a pequenina ensina-nos a receber o ano novo de braços e sorrisos abertos. 2ªf 3, IPJ, 21h30.




LA PIVELLINA [site] teve a sua estreia mundial em Cannes 2009, na Quinzaine des Réalisateurs e conquistou, entre outras distinções, o Prémio de Distribuição Caixa Geral de Depósitos do IndieLisboa’10, os prémios de Melhor Filme nos Festivais Internacionais de Cinema de Gijón, Leeds e Áustria e o prémio UNICEF no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires. O filme foi ainda exibido nos festivais internacionais de cinema de Berlim, Los Angeles, São Francisco, Vancôver e Toronto, entre outros.

La Pivellina traz uma das mais jovens revelações da história do cinema, Asia Crippa. Com apenas dois anos a menina domina o ecrã e as outras personagens, por mais que pintem o cabelo ou o nariz de vermelho. E se, como é sabido, a maior parte dos realizadores foge da utilização de crianças (e de animais) dada a imprevisibilidade dos mesmos, Tizza Covi e Rainer Frimmel souberam usar essa imprevisibilidade a seu favor. Ou então, se quisermos colocar as coisas numa outra perspetiva, é a menina-bebé, Asia Crippa, que tem um extraordinário sentido de improvisação.

Ela é extraordinária, não há dúvida, mas brilha pela liberdade conquistada pelos realizadores, que, obviamente, afastaram-se de um guião de deixas decoradas e confiaram no bom trabalho dos atores adultos. Na senda do que tem sido visto em muito cinema europeu, em especial o romeno, La Pivellina é filmado como se fosse um documentário. Usando as mesmas armas naturalistas, de um extremo realismo, que até contrasta com o mundo da história. O ambiente criado é, de resto, a primeira das virtudes.

O único truque desta riqueza é uma certa fusão com a realidade. Os atores têm os mesmos nomes das personagens. E o casal é italo-germânico assim com os realizadores. E a outra grande participação, também nada fácil, é de Tairo Carolli, de 13 ou 14 anos, que faz estrondosamente o papel de irmão mais velho de ocasião. Embora sem os mesmos ingredientes, nem a mesma estática, La Pivellina faz jus à riquíssima tradição neorrealista italiana e é mais um exemplo, depois do fenomenal Eu sou o Amor, de um novo cinema italiano que quer voltar a ser grande.
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Manuel Halpern, Visão


A pequenina. A pitorrinha. A migalha de gente. Estes podiam ter sido apenas três dos vários títulos portugueses possíveis para a primeira longa-metragem de ficção do duo de documentaristas Tizza Covi e Rainer Frimmel, e qualquer um deles seria fiel ao italiano. Mas estranhamente, os distribuidores portugueses preferiram manter o original. Adiante.

A dita pivellina é Asia, uma menina de dois anos que Patrizia, uma artista de circo, encontra abandonada pela mãe no baloiço de um parque de Roma, num fim de tarde invernoso. A mãe deixou um bilhete a dizer que virá buscar Asia em breve, e Patrizia, contra a vontade do marido, Walter, e apoiada e ajudada por Tairo, um vizinho adolescente também ligado ao circo, decide cuidar da pequenina como se fosse família, e todos acabam por criar laços afectivos com ela.

Passa-se pouca coisa em La Pivellina, ambientado no parque de caravanas que serve de casa aos protagonistas e rodado com uma mão-cheia de tostões. Mas o que se passa é de uma rara economia emocional, já que o filme nunca soçobra na lágrima pronta-a-derramar ou no miserabilismo social mendicante, evocando os primórdios do neo-realismo italiano, bem com o cinema dos irmãos Dardenne. Covi e Frimmel denunciam a sua veia de documentaristas na maneira como descrevem o modo de vida, as pequenas alegrias e as dificuldades dos artistas (os intérpretes são todos não profissionais e dão os seus nomes às personagens), e a minúscula, alegre e voluntariosa Asia Crippa derrete o mais duro dos corações.
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Sérgio Abranches, Timeout




CONTÉM DECLARAÇÕES DOS REALIZADORES

San Basilio é um sítio por onde não se passa. Fora da Roma turística, é um local estrangeiro para os habitantes da cidade, uma paragem para lá do fim das linhas do metropolitano, a meio caminho de uma carreir a de autocarro. Tizza Covi, co-realizadora de "La Pivellina", diz-nos: "Aqui não há turistas".
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Conhecida pela prisão que domina a entrada do bairro, San Basilio é a terra onde ex-condenados são locais, uma zona que reúne os problemas que caracterizam os bairros pobres das metrópoles a uma atenção mediática esporádica, mas explosiva, quando se buscam notícias sensacionalistas. Mas no meio há uma praça onde se entra e se sente o calor de uma grande família: o espaço onde Patty e Walter, artistas circenses, vivem com os seus familiares e animais, estrelas dos seus espectáculos de rua. Nas suas minúsculas roulottes sempre prontas a partir, vive também a pequena Asia, protagonista de "La Pivellina", a primeira obra de ficção do casal Tizza Covi e Rainer Frimmel, galardoada no IndieLisboa 2010 com o prémio de distribuição e agora estreada.
Os dois realizadores já se tinham interessado pelo mundo do circo: o seu anterior filme, "Babooksa", premiado no Doclisboa 2006, é um documentário sobre um ano na vida de uma jovem de uma companhia circense. "Fizemos uma série de trabalhos de fotografia e documentários sobre pequenas companhias de circo na Áustria e em Itália", explica Tizza Covi. "Foi aí que conhecemos Patty e Walter", o casal protagonista de "La Pivellina". "Interessou-nos a vida destas companhias pequenas", continua a realizadora, "o seu elemento um pouco 'trash' que fugia à perfeição do espectáculo dos grandes circos." Um interesse não pessoal, mas acima de tudo documental. "Nunca fui ao circo em pequena, nem o Rainer. O nosso interesse é uma coisa de adultos."

Foi na preparação de "La Pivellina" que optaram por um caminho mais individual, respeitando sempre a realidade do documentário para ficcionar a partir dela. Segundo Covi: "Não se trata de deixar a nossa posição no documentário para fazer filmes de ficção, mas juntar as duas posições. Ou seja, poder mostrar o local onde vivem os protagonistas, mas com um ponto de vista de fora que nos fizesse ver, através dos seus olhos, como vivem e são realmente". No fundo, poder provocar o rumo da realidade que filmam. Segundo a realizadora: "não queríamos que a realidade seguisse o caminho dela, mas aquele que nós escolhêssemos". O filme é o retrato dessa junção: um olhar sobre a vida de um sítio real e dos seus intervenientes (com os seus nomes e ocupações reais), ao qual se acrescenta a história ficcionada de Asia, uma menina abandonada e encontrada por Patty, figura-mãe deste descampado circense. O filme lida com a espera do retorno da mãe de Asia, um fantasma que paira sobre o filme, e o dilema em entregá-la às autoridades, outro espectro que assombra um local esquecido pelas instituições.

O respeito pelo terreno
Filmar em San Basilio significa conhecer quem aí vive e respeitar os seus modos, ou seja, compreender pelo cinema aquilo que é esquecido na vida. A opção por uma equipa reduzida, fora das produções tradicionais, era inevitável. "A equipa é composta por mim e pelo Rainer [Frimmel]: ele filma e muda as bobines, eu gravo o som e uso a claquete. Estamos sempre no limite daquilo que podemos fazer tecnicamente." Os dois mudaram-se para a praça de Patty e viveram no seio do seu grupo circense. "Vivemos muito tempo numa roulotte para que Asia se habituasse a nós. Chegámos a uma altura em que era indiferente ter ou não ter a câmara, já éramos uma família."




Esse sentimento, vindo do reconhecimento de quem recebe estrangeiros e lhes oferece a sua vida como matéria para o seu retrato, é um passo central no respeito comunitário e no envolvimento igualitário de todos no filme. Um princípio que é a base do trabalho de Covi e Frimmel para espelhar a forma de vida deste grupo de nómadas. "Era fundamental conhecer todas as personagens antes de fazer o filme. Não podíamos pegar numa actriz e pô-la em San Basilio a fazer o que eles fazem, ninguém pode reproduzir as suas vidas". Para Covi, "a direcção assenta na forma como as pessoas realmente são." Algo que é consequência de como San Basilio é visto de fora: um local marginalizado que só os seus marginais poderiam representar. Aqui filma-se um terreno que, ao olhos do resto da cidade, não existe. "É fundamental mostrar os sítios que não existem no mapa. Quando fui pedir autorização para filmar, com todos os papéis possíveis, perguntaram-me tudo. Quando disse onde íamos fazer o filme, a senhora do balcão respondeu-me: 'Em San Basilio? Então façam aquilo que quiserem.'"

Ao entrar neste "não-local" com a realizadora, sente-se a solidariedade em que estas relações se baseiam, algo que apenas pode existir num grupo marcado como minoritário. Covi recorda-nos como foi entrar aqui pela primeira vez: "Sentimos medo, como todas as pessoas sentem, não sabíamos se podíamos entrar. Mas quando o fizemos, reparámos numa simpatia única, algo que os unia e nos fazia dar sempre bem. Fez-nos querer trabalhar contra o preconceito que existe contra estas pessoas que viajam e vivem em campos".

O tratamento igualitário que existe nesta comunidade circense estende-se para além de idades ou ligações familiares. Na cena inicial do filme, quando Asia é encontrada sozinha no seu baloiço, Patty parece chamar por um rapaz também perdido - na verdade, está à procura de Hércules, o seu cão, um momento que define o modo como todos os elementos humanos coabitam neste grupo. "Walter tem um princípio: os animais são o seu sustento de vida, logo, devem viver muito bem", diz a realizadora. Um princípio extensível à direcção de Covi e Frimmel sobre os intervenientes do filme. "Ao trabalhar com eles, estamos ao mesmo nível que todos, ou mesmo num nível abaixo, por respeito. Talvez por isso se sinta que os animais e a criança estejam ao mesmo nível, pois é assim na realidade."

Estes princípios relembram o trabalho de um cineasta próximo de nós, cujo olhar também se revelou pela coragem de filmar locais onde a vida não é reconhecida por quem está de fora: Pedro Costa. A recusa de entrar em San Basilio com carrinhas e cabos para filmar é inspirada na coragem do realizador português. "'No Quarto da Vanda' foi um filme que nos tocou", diz Tizza. "Mostrou que se pode fazer um filme em condições extremas. Precisamos da coragem de filmes como os de Pedro Costa, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet."

A herança
Contudo, a língua e as aparências narrativas de "La Pivellina" remetem-nos para alguém que espelhou o imaginário circense numa certa de forma de vida italiana: Fellini. Mas à medida que o terreno do filme se revela, vemos que a sua celebração já não tem lugar. Esta, como diz Patty ao andar sobre o terreno molhado pela chuva, "é a terra onde Deus chora". Entre a procura da mãe de Asia e as hesitações sobre a entrega do caso à polícia, vemos caminhos que surgem não como inícios de vida, mas como o fim de uma linha, locais sem moradas onde os seus rostos já não respondem por uma esperança festiva. Numa das cenas mais tocantes, Patty conta ao jovem Tairo como este trepou, em pequeno, para cima de uma carrinha e berrou: "quero morrer". Um momento que lembra "Amarcord" (1973), quando um dos protagonistas trepa a uma árvore e berra: "quero uma mulher". A diferença de vida entre as duas cenas acaba por se sobrepor à sua herança cinematográfica. Tizza Covi confirma: "Pensámos em Fellini, assim como quando Patty e Walter fazem o seu espectáculo de rua e ninguém aparece, como para Gelsomina e Zampanò ["La Strada", 1954], mas tratam-se de coisas que pertencem à realidade. A história de Tairo querer suicidar-se é verdadeira, servimo-nos da realidade dos protagonistas."

Assim, se alguma linhagem servir para Covi e Frimmel, será a que se criou pelo neo-realismo italiano, um cinema, de novo, feito a partir da realidade terrena dos intervenientes. Um movimento que deu a possibilidade do cinema existir na Europa devastada do pós-guerra, e cuja luz poderá servir para compreender uma das perspectivas de "La Pivellina". "O que é muito importante é não adaptar a realidade à nossa ideia pré-concebida, mas estar dentro dela e seguir aquilo que aí acontece". A personalidade de Patty, que se afirma como o centro nervoso do filme, acaba por relembrar um dos rostos desse cinema. "Quisemos fazer um filme com ela porque nos lembra Anna Magnani, personagem que procuro há muitos anos nos filmes italianos. Como se tornaram tão comerciais, é difícil encontrar personagens que não sejam muito jovens e bonitos."



Mas no cinema italiano actual existem aqueles que, tal como os melhores filmes dessa herança, se dignam pelo trabalho sobre a matéria real de uma sociedade ainda dividida por fracturas. "Esse cinema existe em Itália", diz Tizza. "Está em Matteo Garrone ['Gomorra', 2008], Pietro Marcello ['La bocca del luppo', 2009] ou Michelangelo Frammartino ['Le quattro volte', 2010]."

A situação social
Mas em San Basilio, lembramo-nos do cineasta que aí viveu e retratou a sua realidade social: Pasolini. O poeta e realizador trabalhou sobre a marginalidade da vida esquecida dos arredores de Roma, fazendo das condições sociais e dos seus precários papéis sociais uma das tragédias do seu cinema. "La Pivellina", por sua vez, lida também com os preconceitos que uma sociedade cria sobre as suas minorias. Um olhar que atingiu o seu ponto máximo na Europa actual com a expulsão, pelo Estado francês, das comunidades roma do seu território nacional.

"Em Itália", diz Tizza, "existe a ideia que as pessoas ciganas roubam crianças. Interessou-nos dar a volta a esse preconceito: mostrar uma mulher do mundo do circo que acolhe uma criança abandonada. Existem cerca de 150 mil ciganos em Itália, o que equivale a 0,25 por cento da população. Todos os media continuam a retratá-los como a principal causa do mal-estar social." Lança um exemplo recente: "Um mês depois de terminarmos a rodagem, os jornais fizeram caso de uma rapariga que terá tentado roubar uma criança de 6 meses em Nápoles. Chegou apenas a hipótese aparente de ter tentado roubar uma criança para se atacar campos de nómadas com cocktails molotov. No país da Camorra", diz, "quem se diz ser a ovelha negra são estes 0,25 por cento."

Sobre os intervenientes de "La Pivellina", especifica: "Patty e Walter vêm de famílias de circo há seis gerações, eram rom e sinti. Formaram uma nova cultura para terem uma certa paz contra esses preconceitos. Também eles procuram o seu método de vida, como todos." A degradação das condições sociais destas pessoas não se deve, segundo Covi, aos seus modos de vida ou a qualquer preferência pela marginalidade. "Quando estas pessoas chegam a Itália, 80 por cento delas eram sedentárias da ex-Jugoslávia. Foi a política que as colocou fora das cidades, sem infra-estruturas. Não podem integrar-se ou assimilar o que quer que seja." Os campos onde vivem espalham-se pelos vários descampados de San Basilio, como pequenos núcleos de tendas e carros onde o acesso é exclusivo àqueles que aí vivem.

Em "La Pivellina", a incapacidade da Itália lidar com a sua História está espelhada no espanto de Patty com o desconhecimento do jovem Tairo sobre o seu período fascista. A câmara de Covi e Frimmel é paciente e dedica tempo a essa aprendizagem, gesto que revela a necessidade urgente de um país se reavaliar, ainda habitado por um simbolismo fascista que se revela em certos pontos do centro de Roma. Em San Basilio, não há memoriais nem monumentos, os cartazes partidários que existem estão gastos e arrancados.

O discurso de alguma juventude italiana é paradoxalmente revivalista quanto a Mussolini. "Incomoda-nos como os italianos nunca trabalharam a sua história e que o nosso primeiro-ministro diga que Mussolini nunca matou ninguém". Um trabalho que não será solucionado pelo cinema, mas que não o exclui de uma atenção social, apesar de subtil, à realidade. "O cinema pode fazer isso, mas será sempre uma pequena parte. Sou demasiado realista para achar que alguém veja o filme e mude a sua maneira de pensar." Mas se "La Pivellina" não mudar a realidade em que se baseia, raros serão os filmes que espelham um respeito e uma procura justa da forma de vida dos seus esquecidos intervenientes, oferecendo o seu cinema àqueles que procuram, em San Basilio, o seu reconhecido terreno de vida.
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Francisco Valente, Público



ENTREVISTA AOS REALIZADORES

É um filme italiano encantador, numa estética puramente indie, e neo neo-realista, em que as personagens representam os seus próprios papéis, através de uma premissa poderosa: uma criança adorável que, de súbito, sem nunca se compreender bem como, aparece e ilumina como um raio de luz (passe a banalidade da metáfora) o quotidiano de uma famíla de uma circo decadente, num acampamento triste e lamacento nos arredores de Roma. O filme, que já antes ganhara o prémio de exibição no IndieLisboa, desarma pela sua simplicidade e pelo poder regenerador que uma criança de dois anos pode trazer a uma comunidade atacada pela decrepitude. O FINAL CUT falou com a dupla de realizadores.

Habitualmente os filmes sobre crianças desaparecidas são contados na perspectiva de quem as perdeu, e não de quem as encontrou... Esta é parte da originalidade da história do filme e também da sua estranheza... Porque é que nunca vêmos a outra parte?
Rainer: Quisemos focar-nos na vida e na personalidade das pessoas que encontraram a miúda e que tomaram conta dela. Não tivemos a intenção de mostrar a outra perspectiva, porque não quisemos explicar demasiado ao público. Nos nossos filmes, acreditamos na capacidade de imaginação das audiências.

O Inverno, a lama, a mãe da miúda que pode aparecer, uma desgraça que se pode anunciar... Durante todo o filme pressente-se uma atmosfera de insegurança e de desconforto e no entanto, estamos numa história quase feliz...
Tizza: A imagem de um bom tempo permanente em Itália é um cliché. Os Invernos em Roma podem ser muito frios e chove muito frequentemente. Quisemos mostrar a Itália de uma forma mais realista.
Rainer: Também podemos interpretar esse mau tempo do nosso filme como uma metáfora da recente situação política em Itália.

É possível compatibilizar uma ideia de denúncia e de neo-realismo com a de um "feel-good movie"?
Rainer: Tal como no neo-realismo nós focámo-nos nas questões sociais e humanas. Não temos a intenção de fazer "feel-good movies", mas gostamos de captar o humor e a esperança nas situações mais dramáticas.

Asia (dois anos) é provavelmente a mais nova estrela da história do cinema. Como conseguiram trabalhar com uma criança tão pequena que ainda mal sabe falar? Foi tudo feito com base em improvisação?
Tizza: A coisa mais importante foi passar muito tempo com ela. Levou um mês até eu conseguir convencê-la a adormecer na roulotte da Patti. E mais ou menos o mesmo tempo até ela se habituar à câmera, à claquete, ao microfone. A nossa forma de trabalhar não é assustadora para uma criança. Somos uma equipa de duas pesssoas. Eu tratava da captação do som e Rainer filmava. Em todo o filme houve muita improvisação, quase todos os diálogos foram improvisados, e com a Asia obviamente tívemos de improvisar. Porque dizer-lhe exactamente o que fazer não resultaria naquela idade. Em vez disso, íamos adaptando as situações dependendo da forma como ela se sentia e reagia no momento.
Rainer: E muitas vezes colocavamo-la em certas situações, em que conseguíamos prever as suas reacções. Um factor muito importante no trabalho tão bem sucedido com a Asia foi o facto de os pais dela confiarem inteiramente em nós. Eles entregaram a sua criança nas nossas mãos e sentiram-se bem ao ver como nós tratávamos bem dela. É muito mais fácil filmar quando os pais não estão presentes no set.

Uma criança de casaco cor de rosa traz uma série de emoções positivas a uma família de um circo. Porque colocaram a acção neste cenário de circo decadente? O contraste cromático entre a mulher de cabelo vermelho e a criança de cor de rosa foi intencional?
Tizza: Filmámos a acção num acampamento de roulottes para mostrármos como vivem essas pessoas nos arredores de Roma, mantendo-nos longe de quaisquer estereótipos ou intenções moralistas. Conhecemos essas pessoas há muitos anos e escrevemos o guião para elas. A ideia foi trazer algo de fora para dentro desta comunidade para mostrar as suas vidas sob um ponto de vista diferente. E a ideia que surgiu foi que esse elemento outsider fosse uma pequena criança abandonada.
Rainer: Os contrastes são sempre mais interessantes do que a harmonia. Até as personagens do casal, Patty e Walter não poderiam ser mais diferentes.

O filme ganhou vários prémios em festivais, o facto de ter sido também distinguido no IndieLisboa teve algum significado especial?
Rainer: Foi um grande honra para nós termos sido premiados num festival dedicado ao cinema independente. Porque fazer filmes independentes é o mais importante e o mais difícil problema.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão


Título original: La Pivellina
Realização: Tizza Covi e Rainer Frimmel
Argumento: Tizza Covi
Interpretação: Asia Crippa, Patrizia Gerardi, Tairo Caroli, Walter Saabel
Fotografia: Rainer Frimmel
Montagem: Tizza Covi
Origem: Itália/Áustria
Ano de Estreia: 2009
Duração: 100’



BOM ANO NOVO NO CINECLUBE DE FARO! Janeiro e Fevereiro em cheio!

(esteja atento... como sabe, uns dias antes de cada filme... um post de jeito sobre ele!)

IPJ – 21H30

POR DETRÁS DO AMOR


JANEIRO

DIA 3
LA PIVELLINA


Tizza Covi e Rainer Frimmel

Itália/Áustria, 2009, 100’, M/6

La pivelina traz uma das mais jovens revelações da história do cinema, Asia Crippa. Com apenas dois anos a menina domina o ecrã e as outras personagens, por mais que pintem o cabelo ou o nariz de vermelho. Embora sem os mesmos ingredientes, nem a mesma estética, La Pivellina faz jus à riquíssima tradição neorrealista italiana e é mais um exemplo, depois do fenomenal Eu sou o Amor, de um novo cinema italiano que quer voltar a ser grande.
Manuel Halpern

DIAS 10 e 11 (em 2 partes dada a sua duração)
MISTÉRIOS DE LISBOA

Raoul Ruiz

Portugal/ França/Brasil, 2010, 272’

A identidade, a transfiguração, a natureza humana, num universo romântico em que todos os amores são intensos, sofridos e incontroláveis... Mas não é um filme que se exiba por uma grande mensagem, moral ou lição de vida. É antes um hino à intriga romanesca, numa hábil arquitetura, que nos deixa maravilhados pelo prazer lúdico que Camilo tem em contar uma história. Ou contar várias histórias como se fosse uma só e contar uma como se fossem muitas.
Manuel Halpern


DIA 17
LOLA

Brillante Mendonza

França/ Filipinas, 2009, 110’, M/16

em complemento A HISTORY OF MUTUAL RESPECT
Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt

Portugal, 2010, 23’, M/16

No cinema de Brillante Mendoza [finalmente no CCF] tudo parece o que é, mas nem tudo é o que parece. Lola, como em outros filmes do realizador, conta uma história simples de maneira linear, mas no interior desta narrativa encontra-se um outro enredo: a revelação e a denúncia da realidade filipina. Em complemento, A History of Mutual Respect, filme que valeu a Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt o Leopardo de Ouro no recente Festival de Cinema de Locarno. São 23 minutos visualmente muito atraentes, servidos com um argumento risível e uma representação patética das aventuras de dois rapazes em busca do amor verdadeiro na selva sul-americana.
Rui Monteiro

DIA 24
YUKI E NINA

Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa

França/Japão, 2009, 92’, M/12

Um filme adulto para crianças, ou um filme sobre crianças para adultos: o segredo de "Yuki e Nina" está no tom, na delicadeza das suas modulações, na maneira como desliza entre crianças e adultos sem trair nem uns nem outros. Os realizadores trabalham aqui o cinema como uma arte que se faz de discrição e de um entendimento tácito entre a câmara e os actores.
Luís Miguel Oliveira


Dia 31
O REI DA EVASÃO

Alain Guiraudie

França, 2009, 93’, M/12

É um filme raro, pela extrema ternura que revela por personagens de pequena dimensão, por um trabalho miniatural de atenção ao pormenor, por uma espécie de secreto pudor com que trata questões complexas de secretas sexualidades: na crise da mudança de idade um homossexual vulgar e desinteressante deixa-se seduzir por uma jovem adolescente e revela facetas até aí ignoradas. Pungente e irónico, o filme de Guiraudie possui um cariz poético que perturba e revela uma espantosa capacidade para dirigir actores.
Mário Jorge Torres


FEVEREIRO

DIA 7
O VERÃO DA BOYITA

Julia Solomonoff

Argentina/ Espanha/ França, 2009, 93’, M/12

Uma história intimista numa Argentina cheia de imensidão. Duas crianças em crise de crescimento, sem sordidez nenhuma, nem sentimentalismos piegas. Apenas confusão, nostalgia e a delicadeza das pequenas descobertas e dos grandes desacertos. O filme ganhou recentemente o prémio do Festival Queer Lisboa, mas a temática tem muito mais a ver com o crescimento e com a adolescência do que propriamente com questões de identidade sexual. Questões humanas, em suma.
Ana Margarida de Carvalho


DIA 14
CÓPIA CERTIFICADA


Abbas Kiarostami

França/Itália/Irão, 2010, 106’, M/12

Kiarostami insiste sempre em descrever os seus filmes como aventuras existenciais que ele encena mas cujos enigmas, ao mesmo tempo, lhe podem escapar. Confessa mesmo que gosta de reencontrar os seus filmes muitos anos depois para os poder olhar com o mesmo "olhar virgem" do espectador. «Copie Conforme» é, por certo, um objecto fascinante para voltarmos a exercer esse olhar.
João Lopes


DIA 21
36 VISTAS DO MONTE SAINT-LOUP

Jacques Rivette

França, 2009, 84’, M/12

Puro génio: Jacques Rivette conta a história nostálgica de um velho circo ambulante que vai sobrevivendo no nosso presente, celebrando um misto de verdade e ilusão que tempera as relações humanas. Rivette recupera o tema obsessivo da teatralidade, mostrando como o fulgor criativo pode ser cúmplice da mais depurada austeridade. Com dois actores em estado de graça: Jane Birkin e Sergio Castellito.
João Lopes



DIA 28
TAMARA DREWE


Stephen Frears

Reino Unido, 2010, 111’, M/12

Uma novela gráfica de Posy Simmonds (publicada em 2005/2006 no The Guardian) serve de ponto de partida a um retrato irónico de uma residência rural para escritores que procura um ambiente paradisíaco. Em boa verdade, o paraíso está habitado pelos fantasmas da natureza humana e Stephen Frears consegue um espantoso filme em que o realismo do olhar se cruza com o mais descarnado desencanto moral.
João Lopes



ALLGARVE – Museu Municipal de Faro

OLHARES FORASTEIROS - O Algarve num certo cinema

11 Janeiro

As Ruínas do Interior, José de Sá Caetano, Portugal, 1977, 110'

Em 1943, próximo de uma aldeia de pescadores, Françoise, belga refugiada e dois filhos, habitam uma casa onde vão passar férias, na Páscoa, as crianças da família proprietária.
A serenidade, algo ritual, desse quotidiano, é perturbada por um episódio de guerra que termina junto ao mar. Dois sobreviventes são protegidos pelas crianças que, entre si, estabelecem um pacto de silêncio. Depois, lentamente, monta-se uma discreta máquina policial.

(filme igualmente em exibição entre 12 e 30 Janeiro em sistema de sessões contínuas entre as 10 e as 16h, mesmo local, entrada livre)


8 Fevereiro - CONCLUSÃO DO CICLO

Zéfiro, José Álvaro Morais, Portugal, 1993, 52'

Zéfiro é um filme-viagem, um fresco sobre Portugal Meridional. Deixa-se Lisboa de barco até à margem sul do Tejo. Depois atravessa-se grande parte das planícies alentejanas para regressar finalmente ao ponto de partida - Lisboa. Neste filme, o Sul de Portugal é tratado de uma maneira metafórica, como um lugar em que diferentes culturas se cruzam formando uma identidade muito própria.

(filme igualmente em exibição entre 9 e 27 Fevereiro em sistema de sessões contínuas entre as 10 e as 16h, mesmo local, entrada livre)

punk? is not daddy! 2ªf, 13, 21h30, IPJ + set DJ Solitaire, 6ªf, 17, 23h30, n'Os Artistas

Não há liberdade sem libertação? POIS NÃO! Seja o filme e o que documenta, seja o set DJ inspirado no filme! E a todos um Bom Natal!

PUNK IS NOT DADDY é uma viagem pelos anos oitenta, testemunhada por um cineasta neófito. São cine-diários inéditos de Edgar Pêra: as Ruínas do Chiado, o quotidiano em Lisboa e Madrid, os Estados Gerais do Cinema Português, e sobretudo intervenções de bandas pop - a principal referência cultural dessa época.

PUNK IS NOT DADDY testemunha o crescimento e ocaso dos Heróis do Mar, os bastidores dos GNR num concerto da APU, os concertos abrasadores dos Xutos & Pontapés, a sonoridade céltica dos Sétima Legião, a pop dos Delfins, a militância dos Clandestinos, a rodagem dos videolips dos Rádios Macau. E até a polémica da Final do Concurso de Música Moderna do Rock Rendez Vous, os ensaios dos Censurados no apocalíptico quarto de João Ribas ou o derradeiro (anti)concerto do RRV com os Zao Ten de Farinha Master.

PUNK IS NOT DADDY retrata, na primeira pessoa, a primeira década descomprometida com o fascismo, já com a revolução em eco. Finalmente, arte em liberdade.



CRÍTICAS
Um arranque em beleza da secção competitiva [do DocLisboa], com arte, memórias, indústria e tradição, tudo ao som dos Ocaso Épico, com a mais recente criação do eterno independente Edgar Pêra. O realizador lança um olhar saudoso mas nunca gratuito ou gratuitamente nostálgico sobre o Portugal dos anos 1980, visto pelo prisma dos diários filmados de um estudante de cinema e realizador neófito descontente com um meio que (então como hoje) parece incapaz de sair da pescadinha de rabo na boca.

Guia para os anos 80
O "guia" de "Punk's Not Daddy" pela década de 1980 é a música moderna portuguesa, corporizada em raríssimas imagens de palco do culto perdido dos Ocaso Épico ou do último ensaio dos Heróis do Mar, dos GNR num concerto da APU ou dos concursos de música moderna do Rock Rendez-Vous. Mas há também visitas ao Chiado recém-ardido e aos Estados Gerais do Cinema Português na Gulbenkian (com Paulo Branco a manifestar a sua diferença), imagens de manifestações sindicais e do triste episódio dos "polícias contra polícias", e tudo ao som da movida do Bairro Alto. É um filme de memórias que nos pergunta para onde foi uma vitalidade que parece hoje retraída.
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Jorge Mourinha, Público



Edgar Pêra usou o seu arquivo pessoal e ergueu uma homenagem à área artística mais pujante dos anos 80 em Portugal: o rock. "Punk Is Not Daddy"- momento alto do DocLisboa.

Os anos 80 foram intensos, incorretos, politicamente ativos e cheios de fúria. São hoje vistos com nostalgia, mas, para mim, foram essencialmente um momento de rutura. Ou melhor, uma rutura com a rutura que tinha sido o 25 de abril. Foi nessa década que nos 'libertámos do facto de nos termos. libertado'e que passámos a viver, de facto, em liberdade. Foi nessa década que testámos os limites da democracia para sabermos até que ponto podíamos ir, sem estarmos constantemente a viver em função do que havia antes." Foi assim que Edgar Pêra nos descreveu os anos 80 e é sobre esse tempo que se concentra "Punk Is Not Daddy - Arquivos do Fim do Século, Vol. l: 1980-1990, um dos filmes mais siderantes da Competição Portuguesa deste DocLisboa. As pesquisas cinematográficas de Pêra são um caso raro de experimentação a nível mundial - isso já toda "a gente sabia. O que nem todos sabiam é que Pêra, muito antes de ter assinado o seu primeiro filme 'oficial' ("A Cidade de Cassiano", 1991), acumulou um arquivo gigantesco sobre rock português. É material captado em VHS, 'com sangue, suor e lágrimas' e na urgência do momento (o método faz recordar o de Lech Kowalski em "D.O.A. - Dead on Arrival", documento sobre os Sex Pistols), ao longo de toda a década de 80. Desse material nasceu "Punk is Not Daddy". Álbum de memórias? Filme de amigos? Documento histórico precioso? Há muito por onde pegar.

Pêra nunca considerou que aqueles "malogrados filmes imberbes" fossem para mostrar em público. "No fundo, são extensões de filmes da Escola de Cinema que serão agora mostrados em estreia absoluta... com 25 anos de atraso. Mas foi com eles que eu aprendi a filmar: e isto para mim é um fator decisivo. Filmar nos anos 80, para mim, não era levar uma equipa: era 'pegar numa câmara' e ser fiel ao do it yourself. Basicamente, fazia quase tudo sozinho com aquela câmara VHS, que era 'um tijolo'. O som era o do micro da câmara. Se estiveres atento até consegues ouvir o barulho do zoom. As filmagens eram tão selvagens como os concertos da época. E não nos podemos esquecer que aqueles eram tempos difíceis: o documentário estava completamente relegado para segundo plano; filmar em vídeo era considerado 'ofensivo' pelo poder instituído; e apostar num projeto que não pertencesse a determinados cânones 'culturais' - como se a cultura fosse um decreto... - era meio caminho andado para o chumbo dos apoios financeiros. Eu queria libertar-me desse contexto e só havia uma maneira de o fazer: pegar na câmara e ir para a rua filmar. Foi com esse ímpeto que fui parar aos concertos - queria ser testemunha e ao mesmo tempo participante. Tinha estudado Psicologia antes de ir para a Escola de Cinema. Em Psicologia, conheci o Pedro Ayres Magalhães. Na Escola de Cinema, conheci o Rui Reininho. Ou seja, acabei por acompanhar desde o início os Heróis do Mar, que foram a maior provocação dos anos 80, e uma boa parte do percurso dos GNR, que foram a verdadeira banda pós-moderna em Portugal, no sentido mais puro do termo. Os Heróis do Mar e os GNR cortaram, de facto, com os anos 70 e com aquele tempo em que era quase um crime não se ser revolucionário. São as duas balizas deste filme."

"Punk Is Not Daddy" começa em 1990, com um concerto de Farinha Master e os Zao Ten. "Farinha" era o nome de guerra de Carlos Cordeiro, genial artista já desaparecido, fundador dos Ocaso Épico, e o concerto que vemos no filme foi, por sinal, o último da mítica sala lisboeta Rock Rendez-Vous - "uma lança em África" para o realizador, bem como para tantos outros da sua geração. "Punk Is Not Daddy" mergulha depois de cabeça nos eighties, misturando imagens pessoais do realizador (making of da rodagem de um filme de escola, viagem de férias com os pais), factos históricos daquele tempo (imagens do 'Chiado apocalíptico' pós-incêndio, do metro de Lisboa e da notícia da explosão da nave espacial "Challenger") e concertos filmados 'a quente', em grande plano: Heróis do Mar, GNR, mas também Censurados (há um ensaio da banda filmado no quarto do vocalista João Ribas colado às imagens de uns Estados Gerais do cinema português, na Gulbenkian, em que se discutiam subsídios: "e a resposta", diz Pêra, "estava no rock"), Delfins (concerto em Cascais com a famosa cover de 'O Vento Mudou', de Eduardo Nas¬cimento), Xutos & Pontapés (em adrenalina máxima, num gig no Bairro Alto), Sétima Legião (também no Rock Rendez-Vous) e, de novo, Farinha Master, que, para Pêra, "foi fundamental para este filme, pois simbolizava a radicalidade máxima. Conheci-o na noite daquele concerto. Ele misturava tudo, folclore e vanguarda, performance e pop music, num caldeirão gigantesco. O Farinha era o tipo que tinha caído no caldeirão".
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Francisco Ferreira, Expresso



Concepção Câmara Montagem: Edgar Pêra
Arquivista: João Gomes
Assistentes de montagem: Francisco Carvalho, Tomé Palmeirim, Samuel Andrês
Camâra adicional: Laurent Simões
Produtor associado: Rodrigo Areias
Agenciamento: Bando à parte
Grafismo: Tó Trips
Duração: 70'

ANTÓNIO RAMOS ROSA - ESTOU VIVO E ESCREVO SOL de Diana Andringa

Dia 7 , 21h30; de 9 e 31 Dezembro em sistema de sessões contínuas entre as 10 e as 16h, Museu Municipal (sala audiovisual r/c), entrada livre

Este documentário sobre a vida e obra de António Ramos Rosa, certamente um dos mais importantes poetas portugueses da actualidade, foi realizado por Diana Andringa nos idos de 97 nesta nossa cidade, natal do poeta: Faro.

Saído de cá em 1962, esta obra segue e redescobre as memórias primeiras, em particular as da juventude, de um vulto da cultura e do activismo político anti-fascista, e para tal recolhe vários testemunhos de quem com ele privou. Salientem-se Duarte Infante e João Brito Vargas, que acompanham Ramos Rosa neste périplo de revisitação da capital algarvia, sócios fundadores do Cineclube de Faro, a cuja direcção o poeta também pertenceu.

São, para nós, pergaminhos de ouro poder contar na nossa história com este conjunto de sócios honorários, e memória grata a realização deste documentário pois, por feliz coincidência, aconteceu durante a realização dos nossos primeiros Encontros de Cinema, em Abril de 97, o que constituiu a melhor e mais bonita ocasião para entregar pessoalmente a António Ramos Rosa a placa de sócio honorário. Tal distinção tinha sido levada a cabo em cerimónia no ano anterior a um conjunto de 34 sócios mas, por motivos de saúde, Ramos Rosa não tinha podido comparecer. Ter esse momento registado para a posteridade neste filme enche-nos de comoção.


Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida
Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa


(filme integrado no Ciclo Olhares Forasteiros - o Algarve num certo cinema, incluído da exposição Algarve Excêntrico, Visionário e Utópico comissariada por Nuno Faria)


como de um conto de saramago de 12 páginas se faz uma longa de 83' - inteligente e hilariante! EMBARGO, 2ªf, IPJ, 21h30


Fantasporto 2010 (Portugal) - Menção Honrosa do Jurí Internacional – selecção oficial
Montreal World Film Festival 2010 (Canadá) - selecção oficial
Festival do Rio 2010 (Brasil) - selecção oficial
Lund International Fantastic Film Festival (Suécia) - selecção oficial
15 Festival de Cine Internacional de Ourense (Espanha) - selecção oficial
Semana Internacional de Cine de Valladolid (Espanha) - selecção oficial
34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Brasil) - selecção oficial
Festival de Cine Latinoamericano y Caribeño de Margarita 2010 (Venezuela) - selecção oficial
Mostra de Cinema Ibero-Americano - Las Palmas 2010 (Espanha) - mostra
17th Annual Austin Film Festival (USA) - selecção oficial

(chega para aliciar?...)



Em Embargo (site), o conto de Saramago é como a pedra a partir da qual se faz a sopa. No final, a sopa não sabe a pedra, mas a verdade é que sem a pedra não haveria sopa. Ou talvez não seja assim tão pouco. Saramago dá o pretexto e o contexto a este Embargo, através de duas ideias: não há gasolina e o protagonista não consegue sair do carro. Tudo isto para ilustrar, por vias opostas, a dependência que o homem tem do automóvel. Essa ideia António Ferreira manteve, mas não lhe deu excessiva importância. Interessou-se mais pelo protagonista inventado, a que Saramago nem sequer deu nome, do que pelo próprio conto, em que o carro assumia preponderância. E fez muito bem. Até porque, de outra forma, não haveria história nenhuma para contar nem haveria filme.

Falar de Saramago, o único Nobel português de Literatura, que tão poucas vezes cedeu os direitos dos seus livros ao cinema, é inevitável. Nem que seja para dizer que, neste caso, mal precisamos de falar dele. Mas já que por aqui vamos comparemos o incomparável. Ensaio sobre a Cegueira, a megaprodução de Fernando Meireles, custou os olhos da cara, cerca de 25 milhões de dólares, enquanto Embargo ficou-se pelos 200 mil euros. Mas o que é mais extraordinário é que isso não fez de embargo um filme pior, apenas diferente.

Embargo, de António Ferreira, é a história de um homem que pelo menos tentou. À sua volta o mundo desfalece numa paisagem desértica, pós-apocalíptica, entre um western e o Mad Max, mas ele mantém-se obcecado pela geringonça que inventou: uma máquina que digitaliza pés. Pensa com isso conseguir mudar de vida. António Ferreira transporta o filme para um não lugar, com alguns traços surrealistas, que chega a lembrar o universo dos Irmãos Cohen.

Nuno é fixado nos seus objetivos e isso dá a força necessária ao filme, sobretudo pela qualidade dos obstáculos criados, sendo que o maior dos obstáculos é ele próprio Nuno. No final troca a maquineta por uma trotineta, que o leva de volta a casa. Ironicamente, a imagem do homem a dar balanço à trotineta numa estrada sem fim, indica o amadurecimento, o final de uma adolescência tardia e a entrada na vida real. Assim como o coelho branco, lynchiano, surge como um milagre, que lhe salva a vida, e imaginamos que, apesar do conformismo a que se submete, a partir dali tudo vai correr bem. Mas não deixa de ser um final alegre e triste, porque a aparente harmonia que se adivinha implica a resignação.

Se o filme é conseguido muito se deve à atuação de Filipe Costa, uma autêntica revelação para o cinema. Aliás, essa naturalidade não é casual, António Ferreira admite que o papel foi escrito a pensar no ator.

Frequentemente os livros de Saramago têm humor, através da ironia, nas entrelinhas, com o seu forte sentido crítico. Mas este filme atinge o outro tipo de humor. Estão aqui alguns dos melhores diálogos humorísticos do cinema português contemporâneo. Mérito de Tiago Sousa, um argumentista endiabrado, que criou esta história com uma liberdade criativa enorme, que foge a quase todos os parâmetros.

O próprio António Ferreira, realizador de guerrilha, é um pouco como aquela personagem, um exemplo de perseverança e luta. Por mais portas que se fechassem, ele insistiu até conseguir desembargar o seu filme em bom porto. É aquele que tenta, é aquele que arrisca. A propósito de um conto de Saramago inventou uma máquina de digitalizar pés. Nós compramos.
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Manuel Halpern, Visão



É uma pena que, por razões diversas, seja quase impossível para um realizador de cinema ter uma carreira prolífica em Portugal, independentemente da qualidade do seu trabalho. António Ferreira é bem o exemplo disso: o seu filme de estreia, Respirar (Debaixo d’Água), surgiu em 2000 e foi uma das curtas-metragens lusas mais elogiadas das últimas duas décadas; três anos depois surgiu a primeira longa, Esquece Tudo o que te Disse, com aplauso unânime do público e da crítica. E depois... depois, seguiu-se um percurso animado com mais curtas e videoclips, à espera de nova oportunidade de assinar um filme de fundo, que só chegaria sete anos depois, com Embargo.

Felizmente, a espera valeu a pena e se bem que não se possa dizer que consubstancie uma evolução face à fita anterior, é uma prova de que Ferreira respira cinema e sabe contar uma história com imagens como poucos cá pelo burgo. O filme adapta um conto de 12 páginas de José Saramago publicado nos anos 70, com um homem que se vê inexplicavelmente impedido de sair do automóvel, num cenário semi-apocalíptico provocado por um embargo petrolífero.

O filme acrescenta muita história ao conto original para conseguir preencher o tempo de uma longa-metragem, mas é uma daquelas obras que ganharia em força e acutilância se tivesse 15 minutos a menos, o que, dados os actuais 83 minutos de metragem, não seria uma opção propriamente viável em termos de exibição. Felizmente, a excelente prestação do protagonista Filipe Costa, a criação de um ambiente que escapa a coordenadas cronológicas e o virtuosismo cinematográfico de Ferreira fazem desta fita um projecto vencedor.
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Luís Salvado, TimeOut



Goste-se ou não da sua ficção torrencial, adaptar José Saramago tem-se revelado tarefa complicada, de tal modo o seu mundo conceptual parece resistir às imagens cinematográficas, carregado que está de forte carga alegórica e de sentidos que apenas parecem funcionar na página: tanto "A Jangada de Pedra" como, e sobretudo, "Blindness" evidenciavam essa pesada secura narrativa, essa busca por bizarrias representativas.

António Ferreira foi buscar para este seu filme "O Embargo", um conto de curtíssima dimensão, uma das primeiras aventuras do escritor, do tempo em que ainda era director literário da editora Estúdios Cor, mais tarde reunido em "Objecto Quase". Se optou por um texto menos complexo e dispersivo, esbarrou com uma outra dificuldade não menos insolúvel: trata-se de uma "anedota ilustrada", com escasso material narrativo que se possa desenvolver. Um homem fica prisioneiro dos caprichos do seu carro, durante um embargo petrolífero, de catastróficas dimensões, a roçar, ainda que forma subtil, o reino da ficção científica, forçando o absurdo das situações e permanecendo fechado em perigosos limites.

Diga-se, já, que o argumento procura dar a volta ao texto, complexificando-o e abrindo para outros horizontes, mais conformes à obra anterior do cineasta, um dos mais interessantes da sua geração. Desde a média-metragem "Respirar Debaixo de Água" (2000) que António Ferreira mostrara dois particulares talentos: uma extrema mobilidade de trabalho de câmara, a desvelar imaginativas soluções visuais; e um interesse acrescido por ficções familiares, por personagens de difícil inserção social e radical revolta contra o meio atabafante em que se movem.

"Esquece Tudo o Que Te Disse" (2002), o seu melhor filme até hoje, pelo menos dos que conhecemos, criava um microcosmos familiar, de conflitos surdos e confrontos geracionais com a rara noção do país real, do isolamento do indivíduo face a condicionalismos sociais e comportamentais. Por isso, o melhor de "O Embargo" passa pelo que não está em Saramago, uma família disruptiva, com um pai ausente e vulnerável e um filho desambientado, numa casa triste e depressiva. A questão é saber se esta imagem de classe encaixa na história "principal", de tal maneira temos, por vezes, a noção de que estamos perante dois filmes algo desconexos, a que nem a presença crua do real (a roulotte dos cachorros quentes e o patrão repressivo, por exemplo) consegue dar coesão.

Para agravar o problema, aparece um terceiro segmento narrativo que pretende aproveitar o ponto de partida do conto e, em simultâneo, remeter para o esforço de melhorar as condições de vida do acrescentado agregado familiar: uma sofisticada máquina de medir pés, invenção que o protagonista pretende colocar a nível industrial, esbarrando, na sua demanda, com a dificuldade de se ver livre do carro "assassino", ou melhor, "aprisionador". Ecos curiosos de "Christine", de John Carpenter, perdem-se na pequenez da anedota, na escassa definição de personagens, desde as crianças que roubam gasolina aos industriais de caricatura, a favorecer a rábula de José Raposo. Continuamos a acreditar que António Ferreira filma lindamente, mas precisará no futuro de escolher melhor o material de base: nem o conto de Saramago (o filme é melhor que o conto, diga-se) lhe fornece grandes hipóteses, nem os acrescentos resolvem uma espécie de vazio que impera.

Ficamos à espera de mais ambiciosos voos de um realizador em que acreditamos.
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Mário Jorge Torres, Público




UMA (ÓPTIMA) ENTREVISTA A ANTÓNIO FERREIRA

Embargo, da obra homónima de José Saramago, estreia hoje nas salas de cinema de todo o país. Um filme de António Ferreira, um realizador com uma produtora nos arredores de Coimbra. Sim, em Coimbra. Em Casconha, para sermos mais precisas. A sede da Persona Non Grata Pictures contrasta com um ambiente rural de casas típicas de aldeia. Importa conhecê-la, até porque António Ferreira já está farto da pergunta “mas é mesmo de Coimbra?”

Aos 20 anos, quem era o António Ferreira?
Aos 20 anos ainda era programador informático, trabalhava numa empresa em Coimbra, a Systematic, que, se a memória não me falha, estava em vias de falência. Eu já estava a fazer planos para dar uma volta, porque sabia que dali a um ano ia para a tropa, e como já estava mais ou menos farto da profissão de programador informático, decidi que não iria procurar outro emprego quando a empresa fechasse. Vendi o meu computador, por 200 contos – 1000 euros, e com esse dinheiro fui para França, viver um ano.

Em França fez o quê?
Fui trabalhar num restaurante, nos Champs-Elysées! (risos)

E só para fugir à tropa ou já com outros objectivos?
Na altura tinha uns amigos, que estavam lá a trabalhar, em Paris, numa pousada da juventude, que eu tinha conhecido numa viagem uns meses antes. Fui viajar, trabalhar, conhecer pessoas, aprender francês, etc.



E ainda não olhava para o cinema nesta altura?
Não de uma forma séria. Na altura já fazia fotografia, fotografei muitos casamentos, tinha um laboratório em casa… Já gostava de cinema, obviamente, mas nunca tinha pensado em entrar numa escola de cinema, por exemplo. Aliás, antes disso pensei entrar numa escola de fotografia, que era aquilo de que eu gostava mesmo, mas era tudo muito caro. Eram escolas privadas e foi uma coisa que nunca cheguei a fazer. Quando voltei da tropa reflecti um pouco. Soube de uma escola de cinema em Lisboa, resolvi concorrer e entrei – foi aí que, mais ou menos, comecei.

Mas mais tarde abandona a formação em Lisboa para ir para Berlim. Comparando essas duas experiências, como aconselha um jovem português que sonhe com uma carreira em cinema?
Nestas coisas não há fórmulas. Apesar de tudo, até gostei de ter passado pela Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, porque foi um bom contraste com aquilo que depois encontrei em Berlim. Em Berlim era uma escola muito mais americanizada, no sentido de ser mais virado para um cinema mais mainstream – embora tenha tido professores desde a Polónia, a Israel, Holanda, Nova Iorque… O ensino era muito aberto, foi isso de que gostei mais. A escola não tinha professores fixos, todos os anos convidavam 20/30 professores para dar seminários. Nunca tinha o mesmo professor durante mais de três semanas. E uns contradiziam os outros. O que um achava que era bom, outro achava que era uma porcaria, o que dava para relativizar as coisas. E isso foi, provavelmente, a coisa mais importante que eu aprendi: não há uma maneira de fazer cinema, há visões. Tu tens de descobrir a tua e ser o mais forte possível nela. Nesse aspecto, gostei muito mais da experiência em Berlim do que na escola de cinema em Lisboa. Aqui era tudo muito mais numa direcção, mais conservador, ainda só se falava de Godard, John Ford, ia-se até ao Hitchcock no limite, parecia que não havia cinema para além dos anos 70. E filmava-se muito pouco. Falava-se muito, escrevia-se muito, muita teoria… Em dois anos participei em seis filmes na escola de cinema em Lisboa e realizei um; no primeiro ano em Berlim participei logo em 14 filmes e realizei três. A um jovem: aconselho-o a diversificar. O excesso de teoria em Lisboa deu-me algum estofo, o que me permitiu chegar a Berlim e não tomar tudo o que via como verdade, saber ser crítico, relativizar as coisas. Aconselho a viajar! Se puderem fazer um ano em Lisboa, outro em Madrid e outro na Turquia ou em Cuba, seria o perfeito. Viajar é muito importante, o mundo não é como a gente o conhece. À medida que se viaja, percebe-se que há outras pessoas, outras formas de pensar; isso é importante.

Porque é que voltou a Portugal depois de ter estado em Berlim?
Acabei o curso e tal como qualquer pessoa que acaba o curso estava a ver o que fazia da minha vida, sempre um passo muito complicado. Na altura soube de um concurso de curtas metragens no actual ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), em Portugal, apresentei um projecto e, talvez sorte de principiante, deram-me logo um subsídio. Foi um projecto que eu escrevi lá, pensado para filmar em Coimbra – o Respirar (Debaixo de Água). Nessa altura estávamos em 98. Curiosamente, tinha acabado de chegar a Portugal e no dia em que comecei a trabalhar numa produtora, a Rosa Filmes (como assistente de realização do Joaquim Sapinho, no filme A Mulher Polícia), soube do resultado do ICA: tinha um filme para fazer. Mas resolvi levar o projecto até ao fim. Lisboa – Paris – Berlim – Casconha (risos)

Como é que viveu em Coimbra? Esteve na Alemanha a escrever uma coisa que se passava cá.
Eu sou de Santa Clara. A minha infância foi mais ou menos ali à volta. Estudei na Silva Gaio, depois no D. Duarte – não é à toa que o D. Duarte aparece no Respirar (Debaixo de Água), já apareceu em dois videoclips, etc. Numa fase mais crescida frequentava a Praça da República, o Tropical, o States. Na adolescência frequentava o Scotch. Agora sou mais de frequentar o Shmoo, mais ao fim-de-semana, que agora a vida é outra! Foi um percurso comum. Nunca fui muito de vida académica, também não estudei aqui. Nunca usei capa e batina e essas coisas, mas é impossível quem está em Coimbra não ter o mínimo de ligação à universidade e às pessoas que lá estudam.



Acha que Coimbra está limitada?
O pessoal queixa-se… Se olharmos bem para as coisas que acontecem em Coimbra durante a semana, ainda acontecem bastantes coisas! Concertos, teatro, cinema… Estamos sempre a comparar-nos a Lisboa mas Lisboa são 3 milhões e meio de habitantes e aqui somos 200 mil (no limite, já a grande Coimbra). Para a dimensão que temos, eu diria que as coisas não estão assim tão más como às vezes se pinta. E o pessoal também se queixa muito e depois participa pouco! Organizam-se coisas e depois as pessoas não aparecem. “Ah tem de se pagar para entrar”, pois, pois tem, as coisas custam dinheiro a organizar! A cultura custa dinheiro. Coimbra tem bastantes coisas a acontecer; mesmo comparando com outras cidades como Aveiro ou Leiria. Pela dimensão da universidade, por termos malta nova e vinda de vários pontos do país, poderia haver mais. Na altura em que eu tinha 16/18 anos, em Coimbra, havia uma irreverência que agora se perdeu um bocado.

Voltando ao Respirar (Debaixo de Água)… Foi daí que nasceu a Zed Filmes. O que é que é faltava?
Só podem beneficiar de subsídios produtoras. Antes de saber que tinha subsídio tentei arranjar um produtor – eu não percebia nada de produção. Ninguém quis pegar no projecto: o guião era um bocado extenso, complexo, envolvia filmagens debaixo de água, um acidente de automóvel. Depois da atribuição do subsídio houve um interregno de nove meses, porque quis levar o tal outro projecto até ao fim; ganhei experiência. Mas depois decidi produzir o filme, fui à aventura. Foi um projecto muito difícil, aconteceu-nos tudo e mais alguma coisa. Mas acabou e correu bem (ainda por cima).

E a produtora vingou.
Eu tive a felicidade de o filme ser seleccionado em Cannes – é uma questão de sorte, porque já fiz filmes melhores que não conseguiram ser lá seleccionados – e isso abriu-nos uma série de portas. O filme começou a circular internacionalmente, logo a seguir fiz uma longa-metragem; uma coisa foi puxando outra e a empresa ganhou dimensão.

Começou a rodar o Embargo aos 24 anos. Pôs isso de lado, agora retomou. Quais as razões quer para a paragem como para o retorno?
Na altura aquilo não era, propriamente, um projecto sério. Tinha acabado de entrar na escola de cinema, estava a dar os primeiros passos… Aquilo era uma coisa super manhosa! Aquilo era… Horrível! (risos) Foi uma espécie de grito de independência. Filmei três dias, seis cenas. Nunca deu em nada. Simplesmente ficou encostado. Depois a ideia voltou a surgir recentemente, penso que há dois anos. Estava a ver futebol, Portugal, no Parque Verde, nuns ecrãs gigantes e estava uma fila enorme de carros nas bombas de gasolina. Pensei “só a gasolina é que faz com que o pessoal não largue tudo para ver Portugal jogar”. Deve ter sido em 2008; houve a greve dos camionistas que paralisou o país e eu, de repente, comecei a ver os cenários que o Saramago descrevia nesse conto, o Embargo. Surgiu a ideia. 30 anos depois, isto está a acontecer: fez-se luz, o conto era absolutamente contemporâneo e pertinente. Esta questão do petróleo é novamente uma questão do dia e fazia sentido voltar a abordar o assunto.

E o que é que fez com o material antigo?
Vocês viram uma coisa que é o Embargado?



Sim.
(risos) Foi isso que fizemos. Na altura, ficou guardado. Agora, o facto de o filme ter começado há 15 anos atrás tinha o seu interesse. O Leandro, responsável pelo making of, teve a ideia maluca de trazer esse material para o projecto. Fazer um making of um pouco diferente, em vez das normais entrevistas e do “que espectacular que foi”.

No Embargo reconhecemos cenários e actores conimbricenses. Porque é que a escolha recaiu sobre eles, sobre Coimbra?
Coimbra é sempre a decisão natural, na medida em que estamos cá. Por acaso o Esquece Tudo O Que Te Disse não foi filmado aqui, porque eu queria uma casa à beira mar. O Deus Não Quis filmámos aqui, na Lousã. E neste, como é numa cidade, numa qualquer, a escolha natural foi filmar em Coimbra. Vocês reconhecem porque são de cá, mas não se vê a Torre da Universidade, placas… Podia ser uma outra cidade qualquer. Em relação aos actores, eu sempre tive em mente o Filipe Costa. Já há algum tempo queria trabalhar com ele. Pelo que tinha visto em teatro, achava que ele tinha uma força particular. Estava no escalão etário do personagem, tinha o perfil que eu procurava para este projecto. O Filipe Costa e a Cláudia Carvalho foram logo opções de início. O Taborda – já fiz três ou quatro filmes com ele – também foi natural. Eu gosto muito de trabalhar em família. A equipa do Embargo é, basicamente, a equipa que temos aqui, que levamos para os videoclips, para os documentários. Foi seguir com um trabalho de dez anos, trazer as mesmas pessoas para mais um projecto. Há o Raposo que é uma excepção; ele é um excelente actor, tem aquele toque espectacular para a comédia. Tinha-os quase todos os dias comigo. Também não tivemos um orçamento por aí além para fazer o filme e isso, obviamente, também pesou nas decisões.

Foi uma equipa de quantas pessoas?
Éramos uns 20, com actores incluídos. Não era uma equipa por aí além; acabámos de fazer um videoclip com 38 pessoas. O normal é entre 35 a 40 pessoas.

A Persona Non Grata está a pôr Coimbra no mapa?
De alguma forma sim, mas isso não é uma coisa tão relevante. Quanto muito, Casconha no mapa! (risos) O nosso trabalho tem o seu valor, mas não deixa de ser curioso quando reunimos com as instituições locais como a Câmara Municipal, o Turismo, para apresentar projectos, e invariavelmente: “mas vocês são de Coimbra?”. Uma pessoa anda há dez anos aqui a fazer coisas, não só os filmes, mas também o trabalho mais comercial (videoclips do Camané, dos Blind Zero, dos Ez Special, cinco vídeos para a Disney filmados em Coimbra para o mundo inteiro). As autoridades locais são bastantes desatentas. Está agora a mudar um pouco, sobretudo com a nova vereação da cultura – parece que há aqui uma mudança em relação à vereação anterior, que era absolutamente autista; a nova vereadora tem uma abertura completamente diferente. Portanto, nós contribuímos, mas não é uma andorinha que faz a Primavera. Também o nosso objectivo não é pôr Coimbra no mapa, não fazemos isto por uma questão de bairrismo. Sou de cá, cresci cá, a produtora entretanto ganhou estrutura aqui. Se amanhã tiver um filme em que a história se passa especificamente em Lisboa, vamos para Lisboa. Ou para outro sítio qualquer.


Não é uma questão de custos.
Também.

Como é que recolheram o cenário do Embargo?
Futuro retro (risos). Às vezes as pessoas podem pensar que encontrámos os sítios assim e não é nada disso. Tivemos uma equipa de decoração, cá de Coimbra também. Discutimos o conceito do filme com a Luísa Correia, arquitecta de profissão que há já muitos anos fazia decoração, sobretudo ligada ao teatro. Não é à toa que o filme tem aquela cor, todas as cores foram escolhidas. Não há vermelho no filme, tudo tem aquele tom castanho, verde pálido. Obviamente escolhemos os decors em função disso. Quando se tem muito dinheiro, chega-se a um sítio que não tem nada a ver e muda-se tudo completamente (a decoração sai cara e dá muito trabalho); nós tentámos escolher o que já estava próximo daquilo que queríamos e depois foi só retocar mobiliário, papel de parede… A casa do protagonista (uma casa anos 70: portas e chão em madeira, já com algum mobiliário) é a casa onde vivia a decoradora, a Luísa. Coitada! (risos) Nada está deixado ao acaso. A ideia era mesmo o tal toque de futuro retro. É um futuro porque não aconteceu. Tem objectos contemporâneos, como o scanner, o telemóvel, mas, para o toque envelhecido, de mundo parado, embargado, desgastado, fomos buscar todos esses objectos antigos – um carro com quase 40 anos, um telefone antigo. Não queria que as pessoas tentassem identificar o ano em que se passa o filme. A ideia foi baralhar. Introduzimos tantos objectos diferentes para ver se as pessoas já nem se perguntam sobre que época é aquela. É uma época qualquer! O que importa é que se centrem no filme e entendam o mundo naquela decadência.

É um tempo sem tempo ou de todos os tempos?
Pois, a ideia é ser intemporal. Se virmos bem, a história foi escrita há 30 e tal anos atrás, em 2008 vi acontecer uma coisa semelhante… O filme ganha em não ter uma data específica; espero que daqui a 20 anos ainda possa fazer sentido.

Como foi a reacção de José Saramago quando soube da adaptação?
Por acaso parti com medo das histórias que contavam que ele não era muito dado a permitir que as suas obras fossem adaptadas ao cinema, mas na verdade até foi um processo bastante rápido. Contactámos a agente dele na Alemanha, ela fez um contacto prévio com a Pilar e com o José Saramago e deu-me o email deles. Basicamente, e foi o único percalço que eu tive, peguei no email que tinha enviado à agente na Alemanha, em inglês, e mandei para o José Saramago. Recebo um email a vermelho, da Pilar, em espanhol: “porquê falar a língua do império se somos todos ibéricos?!”. “Estou lixado, agora é que eu estraguei tudo.” (risos) Lá reformulei o meu email, em português, e o email seguinte já dizia que estavam de acordo. Daí para a frente fomo-los mantendo informados do que estava a acontecer. Estávamos já a planear a vinda dele em Setembro a Portugal para a estreia do filme; apesar de em Fevereiro ter o filme já mais ou menos montado, nunca quis mostrar uma coisa não acabada. Entretanto ele faleceu e nunca pode ver o filme. Agora, a Pilar foi à ante-estreia em Lisboa.

Quais foram as palavras dela?
Nós alterámos imenso o conto original, mantivemos as ideias centrais. Para 15 páginas fizemos uma longa-metragem. A família não está no conto, não há um digitalizador de pés, o protagonista não trabalha numa roulotte de bifanas, não há o amigo – tivemos de inventar todo um enredo à volta da história central de um indivíduo que fica preso num carro, para ter pés e cabeça e aguentar 80 minutos de filme. Estava expectante para saber a reacção dela, que foi espectacular. No dia fartou-se de nos dar os parabéns, inclusivamente chamou ao filme um poema visual. Fiquei muito contente. No dia seguinte, mandou um email a agradecer a nossa honestidade com a obra. Nós já tínhamos feito um teste com o editor do Saramago que, depois daquele choque de não encontrar literalmente o conto no filme, adorou o filme. Achou verdadeiro, genuíno. Deixou-nos contentes que quem estava perto do autor tenha sentido justiça no filme.

Para além de ser uma história de ficção, o Embargo pretende incomodar vidas embargadas? Desembargar?
Não gosto de filmes moralistas e tento sempre que não o sejam. Ninguém tem autoridade para dizer aos outros o que deve fazer da vida. Agora, tentei conferir ao filme mais do que uma camada. Há uma segunda camada narrativa. Se alguém tiver vontade disso, pode reflectir sobre ela. O protagonista é completamente obcecado pela sua máquina, acaba por se esquecer um pouco da filha… Foi minha intenção a sua própria transformação. No fim ele é um tipo mais aliviado, mais humano – e isso é também um dos pontos mais importantes do conto do Saramago. O filme não depende disso mas, quem quiser, pode vê-lo, está lá. Quem o quiser ver de uma forma mais descontraída, a um nível superficial, pode ver.

A comédia vem aligeirar o realismo?
A ironia também tem a ver com o carácter fantástico do filme, de um indivíduo que fica preso num carro. Se não introduzíssemos a ironia, dificilmente essa coisa colava. Serve para envolver o espectador, comunicar, e lidar com uma questão fantástica, quase irreal.

Quando pensa num filme, pensa no que gostaria de ver realizado ou no que o público gostaria? Faço filmes narrativos, ponto final. Os meus filmes não são experimentais, não tenho necessidade de me afirmar como realizador. “Tão bem que o António Ferreira filma”? Estou-me perfeitamente nas tintas para isso. Gosto de filmes que contem uma história, claro que aprecio particularmente os que procuram fazê-lo de uma forma inovadora; qualquer espectador comum quer ser surpreendido. Antes de ser realizador, sou espectador. Gosto de ir ao cinema como uma pessoa perfeitamente comum. Desde a comédia de domingo à tarde (desde que minimamente inteligente) ao filme mais denso do Lars Von Trier, gosto de ver um bocadinho de tudo. E quando estou a filmar, coloco-me constantemente na posição de espectador. Uma coisa é aquilo que é claro para nós, que estamos por trás de todo o processo; outra coisa é só ver aquilo, o filme. Por exemplo, nós imaginámos uma história para o Nuno Silva [personagem de Filipe Costa]: ele conheceu a Margarida [personagem de Cláudia Carvalho] na universidade, ela engravidou, nasceu a filha, tanto um como o outro interromperam o curso, que nunca acabaram por causa disso… São coisas que não estão no filme, mas que são coerentes com o personagem que se está a ver. Isso permite aos actores terem estofo dramatúrgico, encarnar personagens, saber reagir. No filme, põem-se as pistas necessárias. É nesse sentido que me coloco constantemente na posição de espectador. Nos aspectos técnicos, penso como contar a minha história. Penso cena a cena, não faço planificações, não tenho storyboards. Só na cena do acidente é que fizemos um muito manhoso, porque envolvia alguns truques para aquilo ser credível.

Tem cooperações de produtoras fora de Portugal. Como é que isso tudo se processa? Em que é que elas participam?
Cada vez mais a co-produção é essencial. Portugal tem os recursos que tem, que são poucos, e, infelizmente, a política de apoio ao cinema está completamente errada. A prova disso é os resultados que temos. As pessoas têm um divórcio crónico com a nossa cinematografia. Alguma coisa aqui está completamente errada. Isto para contradizer aquele discurso oficial sobre os nossos filmes serem muito reconhecidos lá fora, a nossa cinematografia ser muito prestigiada no estrangeiro; é pura mentira. Há uma elite que reconhece Manoel de Oliveira e pouco mais. Isso não é o reconhecimento de uma cinematografia, são casos isolados e com pouca expressão. Basta comparar aqui ao lado com Almodóvar, isso sim é uma coisa mundial e de massas. No resto da Europa, as cinematografias locais tem um peso muito grande nas bilheteiras! Os espanhóis vêem filmes espanhóis, os francês vêem filmes franceses, os dinamarqueses… 20 a 30 por cento das bilheteiras são das cinematografias locais. Em Portugal andamos na casa dos dois por cento – é uma diferença colossal. Isto só mostra que a política cultural para o cinema está a apoiar produtos, filmes, que as pessoas, simplesmente, não querem ver. Pergunto-me: que apoio cultural é esse que não tem retorno? Se forem ao Centro Comercial Dolce Vita estão lá quatro filmes portugueses em exibição, este mês estreiam cinco, pura coincidência. Os dois filmes que estrearam na outra semana, Os Marginais e o Voo do Flamingo, na primeira semana, um fez 2600 espectadores e o outro dois mil – números muito muito maus. E há filmes que fazem isso ao longo de quatro semanas de exibição! Nós, como actores deste cenário, como promotores, mesmo quando queremos fazer alguma coisa diferente, estamos sempre a lutar contra este estigma do cinema português. Portanto, um caminho cada vez mais importante é a co-produção. No caso do Embargo, mais de 70 por cento do financiamento veio do estrangeiro. O apoio do ICA é minoritário e o da RTP também. Sem o apoio de Espanha e do Brasil não teria sido possível.



O apoio das produtoras internacionais, da Vaca Films…
… A Vaca Films, a Diler e Associados, a Sofá Filmes – é curioso porque quando começa o genérico do Embargo parece que vamos ver um filme pornográfico (risos). Já houve uma projecção em que o pessoal se começou logo a rir com o nome das produtoras.

O apoio destas produtoras é exclusivamente financeiro?
Sim, colaboram na divulgação nos seus países e no financiamento. Nós fomos captar recursos em Espanha e no Brasil. Por exemplo, vamos agora ao Festival do Rio (a produtora brasileira é, exactamente, do Rio de Janeiro) e o próximo objectivo é lançar o filme lá, num mercado nada fácil.

Como é que os filmes chegam aos festivais?
Isso dos festivais é uma coisa muito difícil. É sempre por concurso. A competição é a nível mundial. Este filme tanto pode ser amigo do público como pode agradar mais aos festivaleiros e a verdade é que está seleccionado em nove festivais internacionais. Quem compra filmes a nível mundial, está lá. Um filme só consegue circular fora do país se tiver esse percurso pelos festivais. Estamos agora a pesquisar na imprensa brasileira e o Embargo já é um dos seis a dez destacados, dos 200 filmes que estão no Rio de Janeiro.

É fácil ter lucro?
Se venderes o filme, começas finalmente a ter lucro. Mas o que dá lucro são os blockbusters e nós sabemos que não temos o Adrien Brody, a Nicole Kidman, o Robert De Niro. Esses são os filmes que realmente se vendem no mundo inteiro. Normalmente, os compradores internacionais estão interessados, entre outros, em filmes que foram grandes sucessos nos países de origem. Automaticamente, vendem no mundo inteiro. Neste momento, sabemos que não estamos a falar de um filme dessa dimensão.

Quanto custou o Embargo?
O Embargo custou 200 mil, é um filme barato. O que é considerado um filme low-budget, actualmente, está entre os 500 e os 600 mil euros. Nós estamos abaixo do low-budget. Acho que tivemos a arte de fazer um filme com pouco dinheiro que não tem um ar pobre, uma produção ao nível das outras.

Apostaram também muito na divulgação.
Sim, estamos a gastar e a apostar muito na divulgação. Está a aproximar-se o dia da estreia e estamos a ficar com um bocado de “cagaço”. Estamos a apostar que o filme vai conseguir fazer alguma coisa em sala, que vamos conseguir passar dos cinco mil espectadores. Se tivermos cinco mil espectadores vamos ficar completamente desiludidos, mas logo se vê. Aliás, os grandes distribuidores em Portugal disseram-me que era isso que o filme ia fazer. Tivemos que o distribuir nós próprios, porque acreditamos que o filme pode fazer muito mais do que isso.

Como é que o distribuem vocês próprios?
Estamos a distribuir os cartazes e a alugar as salas para o filme. Negociámos com a Lusomundo, com a Castello Lopes, com a NewLine (os donos das salas em Portugal) e, para além de pagarmos para estar nas salas, ainda temos de convencê-los a que nos deixem pagar. Nesta semana há dez filmes a estrear, ou seja, para conseguirem estrear os dez filmes vão ter que tirar alguns. E, portanto, nós vamos ter que convencê-los de que o nosso filme vai fazer mais espectadores do que um desses dez filmes – estamos a falar de, basicamente, dez filmes americanos. Eles dizem-nos “simpatizamos muito com vocês, queremos apoiar o cinema português, mas isto é negócio; estarmos a abrir uma sala para fazerem 100 espectadores numa semana…”. Para terem uma ideia, O Voo do Flamingo, por exemplo, estreou em 11 salas, se não me engano, e fez dois mil espectadores. Portanto, eles fizeram 200 espectadores por sala e isso dá uma média de sete espectadores por sessão. Ou seja, é mau. Ontem fui ver o Wall Street e já só conseguia sentar-me ou na segunda fila da frente ou na última do canto, lá atrás. Portanto, só numa sessão eles meteram 200 espectadores, num domingo à noite. E nós estamos a competir com eles! Isto é um negócio e tem que se fazer bilheteira. O filme vai estrear na quinta-feira e na segunda eles vão ver quem fez menos nesses quatro dias. Portanto, se arrancarmos mal, corremos o risco de, ao fim de quatro dias, começarmos a sair das salas. Por isso é que estamos a pedir às pessoas para irem logo neste fim-de-semana, para mostrar [às distribuidoras] que as pessoas querem ver o Embargo. Ou não. Deixem-me só completar esta ideia: era importante que quem está nos institutos de cinema e os próprios produtores e realizadores tivessem mais consciência disso. Ou, pelo menos, que o ICA parasse de dar dinheiro a pessoas que, pura e simplesmente, fazem filmes que ninguém quer ver. O ICA existe para evitar que esta arte desapareça. Portugal não tem dimensão para rentabilizar completamente uma obra cinematográfica. Se nós não tivermos algum apoio que permita, pelo menos, colmatar esta falha de mercado… Mesmo que tivéssemos 20 ou 30 por cento de share, não chegava para cobrir os 600 mil ou um milhão de euros que custa um filme. Se dessem metade do dinheiro – em vez de 600 mil euros – a cada filme, já seria possível fazer-se mais filmes. Podíamos duplicar o número de filmes que se faz em Portugal! Já sabemos que há filmes que correm melhor, outros pior, e isso também acontece com os americanos. É preciso haver mais produção para haver erro. O problema em Portugal é que há muitos que fazem 600 espectadores, 500, mil; há dois casos de filmes que fizeram 60 e tal espectadores: até me dá dó porque, coitado, o realizador não tem amigos! Nem os amigos dele foram ver o filme! (risos) Como é que um realizador que recebeu 600 mil euros pode fazer 60 e tal espectadores? Isto é um crime. Não lhe podem dar dinheiro a seguir! O que acontece é que dão. Passamos cheques em branco e depois o resultado está à vista: um divórcio completo entre o público e o cinema

O nome Persona Non Grata vem dessa alienação?
Também, mas nós já aprendemos a não depender disso. Obviamente é uma expressão da nossa revolta com o sistema, mas não vamos condicionar todo um trabalho de dez anos – e numa coisa tão importante como o nome da nossa produtora. O que nós procurámos foi um nome que funcionasse bem internacionalmente; é latim, é uma expressão internacional, qualquer anglófono percebe, era o que se punha antigamente nos passaportes quando uma pessoa estava impedida de entrar num país. E reflecte a nossa atitude de irreverência. Não queríamos ter nome de meninos bem comportados que querem ser grandes tipo Worl Wide Films (risos). Tem ironia, tem piada, é uma coisa bem disposta.



E porquê a mudança do nome? Para assinalar um novo período? Casa nova, aposta maior…
Exactamente. Coincidiu com uma série de coisas: a saída do Embargo, a mudança de casa. Apesar da Zed Filmes ser uma marca já instalada, achávamos que dava um ar um bocadinho amador à coisa. Decidimos, então, lavar a cara completamente e matámos o Zed de vez: Zed is dead, baby. Curiosamente, em três/quatro meses já quase ninguém fala da Zed.

Projectos futuros?
Para o mês que vem, 28 de Outubro, vamos estrear em sala o Futebol de Causas, que é mais um filme de Coimbra, de um realizador de Coimbra, sobre a Académica. A história, que nunca foi contada, da Académica e do envolvimento, na altura, de jogadores de futebol na política – uma coisa absolutamente inédita, não sei onde é que terá havido, no mundo, outras histórias dessas e certamente não veremos isso acontecer no futuro. Temos várias produções a decorrer, estamos neste momento a filmar três documentários. Um da Diana Andringa, um do Rodrigo Lacerda e da Rita Alcaire (sobre os trabalhadores da indústria sexual – Das Nove às Cinco) e outro do Tiago Sousa – o argumentista do Embargo – chamado Circo Cristal, uma família. São tudo coisas que esperamos para o ano ter finalizado. De longa-metragem tenho vários projectos, mas aquele que está neste momento mais encaminhado, espero filmá-lo dentro de dois anos, é uma adaptação de um romance da Rosa Lobato Faria. A Trança de Inês: a história de Pedro e Inês contada de uma forma completamente original. Não se passa apenas no séc. XIV, mas também no séc. XX e num futuro imaginário, tipo séc. XXII, num mundo ecológico, com uma redução drástica da população, tudo a energia solar, onde temos sempre um Pedro e uma Inês e em que as épocas parecem andar paralelas, com impacto umas nas outras. Neste caso, o filme será muito mais próximo do livro do que no caso do Embargo. Gostei do tom que a Rosa conta a história, uma extrema ironia. Temos uma ideia dela um pouco cor-de-rosa e não é nada: o livro é bastante duro, até chega a ser violento e tem uma ironia mordaz da qual eu gosto bastante.

Daqui a 20 anos, quem vai ser o António Ferreira?
(risos) Não faço a mínima ideia! Eu nem sei quem vai ser o António Ferreira daqui a seis meses. Tenho a minha agenda programada para as próximas duas semanas, depois não sei. Isto é uma coisa muito imprevisível, não faço planos a tão longo prazo. Espero filmar com mais regularidade do que tenho filmado. Quer dizer, eu filmo constantemente, não faço é tanta ficção como gostaria de fazer. Mas é como os jogadores de futebol: isto é jogo a jogo (risos).
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Eva Queiroz de Matos e Inês Silva, Revista Via Latina




Título original: Embargo
Realização: António Ferreira
Argumento: Tiago Sousa, a partir da obra homónima de José Saramago
Interpretação: Filipe Costa, Cláudia Carvalho, José Raposo, Pedro Diogo, Fernando Taborda, José Raposo,
Miguel Lança, Eloy Monteiro
Fotografia: Paulo Castilho
Música Original: Luís Pedro Madeira
Origem: Portugal/Espanha/Brasil
Ano de Estreia: 2010
Duração: 83’