SÃO JORGE | 31 OUT | 21H30 | IPDJ


SÃO JORGE
Marco Martins 
Portugal, 2016, 112’, M/14



FICHA TÉCNICA

Realização: Marco Martins
Argumento: Ricardo Adolfo, Marco Martins                  
Montagem: Mariana Gaivão
Fotografia: Carlos Lopes
Música: Hugo Leitão, Nuno Malo, Rafael Toral                           
Interpretação: Nuno Lopes, Mariana Nunes, David Semedo, Gonçalo Waddington, Beatriz Batarda, José Raposo, Jean-Pierre Martins
Origem: Portugal
Ano: 2016
Duração: 112’
 



FESTIVAIS E PRÉMIOS

Festival de Veneza – Nuno Lopes – melhor ator

São Jorge é o filme nacional que a Academia Portuguesa de Cinema apresentará como candidato às nomeações para os Óscares da Academia Americana de Cinema e na categoria de melhor filme ibero-americano, nos Prémios Goya, da Academia Espanhola




CRÍTICAS

Estreia-se, enfim, "São Jorge", seis meses depois de Nuno Lopes ter conquistado um prémio no Festival de Veneza (Melhor Ator, na secção Orizzonti onde o filme passou). Estreia-se, finalmente, o grande filme português que fala da crise, dos pobres, dos esbofeteados pela vida, o filme que foi capaz de ir aos bairros sociais onde eles vivem, ver os lugares onde moram, olhar-lhes os rostos, entender-lhes as vozes, atrever-se a ouvi-los. E que conseguiu que grandes atores profissionais fossem capazes de se mimetizar na desesperança, na exaustão, na luta pela sobrevivência, lá onde vacilam os códigos morais que inventámos em tempo de paz, mas que não servem quando a guerra do desemprego, do desamparo, se instala — e nos sonega um pai e nos ameaça um filho. "São Jorge" é a história de um operário que pratica boxe e a quem o desemprego empurra para uma atividade à beira da marginalidade: cobrar dívidas numa época em que toda a gente fica a dever qualquer coisa a toda a gente e o país deve imenso a uns tipos quaisquer. E a história de um Jorge que já nem dinheiro tem para um casinhoto, a mulher foi-se embora, agora ameaça saltar fora do país e levar o miúdo com ela, mas que tenta, não desiste, um tipo bom debaixo de um corpo quase bicho. Grande interpretação de Nuno Lopes (o melhor de quantos atores por aí andam, bom em todos os tabuleiros do teatro clássico a 'bonecos' de comédia) ao lado da brasileira Mariana Nunes que saltou do Rio de Janeiro para o bairro social Jamaica, na margem sul – e parece peixe na água.
Jorge Leitão Ramos, Expresso 


O tour deforce que se vai revelando em São Jorge começa a organizar-se com a delicada negociação, logo nas primeiras imagens, entre o inferno privado de um boxeur (Nuno Lopes) cobrador de dívidas e um país endividado. Jorge, essa personagem — e Nuno Lopes, o actor -, é um vulto que começa por pairar sobre a ficção e a realidade. Depois é ele que vai permitindo a aproximação de uma a outra — e nesse percurso é obrigado a abandonar a posição de voyeur, sombra na cidade, para agir. Quando damos por isso, já se contagiaram — e Jorge, o boxeur, ultrapassou fronteiras para proteger o seu mundo (depois de Alice, há uma década, o actor interpreta de novo para Marco Martins um pai habitado por uma violenta inocência). É essa uma das singularidades deste belíssimo — e delicado, de novo — filme: a forma como responde à interpelação da realidade. "Produto" da crise, peça de um cinema que veio da troika, como se vê nas legendas iniciais que são a sua certidão de nascimento, partilhou realidade com As Mil e uma Noites (2015) de Miguel Gomes (começou inclusive a ser pensado durante um projecto teatral de Marco Martins e Nuno Lopes com os trabalhadores desempregados dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo que, se se recordam, tinham papel decisivo na trilogia de Gomes). E no entanto, escolhe responder de forma diferente a essa interpelação. O pressuposto documental — começou a ser desenvilvido Há cinco anos com pesquisa em bairros “problemáticos” e trabalho com não-profissionais, cuja escolha foi exaustiva para lhes dar espaço e às suas histórias – podia ser traído por um argumento que se foi aproximando do film noir, coisa nocturna e onírica. Em tempos das "ficções do real" , sobre a ficção pode pairar uma desconfiança (a trilogia As Mil e uma Noites "diria" se calhar: "se a realidade é tão brutal e tão incrível, para quê ficcioná-la?"). Mas São Jorge não só não desiste dela, da ficção, como a nobilita, contendo a verdade das histórias dentro dela. É-nos assim entregue um filme de género, transgénero mesmo, atravessado pelo noir e pelo melodrama, como se Portugal nos anos da troika tivesse sido um convulsa, violenta máquina de histórias (e nem precisávamos de legendas iniciais), um studio system a céu aberto — como as histórias com que a América saiu magoada da II Guerra, como os paroxísticos filmes de Robert Rossen, Jules Dassin ou Henry Hathaway.
Vasco Câmara, Público