FIM DE CITAÇÃO| Joaquim Pinto e Nuno Leonel| Portugal| 2013| 89’ + AL ‘GHARB| Joaquim e Nuno Leonel| Portugal 2013|3’

ESCOLHA PEDRO MESQUITA
DIA 01 DE ABRIL
FIM DE CITAÇÃO, Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Portugal, 2013, 89’  
Titulo Original: Fim de Citação
Realização: Joaquim Pinto e Nuno Leonel
a partir de uma peça de Luis Miguel Cintra
Elenco: Diniz Gomes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Sofia Marques 
Imagem, Som e Montagem: Joaquim Pinto e Nuno Leonel
Produção: PRESENTE
Duração: 89’
Origem: Portugal
Ano: 2013

SINOPSE
"Fim de Citação foi um espectáculo criado pela Cornucópia, em 2010, quando começou a sentir-se na pele, pelos enormes cortes no financiamento dos teatros, que o "estado do mundo" não deixava que o teatro continuasse a ser trabalho artístico e tinha de passar a ser "indústria cultural". Acabou por ser, talvez, o mais pessoal e livre de todos os nossos espectáculos." 
Luís Miguel Cintra
TRAILER

Teatro da vida ou "Tomei nesse espectáculo a liberdade".
"Hoje, ao ver as notícias, percebi, depois das imagens de um terramoto nas Filipinas seguidas de refugiados na Síria e de afogados no mediterrâneo, que uma obra de arte tem que estar viva. O teatro anima histórias, que precisam dos vivos para que as reanimem e não morram com o autor. O cinema (que por si só, não é uma arte) também precisa de reanimadores. O teatro e a vida dele, isso foi o que nos inspirou a filmar este espectáculo (que não é a vida). O espectáculo da vida é isso mesmo, o abismo da morte. É preciso por vezes olhar para a vida para constatar que a arte está morta."
 O Nuno tem cursos de Primeiros Socorros e de SBV, Suporte Básico de Vida. Escreveu o texto acima, que subscrevo. Ao contrário do cinema que fixa imagens e sons, fragmentos de tempo e espaço, ir ao teatro é uma experiência irrepetível. Voltar a ver uma peça provavelmente de outro lugar na plateia, assistir a esse espaço tridimensional onde os actores recriam o texto, é ver outras coisas.
Vimos esta peça como espectadores anónimos. A nossa proposta de filmar o Fim de Citação em continuidade, durante outra representação, utilizando 3 câmaras emprestadas durante umas horas (com diversas contingências técnicas) e sem planificação prévia, é também o desafio de cruzar os pontos de fuga dos nossos sentidos, e a partir deles reconstruir um Fim de Citação. Permitir que o espectáculo sobreviva à efemeridade de 21 representações.
"Estamos prontos para novas aventuras. E com o humor que deve ser o sal da vida." Fim de citação.
 Joaquim Pinto

+ (Curta) AL ‘GHARB| Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Portugal, 2013, 3’
Fotos de painéis publicitários de Tanger, tiradas durante a rodagem em Marrocos do filme "Loin", de André Techiné, do qual fizemos a captação de som. Foram o ponto de partida para a animação "Al'Gharb".


SORRISOS DE UMA NOITE DE VERÃO| Ingmar Bergman|Suécia| 1955| 108’

DIA 25 DE MARÇO
SORRISOS DE UMA NOITE DE VERÃO, Ingmar Bergman, Suécia, 1955, 108’

FICHA TÉCNICA
Título Original:  Sommarnattens leende
Realização: Ingmar Bergman
Interpretação: Ulla Jacobson, Eva Dahlbeck, Harriet Andersson
Música: Erik Nordgren
Origem: Suécia
Duração: 108’
1955

 SINOPSE
Em 1901, o advogado Egerman, viúvo e pai de Henrik, um estudante de teologia, está casado em segundas núpcias com a bela e jovem Anne. Egerman é um velho sedutor, cínico e sofisticado, e o filho um jovem atormentado pelo charme provocatório de Petra, criada e confidente da insatisfeita Anne. Egerman retoma uma velha ligação amorosa com Désirée, uma célebre actriz, cujo actual amante, o conde Malcolm, humilha o advogado. Mas Désirée está decidida a reconquistar Egerman e monta uma sinuosa intriga. Dá uma festa na casa de campo da sua mãe, em que é servido um jantar afrodisíaco aos convidados, que nessa noite se rendem aos caprichos do amor.
"Sorrisos de uma Noite de Verão" é um dos mais célebres filmes de Ingmar Bergman, que com a sua 16ª longa metragem era, finalmente, consagrado a nível mundial. O Festival de Cannes, apesar de não lhe ter dado a Palma de Ouro, atribuiu-lhe um Prémio Especial do Júri, que se transformou no grande acontecimento desse ano

TRAILER

CRÍTICA (inglês)
Late in 1955, Ingmar Bergman made a nearly perfect work—the exquisite carnal comedy Smiles of a Summer Night. It was the distillation of elements he had worked with for several years, in the 1952 Secrets of Women (originally called Waiting Women), the 1954 A Lesson in Love, and the early 1955 Dreams; these episodic comedies of infidelity are like early attempts or drafts. They were all set in the present, and the themes were plainly exposed; the dialogue, full of arch epigrams, was often clumsy, and the ideas, like the settings, were frequently depressingly middle class and novelettish. Structurally, they were sketchy and full of flashbacks. There were scattered lovely moments, as if Bergman’s eye were looking ahead to the visual elegance ofSmiles of a Summer Night, but the plot threads were still woolly. Smiles of a Summer Night was made after Bergman directed a stage production of The Merry Widow, and he gave the film a turn-of-the-century setting. Perhaps it was this distance that made it possible for him to create a work of art out of what had previously been mere clever ideas. He not only tied up the themes in the intricate plot structure of a love roundelay, but in using the lush period setting, he created an atmosphere that saturated the themes. The film is bathed in beauty, removed from the banalities of short skirts and modern-day streets and shops, and removed in time, it draws us closer.
Bergman found a high style within a set of boudoir farce conventions: in Smiles of a Summer Night, boudoir farce becomes lyric poetry. The sexual chases and the round dance are romantic, nostalgic; the coy bits of feminine plotting are gossamer threads of intrigue. The film becomes an elegy to transient love: a gust of wind and the whole vision may drift away.
There are four of the most talented and beautiful women ever to appear in one film: as the actress, the great Eva Dahlbeck, appearing onstage, giving a house party, and in one inspired suspended moment, singing “Freut euch des Lebens”; the impudent love-loving maid, Harriet Andersson—as a blonde, but as opulent and sensuous as in her other great roles; Margit Carlqvist as the proud, unhappy countess; Ulla Jacobsson as the eager virgin.
Even Bergman’s epigrams are much improved when set in the quotation marks of a stylized period piece. (Though I must admit I can’t find justification for such bright exchanges as the man’s question, “How could a woman ever love a man?” and her response: “A woman’s view is seldom based on aesthetics. Anyone can always turn out the light.” I would have thought you couldn’t get a laugh on that one unless you tried it in an old folks’ home, but Bergman is a man of the theater—audiences break up on it.) Bergman’s sensual scenes are much more charming, more unexpected in the period setting: when they are deliberately unreal they have grace and wit. How different it is to watch the same actor and actress making love in the stuck elevator ofSecrets of Women and in the golden pavilion of Smiles of a Summer Night. Everything is subtly improved in the soft light and delicate, perfumed atmosphere.
In Bergman’s modern comedies, marriages are contracts that bind the sexes in banal boredom forever. The female strength lies in convincing the man that he’s big enough to act like a man in the world, although secretly he must acknowledge his dependence on her. (J. M. Barrie used to say the same thing in the cozy, complacent Victorian terms of plays like What Every Woman Knows; it’s the same concept that Virginia Woolf raged against—rightly, I think—in Three Guineas.) The straying male is just a bad child—but it is the essence of maleness to stray. Bergman’s typical comedy heroine, Eva Dahlbeck, is the woman as earth mother who finds fulfillment in accepting the infantilism of the male. In the modern comedies, she is a strapping goddess with teeth big enough to eat you and a jaw and neck to swallow you down; Bergman himself is said to refer to her as “the Woman Battleship.”
But in Smiles of a Summer Night, though the roles of the sexes are basically the same, the perspective is different. In this vanished setting, nothing lasts, there are no winners in the game of love; all victories are ultimately defeats—only the game goes on. When Eva Dahlbeck, as the actress, wins back her old lover (Gunnar Björnstrand), her plot has worked—but she really hasn’t won much. She caught him because he gave up; they both know he’s defeated. Smiles is a tragic comedy; the man who thought he “was great in guilt and in glory” falls—he’s “only a bumpkin.” This is a defeat we can all share—for have we not all been forced to face ourselves as less than we hoped to be? There is no lesson, no moral—the women’s faces do not tighten with virtuous endurance (the setting is too unreal for endurance to be plausible). The glorious old Mrs. Armfeldt (Naima Wifstrand) tells us that she can teach her daughter nothing—or, as she puts it: “One can never protect a single human being from any kind of suffering. That’s what makes one so tremendously weary.”
Smiles of a Summer Night was the culmination of Bergman’s “rose” style, and he has not returned to it. (The Seventh Seal, perhaps his greatest “black” film, was also set in a remote period.) The Swedish critic Rune Waldekranz has written that Smiles of a Summer Night “wears the costume of the fin de siècle period for visual emphasis of the erotic comedy’s fundamental premise—that the step between the sublime and the ridiculous in love is a short one, but nevertheless one that a lot of people stub their toe on. Although suffering from several ingenuous slapstick situations, Smiles of a Summer Night is a comedy in the most important meaning of the word. It is an arabesque on an essentially tragic theme, that of man’s insufficiency, at the same time as it wittily illustrates the belief expressed fifty years ago by Hjalmar Söderberg that the only absolutes in life are ‘the desire of the flesh and the incurable loneliness of the soul.’”
Pauline Kael, Pauline Kael’s collection of film reviews


CHINA - UM TOQUE DE PECADO | Zhangke Jia| 2013| China

DIA 18 DE MARÇO
CHINA – UM TOQUE DE PECADO, Zhangke Jia, China, 2013, 133’, M/16

FICHA TÉCNICA
Título Original:  Tian Zhu Ding
Realização: Zhangke Jia
Argumento: Zhangke Jia
Montagem:
Interpretação: Wu Jian, Lanshan Luo, Li Me
Origem: China
Duração: 133’
2013

SINOPSE
Um mineiro revoltado luta contra a corrupção dos líderes da sua aldeia. Um homem regressa a casa na véspera de ano novo e descobre as infinitas possibilidades de uma arma de fogo. Uma bela rececionista numa sauna é levada ao limite quando é assediada por um cliente rico. Um jovem trabalhador fabril salta de trabalho em trabalho à procura de uma vida melhor. Quatro pessoas, quatro províncias da China. Uma reflexão sobre a China contemporânea: um gigante económico que lentamente vai sendo minado pela violência.

TRAILER

CRÍTICA
Jia nunca foi tão desesperado e nunca escolheu tão decididamente dar o passo que vai da melancolia à amargura
Bastam alguns minutos, até aos assassínios a sangue frio no final da primeira cena, para o espectador sentir que não está no território em que esperaria estar tratando-se de um filme de Jia Zhang-Ke. Mas embora a violência não pare, e até ao fim haja ainda uma boa porção de mais assassínios a sangue frio, mais tiroteios, facadas, cabeças partidas à pázada, o percurso do espectador faz-se em crescente reconhecimento. Não, afinal isto é mesmo o território de Jia Zhang-Ke: aquela China que vem filmando há anos, semi-rural semi-urbana, apanhada no entroncamento entre o comunismo autoritário e o capitalismo desregulado. E a violência cumpre um papel, estilístico em primeiro lugar (porque há uma vénia, logo no título a citar um “clássico” de King Hu, aos velhos filmes de acção de Taiwan e de Hong Kong), mas fundamentalmente político: o “histrionismo” das cenas de pancadaria e carnificina não é mais do que a expressão, “grandguignolesca” quanto baste, de uma violência latente na China contemporânea, uma violência exercida pelo poder mas uma violência que é também a única arma dos fracos e dos injustiçados. Um Toque de Pecado é a versão Jia do aforismo de Brecht citado por Straub/Huillet no título de Nicht Versohnt/Não Reconciliados: “onde a violência reina, só a violência ajuda”. Não admira, pois, que também abundem a tristeza e as lágrimas, e que seja em lágrimas que o filme se conclua.

Um Toque de Pecado organiza-se em quatro histórias, que passam de uma a outra sem separador, e uma “coda” que retoma a protagonista de uma das histórias e lembranças das outras. O “fundo” - o cenário ou o território - conta tanto como as intrigas, é pelo diálogo entre uma coisa e outra que ambas ganham sentido. Aldeias ou centros urbanos, carripanas obsoletas ou Maseratis último modelo, estradas de terra ou modernos comboios super-rápidos (que se estampam), camponeses, operários, pequenos funcionários municipais, ladrõezecos, prostitutas. Na sua maneira de filmar a “envolvência” não estamos longe do olhar semi-documental sobre a China mutante, onde o “novo” engole o “velho” (que no entanto persiste), característico do melhor Jia (o de Plataforma, o de Still Life, o de 24 City), e como frequentemente sucede nesses casos, essa “envolvência” tende a tornar-se o verdadeiro, e colectivo, protagonista do filme. Não por acaso, as personagens são amiúde confrontadas com ecos de uma China tradicional, longínqua, sem data - o teatro popular, as canções, os divertimentos circenses. Ou com o folclore comunista transformado em atracção turística, como no quase burlesco “hotel” em que se passa parte da quarta história, onde as “acompanhantes” se mascaram de guardas maoístas.
Essa quarta história, que se conclui com um suicídio filmado como se Jia tivesse na cabeça a morte do miúdo protagonista do Alemanha Ano Zero de Rossellini, é a mais triste e desesperada de todas, porque mostra uma juventude a quem foi removida a capacidade de esperança em qualquer coisa que não seja uma espécie de escravidão (uma cena numa fábrica, ainda nessa história, já dissera tudo o que Jia tem a dizer sobre o modelo laboral chinês). Não há um lugar para ninguém, e talvez por isso todas as personagens se fartem de vaguear, de andar de cidade em cidade. Jia nunca foi tão desesperado, e nunca, nem mesmo em Plataforma, escolheu tão decididamente dar o passo que vai da melancolia à amargura. É um retrato devastador da China o que ele aqui nos propõe; mas, amargura nossa que depois não nos larga, fica-se a pensar: esta devastação é só chinesa?...

Luís Miguel Oliveira


CISNE | Teresa Villaverde| 2011| Portugal

DIA 11 DE MARÇO
CISNE, Teresa Villaverde, Portugal, 2011, 103’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original:  Cisne
Realização: Teresa Villaverde
Argumento: Teresa Villaverde
Som: Vasco Pimentel
Montagem: Andrée Davanture
Interpretação: Interpretação: Beatriz Batarda, Miguel Nunes, Israel Pimenta, Sérgio Fernandes, Rita Loureiro
Origem: Portugal
Duração: 103’
2011
M/12

SINOPSE
Sexta longa-metragem da realizadora, estreada no Festival de Veneza, Cisne é dedicado por Teresa Villaverde “às crianças”. Mas a história gira em torno de uma mulher adulta, uma cantora que deambula por Lisboa, onde se cruza com outras personagens, que, como ela, vivem noites de insónia. A certa altura, uma criança comete um ato irreparável e a mulher decide salvá-la. Um filme que encara a hipótese da salvação, o que não é frequentemente o caso nos filmes de Villaverde.

TRAILER

CRÍTICA
O novo filme de Teresa Villaverde é um encontro magnífico entre uma realizadora e uma actriz em perfeita sintonia, ancorando um filme que sugere uma inflexão no rumo do seu cinema
Um filme de Teresa Villaverde é sempre um desafio - ao longo da sua obra muito espaçada ("Cisne" é apenas a sexta longa em 20 anos), a realizadora tem desenvolvido um universo profundamente pessoal e intransmissível, uma espécie de cinema do inconsciente que se pode ver como exorcismo, catarse, libertação, busca, tentativa de compreender o mundo em que vivemos e o modo como as suas personagens sempre no fio da navalha enfrentam os obstáculos que ele lhes coloca.
"Cisne", história de uma cantora apaixonada por um músico que ela só consegue amar à distância e adorada por um jovem abandonado pela sua mãe, meditação sobre o amor e a família marcada pela intensidade oblíqua da sua narrativa poética, começa por trazer uma grande novidade ao cinema de Teresa Villaverde: uma actriz. Uma actriz que, à imagem de Ana Moreira, Maria de Medeiros ou Galatea Ranzi em filmes anteriores, se entrega por inteiro ao seu papel com um abandono impressionante mas que, muito mais do que qualquer delas, consegue uma osmose tão perfeita com o universo da realizadora que quase se diria serem uma e a mesma pessoa. Não poderia haver melhor escolha do que Beatriz Batarda para esta Vera, mulher que se diz sem medo mas que se vê confrontada com um mundo que não se conforma nem se encaixa na sua imagem e no seu desejo (não por acaso, ela é artista, cantora... e é difícil não vermos Vera/Beatriz como um "duplo" de Teresa, uma personagem que diz muito sobre quem a criou quase sem que nos demos conta disso).
Vera é uma solitária sem família que, pelo fim do filme, encontrou nos outros um semblante de paz - e essa é também outra novidade de "Cisne": o modo como Vera/Beatriz se dirige para um futuro de esperança que o inferno dos filmes anteriores não garantia forçosamente, como se houvesse ao virar da esquina um conforto e uma calmaria longamente desejadas e longamente merecidas. Tudo isto contado no modo não-linear a que Teresa Villaverde nos habituou, "maculado" por uma trama secundária que envolve meninos de rua e sugestões de pedofilia, trabalhando um tema recorrente no cinema da realizadora (a inocência perdida), mas aqui insuficientemente desenvolvido e quase metido a ferros num filme que é muito mais sobre uma mulher que se procura sem saber como se encontrar. Sente-se que "Cisne" é um filme de "transição", um objecto "entre", um passo aquém do grande filme de que o seu talento é capaz - mas um grande passo em frente.
Jorge Mourinha, Ípsilon  

ENTREVISTA COM A REALIZADORA
Há rótulos tão pegajosos como moscas numa tarde de Verão. E que, mesmo depois de enxotadas, voltam, e pousam, e insistem, teimam, repisam e irritam. Não é que a nova longa-metragem de Teresa Villaverde, Cisne (estreia-se quinta, dia 8, depois de passar pelo Festival de Veneza, dia 6) não detenha alguma atenção sobre elas, as moscas, a dada altura do filme, mas neste caso, estes insectos inoportunos vêm mais a propósito das ideias que depois de feitas dificilmente se desfazem. Por isso fica aqui, uma espécie de post-it logo à cabeça desta entrevista, para fixar, de vez, a advertência que a realizadora passa o tempo a fazer. Não, Vera (Beatriz Batarda), a protagonista do filme, não é uma fadista. Canta descalça, com voz de fadista (Ana Moura), às vezes fecha os olhos como as fadistas - mas, repete Teresa, "Vera não é fadista". Pode ser noctívaga, insone, padecer de saudades, nostalgias, amores emaranhados e chorar lágrimas de sangue mas "não é fadista". Portanto, ficamos entendidos, albarde-se a personagem à vontade do dono, e "Vera não é fadista". Nem há fado nem cisne, um pássaro presente nas mitologias e cosmologias de todo o mundo, carregado de simbologias, o grande pato branco, tão lunar quanto feminino - mas mudo. Aliás, num filme povoado por animais, perdizes, galinhas, um pavão, caranguejos, um coelho, uma cadelinha bebé, o único que não comparece é o dá título ao filme.

VISÃO: O seu filme chama-se Cisne mas só fala de patinhos feios: personagens perdidas, errantes e solitárias, filhos rejeitados pelas mães, uma mulher com nanismo...
TERESA VILLAVERDE: É curioso, mas não vejo nada assim. Talvez possa concordar que todos são um pouco solitários, mas associo mais essa solidão à própria liberdade de que precisam. E pessoas errantes podem ser cisnes. Não sabemos como acaba a história do filho com a mãe. A mulher pequena é uma anã, é bonita e sente-se bem no seu corpo. 

Já disse que Cisne é um filme "sobre amor, justiça e música" - só que o amor é inexequível ou uma  perversidade, a justiça é sangrenta e praticada pelas próprias mãos e a música não redime nem salva... Parece que nada funciona, nem os conceitos que são, à partida, benignos...
Os amores neste filme são amores difíceis, não são inexequíveis. São amores que ficam inteiros mesmo com imensas dificuldades. Amor perverso, não sei o que é, presumo que se esteja a referir à pedofilia, mas isso não tem nada que ver com amor, acho mais oposto ao amor do que o ódio, o ódio é que pode, por momentos, ser uma espécie de amor, talvez. A pedofilia está sempre ligada à destruição, e o amor (mesmo o inexequível), vejo-o sempre ligado à construção. Há de facto um momento de justiça pelas próprias mãos, embora não seja óbvio se a criança se está a vingar a si ou às outras crianças. Não muda muito, mas muda alguma coisa. É um momento de libertação assistido por um cisne mudo, como são mudos todos os cisnes. 
Quanto à música, ouvi-la ou compô-la é muito diferente do que tocá-la ou, neste caso, cantá-la em público. A apresentação em público é muitas vezes uma fonte de angústia. Há artistas que sentem que criam enquanto se apresentam em público, normalmente os grandes intérpretes, mas um compositor, uma cantora que componha, pode não sentir nada disso, e sentir um enorme vazio. Mas isso não tem que ver com a música em si. Há até, claro, casos muito conhecidos de enormes intérpretes que não viam a utilidade da apresentação em público, ao ponto de se recusarem e só gravarem em estúdio. Eu penso que também existem momentos complexos na vida em que um criador possa pensar que é possível atingir uma espécie de paz que dê a ilusão de que não é preciso criar mais. Imagino que seja sempre uma ilusão. Imagino que um criador não saiba parar de criar.

Então, se Vera [a não fadista] não é o cisne deste filme, quem é?
Eu acho que nenhuma das personagens é o cisne. O cisne é uma testemunha muda do que se passa com eles. É um campo magnético impresso numa parede. É perto do cisne que a criança age e é também perto do cisne que a Vera pausa e talvez decida sobre o que fazer com ela própria e com a criança. 

O filme abre com uma cena violentíssima: pássaros a serem largados por mãos infantis para serem abatidos logo a seguir. Isto causa um desconforto, como se qualquer daquelas personagens tão frágeis que vagueiam por ali também estivessem prestes a ser abatidas a qualquer momento. A ideia era cria-se um ambiente de violência latente?
Sim, é um pouco como se fosse o manto do mundo. Todos os terrenos que pisamos, foram já pisados por outros. Penso muito nessas coisas. Sabe, acho que é muito importante ter tempo, quando só corremos esquecemo-nos de imensas coisas. Achei importante começar o filme assim. Gosto que a primeira frase que se ouve seja "está viva", é um rapaz que diz referindo-se a uma perdiz que não morreu com o tiro que a apanhou. O rapaz também participa na morte dos pássaros, mas naquele momento esquece-se disso, e fica do lado do pássaro.

À primeira vista, Cisne parece ter uma temática mais adulta, depois de os Mutantes (sobre miúdos abandonados)  e de Transe (sobre o tráfico de uma rapariga), mas continua muito presa ao imaginário das crianças e a ecos das suas anteriores obras. Além de dedicar o filme "às crianças", Cisne está povoado de um referencial infantil. Até os adultos parece que não cresceram, são imaturos, não aprenderam as coisas da vida, a amar-se, etc...
Não tenho ainda distância suficiente para analisar o conjunto dos filmes que já fiz, e não sou muito (nada) de rever os filmes, mas claro que reparo que alguns temas são recorrentes, sou eu. Acho que as coisas vão mudando naturalmente. Estou já bastante embrenhada na escrita do próximo e sinto uma grande diferença, por exemplo, no tratamento das crianças. Mas voltando a este filme e aos personagens, não os vejo imaturos, escolheram caminhos não comuns, talvez. Não estão encarreirados no sentido comum de projectar um trilho e ir por ele a fora, e não me parece que sintam a necessidade de andar lado a lado com um grupo definido de pessoas, mas é uma escolha, não é o acaso. Acho que hoje há muito uma coisa que para mim é estranha que tem que ver com os amores úteis, as paixões úteis que nos fazem bem e que nos resolvem coisas. Nesse aspecto sou muito Camiliana, não vejo nada o mundo assim, e fascinam-me imenso as pessoas que mergulham nos amores impossíveis, ou possíveis mas dificílimos de viver. A piscina cheia do nosso futuro sangue e mergulhamos nas calmas. Adoro isso.

Mas o casal, a não fadista Vera e o violocelista Sam só se consegue amar à distância, o que já si é estranho, mas ainda mais estranho é comunicarem por escrito. Já ninguém escreve cartas, e usa o correio tradicional...
... pero que las hay, las hay. Uma carta em papel é uma coisa lindíssima. Acredito nessa necessidade de escrever todos os dias, escrever pode viciar. Ela fica desnorteada por não lhe estar a escrever. Ele foi para casa dela, e ela com isso perdeu o norte. E ele também porque não a lê. Nem toda a gente pode viver de uma forma simples ou clara. 

Escuta-se música brasileira (Chico, Caetano, Caymi) ou a cabo-verdiana mas vêm-nos à cabeça o fado. Interessa-lhe este universo? O cliché da fadista descalça, noctívaga, cheia de amores emaranhados, nostalgias e saudade?
Também tem muito John Cage, e muitos russos, Shostakovich e mais. Fado é que não tem. Gosto muito de fado, mas a Vera não é fadista. Quem deu a voz à Vera, sim, porque a voz da Vera quando canta é da Ana Moura. As canções são do Chico Buarque, mas não são nem fado nem samba. A Nina que o Chico Buarque fez para o filme, fala de uma mulher russa que escreve cartas a partir de Moscovo para alguém que está num país distante. É a Vera a cantar como se fosse o Sam. Foi ideia do Chico fazer assim, primeiro achei que não podia ser, mas depois vi que ele tinha razão e que era muito mais bonito assim, ela a cantar como se fosse ele. 

Chico Buarque é recorrente nos seus filmes...
Eu ainda hoje fico muitas vezes embasbacada com o que ele faz com as palavras, com o que consegue pôr numa canção. Como brinca. Ele diz que nunca mudou uma nota nas canções em que só fez a letra, às vezes não se acredita. Como é que pode ser possível, mas é. Ele é incrível, temos imensa sorte por partilhar a mesma língua. 

Para além da música, há contrastes visuais muito fortes, de fotografia e de decores... Muita noite e muito dia. Os ambientes sofisticados do hotel, dos bastidores e da casa da [não] fadista e o barracão surrealista da margem sul. Tanto Tejo e tanta aridez na lezíria...
Acho esses contrastes muito importantes. Gosto que uma pessoa possa estar de manhã num hotel de 5 estrelas em Lisboa e à tarde num barracão no meio do nada. É que o barracão e o hotel são perto, é triste ficar só de um dos lados quando se é livre de andar de um lado para o outro. Ela, a Vera, tem mais mobilidade porque tem dinheiro, pode escolher. O Pablo anda com o carro caro de um dos mundos até ao outro, vai de um lado para o outro num instante. A casa dela, é uma casa enterrada na terra pelo Eduardo Souto Moura, confunde-se com a paisagem.

Neste filme mistura uma actriz consagrada (Beatriz Batarda), com não actores ou pouco experientes como Miguel Nunes, de Morangos com Açúcar. É difícil conciliar registos?
Não é uma coisa nova para mim misturar actores mais experientes com outros que o são menos ou até sem experiência nenhuma. A Beatriz é uma actriz extraordinária, é muito fácil e um prazer, trabalhar com ela. O Miguel Nunes é um actor que veio para ficar, tenho a certeza. Foi tudo bom e fácil. 

Porque agradece, nos créditos finais, "o empurrão solidário" de José Saramago Pilar del Rio?
Ser cineasta em Portugal é uma profissão de risco grande e às vezes não há o que pôr na mesa, e espera-se um tempo infinito até se poder trabalhar. Foi por causa de uma conversa que tive com o José Saramago e com a Pilar que decidi fazer os impossíveis e abrir a minha própria produtora. Percebi quando saí de casa deles que era o momento de fazer isso. Ainda pude escrever ao José Saramago a contar o que tinha feito e que o empurrão tinha sido deles. 

Uma vez Caetano Veloso revelou que a Teresa lhe teria dito que não era possível viver sem música, que se podia dispensar até a literatura, mas nunca a música... É uma afirmação surpreendente sendo a Teresa realizadora...
Penso que não foi bem isso que eu disse. Por acaso também vi o programa em que o Caetano Veloso conta essa conversa, mas claro que no fundo, no fundo não acho nada disso, nem ele, de certeza. Mas de qualquer forma o que estávamos a dizer era que o que faria mais falta era a música, caso se parasse com a produção de tudo, mas ficava-se com o feito até agora. Não sei viver sem o cinema, não consigo imaginar.

O que contrapõe a estas novas correntes que falam em políticas culturais de apoio a monumentos e abandono das artes vivas?
Acho muito triste esse tipo de raciocínio. O dia de Portugal é o dia de Camões, honra-se o Camões, poeta maior, mas os poetas de hoje que morram de fome. É tão obviamente importante, sobretudo até em tempos de crise, o trabalho dos artistas que é estranho esta forma que as vezes o poder tem de nos olhar. Espero que os meus colegas no cinema e também nas outras artes, não se deixem abater. Havemos de conseguir sair disto. Temos que continuar a criar, a pensar em voz alta, a ajudar à discussão e reflexão sobre tudo o que tem que ver com a vida de todos. Como artista não sei parar, mas se calhar só não paro se me ajudarem de outros países. Não seria a primeira vez. Mas para quem está a começar agora, é muito difícil a ajuda do estrangeiro. É grave.

"Os ricos que paguem a crise" sempre foi um slogan da esquerda, agora são os próprios a defender essa ideia. A esquerda precisa de mudar de bandeiras nestes revirares de tabuleiros?
Nunca me revi nesse slogan, sempre me pareceu, 'os ricos que paguem a crise que eu vou ali e já venho'. Não percebo isso. Não me parece que os ricos queiram pagar a crise, penso que não querem ser odiados, e que não lhes interessa um mundo só de pobres. Sabem que tem que haver os que não são nem ricos nem pobres, para lhes comprar as coisas. Os sacrifícios dos ricos não são sequer comparáveis com os do resto das pessoas. Preocupo-me muito com os velhos, não sei o que lhes vai acontecer. Penso que os novos vão emigrar. É estranho termos chegado aqui. Há toneladas de coisas para a esquerda defender. Tenho muita pena que a esquerda portuguesa não se entenda seriamente. 

Pessoalmente assumiu sempre posições de esquerda, mas cinematograficamente mostra sempre uma visão pessimista sobre a humanidade, e sobre o que os homens são capazes de fazer uns aos outros... O que nos pode salvar?
Não sei. Acho que o melhor é irmo-nos salvando a par e passo. Vivemos tempos complexos. Há muita gente confusa sem saber o que fazer e há muita gente aflita que não sabe o que vai ser o amanhã. O mundo está a viver um abanão. A situação da Europa é muito má, a situação africana é bem pior. E num instante se dá a volta ao mundo de avião. Enfim...

Este é um filme falsamente optimista. Ou seja, há uma imagem de redenção final, de um sono de tranquilidade com uma cadelinha num colo, mas pode ser aparente ou efémero porque depois há os olhos da criança a mostrar que o trauma ficou e ficará sempre lá...
Não sabemos o que será o futuro daquela gente, mas aquele momento é um momento de paz. Um machado ali é para cortar lenha. 

Mas essas pessoas parecem tão engaioladas ou condenadas como os tantos pássaros que enchem o filme...

Talvez, mas têm a chave da porta da gaiola e os pássaros não.
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