é também uma história do país. Ou melhor, são histórias de um certo país. Alguns espaços podem ser grandiosos, mas o que ouvimos são histórias pequenas, pequenas misérias. Um país pequeno?

"Penso que não fugimos a um lado pequenino mesmo quando se tentam coisas mais majestosas ou grandiosas. Em alguns dos textos há uma espécie de impotência, um lado quase tragicómico. Como na primeira história dos 'makavenkos', de um senhor que quer muito escrever uma peça de teatro e nunca consegue, ou o rapazinho que eles adoptam e depois a mãe leva embora. Há um lado, que sinto que é um bocadinho o país, de grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado."

Não é um filme sobre o Estado Novo, mas este insiste em espreitar aqui e ali, nos textos, nas imagens - nos velhos livros de escola e mapas do Centro Educativo do Mosteiro de Santa Clara ou no enumerar de serviços disponíveis (por categorias) para os funcionários da Hidro-Eléctrica do Douro. "Apercebi-me de que, se calhar, estaria excessivamente centrado no Estado Novo, mas não era isso que queria, para mim era o século XX, porque é o que eu conheço bem, vivi nele uma parte razoável da minha vida."

Há, em todo o filme, uma única cena com pessoas. É logo no início, no cemitério do Prado do Repouso, no Porto, no dia de Finados. Antes disso, apenas uma imagem: a implosão das torres de Tróia. "Quer esse plano de Tróia (quis filmar antes da implosão mas não foi possível) quer a sequência no Prado do Repouso têm um carácter metafórico para o resto do filme. O primeiro porque é a única coisa em todo o filme que desaparece. Depois da implosão só fica pó. E essa ideia do pó conduz-nos à questão do cemitério. Se não houvesse pessoas, o filme seria lido de outro modo. Nós, pessoas, temos uma memória. Mesmo quando as coisas desaparecem ficamos ligados a elas."

É por isso que os espaços vazios estão cheios de vozes.

Alexandra Prado Coelho, Ípsilon, Público

Nem as paredes confessam
Por acaso, até confessam. Confessam muita coisa. Por isso, é que o realizador Manuel Mozos nos põe a olhar para elas durante uma hora. Não é castigo, como na escola, mas não deixa de ser um teste à perseverança. A do olhar, o nosso. E a perseverança delas, as paredes, que se mantêm de pé, apesar de inúteis, esquecidas, obsoletas...

É uma mania das paredes, muitas ficam ali, com ar de milhafre ferido na casa (como diz uma canção), apesar de não sustentarem coisa nenhuma. A não ser que se proceda à eutanásia das paredes, que foi o que aconteceu às Torres de Tróia. E é com esta implosão que Manuel Mozos abre a sua sequência de ruínas. Dos escombros ao pó.

A maior parte são ruínas de um Portugal bolorento, pequenino e muito Estado Novo... Algumas são reconhecíveis, antigos hospitais, orfanatos abandonados, o Parque Mayer, as Minas de São Domingo, a Estalagem Gado Bravo, o Restaurante Panorâmico de Monsanto... Mas também muito casa de azulejinho e couves no quintal.

O realizador também constrói o seu documentários com ruínas, excertos, pedaços... Às imagens junta fragmentos em voz off, alguém que lê uma receita, uma carta, uma relatório, actas, notícias, versinhos, análises de hematologia... Como se fossem ecos que nos devolvem estas ruínas, que apesar de despovoadas ainda conservam a memória daquilo que foram e daquilo que abrigaram. Com maus tratos, mazelas, cicatrizes, infiltrações e outras injúrias do tempo e do esquecimento - estes são os nossos interiores. Ou, de outra maneira, estes interiores também somos nós. A câmara de Mozos capta o visível e o invisível- e numa das paredes lá está, coberto de pó e encardido, mas ainda bem pregado à parede que o ampara: um retrato de Salazar.

Ana Margarida de Carvalho, Visão


Portugal revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório
"Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas" T.S. Eliot, "The Waste Land"
Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, "Xavier" (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como "Quando Troveja" (1999) e o recente descentramento de "Quatro Copas" (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" ("José Cardoso Pires - ¬Diário de Bordo" , 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico "Cinema Português?" (1997) ou o inventivo "Censura: Alguns Cortes" (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo.

Este intróito revela-se fundamental para falar de "Ruínas", na medida em que este filme-ensaio funciona na curta obra de Mozos como súmula de todo o seu universo conceptual. Se não vejamos: o filme assume-se como "biografia" subterrânea de um país condenado pelo abandono da memória, transformada em lixo cultural; faz da "collage" modernista o seu método caótico de investigação sobre um passado contraditório e algo desconexo; inscreve nos intervalos de um documentário aleatório e prospectivo o desejo de ficções miniaturais, tendentes a recompor um retrato de meio-corpo de personagens ausentes e perdidas na voragem do tempo: os habitantes anónimos daquele sanatório gigantesco que agride a paisagem da Serra da Estrela, feito esqueleto de uma doença passada, mas perpetuado pela permanência dos seus sinais físicos na paisagem; os actores fantasmáticos daquele Parque Mayer desertificado no centro de uma Lisboa transformada em lixo urbano e transtornada por um progresso sem sentidos; os turistas "mortos" da ribatejana Estalagem Gado Bravo, de que saltaram letras da insígnia identificativa, numa tétrica "natureza morta" povoada por dejectos e por restos quase fossilizados de caveiras de animais; os frescos modernistas de um restaurante em Monsanto, com panorama sobre a capital do Império perdido, como se ainda convidassem a lautos banquetes de tempos que já lá vão e não voltarão nunca mais; as viagens impossíveis de chegada à estação de Barca de Alva, desactivada e inoperante, no coração do Douro Internacional, com carruagens enferrujadas e marcas de uma impotência atávica em operar uma arqueologia da memória; os vestígios desfeitos de uma mina abandonada que sinaliza o impasse de uma produção obsoleta de riquezas miríficas.

Há riscos neste retrato de um país "arruinado" e inútil (ou inutilizado?) visto a partir da incúria de um património menor? Há e muitos, mas Mozos tem consciência do jogo da (in)glória que desenha, evitando a demagogia fácil das imagens de decadência, como se procurasse ver Portugal pelo lado das inevitáveis "derrotas". O que se toma fascinante é o modo como toma partido, deixando em aberto a perspectiva critica de cada espectador, embora conduzindo sempre o seu olhar com implacável direccionalidade. Se existe possível rima interna, subjacente a este projecto, ela faz-se com Manoel de Oliveira, como se se tratasse de um contraponto documental a "Non, ou a Vã Glória de Mandar": o país revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório tomado significativo pela acumulação geográfica de gestos sem saída. Ao Portugal dos Pequenitos que um arquitecto do antigamente construíra para glorificar uma ridícula noção do património imaginário, apõe Mozos um Portugal dos "Grandes", devastado e espectral, monstruoso porque verdadeiro.
Haverá quem conteste que esta negatividade passa por alguma pretensão poética, uma poética pobre, contraditada (mas também acentuada) pelo certeiro recurso à textualidade de Ruy Belo, por exemplo, um poeta da "habitação' e do território. Uma coisa não podemos negar: estamos perante uma corajosa frontalidade, perante nossa incapacidade de lidar com a pequena História de nós, com o terror de termos de escorar a nossa realidade entre ruínas. E regressamos, para concluir, a T. S. Eliot, citado, como na epígrafe, da tradução portuguesa de Maria Amélia Neto: "Penso que estamos na viela dos ratos/Onde os mortos perderam os seus ossos".

Mário Jorge Torres, Público

A presença de Mozos no cinema português actual tem uma função simbólica crucial: ele é uma testemunha de algo que deixou de ser o que noutro tempo foi.

Que "Ruínas" (o filme de Manuel Mozos) se estreie em conjunto com "Canção de Amor e Saúde" (o filme de João Nicolau) será um facto ditado, em primeiro lugar, por questões de conveniência logística - os dois filmes têm origem na mesma produtora, a O Som e a Fúria. Mas, depois desse facto muito concreto, a porta fica aberta para um simbolismo interessante, que mais não é do que a confirmação de outro facto: a espécie de relação privilegiada entre Mozos (que nasceu em 1959 e começou a filmar no final dos anos 80) e um conjunto de cineastas bastante mais novos do que ele, nascidos já nos anos 70. Como que um apadrinhamento e uma adopção, mútuos e simultâneos. É verdade que a maior parte desses cineastas gravita em torno da O Som e a Fúria - Mozos participou em mais do que um filme de Miguel Gomes, e montou "Tony", a estreia na realização de Bruno Lourenço, também uma produção O Som e a Fúria recentemente distribuida em sala - tornando natural que também ele tenha chegado a essa produtora ("Ruínas" é o primeiro filme de Mozos com O Som e a Fúria). Mas não só: vimo-lo, por exemplo, no "Veneno Cura" de Raquel Freire e, coincidência ou não, João Salaviza, o jovem realizador do premiado "Arena", foi actor no "...Quando Troveja" que Mozos dirigiu em 1999.
Que afinidades existem entre o cinema de uns e de outros, o que é que - no que toca aos filmes - está na origem desta aproximação, desta transformação de Manuel Mozos numa espécie de "irmão mais velho" de cineastas nascidos dez, quinze, vinte anos depois dele? Convém registar um dado curioso que talvez tenha alguma coisa a ver com isto, e que se liga aos modos (e aos tempos) da recepção dos filmes de toda este gente. A carreira de Mozos, se bem que iniciada em finais da década de 80, foi fértil em impasses e azares tremendos. Do seu primeiro filme - "Um Passo, Outro Passo e Depois", de 1989 - despareceram os materiais originais, e só se pode vê-lo hoje em transcrições video que danificam bastante as qualidades da imagem e do som. "Xavier", que teria sido o seu filme seguinte, encontrou problemas de produção que atrasaram significativamente a sua conclusão e a sua estreia - rodado em 1992, "Xavier" só chegou a uma versão "acabada" e definitiva já no século XXI. De certa maneira, a obra de Mozos só "arrancou", em termos de regularidade e visibilidade, numa data relativamente recente: 1999 e "...Quando Troveja". O que vale por dizer que, em termos de recepção, se tivesse criado um efeito de contemporaneidade entre os filmes de um e de outros, e a "descoberta" de Mozos fosse, de facto, simultânea à descoberta de Gomes, Sandro Aguilar, João Nicolau...

Fazer cinema em Portugal já é difícil mesmo sem ter em conta a indiferença do público em geral, as eventuais injustiças da crítica e a hostilidade de "opinion makers" enfatuados. O percurso de Mozos faz dele um "sobrevivente", e um exemplo vivo de obstinação perante as dificuldades, um exemplo de "resiliência" - e seguramente isto é algo que os mais jovens vêem e admiram nele. Por outro lado, pelos filmes de Manuel Mozos passa ainda a sombra de um cinema português (o dos anos 80) que viveu - visto de hoje, com inusitada felicidade - a encruzilhada entre a afirmação de uma identidade e a fidelidade "familiar" a toda aquela geração de cineastas (os do Cinema Novo, os que vieram logo a seguir) que praticamente construiu a própria noção de "cinema português". O cinema português, e a noção de "cinema português", mudaram bastante na última década e meia, mas ainda há alguma coisa que responde a esse cinema português dos anos 70 e dos anos 80. Quando se vê um filme como "Canção de Amor e Saúde" percebe-se bem que, sendo já "outra coisa", é ainda um filme que tem algo a dever (e que sabe que tem algo a dever) a João César Monteiro, por exemplo. Os "filhos" já não serão "filhos" mas reconhecem os "pais", e mesmo que seja para partir para outros territórios esse reconhecimento mais ou menos próximo, mais ou menos remoto, ainda está nos filmes.

Nessa medida a presença de Manuel Mozos no cinema português actual tem uma função simbólica crucial: ele é uma espécie de testemunha de algo que deixou de ser o que noutro tempo foi, mas que desse tempo traz ainda alguma coisa para transmitir e para depositar junto dos que vieram - dos que nasceram - depois dele. Alguém dirá que "Ruínas", obra sobre lugares abandonados e memórias adormecidas, não é justamente um filme sobre isto mesmo?

Luís Miguel Oliveira, Público

Destroços
O filme de Manuel Mozos não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser.
"Ruínas" é sobre os destroços do passado recente, muito recente, o passado de há 50 anos. Estes destroços estão mesmo ao nosso lado, mesmo à nossa vista (tanto que não os vemos), ou estão escondidos por detrás dos nossos separadores de auto-estrada, esquecidos para lá das colinas das nossas eólicas, no meio das nossas matas de eucalipto. O filme começa com uma história do século XIX, uma história excessiva, pela qual perpassa a paixão à qual o filme recusa depois ceder, servindo-nos a emoção apenas a frio. É uma história que nos coloca imediatamente fora do nosso tempo mas não muito longe do nosso tempo, não num passado histórico dignificado pela distância. Aquele é o passado em que os nossos avós morriam de amor.

Todos os destroços que o filme mostra estão num estado de delapidação e abandono completos (por isso os designo por destroços), cujo símbolo maior talvez seja a Estalagem Gado Bravo na chamada "recta do Pegões", por onde passavam todos os veraneantes que, antes de haver auto-estradas, escolhiam seguir para o Algarve pela ponte de Vila Franca. É um edifício digno que ainda está ali, cada vez mais escancarado e partido. Merece de nós um olhar de esguelha, quanto muito. Manuel Mozos foi gravar a sua destruição e o seu ruído de fundo, o impiedoso zumbido do trânsito.

As imagens e a banda sonora de "Ruínas" não são, portanto, sobre um passado de ruínas ou monumentos. Vemos antes a devastação, tão calma e distante que arrepia, do belíssimo restaurante panorâmico de Monsanto. Vemos o silêncio do Bairro de Habitação Económica do Estado Novo no Alvito, os edifícios abandonados da Hidroeléctrica do Douro, a ruína da Pousada das Penhas da Saúde. Vemos um extraordinário hotel sobre o mar, sossegados sanatórios do início do século XX. Tudo isto são restos de épocas em que os empreendimentos do Estado alimentavam centenas de famílias e lhes garantiam casa, cuidavam da paisagem e da arquitectura, deixavam uma ideia de eternidade e segurança em cada pedra assente num parapeito, em cada viga de betão lançada sobre o vazio. Mozos filmou também minas, barcaças e estações de caminho de ferro varridas pelo vento e o desmazelo, a ferrugem que restou dos sonhos de um Portugal autónomo industrialmente. E gravou para a banda sonora destroços de quando se utilizavam fórmulas de boas maneiras que não eram menos sinceras que as nossas mensagens de uma cordialidade de teclado e se escreviam cartas pondo um tempo vagaroso em cada frase, cartas que eram escritas tanto para o seu destinatário quanto para a arte de escrever cartas.

Os destroços materiais para que este filme olha fixamente, sem o pestanejar ou o exame mais empenhado dos movimentos de câmara, foram quase todos magníficas peças da arquitectura e da arte modernas e também isso intensifica a estranheza com que olhamos a sua decrepitude. São os melhores sonhos de ontem, o melhor Estado de ontem, as melhores maneiras de ontem, que "Ruínas" expõe como obsoletos e desprezados.

Os melhores sonhos de ontem
"Ruínas" não é sobre o país degradado, o país-subúrbio, o país-lixo em que se transformou todo o Portugal entre a costa e 50 km para o interior por causa do sucessivo falhanço do Estado nas sucessivas modernidades: a do iluminismo após Pombal, a do liberalismo oitocentista, a da modernização a partir da década de 1960. As imagens da Cova do Vapor e da Fonte da Telha incluídas no filme deviam, em minha opinião, ter ficado de fora na montagem final (embora sejam testemunho da obsolescência rapidíssima de uma vida que é suburbana e pobre mas também digna e aldeã, certamente melhor do que aquela que decorre nos horríveis arredores de Lisboa ou do Porto).

Ao país-subúrbio dedicou em 2006 Daniel Blaufuks o seu filme "Um pouco mais pequeno que o Indiana", uma obra à qual a "opinião" preferiu o politicamente correcto "Lisboetas" de Sérgio Tréfaut, mais conforme as canções de embalar que gostamos de nos cantar a nós próprios sobre nós próprios. Durante muito tempo, o país-subúrbio foi "descoberto", fotografado, pensado, apenas pelos arquitectos e por aqueles que com eles privavam. Hoje, vem ainda da cultura dos arquitectos - e de geógrafos como Álvaro Domingues - a consciência de que esse país não tem já remédio, e que o feio, o subúrbio, terá de constituir a base sobre a qual construir uma vida com a civilidade possível.

O filme de Manuel Mozos não se ocupa disso. Não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser... há tão pouco tempo que, nas imagens de um consultório de dentista os instrumentos estão largados sobre as mesas como se o médico tivesse ido lá fora por um momento, talvez atender o telefone. "Ruínas" não é bom título para o filme. O conceito de ruínas tem uma linhagem pesada. Imagens figurando monumentos arruinados constituíram um tema muito importante para a cultura europeia do final do Ancién Régime. Face às ruínas, filósofos e pensadores sentiam mais agudamente o Fim da História que se aproximava, que as Revoluções confirmariam, que Hegel constataria. Ora, não é o futuro que interessou Manuel Mozos e o seu filme não tem nada que ver com o Fim da História, antes com a suspensão portuguesa da história. Aliás, é neste ponto que "Ruínas" deixa de ser apenas (mais) uma meditação em imagem e palavra sobre a transitoriedade ou a distracção modernas e passa a ser também um testemunho português sobre Portugal.

Os destroços de Manuel Mozos são a história recente de Portugal, de um Portugal orgulhoso e de destino próprio, que fazemos em destroços sem dignidade nenhuma e tentamos esconder no escuro, no sítio onde desaparece a garrafa de plástico que atiramos pela janela do carro, o lugar para lá dos arbustos e do lixo onde jaz a faixa de estrada morta, sem princípio nem fim, que ainda hoje as raposas têm medo de atravessar.

Mas "Ruínas" não nos mete pelos olhos e ouvidos dentro apenas a obsolescência destes destroços. Faz-nos também pressentir a sua ensurdecedora recusa de partir em paz para dentro da noite, recusa que a opinião dominante portuguesa gostaria que o passado tivesse o bom gosto de abdicar. Em Portugal é preciso deixar que à memória colectiva mais recente caia a tinta, apodreça o tecto, enferrujem as dobradiças e os carris, corroa a erva daninha, se partam com o vento as vidraças. Portugal não quer recordar nem quer ver aquilo que foi ontem, ainda ontem, há bocadinho. Quando aceita fazê-lo, esconde a vergonha e o remorso debaixo de estatísticas (que mentem e triunfam porque simplificam tudo). Há no filme um plano enigmático: vemos nele a tranquilidade do mar embalado pela praia. A vista perde-se-nos no horizonte aberto. Que faz aqui o mar, entre madeiras podres, estuques caídos, carris ferrugentos.

Descansa-nos os olhos? Aponta-nos o caminho secular da fuga? Gosto de pensar que está ali a assegurar-nos de que tudo será um dia limpo pelo sal e pelo sol e que os crânios dos animais de um passado morto ainda ontem, que surgem aqui e ali nas imagens, serão transformados nas formas reverberantes de brancura que encontramos por vezes na areia e conseguimos tomar por vestígios fósseis de um tempo imemorial.

Paulo Varela Gomes – Historiador, Público



ENTREVISTA
Cineasta culmina um ano de grande intensidade com a estreia de "Ruínas", mais um documentário português, premiado em França, a chegar às salas de cinema.

Com uma longa e reconhecida carreira na montagem, Manuel Mozos tem-se virado com cada vez mais frequência para a realização, revelando, assim, um universo muito pessoal, que vai da ficção ao documentário. Depois da estreia do relato ficcional de "4 Copas", e do sucesso com o documentário sobre a fadista Aldina Duarte, aí está "Ruínas", um olhar sobre o que ficou de algumas monumentais obras arquitectónicas, "habitadas" pelos sons e memórias do passado. Um filme de notável sensibilidade, vencedor do prémio de Melhor Filme Português do Indie Lisboa e do Prémio Georges de Beauregard, no prestigiado Festival de Marselha, em França.

De onde surgiu a ideia de filmar as "ruínas" de Portugal?
Ao longo do tempo, de notas que fui tomando sobre diversas coisas que me interessaram, até por motivos diferentes, apercebi-me de que poderia ter material significativo para elaborar um projecto sobre o esquecimento/apagamento e a resistência a isso.

O que lhe disseram essas ruínas deste país?
Imensas coisas. Através da pesquisa, fui descobrindo muito mais, de que nem sequer suspeitava e, depois, estando nos locais durante as filmagens, outras portas se abriam, que foram, ainda, multiplicadas pelas possibilidades na montagem da imagem e do som.

Qual foi o critério de inclusão dos espaços, partindo do princípio de que houve outros que ficaram de fora?
O critério foi praticamente pessoal, com a colaboração do Telmo Churro, montador do filme. Gostaria de ter filmado muitos outros espaços. E na montagem prescindimos doutros. O que ficou no filme foi aquilo que julgámos melhor para o filme. Claro que podia ser outro, mas eu quis que fosse assim e foram aqueles os espaços que ficaram.

Como se partiu para a escolha dos textos que acompanham as imagens?
Havia textos que estavam pensados antes, outros foram surgindo durante o processo. Muitos foram abandonados. E a decisão dessa escolha foi partilhada com a Elsa Ferreira, montadora de som, e com o Telmo, que foram fantásticos no seu trabalho e dedicação. Tal como os músicos, que, pacientemente, foram compondo acompanhando as diferentes fases e versões de montagem.

O filme faz lembrar o "Son nom de Venise dans Calcutá desert", o contraponto ao "India song", da Marguerite Duras. Essa paternidade é assumida?
Decerto me lisonjearia. Mas, infelizmente, reconheço que nunca vi esse filme da Marguerite Duras.

Este filme segue-se a outros, que tiveram uma boa recepção no último ano, como o "4 Copas" e o "Aldina Duarte". Para onde vai agora o realizador Manuel Mozos?
Para onde vou, não sei, como diria certo grande cantor. Terminei um documentário sobre a Tobis, aguardo a edição DVD do "4 Copas", começo a trabalhar num novo projecto de ficção e continuo o meu trabalho no ANIM.

Ficção ou documentário, uma definição que no limite o próprio "Ruínas" desafia. É também nessa fronteira que se sente melhor a trabalhar?
Sim, gosto desse desafio. As ficções documentarão e os documentários ficcionarão. Mas, na ficção, gosto, sobretudo, de trabalhar com actores e criarmos personagens. No documentário, gosto da imprevisibilidade e das possibilidades da montagem.

Há alguma "ruína" do seu passado para onde lhe custe ainda olhar, como é, de certa forma, doloroso olhar para as "ruínas" do seu filme?
Talvez haja algumas, mas julgo viver hoje mais apaziguado com isso. Como exemplo, um hotel abandonado e perdido entre pinhais nas margens da confluência do Sertã com o Zêzere, que, estando na origem do "Ruínas", nem cheguei a filmar. Ou a probabilidade de para sempre se ter perdido o negativo do meu primeiro filme.

Quando mais um documentário chega, felizmente, aos cinemas, o que lhe apeteceria dizer para seduzir os espectadores a entrarem na sala?
Não sou nada bom nessa tarefa de sedução. Claro que fico contente por estrear um filme. Mais ainda por ser um documentário e saber como isso é raro. Ainda acrescido de ser um filme português e mais ainda porque na mesma semana estão dois a ser exibidos em sala. Além de se realizar o Panorama, 4ª Mostra do documentário português. Parece um Mundo maravilhoso… Mas, por trás, a realidade… Bom, coragem e esperança - talvez fosse a frase indicada para dizer.

João Antunes, Jornal de Notícias



Realização e Argumento: Manuel Mozos
Imagem: Luís Miguel Correia, João Nicolau, Sandro Aguilar
Som: António Pedro Fgueiredo, Armanda Carvalho
Montagem: Telmo Churro
Montagem de som e mistura: Elsa Ferreira
Música: anakedlunch
Pesquisa: Dulce Mendes, Ana Gomes
Produção: João Gusmão, Ana Gomes, Cristina Almeida
Produtores: Luís Urbano, Sandro Aguilar
Origem: Portugal
Ano: 2009
Duração: 60’




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Haja uma tourada em que a luta é justa e não se maltrata o touro: Sena Nunes e a Capeia Raiana que ele nos faz conhecer. 6ªf, Lethes, 21h30.

Entradas - 1€ sócios, 3,5€ não-sócios.

Bilhetes à venda no Teatro das Figuras e no Teatro Lethes no dia da sessão a partir das 20h.


Há Tourada na Aldeia, Pedro Sena Nunes, 75'

Uma vez por ano, em Agosto, as aldeias ganham vida e rejuvenescem. É a altura em que se realiza a tourada tradicional Capeia Arraiana, um acto de bravura e emancipação, em que trinta homens enfrentam o touro com um forcão – gigantesca forquilha triangular de madeira de carvalho, erguida para receber as violentas marradas do touro bravo e fazer desta tourada um espectáculo único no mundo. São nove as aldeias fronteiriças da Raia do Sabugal que todos os anos rejuvenescem com as capeias, competindo entre si em busca da “Melhor Capeia do Ano”. Os touros são trazidos normalmente de Espanha para serem corridos no redondel, perante o olhar atento e vibrante da multidão sentada nas bancadas improvisadas. É a capeia que reúne de novo a aldeia.

Autor de dezenas de documentários e algumas curtas-metragens de ficção, Pedro Sena Nunes é um dos realizadores portugueses contemporâneos que melhor tem conseguido captar as memórias da nossa tradição, sobretudo a do mundo rural. Em Há Tourada na Aldeia, faz um retrato atento de uma festa popular, de raízes ancestrais, no concelho do Sabugal, na zona Raiana. É um retrato muito completo que, simultaneamente, parte em busca das origens da tradição, e dá a conhecer os complexos preparativos da grande Tourada, sendo que o acontecimento em si acaba por se tornar um simples pormenor. Sena Nunes interessa-se mais por mostrar as gentes e as emoções, pouco se importando com o risco de se tornar politicamente incorrecto, em tempos em que a tourada talvez esteja em perigo de extinção. Mas mesmo os movimentos contrários hão-de conseguir ver mais além.
in Visão

Pedro Sena Nunes anda a olhar para o seu país há mais de 20 anos.

Num ambicioso projecto, que este nosso viajante designou por Microcosmos*, pretende fixar a essência de um povo. Começou em Trás-os-Montes e já percorreu seis regiões, onde cada filme se foi transformando numa experiencia única. Talvez A morte do cinema, filme de 2003 rodado na cidade de Aveiro (Beira Litoral), seja mesmo o paradigma dessa singularidade.

Há tourada na aldeia é o sexto filme dessa viagem.

Com uma configuração documental, por vezes também poética, este filme conta a história dos homens e mulheres que preparam uma festa iniciática, ou se quiserem uma certa forma de ritual, conhecida por “Capeia Arraiana”, que radica num confronto ancestral - Uns quantos homens, um artefacto enigmático (o forcão) e um touro. Tudo aparentemente muito simples.
Ao longo do filme vamos sendo guiados por diferentes figuras que, numa visão dramática, parecem representar a heterogeneidade de um povo obstinado. Apesar de tudo, a partir de um determinado momento desfaz-se o perigo e passamos a confiar naqueles homens tal como eles também confiam uns nos outros.

Numa visão pessoal, através de uma narrativa muito contida com apenas alguns momentos de expansão, mergulhamos em lugares onde a aparente banalidade nos revela a complexidade cultural de um espaço que não se experimenta noutras circunstâncias.

Mas mais que tudo, Há tourada na aldeia, é um filme sobre o “sentido de pertença”. Também pode ser uma espécie de elegia a um fim inevitável. Seja como for, a generosidade do olhar do seu autor, a sua inteligência e persistência, oferecem-nos uma delicada composição de uma realidade também comovente.
Carlos Fernandes

Há Tourada na Aldeia, é um filme que personifica esta prática como meio social, cultural e ideológico. Mas, centra o assunto na Capeia Arraiana que é uma prática de toureio única no mundo, onde vários homens erguem o forcão com o qual enfrentam os touros trazidos muitas vezes de Espanha às escondidas.

Há Tourada na Aldeia é um filme onde as pessoas saem à rua, vestem as suas melhores roupas, os filhos da terra voltam e num misticismo renasce a união de uma aldeia de uma tradição comum, que os alimenta a todos a alma.

Conscientes que desenvolvem uma tourada única no mundo, a Capeia Arraina, com uma tradição com raízes ancestrais, esta é aguardada ansiosamente pelos seus habitantes.

Mas mais que um espectáculo é uma forma de ser, de estar, de viver. Há Tourada na Aldeia, é apenas um pequeno gesto numa cultura que se afirma de massas, no presente e no futuro.


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3 filmes de 5 jovens documentaristas - a qualidade continua! Teatro Lethes, 5ªf, 21h30.

Entradas - 1€ sócios, 3,5€ não-sócios, passe para os 4 dias 12€

Bilhetes à venda no Teatro das Figuras e no Teatro Lethes no dia da sessão a partir das 20h.

CORDÃO VERDE, Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres, 33’
RETRATO DE INVERNO DE UMA PAISAGEM ARDIDA, Inês Sapeta Dias, 40’
A CASA QUE EU QUERO, Joana Frazão e Raquel Marques, 65’


CORDÃO VERDE
presença dos realizadores!
(com o apoio da Direcção da Cultura do Algarve)

O cordão contínuo de relevos suaves mas acidentados, desde o litoral ocidental português, até ao Guadiana, entre as serras de Odemira, Monchique e Caldeirão, é o lugar de encontro e equilíbrio entre o homem e uma paisagem cultural.
Neste território tão rico em beleza natural e recursos raros, o modo de vida tradicional das comunidades está em harmonia com os valores ambientais e com a biodiversidade.
Este filme é um poema em imagens e sons em torno do Homem e da Natureza
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“Cordão Verde” foi seleccionado em:
Locarno International Film Festival, 5 - 15 de Agosto, 2009, na secção “Ici et Ailleurs”.
Toronto International Film Festival, 10 - 19 de Setembro, 2009, no programa Wavelengths.
Vienna International Film Festival, 22 de Outubro - 4 de Novembro, 2009
BAFICI - Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independente, Abril, 7 - 18, 2010


Título Original: Cordão Verde
Realização, Fotografia, Som, Montagem: Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres
Produção: Rossana Torres
Ano de Produção: 2009
País: Portugal
Formato original: Mini DV
Formato de exibição: Betacam Digital
Aspect ratio: 4/3
Som: Stereo
Linguagem: Portuguesa
Subtítulos: Inglês, Francês
Duração: 33’


RETRATO DE INVERNO DE UMA PAISAGEM ARDIDA

Fixar o presente de uma paisagem destruída pelo fogo. Procurar o que ficou (as cores, as texturas, os silêncios) nos escombros e restos. Vontade de olhar de frente o corpo morto da árvore que ardeu, e perceber o seu lugar na terra onde ainda resta. Observação da passagem do tempo sobre a árvore queimada, e percepção da sua imobilidade.


O filme de estreia de Inês Sapeta Dias é, como o seu título explicita, o retrato de uma paisagem em estação invernosa e foi filmado em 16mm em terrenos ardidos nos concelhos portugueses de Abrantes, Sardoal, Mação, Oleiros, Pampilhosa da Serra e Proença a Nova. Com uma banda sonora exclusivamente ambiente e musical, e imagens muitas vezes varridas pela chuva, "Retrato de Inverno de Uma Paisagem Ardida" reflecte uma "observação da passagem do tempo sobre a árvore queimada, e percepção da sua imobilidade".
Cinemateca Portuguesa

O título do filme remete-nos para a pintura, mas de uma forma inabitual – não é costume esta proximidade entre as palavras “retrato” e “paisagem. Enquanto um retrato mostra algo que está perto e se destaca do resto, a paisagem é um olhar prolongado no espaço distante, quase distraído. E no entanto é essa simultaneidade de planos que o filme de Inês Sapeta Dias nos oferece: uma sucessão de árvores carbonizadas, terra escura, cinzas, folhas, montes, um pedaço de céu, uma estrada, um riacho, nuvens, ramos, raízes, pedras, a neblina avançando, algumas ervas verdes – o retorno à intimidade de uma paisagem longínqua esquecida. Abrantes, Sardoal, Mação, Oleiros (Mougeiras-de-Baixo, Estreito, Isna, Madeirã), Pampilhosa-da-Serra, Proença-a-Nova. É Inverno, a chuva inicia o processo inverso ao fogo, o ciclo primordial e eterno, indiferente a tudo. Não se vêem animais, apenas uma ou duas casas escondidas por trás da vegetação, um homem que derruba árvores com uma serra eléctrica e, quase no fim, algumas turbinas eólicas. Terrenos que arderam há um mês, cinco meses, um ano, dois anos, cinco anos.
Os troncos queimados e os ramos retorcidos parecem esculturas de ferro que resistiram à destruição. Depois, lentamente, à tristeza do incêndio sobrepõe-se outra coisa mais difícil de definir: a sensação de uma presença imanente. E essa é, creio, a grandeza de retrato de inverno de uma paisagem ardida; o filme capta, como vai sendo cada vez mais raro no cinema, o estado hipnótico que se descobre quando paramos durante muito tempo, a olhar, apenas a olhar o movimento constante da natureza, a força e a delicadeza do vento e da chuva nas árvores. E também a suspeita de um mistério maior do que nós, o encontro assombroso dos extremos. Dir-se-ia que estamos no princípio do mundo e que todas as coisas da natureza seguem um caminho preciso e vibrante: a união dos elementos, a germinação. O filme transforma-se então em documento precioso e sensível – é assim a respiração da terra.


Realização Argumento e Fotografia : Inês Sapeta Dias
Montagem: Luísa Homem
Música: David Maranha
Som: David Maranha
Produção: Patrícia Pimentel, Raiva
Origem: Portugal
Ano: 2008
Duração: 40’


A CASA QUE EU QUERO

É Verão, mês de Agosto em Vascões, no Norte de Portugal. Muitas das casas de emigrantes, vazias durante o resto do ano, voltam a estar habitadas. Visitamos seis delas, guiadas pelas histórias daqueles que as construíram.
Um filme que entra, tal como todos nós, com um olhar curioso, pela casa dos outros adentro, pedindo aos seus proprietários que lhes apresentem as suas casas. A partir deste dispositivo claro vamos conhecendo histórias da emigração portuguesa, histórias de vontades, sucessos ou sonhos desfeitos.



ENCONTRO IMEDIÁTICO COM JOANA FRAZÃO
A ideia nasceu numa viagem pelo País, com a amiga Raquel Marques, também ela licenciada em Cinema pela Universidade Nova. Pela janela desfilavam rotundas e casas de emigrantes, enormes, muitas vezes insólitas, desafiadoras dos planos urbanísticos e das convenções regionais. E resolveram realizar um documentário, mesmo assim, on the road, em que cada casa avistada determinasse uma paragem. E fazer aquilo que, no fundo, todos os viajantes gostariam e nunca tiveram coragem: bater à porta e espreitar lá para dentro. Por falta de apoios e facilidades logísticas, Joana e Raquel circunscreveram o documentário a Covões, aldeia "que nem café tem, foi fechado pela ASAE", em Paredes de Coura. Assim nasceu o documentário A Casa Que Eu Quero (antestreado na Cinemateca), e que mostra o lado de lá destas paredes de berma de estrada. As realizadoras partiram para este projecto com alguns estereótipos. Assim que transpunham as portas das maisons, muitos deles anularam-se. Não é, afirma Raquel, também tradutora nos Artistas Unidos, um documentário voyeurista. "As pessoas abriam-nos as portas e sentiam orgulho em mostrar-nos as casas, mas foi um filme motivado pela curiosidade, isso sim. Digamos que se tratou de espreitar de uma forma delicada." Estas casas já não têm azulejos nem se parecem com chalets suíços, estão muito mais padronizadas, mas também têm algo de exibicionismo: as pessoas querem mostrar que lhes correu bem a vida lá fora, por isso há tantas varandas, jardins e sobredimensão. Lá dentro, as cineastas descobriram uma espécie de mundo alternativo, são casas normalmente fechadas o ano inteiro, só ocupadas durante o Verão, quando os emigrantes chegam de férias. Há uma sensação estranha, de vácuo, de despertença. Mas, no fundo, também exprimem uma grande necessidade de "um sítio onde possam voltar". Nas paredes das casas, as marcas de raízes já desapegadas, vidas de muito trabalho, um velho vestido de noiva, a sensação de se ser estrangeiro em duas terras. Enfim, diz Joana, o documentário não pretende ser um tratado sociológico, é apenas um filme honesto, que tem as marcas dos poucos meios com que foi feito. O objectivo de Joana e Raquel é continuarem a realizar documentários. O próximo já está a ser pensado. Será sobre casamentos, o dia da boda. No fundo, um desdobramento do tema das casas de emigrantes. Algo em que muito se investe e que também serve para mostrar.
In Visão

As estórias da emigração, com testemunhos recolhidos em seis 'maisons' da pequena aldeia de Vascões, em Paredes de Coura, fazem o enredo do filme 'A casa que eu quero', cuja antestreia decorre hoje na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa.
'O filme é o resultado das visitas que fizemos a seis casas de emigrantes dessa aldeia, guiadas pelos próprios proprietários. À medida que nos iam mostrando cada compartimento, iam desfiando memórias do tempo passado no estrangeiro', explicou à Lusa, uma das realizadoras.
Joana Frazão, que assina a realização conjuntamente com Raquel Marques, acrescentou que aquelas casas 'são teto de muitas estórias', ligadas à emigração, como, por exemplo, a do marido que foi 'a salto' para França.
Com 65 minutos de duração, o documentário mostra a casa fechada onde se pode brincar, as janelas que se abrem, a casa de pedra, um vestido de noiva, as plantas de que ninguém cuida durante meses, cabras, porcos e cavalos, os dias de chuva ou a piscina sem ser usada.
Fala ainda da casa na árvore por construir, dos frontões redondos que não deixaram fazer, dos colchões de pé para proteger da humidade, da casa construída há 30 e tal anos e da que ainda não está acabada.
'Os proprietários abrem-nos as portas da sua casa e, ao mesmo tempo, abrem-nos também o seu livro de memórias', refere Joana Frazão.
As realizadoras do documentário frisam que não se trata propriamente de um estudo do habitat introduzido por emigrantes numa aldeia do Alto Minho, mas antes, a pretexto da amostragem das casas, uma reflexão sobre o fenómeno da emigração.
'Faz todo o sentido pegar no tema da emigração pelas casas, porque, na realidade, a construção de uma habitação própria é, quase sempre, o primeiro motivo que levava e continua a levar os portugueses a ir trabalhar para o estrangeiro', referiu Joana Frazão.
In Correio do Minho

Realização: Joana Frazão, Raquel Marques
Fotografia: Joana Frazão e Raquel Marques
Som: Nuno Barbosa
Montagem: Luísa Homem
Origem: Portugal
Ano: 2009
Duração: 65’






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11 semanas de exibição em Lisboa, finalmente em Faro!! A ILHA DA COVA DE MOURA de Rui Simões. 4ªf, 21h30, Teatro Lethes.

Entradas - 1€ sócios, 3,5€ não-sócios, passe para os 4 dias 12€

Bilhetes à venda no Teatro das Figuras e no Teatro Lethes no dia da sessão a partir das 20h.


Cova da Moura é sinónimo de problema, de violência, de degradação social. No ano de 2005, dois acontecimentos tornaram este bairro dos arredores de Lisboa num caso de interesse mediático: o homicídio de um polícia que patrulhava as ruas locais, em Março, e o célebre arrastão que nunca existiu, no dia 10 de Junho, cuja autoria foi desde logo imputada a jovens daquele lugar. O bairro da Cova da Moura tornou-se tema de debate público, passando de bairro problemático a lugar de interesse sociológico. Descobriu-se então a verdadeira Cova da Moura, habitada por uma maioria cabo-verdiana, que ali repete os modos e costumes das ilhas de que são oriundos como forma de combater o desenraizamento e estigma social. Vislumbrou-se um bairro em luta contra a violência e o tráfico de droga nele implantados e contra o preconceito sociocultural que os rodeia. Uma ilha de Cabo Verde naufragada em terras portuguesas, a braços com o pesado conceito de exclusão. ILHA DA COVA DA MOURA segue o quotidiano deste bairro, descobrindo nele reflexos de Cabo Verde e procurando os modos como a exclusão social se combate ou perpetua nas vidas dos seus moradores.


PRÉMIOS
Prémio Amnistia Internacional - Menção Honrosa no Festival IndieLisboa'10


África aqui tão perto, e tão pouco mar para atravessar. "A Cova tem coisas que só nos enriquecem como país e dá uma lição de vida comunitária a muitos outros bairros lisboetas", diz o realizador. Mais uma vez, depois de As Ruas da Amargura, Rui Simões pega num tema que parece estafado, para mostrar que é sempre possível romper a superficialidade da cartola e tirar de lá mais alguns coelhos. No famoso guetto da amadora encontrou um bairro que dá uma "lição de vida comunitária" a todo o país. O realizador não se interessa por política, não pertence a nenhum partido, "mas sou um militante de causas". E percebeu que ter ali "África a um minuto de Lisboa" é um património que não pode ser destruído, "e que só nos enriquece". Não se interessou pelo tráfico, nem tanto pelos aspectos mais exóticos da senhora a moer o milho no meio da rua. Interessou-lhe esta ideia de "ver um Cabo Verde reconstruído à imagem do seu próprio país", onde se vive na rua, se convive, se fazem festa onde cabe sempre mais um, onde uma série de serviços comunitários são humanos e funcionais. "Características e atitudes e gestos, que são mais riqueza do que pobreza". Sem ajuda de voz off e sem recorrer a música de apoio, para além daquela que se escuta no bairro, Rui Simões passou três anos a pesquisar e a conhecer as pessoas, mas classifica-o como um dos filmes mais difíceis de fazer da sua carreira. É complicado retratar toda uma população, transmitir o ambiente, toda aquela energia das festas que chegavam a durar dez horas, e depois condensar tudo numa hora e meia de filme. Na Ilha... (estreia-se em sala a 13 de Maio) a câmara de Rui Simões entra literalmente no panelão da cachupa. "Gostava que as pessoas no cinema conseguissem cheirar aquele prato".
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Ana Margarida de Carvalho, Visão


A independência de Cabo Verde aconteceu em 1975, o que não agradou até a alguns dos portugueses progressistas de então. Quando foi descoberto em 1460 por Diogo Gomes, o arquipélago não apresentava sinais de ter sido habitado por humanos. Foi ocupado sem conquistas. Enquanto ponto de intersecção entre as rotas marítimas da Europa, de África e mesmo da América do Sul, desenvolveu uma identidade própria ao longo dos séculos – que, enfim, fez nascer a vontade de um Estado soberano. Mas os cabo-verdianos pregaram uma partida a Portugal e erigiram, à revelia das autoridades, um colonato nos arredores de Lisboa. Chama-se Cova da Moura.

O lugar, no concelho da Amadora, era um terreno agrícola, para trigo, com uma vacaria na extremidade. O morro começou a transformar-se num bairro pouco depois da Revolução de Abril, quando cabo-verdianos e retornados levantaram as primeiras casas, clandestinas. Delimitado por quatro estradas, a Cova da Moura, no centro, é vista como uma ilha. Todavia, não é apenas o traçado do edificado que faz com que assim seja. O bairro é um pedaço de terra isolado porque cultiva e preserva um quotidiano que já não é dos tempos que correm na Grande Lisboa: os vizinhos conhecem-se, tratam uns dos outros, encontram-se, cozinham e dançam na rua, apesar de todas as contrariedades e abundantes estigmas. Rui Simões quis mostrar isso mesmo com este documentário.

Ilha da Cova da Moura partilha um olhar muito afeiçoado do realizador sobre este lugar com seis mil pessoas dentro, raízes profundíssimas – o próprio o nota. O gueto, como é considerado pejorativamente por muitos, de forma ligeira e à base das piores notícias, fica na borda do filme. Mal se aborda a criminalidade, o medo crescente. Mas quando deles se fala é para os recusar: a certa altura, um sénior da Cova da Moura, que não poupa nos adjectivos de ataque e desprezo pelos autores dessa instabilidade, assegura que a fama de bairro problemático é causada por gente de passagem, que nenhum deles ali tem casa. É da entreajuda, de um espírito comunitário muito próprio e – será certo escrevê-lo – de um pedaço de África na Europa que trata o filme, apostando no que de bom ali se passa, no que não deve ser destruído, no que aquelas pessoas ganham por ali viveram, numa certa qualidade de vida que se quer preservar.

Rui Simões é um homem de causas, já o sabíamos (ver, por exemplo, o recente Ruas da Amargura). O móbil deste documentário é responder à vontade política que aponta para a destruição do bairro, à luz do argumento da sua construção ilegal. Os moradores estão contra, ergueram aquelas casas com as próprias mãos, demorou-lhes anos: no final do dia, na volta do emprego, punham mãos à obra – homens, mulheres e crianças –, cada um ao comando da construção da sua própria casa com a ajuda preciosa dos vizinhos. A comunidade cresceu e cimentou-se assim. O resultado vai mesmo ser analisado na Trienal de Arquitectura. O contributo de Ilha da Cova da Moura é, nesse sentido, relevante. É, ele próprio, uma parte significativa do estudo que deve preceder qualquer decisão fatal sobre aquele espaço. E consegue, de facto, estabelecer laços e criar empatia com o público, chamando-o para o seu lado da discussão.

O documentário (produzido pela Real Ficção) não é manipulador, como poderia definir um julgamento precipitado. O que faz é criar algum equilíbrio numa balança onde, de um dos lados, o peso dos preconceitos é considerável. É certo que Rui Simões não é o primeiro a mostrar esta humanidade do bairro – que, de resto, não é um dos mais problemáticos nos arredores da capital –, mas fá-lo com uma perspectiva enternecida que lhe dá frescura. A condescendência ficou fora. O cineasta não pinta um quadro de flores e estrelinhas e cores vivazes. Os anos de miséria estão lá, como pano de fundo. A agressividade latente e os confrontos inevitáveis com grupos de bairros vizinhos, ou outros, também se reconhecem. Mas o resultado final confere à Cova da Moura uma aura de festa que a retira da condição de gueto e a abre ao resto da urbe, com uma consciência notável de tudo o que os separa.
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in rascunho.iol


A COVA DA MOURA, no concelho da Amadora, é um bairro clandestino, criado nos anos sequentes a 1974 e, sobretudo, erguido por pessoas que vieram dos territórios coloniais (emigrantes e retornados), sendo hoje a maioria da sua população de origem cabo-verdiana. O nome tomou-se notório, nos últimos anos, como zona minada pelo tráfico de droga e pela violência, com intervenções policiais de grande aparato e mediatização.

Rui Simões resolveu remar contra a corrente. "Ilha da Cova da Moura” é o resultado de uma atitude - a de mostrar uma realidade mais funda, mais próxima. Onde a televisão olha e vê delinquentes, marginais de pele escura - e destila o medo e o afastamento -, este documentário vê pessoas, histórias de vida, tradições, práticas comunitárias de interajuda - e acerca-nos. E é surpreendente a facilidade com que a câmara penetra no bairro e com que as pessoas falam, a destreza com que ela se plasma no interior da vida, como se o olhar de Rui Simões fizesse parte da realidade e não fosse algo quê, de fora, para ali fosse vasculhar.

Claro que uma atenção mais crítica poderá inquirir se os sinais da delinquência não estavam lá ou se a câmara desviou o olhar. Tomemos o gesto por uma postura de ser solidário para com uma população de gueto.

Quanto à violência, está lá, sim - na pobreza, na exclusão e, sobretudo, numa frase pavorosa que uma jovem ali nascida diz, com um sorriso: "Português preto não existe." Um descomunal muro de betão - pudera que "Ilha da Cova da Moura" o ajudasse a demolir.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


ENTREVISTA
Por ocasião da exibição no Indie e da estreia nas salas a 13 de Maio da “Ilha da Cova da Moura”, um documentário sobre este bairro da periferia lisboeta, falámos com Rui Simões, o realizador. Nascido em 1944, em Lisboa, é uma pessoa politicamente activa, tendo participado no Maio de 68 e sendo um dos fundadores da secção portuguesa da Amnistia Portuguesa. Nas artes, tem experiência em teatro, instalações vídeo e realizou em directo os espectáculos efectuados na Praça Sony durante a Expo 98. Com vários filmes já realizados, essencialmente documentários, o "Ilha da Cova da Moura" centra-se no dia-a-dia deste bairro e nas suas raízes cabo verdianas.

O filme ficou em segundo lugar da escolha do público, que foram 5 documentários, 4 portugueses.
Acho que havia excelentes trabalhos, excelentes documentários e acho que cada vez há mais bons documentários em Portugal. O documentário nunca deixou de existir no mundo com grande qualidade, em Portugal há falta de investimento no documentário.

Fazer um documentário em Portugal, é muito difícil?
São verbas muito pequenas e portanto nós não podemos elevar o patamar de um documentário ao nível de documentários que a gente vê no estrangeiro, que são produções como deve de ser.

Eu acho que a qualidade é boa…
Sim, porque há quem lute por ela.

A nível de fotografia, imagem e mesmo som, que é considerado o ponto fraco do cinema português, nos documentários, está muito boa.
Sim, não me posso queixar porque sempre tive som bom nos meus filmes. Há 35 anos tenho som bom. Nunca tive problemas, nem nos meus primeiros filmes: o “Bom Povo Português” tem um som excelente. O filme passou no mundo inteiro e nunca tive problemas nenhuns de áudio. E continuo a não ter. Agora, no geral, é verdade que há uma evolução grande. Porque a tecnologia evoluiu muito, também há mais técnicos, mais formação, as coisas sentem-se. Não se pode estar sempre a queixar que vieram para cá os fundos europeus e a gente não fez nada. Fez. Houve uma evolução, apesar de tudo. Há muitas escolas de técnicos novos. Acho que há uma evolução grande. Mas no documentário é onde isso é mais visível, na verdade.
Esse problema, eu sei que se põe. Sei porque também sou espectador, portanto sei que se põe. Agora, no documentário acho que há um salto muito grande em termos de linguagem, em termos de abordagem, em termos de capacidade de apresentar um trabalho coeso. Acho que há uma grande evolução no cinema português. Porque há jovens a entrar e com poucos meios podem mostrar o que valem e isso também ajuda a que a concorrência seja maior, porque a ficção está muito na mão das mesmas pessoas, portanto, o cinema português… O que é o cinema português? Eu tenho as minhas dúvidas, sou um bocadinho radical nisso mas, a verdade é que está fechado num grupo de cineastas que são sempre os mesmos. Não quer dizer que não haja outros. A prova é que, quando se abre uma oportunidadezinha a um jovem, ele galga logo e sobe. Mas acho que no documentário, como são orçamentos pequeninos e baixos, há mais diversidade, há mais gente a fazer. Até se consegue fazer com muito pouco dinheiro porque basta pegar numa câmara e uma pessoa vai para a frente e isso parecendo que não inova.

O filme que ganhou o Doclisboa era um documentário chinês essencialmente gravado com uma câmara de mão.
No Doc há filmes mais ousados. Aqui no indie também ganhou um filme feito de câmara à mão, portanto, daqueles irmãos americanos. Ganhou o grande prémio do festival. Câmara rápida, à mão, os actores são perseguidos pela câmara quase, portanto, essa linguagem, no indie e nos festivais passa bem, não é? Nos cinemas já é mais difícil. O público tem dificuldade em aceitar uma câmara muito rápida, imagens desfocados e tal.

A nível da produção da “Ilha da Cova da Moura”, como iniciou o projecto? Pelo que vi o filme, percebi que houve contactos iniciais com o “Moinho” (Moinho da Juventude, Associação presente no bairro)
Não. Durante três anos visitei a Cova da Moura regularmente. Aproximei-me quando decidi que queria fazer o filme.

Mas a nível informal?
Não. Já a pensar faço um filme, não faço um filme? Quando decidi que ia fazer um filme, comecei a visitar e a frequentar e a estudar para fazer o meu projecto. Porque tinha que arranjar dinheiro. Quando decido que faço um filme, não tenho dinheiro, não tenho nada. Tenho uma ideia. Portanto, a partir do momento em que fui à Cova, a primeira vez, que nem sequer fui por intermédio do Moinho, fui por intermédio de uma amiga minha, cabo-verdiana, que me levou lá, porque eu estava curioso, interessado. No primeiro encontro nem conheci o Moinho. Foi mais tarde, no segundo encontro, que conheci o Moinho. Gostei muito. Já conhecia a Liv, não me lembrava que a conhecia, mas tinha-a conhecido há 30 anos atrás. Ela tinha estado em minha casa, e isso proporcionou também uma relação de proximidade… e o Eduardo, que é o marido da Liv, uma pessoa muito interessante e também um velho militante dos tempos de 25 de Abril. Portanto, de certa maneira há um ideal ali que é transportado para aquele bairro e há uma interligação com a comunidade daquela associação que eu nunca tinha visto, é um pouco aquilo que todos nós sonhamos, de certa maneira, naquele período revolucionário, que é, de facto, trazer alguma organização aos bairros, às pessoas, às comissões de moradores…

Ela aparece no filme?
Aparece no filme, a explicar um pouco o Moinho. Na génese, está ela. Ela é uma líder daquele projecto, embora ela não queira aparecer assim. É uma pessoa muito discreta e muito humilde, mas a verdade é que ela já foi condecorada pelo Jorge Sampaio, portanto é considerada, de facto, uma grande figura, não só naquele bairro, como mundialmente. O trabalho que faz é reconhecido internacionalmente. Quando a conheci melhor e comecei a falar com ela, gostei muito da atitude, porque acho que é isso que se deve faze não é impor, é justamente ir às raízes, trabalhar com as pessoas e procurar trazer para cima a cultura, em vez de estar sistematicamente a tentar reivindicar isto ou aquilo. Não, é criar raízes sólidas com as pessoas e isso é o que está feito na Cova da Moura.

E não há o risco de, ao reforçar a cultura, criar um certo desfasamento entre a vivência que eles têm no bairro e a vivência que eles têm depois fora do bairro?
Não, porque a cultura nunca é forçada, a cultura é genuína. Tudo o que é cultura popular, não é forçado, é o que está, é o que é. Nós temos a nossa cultura popular.

Mas acaba por ser contextual a nível geográfico.
Sim, mas eles têm a cultura deles, que podem-na viver a 100%, portanto, é genuína, não é imposta, nem é forçada. E essa é que é a grande inteligência do projecto do moinho: é não levar uma cultura para cima de uma comunidade, é deixar que a cultura que já está lá venha ela para cima. É ao contrário o processo: em vez de levar para lá ideias revolucionárias ou uma cultura “sei-lá-o-quê” daqui, dacolá, não, é deixar aquela cultura, que já é própria das pessoas que estão ali, puxar para que ela venha para cima. Por isso as festas populares, o dançar na rua, a música, a cachupa. Aquele ambiente todo exterior que se vive, é a cultura popular do cabo-verdiano que se manifesta em Cabo Verde e, quando se perdem as raízes, é que é doloroso a viver. Ao trabalhá-lo, trazê-lo e voltar a vivê-lo, cria-se um bem-estar àquela comunidade. Se me exilasse, imagino que faziam faltas coisas de Portugal, faziam-me falta. A cultura faz-me falta quando estou longe.

Como em Londres, por exemplo, onde há uma comunidade portuguesa grande, pode encontrar-se um bairro onde se pode comprar bacalhau…
Exactamente. Essas coisas são pequeninas coisas, mas fazem parte da nossa identidade. Se a gente perde isso, perde muito, porque começa a sentir falta. Começa a sentir que não nos estamos a conseguir exprimir. Uma das coisas que eu sentia era isso: faltavam-me elementos para eu me exprimir noutra cultura. Não quer dizer que eu não me exprimisse noutra cultura, mas há sempre, dentro de mim, as minhas origens e é isso que eu acho que ali foi muito forte. Aquela população nunca perdeu as suas origens e mantém-nas vivas. Porque eles são muito fortes nisso: os cabo-verdianos. Todo o emigrante transporta a sua cultura, transporta a sua identidade.

Até acabam, às vezes, por vivê-la mais que as pessoas no próprio país.
É difícil. Agora estou a fazer um novo filme sobre isso, justamente, e acho que no próprio país é que se vive com toda a força e as pessoas emigrantes regressam a esse país para beberem mais, para depois partirem outra vez. É como os nossos emigrantes: vêm a Portugal beber, têm necessidade de vir aqui nas férias de Verão, àquelas festas populares e tal, porque há uma necessidade vital de vir ao encontro das suas raízes. Aquelas grandes cidades perderam isso, não têm espaço para viver esse lado. Este é um filme realmente de uma comunidade de imigrantes. Temos que ver isso também por esse lado e nós, portugueses, temos essa experiência bem grande e devíamos até ser mais compreensivos. Muitas vezes eu acho que o português não percebe o que é que se está a passar.

Desconhecia por completo as raízes da Cova da Moura. O que conhecia da Cova da Moura era o que ouvia nas notícias e o que ouvia falar a alguns amigos.
Todos nós, acho. Eu também não sabia grande coisa se não isso mesmo, das notícias: que era um bairro terrível, um bairro onde se passavam coisas assustadoras, onde andava tudo aos tiros, tudo a vender droga… Quer dizer, eu acho sempre estas notícias um bocado exageradas. Por exemplo: estava em Cuba, agora há pouco tempo, e houve um terramoto. E eu senti esse terramoto, estava no restaurante e saí para a rua a correr. Mas o alarido aqui foi mil vezes pior. Esse é o problema da informação. Temos que relativizar sempre e temos de dar sempre um desconto.
Como o Casal Ventoso há uns anos, que se dizia que era horrível e depois apareciam nas entrevistas aquelas velhotas que moravam lá e diziam “não, eu ando por aqui sem problemas”.
Moraram ali e sempre moraram. Aquilo é Campolide! As pessoas esquecem-se que aquilo é Campolide. Aquilo é um bairro popular de Lisboa. Houve uma concentração ali porque a degradação daqueles terrenos era de tal maneira grande que os toxicodependentes procuraram ali refúgio. Um abrigo para pôr as suas tendas. Porque ninguém fez nada por eles. Ninguém arranjou um espaço para eles. As sociedades têm de ter mais cuidado: não se podem queixar sistematicamente daquilo que não fazem.

Sempre com um movimento de integração, em vez de exclusão.
Exactamente. E essa é a grande luta a ter neste momento, penso eu. E estou preocupado com esse tipo de coisas, porque não vale de nada queixarmo-nos das coisas, temos é que resolver as coisas e contribuir para resolver e ajudar e procurar as razões. Agora, dá trabalho. É preciso sair do seu cantinho e ir à procura e ver o que às vezes não é confortável. São realidades que não são confortáveis.
Estava a falar do processo. Portanto: comecei por aparecer na Cova da Moura, para conhecer a Cova da Moura. Comecei aos poucos a integrar-me naquele ambiente. Comecei a ir às festas e filmá-las. Durante três anos, eu filmo tudo o que é festejo. É a forma mais visível, mais fácil e até mais tolerante de me aceitarem, visto que está tudo em festa posso filmar. Aquelas festas de rua, festas públicas, onde o acesso a uma câmara de filmar é natural, porque as televisões também lá vão, há turistas, há pessoas a filmar com câmarazinhas caseiras, portanto, o facto de eu aparecer equipado profissionalmente não é estranho. Mas, as primeiras vezes, nem foi equipado profissionalmente, foi com uma câmara pequenina que eu comecei a captar imagens para levar para casa, para ver, para olhar, para perceber o que é que estava a fazer, o que é que estava ali. A pouco e pouco fui-me integrando naquele grupo. Comecei a ser convidado a ir a certas reuniões do Moinho.
Comecei a participar cada vez mais e um dia há um convite do Carlos Saura para que o grupo Cola San Jon vá a umas filmagens a Madrid para o seu filme “Fados”. Então, acompanhei-os nessa viagem a Madrid, com uma câmarazinha pequenina, portanto faço eu a câmara, e fiz um pequeno documentário sobre esta viagem que nós fizemos a Madrid e que, aliás, faz parte do DVD do “Fados” do Carlos Saura. Há um extra que é um filme que se chama “Viagem a Madrid”. E aí, claro, passámos juntos dois dias. A minha relação com o cinema, o facto de estar no estúdio com o Carlos Saura, havia alguns técnicos portugueses, o produtor é português, portanto, esse ambiente também nos permitiu confraternizar, estar mais próximos daquela comunidade do Cola, do tal grupo de dança e de música que me convidaram para eu ser padrinho. Aí começa a nascer uma nova relação, uma relação mais íntima.
Passo a apadrinhar um grupo, passo a interessar-me, passo a querer estar mais com eles, a preocupar-me com as suas realidades e depois com as suas famílias. Quando se conhece um núcleo, vai-se conhecendo rapidamente toda a gente. Isso, a pouco e pouco, ajudou muito no projecto. Escrevi o projecto. Primeiro apresentei-o à escrita e à preparação. Ganhei. Depois, à produção. Já um documento mais sério, com muito trabalho de pesquisa, muitas entrevistas (ainda offline, ainda não para o filme) e consegui o financiamento. Quando consegui o financiamento, então, é que comecei a preparar a sério uma rodagem em profundidade, com uma equipa profissional. Com a preparação aqueles meses anteriores, conseguimos isolar casos e dize “bom, é por aqui que vamos, por aqui, por aqui, por aqui”, começar a desenhar o filme. A minha relação já era muito fácil no bairro. As pessoas já me conheciam, portanto, eu já não era um estranho. E no dia em que eu programei e decidi “agora é que vamos embora”, a equipa instalou-se na Cova da Moura. Chegou, uma manhã, e começou a trabalhar. Durante um mês, todos os dias, todos os dias, todos os dias, fomos filmando à medida que íamos sentido o bairro, mas com uma preparação. Tínhamos as pessoas marcadas. Isso estava tudo bastante bem organizado, mas com muita espontaneidade também. Havia sempre uma dose de espontaneidade para o que acontecesse naquele momento, apesar de a nossa estrutura ser rigorosa.

Como a pessoa a quem a polícia na noite anterior tinha arrombado a casa.
Exactamente. Isso aconteceu naquela altura, não estava a prever nada daquilo. Isso e a pessoa que está a beber, que vai beber um grogue. Isso é espontâneo. O filme tem esse lado muito forte. Embora tenha coisas que estejam organizadas, para ir falar com aquela pessoa, falar com a outra, com encontros marcados. Se não, por vezes, é difícil encontrá-las e eu tenho de ter uma diversidade de temas que possa construir o filme. Foi assim. Tenho um bom relacionamento normalmente com as pessoas, dou-me bem com as pessoas e a partir do momento que gosto delas, ainda me dou melhor. E as pessoas também, a partir do momento em que gostam de mim, aceitam-me bem. Foi tudo fácil.

E a selecção, a escolha, das entrevistas e de tudo o que havia filmado?
Isso é uma construção, isso é o segredo dos filmes. É a dificuldade dos filmes.

Mas tinham muita coisa?
Eu tenho 100 horas de material. 100 horas é muita coisa. Para reduzir para uma hora e vinte. Portanto, agora ali é muito tempo na montagem, é conhecer muito bem o material, é ir reduzindo.

Houve alguma coisa que tivesse ficado fora e que de facto quisesse no filme?
Muita coisa.

E não dava para ter um filme maior?
Não. Nem interessava, porque um filme é um objecto com uma duração que nós consideramos mais ou menos certa, em função do que queremos transmitir. O filme é uma síntese de uma série de coisas e nós temos que ter a medida certa. Temos de pensar no espectador, temos de pensar no que é que estamos a falar, temos de pensar no ritmo… o filme é o resultado disso tudo e a um dado momento a gente sabe que está feito, que não há mais nada para dizer, porque para dizer mais vai perturbar uma série de outras coisas. É como um quadro: o pintor pinta aquilo e fechou e passou, enquanto ele não achar que está pronto, ele não entrega a ninguém, nem o vende, nem o dá. Há pintores que estão anos a pintar em cima da mesma coisa, até estarem certos. Um filme é igual, são camadas e camadas e camadas, passa de 100 horas para 40, de 40 para 20, de 20 para 10, de 10 para 6, de 6 para 4 e quando chega às 4 começa o drama. O grande, grande drama…

Aí já está mesmo o essencial.
Exactamente, já está o essencial. E como é que a gente ainda reduz? Porque eu não quero que o espectador seja massacrado com quatro horas porque acho que não vale a pena, realmente. Não foi essa a intenção. A intenção foi fazer um filme para as salas, para o cinema. Nem sequer é para as televisões, é para as salas. É um filme de hora e meia, mais ou menos. A minha ideia sempre foi um filme de hora e meia. Tem uma e vinte e tal. Está certo, é esse o tempo, é uma longa-metragem. Porque eu quero levar este bairro ao nível de uma sala de cinema em alta definição com grande qualidade, era isso que me interessava. E festivais também, claro. E um objecto para eles poderem ter um património na mão e dize “Tenho aqui um filme sobre mim e orgulho-me deste filme. Quero este filme para lutar contra futuras eventualidades de ataques da comunidade. Tenho aqui um filme a dizer que nós não somos assim, não somos isso tudo que dizem. Somos isso tudo que dizem, também, mas não somos só, também somos estes” e isso era a razão de ser deste filme. Era a única razão. Eu queria fazer este filme para isso. Para contribuir para que eles possam defender-se melhor contra as investidas que são muito fortes no âmbito da imobiliária, do poder político, do poder económico. São forças muito fortes e muito poderosas que facilmente esmagam aquilo tudo com dois dedos de conversa. Basta uns estudos de uma empresa qualquer, nem que seja ela mesmo corrupta, que diz que aquilo é mau para a saúde, é mau para isto, é mau para as criancinhas, e arrasa, deita abaixo e põe lá uma coisa que é “boa”.

E há estudos desses feitos?
Não, não há. Digo eu que os estudos são para isso que servem. Muitas vezes é para provar que aquilo ali é negativo, para se pôr uma coisa que é positiva como um bairrozito qualquer que se punha ali em cima armado em moderninho e com chauffage central. Os argumentos que os poderes económicos têm para substituir, como mandar abaixo um prédio antigo porque o novo é mais rentável e aquele velho ia cair. Vemos cidades, não só na Europa, nos Estados Unidos, onde se guarda tudo o que é património, o que é antigo. Guarda-se com amor e com carinho. Não se deixa que caia uma pedra. Pelo contrário, tenta-se colar as que estão a cair, para as deixar estar. São uma memória do passado. São uma riqueza insubstituível. Aqui manda-se abaixo e estraga-se.
A Avenida da República é um desastre total, lembra-me da Avenida da República ser uma avenida fabulosa. A Fontes Pereira de Melo. A Avenida da Liberdade pode ir pelo mesmo caminho. Quer dizer, se não nos pomos a pau, o Bairro Alto vai todo ao ar também, com os grandes investimentos…

Nem sei como é que nunca avançaram…
Avançam devagarinho! Sempre que arranjam lá um buraco, lá vai de meterem lá uma obra moderninha, não é? Em vez de aproveitarem, já que não está lá nada, fazerem um jardim ou um parque ou um equipamento social, porque é isso que faz falta. Social no sentido de ser cultural também. Não há um cinema no Bairro Alto. Devia haver. Chiado, Bairro Alto, Cais do Sodré, é uma zona da cidade completamente pobre em termos de cinema. Depois é muito rica noutros elementos. Mas isto são exemplos, é muito fácil deitar abaixo uma coisa, porque os poderes têm uma capacidade enorme de provar que eles é que têm razão, porque eles têm o poder, portanto, se têm o poder, têm sempre razão.

Apresentam uma leitura parcial que os favorece.
Claro, sempre. Por isso, se eu poder contribuir com alguma coisa que contrarie esse poder absoluto, já fico feliz. Eu não quero dizer que o poder faça isto por maldade. Acredito que no poder há gente que defende inclusivamente a Cova da Moura, que se interessa e que não vê a coisa dessa maneira. Eu sou um bocadinho anti-poder, mas não sou assim também um doente. Há pessoas boas em todo o lado e pessoas más em todo o lado. O que eu digo é que a ganância do poder económico é esmagadora é uma coisa absolutamente devastadora.

Em relação ao filme, o que eu senti é que a Cova da Moura tem problemas, mas os problemas, no filme, são referidos de passagem: ouve-se, no início, aquela parte do rádio ou televisão a falar do polícia que foi esfaqueado, existe o tal que a casa foi arrombada, vê-se aquela imagem do polícia e do Moinho, a falarem, mas aquilo parecia um bocado pró-forma, há outra história de que ela de facto conta que morreu um irmão e que o outro está preso por ter morto…
Há imensas histórias de violência no filme, é constante. Desde o primeiro discurso, que é uma notícia de televisão, em que o ecrã está escuro, não mostro a imagem da televisão, só se ouve, justamente para ser o ponto de partida do filme. Já sabemos que aquilo é assim. Não vale a pena bater mais no ceguinho. A outra realidade? Vou mostrá-la. Porque essa é óbvia. Eu não estou a fazer uma tese sobre a violência ou a polícia na Cova da Moura, nem me interessa.

Se eu fosse um estrangeiro e estivesse a ver o filme, será que eu compreendia a magnitude do problema?
Isto é igual no mundo inteiro. Neste momento, em Londres há um bairro deste género que está a virar um bairro cultural. É como Brooklin, Brooklin voltou agora a ser um bairro cultural, no entanto era um bairro de negros e completamente marginalizado e, neste momento, os artistas, como é mais barato, estão a ir viver para lá. As transformações dão-se. As pessoas que vêem este filme, percebem tudo. Eu tive uma americana, imediatamente a seguir ao filme, que me convidou para ir a Harvard apresentar o filme. Esta realidade é igual no mundo inteiro. Este bairro é igual a todos os bairros no mundo inteiro. Eles percebem todos a mesma coisa que nós percebemos. Já não há distinção de nada, é tudo igual. A globalização é igual a todos os níveis, até a este nível. Este bairro, um bairro americano ou um londrino, são a mesma coisa. Só que se encontra num sítio, numa periferia diferente, com uma linguagem diferente, com uma população diferente. Não é uma população de Trinidad ou da Jamaica, como é em Londres, é de Cabo Verde. Mas as coisas são iguais. Quem fez uma pressão enorme para que eu mostrasse o filme também, é o Brasil. Os brasileiros que estavam ali perceberam tudo, porque eles têm o mesmo problema mas 100 vezes pior. 100 vezes? 1000 vezes pior!

Mas eles não têm as raízes da comunidade.
Têm as raízes do próprio africano, eles são africanos e estão em conflito com a parte branca que domina completamente no Brasil. O racismo no Brasil é gigantesco. É latente. É ali, vivo. Vivem naquelas favelas monstruosas gigantescas e os brancos vivem bem, não é? Em baixo. E quanto mais branco, mais acima vive para ver as praias de Ipanema. O Brasil é escandaloso, nesse aspecto. É um racismo escandaloso. E eles sentem muito estes filmes. Imediatamente houve 3 brasileiras que vieram ter comigo… “se eu não passo o filme no Brasil?”. Claro que passo. Vou mandar o filme para o Festival de São Paulo agora.

Para o público em geral isso será igual?
É. Passei “As Ruas da Amargura” em São Paulo, é igualzinho.

Eles percebem?
Tudo. As realidades são muito próximas. Até as drogas são iguais. Tudo é igual: o consumo é igual, os emigrantes, depende da sua cultura, mas o processo é igual: os emigrantes encontram-se com outros emigrantes. Estes cabo-verdianos trabalham ao lado de senegaleses, de gente que vem do Burundi… as realidades são as mesmas. E nós já temos essa mistura muito forte em Portugal, nós é que não queremos ver. É muito forte.

Na Cova da Moura consegue ver-se outras influências para além da cabo-verdiana?
Não, a dominante é a cabo-verdiana. Mas, por exemplo, o fotógrafo é de São Tomé, aquela mercearia é de um senhor que é de Angola… Estão as comunidades todas lá. De leste, também.

E eles adaptam-se à cultura cabo-verdiana ou acabam por viver um bocado à margem?
Eu não sei, eu não perguntei propriamente isso. Mas os africanos, de facto, estão todos bem. Os ocidentais, os portugueses, os retornados, uns dão-se bem, outros não querem saber muito. Têm uma atitude como já tinham em África, de distância. Mas isso são casos individuais. A cultura dominante na Cova da Moura é a cabo-verdiana, porque a maioria da população é cabo-verdiana. Não é uma ilha angolana, é uma ilha cabo-verdiana. Por isso é que lhe chamo a 11ª ilha. É o espelho da terra deles. Tentam construir as casas à imagem de Cabo Verde. O tipo de construção é idêntico, a própria arquitectura, a forma do espaço, como é desenhado, como é construído…
Também não pintam as casas, lá também não. Se pegássemos naquele bairro e o puséssemos em Cabo Verde, não destoava nada.

Como no filme, a história do tio que gosta de estar lá na Cova da Moura porque parece que está em Cabo Verde.
Exactamente. É. Está à vontade. Pode fazer fogo na rua que ninguém se queixa que as paredes ficam sujas. Pode ter música até altas horas, ninguém se queixa. Há uma forma de estar e de viver muito próprias e que ali existe, ali funciona. Porque o que é interessante e bonito ali, é que aquilo tem uma história, aquilo nasceu das mãos das pessoas. As pessoas sofreram para construir aquilo. Ninguém lhes ligou nenhuma quando eles construíram aquilo. Ninguém os ajudou.

O terreno foi oferecido, segundo o que percebi.
Uma parte foi oferecida, mas foi oferecida à Santa Casa da Misericórdia, o resto não.

E a outra parte?
A outra parte pertence a vários proprietários que nunca fizeram nada ali.

Também nunca fizeram um esforço por…?
Agora querem fazer. Parece, não sei.

Por causa do valor imobiliário.
Claro. E agora o problema é esse. O problema está agora ali. Como é que se resolve aquele imbróglio, quando há 6000 pessoas ali já a viver? Há várias coisas. Se fizesse o filme agora, se calhar ia-me preocupar com a reabilitação. Ia preocupar-me com outro tipo de problema, porque há ali matéria para muitos filmes. Claro que eu não posso agora passar a fazer filmes só sobre a Cova da Moura. Já fiz este e tenho um segundo filme que tem a ver também. É uma viagem que eu faço com um grupo a Cabo Verde às festas de Cola San Jon, que vai abordar essa festa e vai tentar perceber melhor o que é essa festa. O mesmo grupo que anda a dançar ali na Cova da Moura e que foi ao filme do Carlos Saura, vai a Cabo Verde e eu vou com eles. E com uma equipa profissional e vamos filmando toda a viagem.

Isso, uma longa-metragem?
Ainda não sei. Depende da montagem. Ainda não sabemos o que é que vai dar.

Outra questão: a nível das origens dos problemas do bairro. Também não se percebe de onde eles vêm.
Ah, sim. Mas são óbvios, não é?

Como é pintada uma comunidade unida, não se percebe de onde poderão vir. Às tantas alguém diz: “Ah isso são as pessoas que vêm lá de fora”.
Ah, da droga, estamos a falar da droga? Há um senhor que fala que os traficantes vêm de fora. É evidente que os traficantes devem vir de fora. Nenhum traficante vai morar ali, porque senão corre o risco de ser apanhado. Portanto, o traficante normalmente vive fora e encontra ali um terreno fértil para poder vender.

Mas então os problemas da violência que existem não estão ligados a esse tráfico?
Estão. Porque há gangs que controlam os mercados. Ali é mais fácil haver muitos vendedores, mas estão em conflito uns com os outros porque estão ligados a um grupo, a um traficante, outros estão ligados a outro traficante. Portanto, o que são as guerras dos gangs? É isso mesmo. Estamos fartos de ver filmes. Vemos mais filmes na nossa cultura sobre gangs e tráfico do que vê sobre outra coisa qualquer. Nunca se vê as creches em casa das pessoas, ou a fazer sopa para as pessoas.

Também há filmes desses.
Também há, mas a maior parte é tráfico, é droga. De manhã, ligo a televisão e é só droga, mortes, tiros, gangs. Estamos a viver um momento que é isso que é dominante no mundo e por isso é normal que isso passe no cinema, passe nos telejornais, passe na imprensa. E ali também passa. Esses problemas, são problemas naturais de próprio tráfico. O tráfico cria esse tipo de concorrência, porque há traficantes de várias famílias. A gente sabe que há várias máfias, as máfias matam-se umas às outras. Dentro dos próprios grupos de mafiosos, matam-se uns aos outros. Dentro do grande Capital também se matam uns aos outros, compram-se uns aos outros. Se eles pudessem andar aos tiros, andavam, mas não, compram-se, fazem OPA’s, mas é a mesma coisa. É o dinheiro.

Não há um esforço da comunidade para lidar com o problema?
Há, grande. Para integrar as pessoas, inclusivamente. Muitas daquelas pessoas que trabalham no Moinho, são pessoas que tiveram problemas com a Justiça. O Moinho teve a capacidade de lhes dar trabalho. O Moinho faz um trabalho gigantesco a esse nível. Tem parcerias com entidades no mundo inteiro, com a polícia. Aquele encontro que aparece no filme, o polícia está a ser entrevistado por mim, naquela rua, naquele momento, e por coincidência, quando a câmara já está ligada, passa aquele rapaz que é o nosso guia no filme. Aquele sub-comissário é uma pessoa muito conhecida no bairro. É a pessoa que vai à televisão falar. É uma pessoa que tenta incutir um certo espírito de tolerância. Estava na estreia do filme, veio-me cumprimentar e dar-me os parabéns. Gostou imenso do filme.

É conhecido. Ele faz parte da comunidade?
Não, ele trabalha na esquadra de Alfragide, ali perto, não mora no bairro. Mas ele é o responsável pela polícia que está ali e quando há um problema ele tem de enfrentar aquelas pessoas. Tem de lá ir falar com elas e explicar o que é que aconteceu.

E elas? Aceitam-no?
Sim, aceitam-no.

Respeitam-no?
Sim, como viu. Ele está na Cova da Moura, no meio do bairro. Não está com ninguém à volta dele. Não está blindado. Se o quisessem abater ali, não custava nada. Não havia ali polícias ao lado. Ele está sozinho. Ele foi connosco. Ele foi connosco para ali.

Não estava a pensar numa coisa de violência, estava a pensar numa certa hostilidade para com ele.
Contra a polícia, há sempre hostilidade nestes bairros.

Contra esta pessoa também?
Não. A prova é que viu como os dois estão a fala eles trabalham juntos. Quando têm problemas, tentam resolvê-los juntos. Aquele rapaz, o Edir, é um mediador. O mediador é a pessoa que é reconhecido pela comunidade e respeitado, a comunidade confia nele, e a polícia também confia nele e respeita-o. Portanto, são duas pessoas que podem falar e resolver problemas, visto que as pessoas, o polícia, ou por ser muito jovem ou incapaz, e o rapaz do bairro, ou por ser muito jovem ou incapaz, têm tendência para andar aos tiros ou andar à porrada. O mediador, não. O mediador sabe lidar com essas situações e com autoridade, portanto, há um respeito. Cada vez há mais mediadores no mundo inteiro. As sociedades vivem de mediadores, neste momento, em todo o lado.

Nestas comunidades?
Todas. Há mediadores para tudo. Você chega ao banco, você não sabe resolver o seu problema, tem de ter um mediador. As sociedades são de tal maneira conflituosas … Já viu: para poder trazer o Papa a Portugal, a Lisboa, a quantidade de gente que vai ser mobilizada só para garantir a sua segurança? Os milhares de pessoas, as milhares de horas, o trabalho que dá, só para garantir a segurança de uma pessoa? É porque a sociedade está em conflito latente. Aquela pessoa pode ser abatida em qualquer altura. Porque é um líder espiritual, é uma pessoa que tem uma parte do mundo contra ele. Portanto, nós estamos a viver essa realidade ao nível global.

Os próprios media acabam por fazer parte desse fenómeno.
Claro, de empolar. Antigamente não era assim, claro.

O cinema também faz parte…?
Claro. O cinema também faz. Só que o cinema tem mais cuidado. Tem mais tempo de observação. O cinema não vive sobre o espectáculo imediato das coisas. O cinema tem tempo de pensar.

Os documentários?
E o cinema de ficção também. Tem mais tempo de pensar, só se não quiser. Pode não querer. Aí, é espectáculo pelo espectáculo. O documentário tem alguma preocupação, apesar de tudo. O documentário joga com a realidade, joga com uma proximidade das pessoas e tem de as respeitar, por isso tem de ter cuidado. Ao passo que a ficção, não tem de ter cuidado nenhum. Se quiser dar um tiro no outro gajo dá, não tem problema nenhum, ninguém fica chateado, é um figurante, caiu para o chão apenas. Agora, se a pessoa for autêntica, verdadeira, pode criar ali uma tensão. Por isso é preciso mais cuidado. Um documentário respeita mais as pessoas. É obrigado a respeitar. O documentário é obrigado a respeitar, porque senão pode correr mal.

Fiquei esclarecido. Na altura que vi o filme, fiquei com a ideia que faltava uma certa integração de perceber o que é o contexto actual e o que é que as pessoas fora de Portugal percebiam do filme.
Eu penso que o próprio filme, com o seu tom, ajuda a perceber um bocadinho. Não digo que seja uma solução, porque eu também não tenho soluções. Temos de pensar que o cinema não é propriamente Deus. Nós temos de ter um bocado cuidado com isso. Porque às vezes pede-se muito a nós, ao cinema. Mais ao cinema até que às outras artes. Como é uma arte muito abrangente, pede-se que consigamos mostrar tudo. É difícil. Não se consegue. Não se consegue, nem pode, porque depois pode falhar. Se nos limitarmos a um certo terreno e não falharmos nesse terreno, penso que é mais honesto. Porque, se se abre muito, depois não consegue resolver. Porque cada vez que se abre uma janela, tem que se a fechar. Ou deixá-la aberta, mas deixá-la bem aberta. E isso é que se torna complexo. Se eu desenvolvesse mais um tema, depois tinha de ter capacidade de o resolver. Depois o tempo, seria diferente. O objecto, para mim, já não era aquele, já era outro. Isto é um jogo. Por isso é que eu digo que foi dos filmes mais difíceis para resolver da minha vida. Todos os filmes são difíceis, mas este foi mais do que os outros, porque eu não conseguia resolver. Não conseguia chegar àquilo que eu sentia. Ou seja, tinha uma experiência com aquele bairro, com aquelas pessoas e eu não estava a conseguir passá-la.

No final, essa experiência passou?
Passou, porque eu vejo o que as pessoas e a crítica dizem e é isso que quero. Não quero mais nada, satisfaz-me. Acho que consigo transmitir aquilo que eu sinto quando vou à Cova da Moura. Aquela alegria, aqueles problemas todos que estão lá… porque está lá tudo. Pode não estar muito directo, mas está lá.

Parece que está um bocado ao lado.
E está, porque para eles também está ao lado. Está presente…

Eles sabem que está lá, mas não a vivem.
Não podem, porque senão, coitados, não fazem vida nenhuma. Já perdeu o irmão, depois perdeu o outro irmão, quer dizer, eles sabem. Essa pessoa fala lá que estava a estudar, que estava na escola. Escola de quê? Percebe-se? Não se percebe, mas é um elemento giro para se perceber, mas eu não me deu tempo e não quis escrever. Escola da Polícia, ela queria ser polícia. Ela queria ser polícia. Depois abandonou, mas tenho esse documento. Mas é um documento que, ao pô-lo no filme, ia-me estragar aquela sequência. Porque o filme também tem um ritmo e tem uma construção, que isso é muito importante, que o espectador se sinta bem, não é? E vá para casa, apesar de tudo, tranquilo. É um filme rápido, mas isso também é o que nós queremos, não é? Portanto, tenho que ter cuidado e não arrastar o filme. Há sempre muitos elementos que entram em jogo e que não são só conteúdo, é forma também e a gente tem de jogar as duas coisas. Agora, há coisas que falta, claro, mas já sei à partida que não posso ter tudo e portanto agora paciência. Este filme foi muito complicado para mim, eu sofri muito para o fazer. A montagem, não lá. Lá, não sofri nada.

Sim, o gravar é relativamente simples.
Exactamente. E eu tenho facilidade em gravar, porque tenho uma boa empatia com as pessoas, as pessoas normalmente dão-se bem comigo. Eu gosto das pessoas. Eu gosto normalmente das pessoas, não é daquelas, gosto das pessoas em geral. E depois quando começo a viver com elas divirto-me, dou-me bem, sou capaz de dançar com elas, estar com elas, de viver, comer… Tudo isso o filme transmite, porque eu vivi isso realmente. Agora, até eu conseguir mostrar isso ao espectador, é que foi difícil. Muito doloroso. Porque eu olhava para o filme e não gostava do filme. O filme não era nada daquilo que eu estava a pensar. E demorou muito tempo até eu conseguir dizer assim: “ok, agora já posso fechar e já posso mostrar”. Assim que eu achei que já gostava, pronto, fechei logo e deixa mostrar que eu quero fazer é outros. Não vou ficar mais tempo aqui.
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João Miranda, c7nema.net


Realização: Rui Simões
Argumento: Rui Simões
Direcção de Fotografia: Ricardo Filiage
Som: Paulo Abelho e João Eleutério
Montagem: Márcia Costa
Direcção de Produção: Jacinta Barros
Com: Anibal Capelas da Cunha, Anilda Rosario, Antonio Carvalho, Bela Medina
Produção: Real Ficção
Ano: 2010
Origem: Portugal
Género: Documentário
Duração: 81′



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