Obras-Primas na Sede, 5ªf 31 - A VIA LÁCTEA de Luis Buñuel, o Herege.

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).


La Voie Lactée é uma "colagem perversa". A expressão aplica-se por igual a todos os filmes finais e coloridos de Buñuel, com a excepção de Tristana. Desde que se dê ao primeiro termo a acepção que sempre teve para os surrealistas e ao segundo a acepção que sempre teve para Buñuel.

O caso de La Voie Lactée é flagrante. ''Interessam-me as heresias como me interessam todos os inconformismos do espírito humano, seja na religião, na cultura ou na política", disse o autor. Face a uma ortodoxia, a heresia é o comportamento perverso, como face à normalidade sexual o são as chamadas perversões. A Séverine de Belle de Jour é tão perversa como os "pateliers" do século XVI, a que alude o louco padre da primeira estalagem, que diziam que "o corpo de Cristo estava na eucaristia como a lebre no patê" (e não foi Buñuel quem inventou a imagem nem nenhuma outra deste filme) ou como Prisciliano, o bispo que fala latim com pronúncia restaurada. Ou ainda o jansenista, ou todos os outros heréticos deste filme. São os desvios da norma-padrão.

Isto quanto à perversidade. Quanto à collage, bastará ler a ficha técnica para abrir a boca de espanto: que obra será esta, onde intervêm Cristo e a Virgem, o Diabo e o Marquês de Sade, bispos e prostitutas, freiras e "mâitres" de restaurantes de luxo, cegos e polícias, professoras primárias e o Papa?

Nem Cecil B. DeMille, nos seus momentos mais inspirados, inventou tal "salada". Uma série de sketches? Buñuel rejeitou expressamente tal forma ou tal fórmula, e o filme tem sempre um fio condutor que é a peregrinação dos mendigos de Paris a Compostela. A construção da "continuidade descontínua" desta prodigiosa obra é a das collages e a sua figura, como o título da obra, uma constelação.

A José de la Colina e Tomás Perez Turrent, Buñuel disse: "Nunca lhes aconteceu, ao ler um romance ou ao ver um filme, ter vontade de que o autor passe a outro personagem, a outra história? A mim, sim. Por exemplo, quando leio o Crime e Castigo, digo com os meus botões: Que chatice estar sempre a seguir Raskolnikov. O que me apetecia, agora, em vez de subir mais uma escada com ele, era poder dizer-lhe 'Adeus, boa noite' e, em vez de o acompanhar, ir atrás do miúdo que saiu para comprar pão e com quem Raskolnikov se cruzou um segundo no caminho".


No fundo, são mais uma vez processos das novelas pícaras espanholas, do D.Quixote ou, para citar exemplos posteriores, invocados pelo próprio Buñuel, de Gil Blas, de Peter Ibbetson ou do Manuscrito Encontrado em Saragoça. Cinematograficamente, e para fazer agora comparação com Hitchcock, há uma analogia com Family Plot, quando o primeiro casal quase atropela a raptora, Karen Black. Travões a fundo e a câmara a mudar de rumo, seguindo em perpendicular essa mulher de negro para passar a outra história.

E não é certamente por acaso que as sequências que dão mais "chaves" se passam numa "auberge espagnole", expressão que em francês tanto tem sentido literal ("estalagem espanhola") como metafórico ("casa de doidos", "lugar da máxima confusão"). Esse "episódio" centra-se, inicialmente, na narração pelo padre do milagre da Virgem. É uma história de "como se", em que a Virgem apagou o tempo, para "desfazer" o real, tornando inexistente o pecado de uma carmelita.

Esse lugar do tempo, esse desfazer do real são o "raccourci" de todo o sentido do filme, em que sempre se está a caminhar em vias análogas (sempre como se nada se tivesse passado, sempre como se o mais extraordinário fosse o mais banal, sempre como se todos os tempos e locais coexistissem, sempre sem delimitações da zona do real, sempre sem relações de causa ¬a efeito entre antecedentes e consequentes). Passa-se para a noite na pousada. O estalajadeiro mete o candeeiro de petróleo dentro do armário e tanto basta para uma citação evangélica: "Ninguém acende uma vela para a meter debaixo dum alqueire", expressão metafórica da ocultação da verdade. Qual verdade? Pressentimo-la algo "trouble" porque o que resulta é a insólita proibição - sem razão - de que os dois rapazes durmam no mesmo quarto, e a insólita advertência para não abrirem a porta a ninguém. Mas, nos quartos, cada um deles encontra novo companheiro: a rapariga (para Rodolphe), o desconhecido (para François). É o mundo do conto de fadas, a que se vem juntar uma forte carga erótica. Porque se os inesperados "partenaires" dos dois homens (sequências paralelas) são muito "puros", nenhuma pureza existe quando o padre regressa a bater à porta e fica de ouvido colado a ela, "voyeur" e ouvinte frustrado. Enquanto decorre esse incrível diálogo sobre a riqueza dos mistérios da Santíssima Virgem e, depois, sobre a repugnância divina pelo pecado da impureza, Buñuel procede a ilustrações que são outras tantas ocultações.

O padre entra e sai do quarto, como que "ilustrando" o mistério da virgindade de Nossa Senhora, mas entra e sai também "ocultando" o carácter erótico da relação de confissão invertida. Mas, quando essa inversa e perversa confissão se torna mais "quente" (o padre cada vez mais de ouvido colado à porta), a rapariga deita-se abertamente na cama e diz-lhe que é virgem e, portanto, sem pecado. O padre refuta-a e só consegue que Rodolphe (pela primeira vez) se sente na cama dela, enquanto a rapariga quer saber das eventuais faltas da Virgem.

Nesse momento, o padre desinteressa-se e o inesperado casal apaga a luz e prepara-se para uma noite tranquila. O padre vai bater a outra porta.


Mesma sorte ainda no outro quarto, com um casal de homens. Aí já não há diálogo, a não ser a célebre réplica final do desconhecido: "O meu ódio à ciência e o meu horror à tecnologia ainda me acabarão por levar a essa absurda crença em Deus", que pôde aparecer como uma profissão de fé buñueliana. Depois - a não ser o sabre - não acontece mais nada e nunca veremos os estudantes ou os seus comparsas daquela noite. Quem quiser explicações está como o padre a bater à porta: fala doutra coisa e não vê nada. Explicar só leva à "absurda crença". Nesta paradigmática sequência fundem-se todas as ordens do imaginário do filme. A anulação do tempo e do espaço (como antes sucedera com o prodigioso duelo do jansenista e do jesuíta, presenciado pelos dois luteranos), a invocação da semelhança do mundo mágico e do mundo religioso (basta desejar para acontecer, como no episódio com Clémenti ou como no fuzilamento do Papa, tão singularmente premonitório), a irrisão de qualquer explicação racional ("Nome de Deus, Nome de Deus" e os peregrinos são logo atirados para fora do carro; se Deus existe que nos fulmine, e um raio caíu do céu; "os desígnios de Deus são impenetráveis" e jesuíta e jansenista vão-se embora, em boa paz), o absurdo servido na mesa do prazer, com o desejo e o medo, como seus duplos constantes. Sem que nada seja jamais explicado, essa associação permite (absurdamente) que o espectador siga sempre com tais emoções (prazer, desejo e medo) as querelas teológicas e os acontecimentos extraordinários, colocado no estádio da infância que lhe permite tudo (essas e outras histórias) como se ouvisse um conto ou um catecismo.

A distanciação irónica só intervém em "descargas". Apesar dela, ou por causa dela, o que queremos saber é, como as crianças: "e depois?".

Depois: Compostela vazia porque se descobriu que o corpo não era o de S. Tiago, mas o de Prisciliano (como durante muito tempo vozes autorizadas da Igreja o disseram) e Delphine Seyrig a cumprir o mandato do homem da capa, na citação explícita das palavras de Jeová a Oseias, do Livro dos Profetas (os filhos chamados "Não és o povo" e "Mais Misericórdia').

E o regresso a Cristo e ao episódio dos cegos. A câmara rente ao chão só enquadra pés. Cristo e os apóstolos transpõem a vala com facilidade. Um dos cegos também. O outro não. E é a esse nível (quem passa o filme, quem o não passa) que intervém o fim, sobre as ervas verdes. Última rasteira, num caminho cheio delas. Peregrinações pela via láctea dão muito que pensar...
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel – As Folhas da Cinemateca




Título Original: La Voie Lactée
Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière, baseado numa ideia original de Luis Buñuel
apoiada na Historia de los Heterodoxos Españoles de Marcelino Menendez Pelayo
e nos volumes dedicados às heresias da Histoire de I'Église de

Migne, ed. Paris, 1863
Fotografia: Christian Matras
Montagem: Louisette Hautecoeur e Luis Buñuel
Interpretação: Laurent TerziejJ (Jean), Paul Frankeur (Pierre), Bernard Verley (Jesus Cristo), Edith Scob (a Virgem Maria), Denis Manuel (Rodolphe, estudante protestante), Daniel Pilon (François, o amigo de Rodolphe), Pierre Clémenti (o diabo),
Origem: França/Alemanha/Itália
Ano: 1969
Duração: 98’

Gonçalo Tocha (II ) - não há pilim para o trazer, publicar entrevistas que deu é de borla

É NA TERRA, NÃO É NA LUA
3ªf, IPJ, 21h30
Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€

Como foi parar ao Corvo?
De barco, à boleia com o marinheiro suíço Jean-Claude. Mas já sabia que ia ao Corvo e ia preparado para começar a filmar.

Quão distante (ou próximo) da realidade era o conhecimento que antes tinha da ilha?
Tinha o desconhecimento de quem nunca lá tinha ido e daí o impulso de descobrir. Apesar de ir aos Açores, a São Miguel, quase todos os anos desde criança, o Corvo era um outro mundo inacessível. Tão pequeno e longínquo quanto mitológico.

Ao chegar começaram logo a filmar, ou foram-se adaptando ao lugar aos poucos?
Cheguei ao Corvo a filmar e sai do Corvo a filmar.

Como reagiram as pessoas à presença da vossa câmara na sua ilha?
Com a desconfiança inicial perante o estranho. Cheguei vindo da nada, sem conhecer ninguém. Só me cabia em papel provar até onde estava capaz de chegar. Para além disso, a ilha tinha sido fustigada, nos últimos tempos, com reportagens da televisão que, de alguma forma, criticavam o seu modo de vida. Como no Corvo o conceito de cinema não existe, levámos por tabela. Mas no final de contas, gostei desta tensão, nada era dado.

Levou tempo a deixar de se sentir um forasteiro?
Com o segundo retorno fiquei menos forasteiro, e com o terceiro fui adoptado. Por vezes já diziam que já fazia parte da família e que já poderia filmar tudo o que quisesse.

O que mais encanta e o que mais assusta num microcosmos tão pequeno como é o Corvo?
O que mais encanta é o sentimento de pertença. Aqui, como a bordo dos navios, toda a gente conta. Possivelmente menos confortável, é a noção circular do espaço, andamos às voltas, sem sair do mesmo espaço. Todas as conchas protegem e limitam.

Como fazia o dia a dia por lá? O que se fazia depois do trabalho?
Nunca houve “depois do trabalho”. Todos os minutos era para o filme, mesmo os petiscos, os jantares, as festas, o copo no café. Estávamos sempre com a câmara e o microfone ligados.

Leu sobre a ilha antes de ir ou foi descobrindo os lugares, histórias e pessoas já na ilha?
Li tudo o que encontrei escrito sobre o Corvo. Passei duas semanas na Biblioteca Pública de Ponta Delgada. São poucos documentos, cabem numa pasta. Tinha uma noção alargada do que teria sido a ilha nos últimos 500 anos, ainda que não se possa saber muito. Sabia que estava a passar por uma transformação económica e social radical. Mas não se sabia bem que transformação seria essa. Quando cheguei à ilha, havia então tudo para descobrir, as pessoas, a natureza, o passado e o presente.

Sente-se o isolamento? E como se ultrapassa esse isolamento?
Nunca senti isolamento, mas também eu vivi o quotidiano do Corvo através duma aventura.
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Nuno Galopim, Sound & Vision

Gonçalo Tocha - não há pilim para o trazer, publicar entrevistas que deu é de borla

É NA TERRA, NÃO É NA LUA
3ªf, IPJ, 21h30

Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€

Como surgiu este filme?
Quando terminei o meu primeiro filme, o Balaou, em 2007, fui mostrá-lo em São Miguel e, nessa altura, surgiu um convite para ir ao Corvo na perspectiva de, talvez, fazer qualquer coisa lá. Com o Balaou já tinha dito que, provavelmente, não ia fazer outro filme. O Balaou já me tinha enchido tanto que não sentia essa necessidade. Mas de repente surgiu este chamamento, um eco que me sugeria voltar aos Açores e aprofundar a minha relação com o arquipélago.

Já conhecia o Corvo?
Não, e por isso é que o filme começa com a minha chegada à ilha. A minha família é de São Miguel e eu ia lá todos os anos com a minha mãe. Esse imaginário dos Açores marcou-me sempre muito. Sobre o Corvo sempre me interessou a ideia distante que fazemos da ilha sem nunca lá termos estado.

Fez pesquisa antes de ir?
Não, porque não queria descobrir o que era o Corvo por antecedência. Esse processo de descoberta faz parte do filme.

Fez o filme só com um amigo. Como foram recebidos?
A população protege muito a imagem do Corvo e a grande desconfiança foi logo que imagens íamos fazer. Mas como eu sabia que ia ter muito tempo, joguei com isso. Acho muito interessante que uma câmara apareça no meio de uma realidade e que registe coisas muito profundas porque deixamos que elas aconteçam. Eles perceberam que havia, finalmente, uma equipa de rodagem com tempo para eles.

Porque optou por este registo que mistura diário pessoal com documentário?
Todo o cinema e experiência cinematográfica tem de ter uma implicação pessoal. Isso não significa ser autobiográfico, mas sim colocarmo-nos dentro daquela realidade. No Corvo isto ainda era mais evidente. De que forma podia filmar a população do Corvo sem mostrar que estávamos todos ali, em jogo? É por isso que o filme não é só sobre o Corvo. É um microcosmos que tem muito de laboratório humano, onde eu próprio, como pessoa e como realizador, cresci.

O filme tem imagens imperfeitas. Foi propositado?
Não considero imperfeitas, mas sim coisas que acontecem pela forma como estou a filmar. Por exemplo, há um plano em que está a chegar um avião e a câmara mexe-se imenso. Aquilo está muito mal filmado porque eu ando com a câmara no tripé à procura do ângulo certo. Durante muito tempo tentei cortar e ficar com a imagem limpa, mas de repente pensei: ‘Porque estou a tirar isto? Estou a esconder que fiz o plano assim?’ Essa também foi uma preocupação: não ter medo de assumir a maneira como foi filmado.

Ao longo do filme, a câmara integra-se na população…
Isso é que faz o filme! Duas pessoas sozinhas a tentar fazer um filme perante uma comunidade de 440 pessoas, assumindo totalmente a sua presença. Nunca quis ser neutro e distante para, do meu posto de observação, perceber o Corvo. Isso seria uma armadilha. A grande possibilidade era assumir o que estávamos a fazer e, aí sim, as coisas podiam acontecer. Eles sabiam que quando estavam a falar comigo a câmara e o microfone estavam sempre ligados.

Disse que o cinema tem de ter sempre uma implicação pessoal. Só se vê a fazer filmes assim?
Os filmes de que gosto são experiências únicas e eu não quero fazer um filme todos os anos. Quero fazer filmes que sejam um marco da minha passagem nesta vida e que seja uma experiência fortíssima, mesmo que depois nem sequer haja filme. No Corvo cheguei a pensar várias vezes que não ia haver filme, mas houve sempre uma experiência cinematográfica forte. Algo que me superou, que eu não controlei e que me surpreendeu.

Numa entrevista que deu em Agosto, a propósito da estreia mundial do filme no Festival de Locarno, na Suíça, perguntaram-lhe se é cineasta e não soube responder. Já sabe?
Não sei… Acho muito mais relevante saber se vou fazer outro filme e de que maneira é que o vou fazer. E a isso nem eu sei ainda responder.

Dedicou quatro anos da sua vida a este filme. Financeiramente como foi possível?
Não fiz contas, mas o orçamento deve ter sido de 15 mil euros. É ridículo para um filme destes. Consegui fazê-lo porque tive apoio de uma associação que, entretanto, desapareceu, e tive uma equipa muito pequena de amigos que acreditavam no que estava a fazer. Além disso, vendi o Balaou para a RTP2 e o Arte e assim consegui acabar o filme.

Como se vive do cinema documental?
Não se vive. Com o cinema só gasto dinheiro. Vivo do meu trabalho como freelancer. Trabalho em vídeo para os Deolinda, faço oficinas de vídeo e sou músico.

Como começou no vídeo?
Comecei a ver imenso cinema na adolescência. Depois, já na faculdade, ia todos os dias à Cinemateca. A minha principal formação foi essa, a de ver muito. A outra foi ver o mundo. Fui aos quatro cantos do mundo porque o meu pai trabalhava na TAP. Depois, na Faculdade de Letras, onde estudei Língua e Cultura Portuguesa, criei um cineclube e esse foi o ponto-chave da minha formação. Organizar ciclos de cinema, workshops de vídeo e documentário e lidar com realizadores que iam lá apresentar os seus filmes permitiu-me ter um contacto directo com este meio. A parte prática surgiu com a oportunidade de adquirir material técnico para o cineclube. Comecei a mexer nas câmaras, a aprender sozinho. Fiz muitos pequenos vídeos e em 2005, quando fui aos Açores fazer o luto da minha mãe, levei a câmara e comecei a filmar. Senti que estava a desabrochar uma paixão nova e assim surgiu Balaou.

Não premeditou então a carreira no cinema?
Não, houve um chamamento qualquer e é mesmo assim que funciono. Sempre que tento planear um projecto nunca corre bem.

Na música também é assim?
Os projectos na música sim, mas a música enquanto criação artística foi a primeira coisa que surgiu. Comecei a compor por volta dos 13 anos porque estava deprimido e a música é a melhor forma de catarse na adolescência.

Teve os Lupanar, com a Ana Bacalhau dos Deolinda, e agora canta sob o nome de Gonçalo Gonçalves, um cantor romântico à moda antiga. Como é que ele apareceu?
Surgiu da minha paixão pelos cantores românticos, aquela ideia de que os cantores não têm época, nem idade e misturam vários estilos.

O Gonçalves é um alter ego do Tocha?
Não. Os dois são o mesmo, sou eu. Este é o tipo de música que oiço em casa: coisas românticas, exóticas e com teclados. Se vejo um vinil de artistas como o Klaus Wunderlich [alemão, considerado o rei dos teclados], o Martin Denny [cantor exótico do Havai] ou o Roberto Carlos tenho de os comprar. Há ali ideias maravilhosas.
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Alexandra Ho, Sol

É NA TERRA, NÃO É NA LUA - 3ªF, IPJ - O MAIS PREMIADO DOC PORTUGUÊS - «Um filme profundo e comovente, muitas vezes divertido e sempre envolvente»

A ilha é minúscula de 17 quilómetros quadrados e de 440 habitantes. Ilha que se chama Corvo e que é a mais pequena de um arquipélago, o dos Açores, de ressonância mítica – pode não ser a Atlântida no meio do Atlântico, mas tal hipótese já foi teorizada. Aproximamo-nos dela, olhar alargando-se da proa do barco à elevação do antigo e morto vulcão que se desenha no horizonte. Já lá estamos. Uma janela com vista para mar e casario, gotas de chuva e vento lá fora, do outro lado daquela janela que protege o homem que filma. Que se chama Gonçalo Tocha e que nos diz “É NA TERRA NÃO É NA LUA”. Não é o primeiro a dizê-lo. O título foi utilizado na imprensa portuguesa quando, pouco depois da chegada do Homem à Lua, precisamente, jornalistas andaram a procurar outras luas por descobrir aqui mesmo, na terra – vemos as parangonas e recortes de imprensa no filme. Chegaram onde chegou Gonçalo Tocha em Agosto de 2007, mas não viram o mesmo que Gonçalo Tocha, o realizador que se estreou com “Balaou”, melhor longa portuguesa no Indie Lisboa 2007, e que regressa agora, quatro anos depois de partir pela primeira vez para o Corvo, com um filme, É NA TERRA NÃO É NA LUA [...].

Gonçalo partiu para a mais pequena ilha dos Açores porque sentiu que teria que pegar novamente na câmara. É um cineasta que vive de arrebatamentos: depois de “Balaou” dissera não saber se faria outro filme e diz o mesmo agora, quando terminou este filme de uma demência surda, em que nada está explodido – a meio é que percebemos que é algo gigantesco, porque já passaram quase duas das suas três horas – que se tornou numa obsessão de que não estava certo de se libertar. Gonçalo diz não saber se fará outro filme e não é pose.


“Mas vês-te como cineasta?”, perguntámos quando já passáramos pela música – Tocha também é Gonçalo Gonçalves, “o cantor romântico abandonado”, criação que é acto de amor (à ideia de um tempo e de um lugar e à música correspondente) no limite de gesto de performer. Passáramos por isso e ele dissera-nos que “fazer música aparece primeiro [que o cinema]: “Estive anos a ver cinema, a comer cinema. Sabia que mais tarde iria fazer qualquer coisa, esperava o momento. O ‘Balaou‘ foi esse momento.” Perguntámos então se se via como cineasta. Olhou-nos com surpresa e timidez, soltou um “talvez”, depois um “sim” interrogativo à espera de confirmação. Disse por fim. “Não consigo responder a isso. Estou naquele ponto em que não sei se vou fazer outro filme. Se calhar sou um cineasta quando aparece um novo projecto. Então percebo, ‘ah, continuo a ser cineasta‘”. Neste caso, projecto talvez seja palavra demasiado burocrática para descrever o processo. Gonçalo parte à descoberta. Como que responde a um chamamento. “A ilha é a estrela do filme”, entusiasma-se. “Na minha família de São Miguel [o avô nasceu lá, Gonçalo, na infância, passava todos os verões no arquipélago] ninguém conhece o Corvo. Digo que vou ao Corvo e é como se dissesse que vou ao Taiti ou às Maldivas”. Foi por isso que teve que partir, sem saber em busca de quê. “Ia filmar a comunidade. Ia filmar a ilha”. Como um explorador. “Cada dia que passava era mais aberto, cada vez havia mais coisas para descobrir. Nunca senti a claustrofobia [na ilha]. Câmara à mão e tripé, 24 horas por dia. Nunca cheguei ao ponto de dizer ‘já não há nada para filmar’”. Em “Balaou”, também tínhamos o mar como cenário. O que separa São Miguel de Lisboa, e que Gonçalo Tocha filmou numa viagem que fora descoberta, exorcismo e por fim, aceitação. Fora a morte da mãe, sete meses antes da rodagem, a espoletar uma “viagem para aceitar o olvido das coisas”. Agora, tem um barco em que navega, aquele que o conduz ao Corvo, essa ilha sobre a qual diz o capitão belga que lhe dera boleia, “os Açores são loucos, mas o Corvo é mais louco ainda”.

O barco de Gonçalo Tocha é a ilha ela mesma.


Tocha é o aventureiro que observa, que perscruta, que se aventura. Os Açores, e o Corvo, como descobriu, são o sítio perfeito para se aventurar. Uma história antiga. “A mitologia dos Açores marcou-me profundamente. Quando somos pequenos, a natureza marca-nos, principalmente se for uma natureza que cheiramos e tocamos. Os Açores eram o sítio onde ia todos os anos em pequeno e marcou-me. Não era a questão de estar isolado numa ilha. Era a ligação entre as ilhas, era ser um ponto de passagem”. Mais tarde, mergulhou nos arquivos em busca da história, mas esse deslumbramento da infância não se desvaneceu. Por isso mesmo, É NA TERRA NÃO É NA LUA não é um documentário que pretenda dar respostas.

É uma aventura náutica em terra firme e a Gonçalo Tocha interessam tanto os pessoas que filma, a história que guardam e corporizam, quando uma certa neblina de fantasia que a câmara não esconde.

Todos os processos no filme vão no sentido de conhecermos as pessoas filmadas, de conhecermos o velho caçador de baleias, o bailarino que se harmoniza no verde natural, o casal que dança uma canção de Paulo Gonzo no pequeno café que é também bar e discoteca, os homens que desbastam a erva daninha da encosta ou aqueles dois que comentam, com conhecimento que nos escapa e olhar treinado com todo o tempo do mundo, o impacto as vagas arrojando sobre o cimento e escalando o pontão. Todos os processos do filme, continuemos, parecem manifestar um desejo de aproximação, mas a forma como Gonçalo Tocha e o sonoplasta Dídio Pestana aparecem e trocam impressões, corpo real ou em sombra, e a forma como narram em tom sereno, contemplativo, os diálogos que pontuam a “descoberta” no filme, qual diário de bordo, tudo isso e os planos replicando fotos antigas, não são luz iluminando de “verdade”, no estrito sentido documental, este Corvo que é na Terra e não é na Lua – mas que se calhar, por isso mesmo, continua na lua.

Essa ilha meio nebulosa e escondida não se revela afinal “normal” e tão “próxima” de nós, como se pretende, por exemplo, em reportagem televisiva - a televisão tenta explicar, normalizar, diluir a diferença num todo perfeitamente legível, sem sobressaltos. Não era isso que o filme procurava. “Não me interessa nada desmistificar os Açores, e principalmente o Corvo”. Isto é muito importante para Gonçalo Tocha, 32 anos, cineasta que só sente sê-lo quanto tem uma câmara na mão e, com ela, um objecto de desejo que filmar. Gonçalo é também um músico que não se limita a fazer canções. No duo Tocha Pestana, cruzamento entre glam T. Rex e baile popular Nel Monteiro que o reúne a Dídio Pestana, tão à vontade em clube berlinense quanto em praça de Alfama em noite de Santos, ou, principalmente, enquanto Gonçalo Gonçalves, o “cantor romântico abandonado” que idolatra Rei Roberto Carlos e Júlio Iglesias, encontramos, de uma forma mais evidente, esse desejo de fantasia, essa vontade de maravilhamento. Em Gonçalo Tocha, o cineasta, esse desejo está presente, mas manifesta-se de forma diferente. Na música, Tocha conduz a orquestra. No cinema, responde ao apelo de um cenário e do que nele se esconderá sobre o aparente - descobre-o surpreendente sob um manto de normalidade.

“Chegas à verdade pelo artifício”, disse-nos em 2010 na sua casa decorada como museu Gonçalo Gonçalves, com relógios em forma de coração na parede, bibelots com corpo bailarina na mesinha, gambiarra tremeluzente serpenteando os móveis ou vinis de cantores românticos europeus e sul-americanos espalhados pela sala. “Crias uma distância que te protege. Não te fecha [ao mundo], abre [um mundo]”. Isso, no limite, une-lhe a música ao cinema.

Com esta diferença fundamental. “O cinema para mim é uma coisa de muito tempo. De aventura pessoal. Para mim, é o desconhecido total. A música nasce de referências que tenho, deste quase desejo de me transformar num cantor dos anos 1970 e querer viver como um”.


É NA TERRA NÃO É NA LUA foi filmado em três viagens de um mês e meio. Esse regressar foi importante para a conseguir familiaridade e vencer, dentro do possível, a desconfiança. “No Corvo é importante voltar. Estão habituados a que chegues e vás embora. Voltar abre o livro”. Não havia plano de rodagem pré-definido. Apenas a vontade de filmar. De filmar tudo, com essa urgência de “isto está tudo a mudar, está tudo a desaparecer” – as pessoas, precisará, eram as pessoas, os octogenários e nonagenários e as suas histórias de uma ilha sem historiografia fixada que desapareciam. Gonçalo e Dídio estavam a “acompanhar o mundo a acontecer” perante os seus olhos.

Falámos acima de fantasia. A fantasia que sobressai em É NA TERRA NÃO É NA LUA não é fantasia exuberante de conto fantástico. A sua dimensão é outra. O delirante período eleitoral que, dado que a maioria da população está directamente envolvida nele, pára a ilha – “a política é o melhor que há; devia haver eleições todos os meses”, atira o homem que passa no seu jipe. Esse lado mais selvagem e tradicional, com o porco e ser preparado para a matança manhã cedo, convivendo com um progresso que ganha contornos de futurismo maquinal – o matadouro de cinzento chapa e a água que escorre dos aparelhos, em ambiente de “Blade Runner” asséptico. E a sensação de viagem subentendida nas memórias de emigração para os EUA, expostas nos pratos com bandeira americana nas paredes das casas, explícita no mecânico que, iluminado pelo crepúsculo, explica sem papas na língua que planeia ir para Angola – “para dinheiro é lá” – porque “a Europa está toda fodida”. Mas talvez essa possibilidade de fantasia que se explique melhor com a história do ornitólogo inglês que certo dia, enquanto vagueava sozinho, avistou um pássaro raríssimo e vomitou de tanta emoção. Vomitou do nervosismo da descoberta e de estar a viver aquele momento único sozinho, sem ninguém com quem a partilhar. No minúsculo mas interminável Corvo de Gonçalo Tocha, as descobertas ficam com os 440 habitantes da ilha, incorporadas no seu código genético, entre lenda e (pouca) história oficial, ao longo dos cinco séculos que distam da descoberta da ilha por Duarte e João de Teive, em 1452.

É NA TERRA NÃO É NA LUA é pautado pelo lento tecer de um gorro. Um gorro corvino feito pela mulher de 75 anos que, com “paciência de velha” (as palavras são dela), o prepara para Gonçalo Tocha. Aquele gorro é como que ritual de passagem. Quando o colocar na cabeça, Gonçalo será oficiosamente um corvino. Mas o que é ser corvino? Não sabe, mas sabê-lo não é importante. “O filme é o baptismo”. O ritual de passagem é que é importante. Aquilo em que nos transformamos? Logo veremos.

Um dia depois da entrevista, recebemos um mail. Dizia isto: “Fiquei um pouco sem resposta quando me perguntaste se me considerava um cineasta, porque nunca tinha pensado nisso nem nunca ninguém me tinha perguntado. ‘Balaou’ foi o filme da revelação pessoal e o Corvo [É NA TERRA NÃO É NA LUA] o filme da descoberta do mundo, posso dizer que foi o meu baptismo civilizacional. Só consegui terminar este filme quando me libertei do peso de ter de acompanhar o registo contemporâneo ad eternum da ilha. Tudo tem um fim e a aventura é única. O que vivi no Corvo não se volta a viver. Foi outra lição do desapego”.

O cineasta aprendeu que, mesmo que o cinema seja a vida, ou fantasia de vida, tem que aprender quando parar de filmar. Para que, mais tarde, possa filmar novamente.
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Vasco Câmara e Mário Lopes, Público



"Cada filme que faço é uma revolução na minha vida", diz Gonçalo Tocha. E essa é a sua forma de estar no cinema. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom íntimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balaou, obra de estreia que venceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou-se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua vai ao último lugar do arquipélago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de filme retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no bar da vila ao insólito período de campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo no panorama nacional. Divide a sua atividade artística entre o cinema e a música. Formou os Lupanar (a banda de Ana Bacalhau antes dos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas.

O teu filme anterior, Balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo?
Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada.

Logo no início do filme propões-te a um exercício exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a totalidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coisas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos?
Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queríamos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressuposto que eu tinha era que aquela era uma oportunidade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podíamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vizinhas, o mundo em síntese.

Aliás, não há um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo.
Houve um austríaco que o conseguiu durante alguns anos e depois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obrigado a viver sem saneamento básico, sem água nem luz, uma experiência radical.

O Corvo é um caso exemplar para um estudo sociológico, um meio pequeno, mas não comparável com uma aldeia isolada em Trás-os-Montes.
Nos anos 60 e 70 escreveram-se alguns livros sobre isso, mas versavam essencialmente sobre o antigo comunitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múltiplas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotarão no filme. Há sempre mais. É uma ilha em completa mutação. Está tudo a acontecer. À partida imaginamos que nada se passa lá, mas é precisamente ao contrário: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pequeno nada é um grande acontecimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas passavam por lá. Por isso foi constante o aparecimento de navegadores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam sempre de olhos virados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na autossuficiência, mas não no conhecimento do que se passava à volta.


Notaste isso hoje em dia?
Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança radical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo. Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o antigo, o rural e o urbano, o modo de vida dos avós e das novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus.

Sentiste dificuldade em entrar naquela sociedade? São muito desconfiados?
É uma sociedade que se autoprotege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então decidi assumir tudo claramente desde início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha que assumir, "eu sou o gajo da câmara". E isso permitiu-me estar sempre a filmar. Avisei logo: "Isto está sempre ligado."

A população é muito envelhecida?
Nem por isso, foram criados empregos na área dos serviços e a população mais nova ficou..

Deu-te uma sensação de claustrofobia?
Não, porque estava tudo a acontecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbramento. Nunca senti que não havia mais nada para fazer.

E os corvinos sentem a ânsia de sair dali?
É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha pergunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo pareceu-me demasiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de especial: o seu mundo é demasiado pequeno e abstrato.

Um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua?
As condições geográficas são inacreditáveis. É um grande mergulho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecível no próprio corpo, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de sociedade, a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se. Apesar da distância, aquilo é Corvo, Açores, Portugal, Europa. Está ali marcado, é uma sociedade ocidental e europeia.

Há partes especialmente caricatas, como o período da campanha eleitoral, em que a ilha pára.
Filmei as eleições todas e o ato eleitoral propriamente dito, os vencedores... mas não tinha espaço para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é única, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo, porque muito poucos votos dão muito poder.

Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo contrário, dado o seu afastamento, acabam por ser protegidos?
Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por isso é que era uma sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com ninguém. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açúcar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores estão na periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. Todas menos o Corvo. O Corvo é a periferia das Flores.

E foi esse 'fim do mundo' que te atraiu?
Quis fazer um filme no limite. Em que não soubesse quando acabava, que fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balaou em São Miguel. Fui à boleia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até chegar lá. Ninguém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia era recriar a energia dos exploradores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embrenhar e maravilhar por tudo o que acontece. Se o filme tem alguma virtude é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo.

Tal como tinhas feito no Balaou...
Sim, há recorrências na maneira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio tinha que seguir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompanhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as consequências.

E agora? Já estás a preparar outra coisa?
Ainda não, estou dedicado à distribuição e queria intercalar com os meus projetos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: "Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida". Acabei por tê-la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Agora não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores.

Mas onde se poderá ir além da Ilha do Corvo?
Não sei, talvez ao fundo do mar.
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Manuel Halpern, Visão



Realização, Fotografia, Montagem, Voz, Produção: Gonçalo Tocha
Som, Banda-Sonora, Voz: Didio Pestana
Montagem: Rui Ribeiro, Catherine Villeret
Pós-Produção Vídeo: Sérgio Aragão
Colorista: Ignacio Ribera
Mistura de Som: André Neto
Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 180’

Obras-Primas na Sede, 5ªf 24 - TRISTANA, AMOR PERVERSO de Luis Buñuel, o Herege.

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).


Tristana foi o único dos dez filmes realizados por Buñuel entre 1956 e 1970 cuja exibição foi autorizada em Portugal pelo antigo regime. Para o espectador comum, sem viagens ao estrangeiro, seguiu-se cronologicamente à estreia de Ensayo de un Crimen, obra de 1955, exibida em 1967. Tinhamos, por aqui, perdido o contacto com Buñuel nas produções de 55 e 56. Retomávamo-lo com um filme catorze anos posteriores e "saltando" sobre toda a sua celebrada produção dos anos 60.

Houve razões para que isso acontecesse: Tristana era um filme espanhol e, desta vez, não se repetiu o escândalo de Viridiana. O filme teve estreia mundial em Madrid com "luz verde" de Fraga Iribarne, mas depois de muitas peripécias e de uma proibição inicial do projecto em 62.

Por outro lado, é curioso notar que Buñuel, farto de ver um seu antigo sonho abortar (a primeira vez que o pensou realizar foi em 52, no México) chegou a pensar rodar o filme em Portugal. Braga e Viseu foram locais pensados e visitados, então, por Buñuel, para substituir Toledo em caso de necessidade.

Pela segunda vez adaptou Galdós (Nazarín foi a primeira). O filme teve espectacular acolhimento, quer junto do público, quer junto da crítica. Mesmo críticos bastante rigorosos e reticentes em relação à obra de Buñuel, abriram uma excepção para Tristana, considerada por muitos a obra-prima de Buñuel (curiosamente, a única crítica bastante reticente foi a espanhola, mesmo a mais hostil ao franquismo).

Se é óbvio que há uma certa ruptura com os filmes imediatamente precedentes e com os três filmes finais, será porque, como sustentam alguns, a narração é mais clássica? Não julgo que o adjectivo se justifique (e já lá vamos) mas o lugar da narratividade é mais coeso, quer por se tratar da adaptação dum livro, quer por ser a única obra post Simon deI Desierto em que o co-argumentista não foi Carrière, mas Julio Alejandro, com quem Buñuel trabalhou em Nazarín, Viridiana e Simon deI Desierto. E se Buñuel deve, eventualmente, a Jean-Claude Carrière os grandes sucessos comerciais que nunca, no passado, havia tido, como deve a Serge Silberman (produtor de Le Journal, La Voie Lactée, Le Charme Discret, Le Fantôme de la Liberté, Cet Obscur Objet) produções muito cuidadas e muito calculadas, julgo, pessoalmente, que qualquer deles lhe forçou a mão, levando-o a fazer "trop Buñuel", ou "Buñuel mieux que nature".


Como bem notou J.F. Aranda no artigo A Dialéctica do Ilogismo em Buñuel, publicado no catálogo da Cinemateca em 1982, há, nas obras escritas com Carrière, um "espírito de medida", "um bom gosto e equilíbrio formais", "que não se casam bem com os arrebatamentos do touro enraivecido que Buñuel é". "Arestas polidas", "subversões mitigadas", o que é sobretudo sensível em Le Charme Discret e Le Fantôme de la Liberté.

Tristana, para além do caso sui generis de Cet Obscur Objet, é o único filme de Buñuel dos anos 70, em que a "medida" e o "bem feitinho" não se notam, é o último grande filme radical de Buñuel.

Por outro lado, Tristana representa o ponto limite da peregrinação de Buñuel em torno de um arquétipo feminino, que tivera geniais expressões anteriores em Susana, na Catalina de Abismos de Pasión, em The Young One, em Viridiana, na Céléstine do Journal ou em Belle de Jour. Combinando-o, no limite da explosividade, com análoga peregrinação em torno de arquétipos masculinos desenvolvidos em Susana, EI Bruto, ÉI, Viridiana, Le Journal. Muito simplificadamente: as perversas e os perversos velhos, para utilizar um adjectivo tão do gosto da publicidade (Susana e Tristana levaram esse aposto ou continuado, nos títulos respectivos em França e em Portugal).

Mas não é nada indiferente que os protagonistas do filme catalisem essa tendência nos actores que melhor os fixam: Catherine Deneuve (a de Belle de Jour) e Fernando Rey (o de Viridiana e, depois, do Charme e do Obscur Objet).

Uma digressão tão breve quanto possível para me explicar melhor: as protagonistas dos citados filmes "femininos" sempre pareceram dar alguma razão aos protagonistas dos citados filmes "masculinos". Imaginemos Francisco Galván (o de ÉI) a ver Belle de Jour: o seu delírio "paranóico" encontraria confirmação em semelhantes imagens e, para lá de tudo o que já pensava da mulher, tê-la-ia "visto" imediatamente a entrar para uma casa de passe. Mas se a Séverine de Belle de Jour tivesse visto Él, lamentaria não ter como marido Arturo de Cordova em vez de Jean Sorel, para a torturar melhor.


Em Tristana esse verso e reverso tornaram-se um só. Catherine Deneuve acrescenta a componente sádica à componente masoquista e Fernando Rey segue o caminho inverso.

Tristana, a quem D. Lope começa por chamar "mi hijita adorada" ("solo te pido que me queiras como a un padre') inicia a sua "educação" em casa de Fernando Rey, ajoelhada aos pés deste a calçar-lhe as pantufas. O miúdo onanista e o "pai", simultaneamente libertador e castrador, fundem-se nos seus fantasmas e sonhos eróticos. O primeiro dos seus pesadelos vem depois da subida à torre da igreja (como em ÉI), de ter tocado os sinos fálicos (como em ÉI) e de ter sido apalpada pelo surdo-mudo nas escadas do campanário (junte-se ainda a conotação alimentar da sequência das migas). E o sino (fálus) transforma-se na cabeça do "pai", como aquele badalando e como aquele objecto de desejo e ameaça ("toque de agonia", "toque de glória").

É quando acorda do pesadelo que Fernando Rey a toca pela primeira vez a ela ("como si hubiera visto al diablo"). Esse "diabo" (tutor-pai-amante) vai-se desdobrando em discursos contraditórios: no café é libertino, em casa diz que "mujer honrada, pierna quebrada y en casa" (mal sabendo como o seu voto se cumpriria). No café admite duas excepções à posse de mulheres: "la esposa de un amigo" e "esa extraña flor, tan rara hoy, que nasce de la perfecta inocencia". Palavras não eram ditas e surge a imagem de Tristana, "la perfecta inocencia" que não vai ser excepção mas obsessão e regra.

A "perfecta inocencia" vai molhando o pão no ovo até à prodigiosa sequência das colunas, do bispo e do beijo. Tudo começa com um passeio, em que D. Lope sublinha a Tristana o "cheiro apodrecedor da conjugalidade" e lhe diz "no te cases nunca, Tristanita. El amor debe ser livre". Sobrevém a assombrosa e insólita associação com as colunas (entre dois objectos iguais, um tem que ser o preferido), "sintoma" ou síndroma de escolha repetido ao longo do filme: os frutos, as ruas. Tristana entra na igreja e debruça-se sobre a estátua do bispo jacente. "Em que pensas?", pergunta-lhe Rey. "Que precisa de pantufas novas" é a surpreendente resposta. Depois é o beijo, primeiro na cara, a seguir na boca (como mais tarde se repetirá com Horácio). E Tristana ri quase histericamente, antes de ir para a cama com o tutor (sequência seguinte), essa cama onde um cão se instalara, donde um cão é expulso, ficando, como nós, voyeur frustrado. Essa prodigiosa ascensão do filme culmina todos os fantasmas de Tristana: o incesto, a imagem do padre, a escolha como escolho da liberdade. Aí se perfaz o seu prazer. O movimento posterior do filme é o inverso. Tristana trai Fernando Rey com um jovem demasiado brando, atira-lhe as pantufas para o caixote do lixo, foge-lhe e começa a odiá-lo. De "velho lúbrico", Fernando Rey volve-se em "vítima propiciatória"? Nada é tão simples em Buñuel. Mesmo quando abandonado, D. Lope tem a certeza (como Jorge tinha na Viridiana) que Tristana há-de voltar e o estigma fica no cumprimento do seu voto inicial: Tristana volta "de pierna quebrada" e essa prodigiosa amputação volta a reunir junto a ela os dois fantasmas da impotência: o miúdo e o velho. Oferece-se aos prazeres solitários do primeiro numa das mais assombrosas sequências eróticas da história do cinema (o sorriso de Tristana) e o seu ódio contra D. Lope cresce quando ele deixa de "mudar de cara como de camisa", quando a sua força sexual se esbate ("quanto melhor ele é, mais o odeio", diz ao padre). E se o deixa morrer no fim (a chamada telefónica em lapso) os seus pesadelos mantêm-se os mesmos, com a cabeça e as pantufas do tutor em grande plano.


E será por acaso que falando deste filme, Buñuel só fala do Acaso? Entre duas ruas iguais, Tristana escolheu uma e o perro sarnoso levou-a a Horácio. Entre duas colunas iguais, Tristana escolheu uma e o bispo jacente levou-a a D. Lope. Ou os dois grãos-de-bico. Porque se fixa sobre ela, nessa silenciosíssima sequência da casa de jantar, uma tão intensa divisão? E uma tão intensa luz, quando escolhe um e, após o traveling que leva ao grande plano, o mastiga lentamente?

E com mais alguma atenção repararemos que essa divisão e luz voltam a aparecer depois da primeira tarde de amor com Horácio, quando atira o chapéu ao ar e D. Lope lhe diz "que guapa estás". O seu reverso (ou será o seu análogo?) são os planos circulantes de Tristana, durante "a última ceia", com o barulho das muletas a ecoarem, uma vez mais, os tambores de Calanda.

A morte, uma janela aberta para parte nenhuma e a repetição circular de tudo nas recapitulações oníricas. A perna amputada e a cabeça cortada. Corpos e órgãos sem junção possível. Parafraseando Fernando Rey para o médico: "Que arte é esta que só cura mutilando?" As peças do amor e do desejo jamais se conjugam e só ficam as mutilações.

Talvez, por isso, Alfred Hitchcock (supremo admirador deste filme) só dizia a Buñuel: "Oh, that leg, that damned cut leg". Porque essa é a imagem da única conjugação possível: solitária.
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel – A Folhas da Cinemateca




Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Julio Alejandro, baseado no romance homónimo de Benito Pérez Galdós
Direcção de Fotografia: José F. Aguayo
Montagem: Pedro del Rey
Arranjo Musical: Luis Buñuel (Estudo n°12 de Chopin)
Interpretação: Catherine Deneuve (Tristana), Fernando Rey (D. Lope), Lola Gaos (Saturna), Franco Nero (Horacio), Jesús Femández (Saturno),
Antonio Cases (D. Cosme), Vicente Soler (o padre), José Calvo (o sineiro), Sergio Mendizábal (o professor), Fernando Cebrián (o médico)
Origem: Espanha/Itália/França
Ano: 1970
Duração: 100 ‘

3ªF, REGRESSO AO IPJ - a estreia tão aguardada de ENTER THE VOID!

DIA 22 MAIO - ENTER THE VOID - VIAGEM ALUCINANTE DE GASPAR NOÉ.

sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€


E se Gaspar Noé, o realizador de "Irreversível" fizer um filme de duas horas e meia sobre o que um morto vê depois de morrer, isso é... "Enter the Void". O filme que um cineasta ateu gostava de ter visto aos 25 anos.

Todos os anos", diz Gaspar Noé, "há dois ou três meteoros," filmes "audaciosos" que parecem ovnis ao lado da corrente normal do cinema contemporâneo. "Mulholland Drive [David Lynch, 2001] é um deles, há outro de que gosto muito ao nível estrutural, 21 Gramas[Alejandro González Iñárritu, 2003], ou Palindromes, de Todd Solondz [2004], onde a mesma personagem é representada por um actor diferente consoante a cena. É uma ideia de que teria gostado de me lembrar."

Gaspar Noé não vai ao ponto de considerar a sua terceira longa, Enter the Void - Viagem Alucinante, como um desses meteoros - embora admita: "sim, é um filme muito audacioso", Mas a verdade é que sim, este é um meteoro. Ou não se tratasse da história da deambulação por Tóquio do espírito de um dealer de droga que acabou de ser morto a tiro numa casa de banho, que observamos em câmara subjectiva, pelos olhos do próprio falecido, durante duas horas e meia.

E se o leitor perguntar: quem é o tipo passado da cabeça que faz um filme estroboscópico de duas horas e meia sobre o que um morto vê depois de morrer?... a resposta é "irreversível".

Ou, por outras palavras: Gaspar Noé é o autor de Irreversível (2002), o filme-escândalo contado de trás para a frente, que começava com Vincent Cassel a esmagar a cabeça de um certo Ténia com um extintor, passava pela violação em tempo real de Monica Bellucci num túnel de metro, e acabava na mais pacífica felicidade conjugal. Antes disso, houvera Seul contre Tous (1998), a história de um talhante que decide vingar-se da sociedade que o relegou para as margens, contada através de um polémico monólogo interior.

Alguém falou em audácia?


Montanha russa
Enter the Void é um meteoro. E ao contrário da maior parte dos meteoros que só caem uma vez, este parece passar a vida a entrar e sair de órbita: estreado em 2009 em Cannes numa versão inacabada, finalmente completado a contento do seu autor em 2010, é um filme com o qual Noé vive há mais de cinco anos. "Entre o momento em que o comecei a preparar a sério e o momento em que o terminei a sério passaram-se quase quatro anos. Depois começou a estrear, passei cerca de um ano a fazer a promoção..." Promoção que ainda não acabou, porque esta semana este filme "atípico, que os distribuidores não sabem bem como vender" chega a Portugal e à Argentina (país de onde o realizador é natural).

"Atípico" é coisa que Noé faz questão de ser. Reconhece que há qualquer coisa de "parque de diversões" nos filmes que faz - sobre Enter the Void, diz-nos, durante a sua passagem "meteórica" pela capital: "A ideia é que o filme seja uma montanha russa: sentamo-nos no carrinho e somos levados pela experiência. É verdade que a câmara subjectiva ajuda a esse lado, se fosse visto do exterior pareceria bastante mais normal, seria uma experiência mais convencional."

Mas que não se confunda isso com uma vontade de épater le bourgeois: por muito que cite gente como Kenneth Anger, não quer ser experimental a qualquer custo. "É verdade que o meu filme ideal seria ainda mais experimental, com menos diálogos... Mas a certa altura, quando já tinha um guião mais definitivo, tentei desordenar todas as cenas em flashback, para ter uma visão mais caótica do passado. E não consegui. O filme tornava-se demasiado complicado, e compreendi que se o fizesse desse modo corria o risco de nunca o fazer. "

E que filme queria ele fazer? "Antes de pensar no espectador, pensamos em nós mesmos. Perguntamo-nos qual é o filme que temos vontade de ver. E este é o filme que eu tinha vontade de ver quando tinha 25 anos."

Ah, coração ateu
Foi aos 25 anos que a ideia de Enter the Void começou a macerar, lendariamente depois de Noé ter visto (ao que consta sob a influência de drogas alucinogénicas) um "meteoro" produzido na Hollywood dos anos 1940, A Dama do Lago (1946), adaptação de um romance de Raymond Chandler pelo actor Robert Montgomery filmada em câmara subjectiva, pelo ponto de vista da personagem principal. Se essa pode ter sido a inspiração - e reencontramos a "câmara subjectiva" durante toda a duração de Enter the Void - os filmes que Noé invoca como influência directa são outros. Fala de Stanley Kubrick e do lado de trip sideral de 2001, Odisseia no Espaço (1968); "pensei em Mulholland Drive, Videodrome - Experiência Alucinante, de Cronenberg [1983], e num outro filme,Viagens Alucinantes, de Ken Russell [1980]..."

À imagem de todos esses filmes, Enter the Void tem qualquer coisa de onírico, e a sua narrativa inclui o Livro Tibetano dos Mortos e a sua concepção da reencarnação. Mas se essas referências, nas palavras de Noé, "funcionam como coluna vertebral do filme", será boa ideia não as ver como "chave" para o que se passa. "Quem ache que o filme é uma adaptação à letra do Livro Tibetano dos Mortos, se olhar bem, percebe que não é nada disso - mas não queria que isso fosse demasiado claro. Cresci no ateísmo total e tenho muito orgulho em ser ateu." E, por isso, "o filme pode ser visto como a história de um sonho."
A esse respeito, conta-nos Noé, "houve uma coisa que muitas pessoas disseram": "O facto de terem sonhado com Enter the Void depois de o terem visto. Isso dá-me prazer, porque me faz pensar que os meus filmes se aproximam mais de uma linguagem do inconsciente do que a maioria dos filmes. Quando sonhamos, aproximamo-nos mais de uma linguagem universal..."

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Tira e mete bobina
Se há coisa que Enter the Void não é, é um filme "universal". O cinema de Noé é tudo menos unânime, ou se ama ou se odeia. O que o homem quer, mesmo, é mexer com o seu espectador, de um modo que seja tão imediato e vivo como a vida real. "Ver dois tipos à porrada num café é impressionante, mas vê-los no cinema não faz efeito nenhum porque sabemos que é falso. As pessoas, quando vão ao cinema, sabem que tudo o que estão a ver é falso, e por isso perguntamo-nos como vamos conseguir fazer com que ultrapassem essa desconfiança e invistam mais da sua própria emoção." Pega no exemplo de Irreversível para explicar melhor. "Não se trata de estar fascinado pela violência, mas antes de perguntar como posso transmitir alguma dessa violência da vida real ao espectador. É mexer com o espectador que me interessa mais."

Então e se o filme deixar as pessoas indiferentes? "Ah, não, não - antes disso, a primeira derrota é não ser capaz de fazer o filme que sonhámos. O cinema é uma indústria, com muito dinheiro e muitos parceiros envolvidos. E acontece muitas vezes que um realizador se lança ao trabalho convencido de que vai conseguir o filme que sonhou, e pelo caminho acaba por se desentender com os produtores ou com os distribuidores ou com os actores, e o objecto final não se parece nada, ou apenas em parte, com o filme que se pensou. E aí a recepção pública deixa de ter importância. Ficamos feridos por termos falhado a aposta".

É nesta altura que surge a questão de Enter the Void ter duas versões: uma versão "longa" de 154 minutos, e uma "curta" de 137 minutos, a que estreia em Portugal. Quererá isto dizer que foi preciso ao cineasta "audacioso" "acomodar-se" à indústria? "Ah, não, não, de todo. O produtor pediu-me para preparar uma versão curta no caso de o filme ultrapassar as duas horas e meia, e de facto chegámos ao fim com duas horas e 34..."

Mas essa diferença de 17 minutos, contudo, resume-se a... "Uma bobina." Leram bem, a diferença entre as duas versões é uma bobina que pode ser metida ou tirada ao bel-prazer do distribuidor. "A versão curta tem 17 minutos a menos, que correspondem a uma bobina sem a qual o filme funciona perfeitamente. Não queria cortar o filme, mas se não tivesse encontrado esta astúcia provavelmente não teria conseguido chegar a uma versão curta. O filme custou muito caro e eu devia aos produtores que investiram dinheiro uma versão alternativa, para que pudesse ser mais rentável. Foi a melhor ideia que tive, conseguir montar um filme ao qual se tira uma bobina sem o afectar... "

Não é para qualquer um. Alguém disse "audacioso"?
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Jorge Mourinha, Público


Agora, na sua terceira longa-metragem, Noé escolhe falar da vida e da morte pelo meio de uma “viagem alucinante” que acompanha as deambulações do espírito de um “dealer” acabado de morrer por uma Tóquio alucinogénica, traçando em flashbacks o percurso que aqui o levou e acompanhando o modo como a vida continua depois da sua morte. A “viagem alucinante” - e o título português pisca o olho a um dos filmes-inspiração de Enter the Void, Viagens Alucinantes (1980) de Ken Russell - é, acima de tudo, um filme puramente sensorial, visceral, que passa o tempo a forçar as fronteiras do que é possível em termos visuais com uma conjugação estroboscópica de câmara à mão, fotografia saturada, manipulação digital e efeito visual falsamente naïf. E só a ousadia de tentar dar corpo visual a um mistério insolúvel - e de o fazer em modo de transe libertário-alucinado alimentado a drogas puras - já explica que Noé não tem problemas em arriscar tudo sem ter medo de se estampar ao comprido. Há, claro, momentos em que se estampa; ao ultrapassar as duas horas de duração, a “trip” torna-se excessiva, cai pontualmente na indigestão do efeito gratuito, como se Noé se houvesse perdido no labirinto que ele próprio criou e se tivesse esquecido do filme que era suposto haver por baixo. Mas ninguém nunca recomendará Enter the Void por ser o grande filme que evidentemente não é; antes por ser um objecto singular, coisa rara nunca vista, “passagem do terror” de feira popular que se atravessa para se dizer que se passou por ela e que não deixa ninguém incólume. Enter the Void é aquilo que o título português anuncia: uma “viagem alucinante” por paisagens que raramente o cinema convencional explora. Quem quiser que se arrisque por sua conta e risco; e não diga que não foi avisado.

A questão central da trama: a morte e a vida após a morte... O ambiente psicadélico, impregnado de uma energia que apesar de densa e “submersiva”, nos impele para uma viagem flutuante e visceral, algures, no limiar entre a dura realidade, o enigmático e sobrenatural mundo dos sonhos e a sombria e angustiante atmosfera de um pesadelo, como se a nossa própria experiência transcendente vivenciássemos.

Talvez o fator mais relevante seja o genial e original trabalho ao nível da imagem e do som: planos ousados e vertiginosos, os quais requerem uma sensibilidade e técnica superiores. O pormenor do “pestanejar de olhos de Oscar”, os planos em espirais descendentes, os enquadramentos, as luzes reverberantes e “neonicas” de Tóquio, que penetram sem cortar, toda a atmosfera sombria, catalisada pelo som inebriante, que pulsa compassadamente, dando-nos a sensação de que ouvimos e sentimos, intensamente, a energia de um mundo metafísico.

Não é um clássico filme “inteligente” para analisar, pensar ou questionar. É essencialmente um filme que apela à nossa apreensão sensorial. E caso queiramos ou consigamos ter abertura para nos deixarmos envolver, Gaspar Noé conduz-nos numa viagem febril e apaixonante em que nos oferece a possibilidade de vivenciarmos na primeira pessoa, não só as experiências psicadélicas estimuladas pelo Ecstasy, LSD e DMT, mas também os momentos de morte e de "vida" pós morte.

Gaspar Noé revela-se assim um ousado artista do audiovisual, por todos os motivos já mencionados e por conseguir, em “Enter The Void”, do feio e indecente, criar beleza. Mas não é uma beleza romântica. É crua e carregada por uma “verdade” desconcertante. Penso que é por este motivo que o filme se torna chocante e originou tanta polémica. Não será de facto um filme para as massas. As mentes mais fechadas ou conservadoras e impressionáveis têm demonstrado tendência para o detestar... não foi por acaso que Quentin Tarantino o colocou entre os melhores de 2009. Penso que nada terá sido deixado ao acaso e todos os pormenores se enlaçam resultando num inquestionável marco da linguagem cinematográfica.
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s/ind de autor


ENTREVISTA A GASPAR NOÉ

Os seus filmes são sempre muito divisivos e desenhados para chocar. Entusiasma-o ver membros da audiência desconfortáveis, ou até furiosos e a sair da sala? É crucial para si (o fator choque) quando está a desenvolver um novo projeto?
Sim. Fazer um filme é como mover uma montanha-russa. Queremos que as pessoas se sintam excitadas. Que chorem, que riem, que se assustem. Portanto, sim, podemos usar todo o tipo de truques para mexer com a plateia. Quando vi pessoas a sairem a meio de "Irreversível", ou até deste filme, gostei. Gosto de pôr as pessoas a pensar.

"Enter the Void" é em si uma "trip" para o espectador. Como é que surgiu esta ideia?

No início, quis fazer uma curta-metragem sobre um tipo que toma LSD acidentalmente, e o filme seria visto do ponto de vista da personagem principal. Quis também fazer um filme que fosse visto de cima. Depois, pensei em fazer um filme em que o protagonista fosse visto antes de morrer, e depois tivessemos uma visão da sua morte. Gosto de pensar na vida depois da morte, mas não sou uma pessoa religiosa, de todo.

Porquê Tóquio desta vez?
Acho que é uma cidade muito alucinogénica, visualmente. Além disso, parece muito mais solitária, pois estás num país em que não pertences, com pessoas que não falam inglês. E depois há uma repressão maior pelo tráfico de droga. Podes apanhar 2 ou 3 anos de prisão.

O seu filme foi exibido em vários festivais de cinema, espalhados por todo o mundo, ao longo dos últimos anos. Consegue dizer-nos qual foi a sua experiência favorita em Festival?
Cannes. O Festival de Cannes.
Gosto de Sundance, gosto de Toronto... Gosto de viajar pelo mundo por acaso, de toda essa experiência.

Se tivesse de escolher um filme que melhor ilustra porque é que faz filmes atualmente, que filme escolheria?

"2001: Uma Odisseia no Espaço". Tenho a dizer no entanto que o primeiro filme que realmente me impressionou foi "Eraserhead" aos 14 ou 15 anos.

O filme de David Lynch.
Sim.

Ouvimos dizer que o seu próximo filme vai ser baseado num argumento de Bret Easton Ellis, com Ryan Gosling a encabeçar o elenco. Pode partilhar mais detalhes sobre este projeto?

Não não. O Ryan Gosling já não está associado a este projeto. E tenho ainda um outro projeto antes. Um argumento original.

Não é o "remake" de "God Told Me To"?

Não. As pessoas leem muita informação que não é verdadeira, hoje em dia. Informação que aparece no Twitter ou num blog, e que depois é facilmente espalhada.

Pode-se saber do que se trata?
É um filme sentimental. Uma história de amor.

Uma história de amor?
Sim, mas com contornos eróticos.
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c7nema.net



Realização e Argumento: Gaspar Noé
Montagem: Marc Boucrot, Gaspar Noé e Jérôme Pesnel
Fotografia: Benoît Debie
Música: Thomas Bangalter
Interpretação: Paz de la Huerta, Nathaniel Brown, Cyril Roy, Olly Alexander, Masato Tanno, Ed Spear, Emily Alyn Lind
Origem: França/Alemanha/Itália/Canadá
Ano: 2009
Duração: 161'

Obras-Primas na Sede, 5ªf 17 - A BELA DE DIA de Luis Buñuel, o Herege.

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).



O maior sucesso comercial da carreira de Buñuel surgiu, um tanto inesperadamente, com esta famosa obra que não resultou de uma escolha deliberada do autor mas de uma encomenda dos conhecidos produtores franceses, os irmãos Hakim, que tinham fama de ser gente pouco fácil. Buñuel tinha voltado a Espanha, depois do seu último filme mexicano (Simon del Desierto, 1965) e só pensava dar uma sequência aos temas que considerava apenas esboçados nessa obra. Era já La Voie Lactée que o obcecava, embora o projecto, em que trabalhou no ano de 1966, não se intitulasse assim. Era El Monje, filme que nunca chegou a realizar. O produtor que o devia financiar faliu e, pelo que Buñuel gostava de chamar "as voltas do acaso", caiu-lhe do céu aos trambolhões essa encomenda dos irmãos Hakim para adaptar o romance do académico Joseph Kessel com Catherine Deneuve na protagonista.

Inicialmente pouco entusiasmado, Buñuel acabou por aceitar, sob condições: exigiu liberdade total e exigiu a revogação da cláusula que dava direito à intervenção dos produtores na montagem final. Terminado o filme, houve, porém, alguns problemas. Os Hakim tiveram medo da censura e pediram a Buñuel que fizesse alguns cortes para evitar alheias tesouradas. Ao contrário do que por vezes se diz, esses cortes não têm nada que ver com as cenas na casa de passe, nomeadamente com o conteúdo da caixinha do japonês (admirável elipse erótica, tão típica do universo Buñueliano, a que mais adiante me referirei) mas com a introdução da imagem de Cristo na sequência em casa do duque. No célebre episódio necrófilo, Séverine e o duque eram "pontuados" pela imagem do Cristo ressuscitado do Retábulo de Isenheim de Grünewald, que Buñuel considerava a mais terrível das imagens de Cristo jamais feitas. Também houve problemas com a nudez de Catherine Deneuve, na mesma sequência. Ainda não eram os anos de habituais aparições de nus integrais e a actriz recusou-se a aparecer assim. Mas aí Buñuel resolveu a situação a seu favor: os véus transparentes só acentuam o erotismo, bem como a visibilidade do nu de costas e a sua "obscuridade" de frente.

Posto este preâmbulo, passo à análise possível desta complexa obra. Em Belle de Jour, o carácter onírico dos filmes de Buñuel acentua-se a um ponto limite. Nunca sabemos bem quando Séverine está a sonhar, a recordar ou a viver, ambiguidade que começa no início (genérico com a carruagem e os obcecantes guizos da banda sonora) e se mantém até ao fim, quando Pierre se levanta aparentemente curado e se repete a imagem inicial (só que, nesse último plano, os cocheiros conduzem uma carruagem vazia). Tudo foi um sonho de Séverine, uma rêverie de um personagem particularmente propício a ela? O sonho refere-se apenas à casa de passe? Exclusivamente às sequências sem qualquer conteúdo realista? Ao final? Não sabemos. Buñuel deixa-nos sem pistas e, a entrevistadores mexicanos, declarou mesmo que "nem eu próprio lhes posso dizer o que é real ou o que é imaginário no filme. Para mim, são uma e a mesma coisa". E quando os exegetas lhe puxaram pela língua e lhe observaram que todo o episódio do bordel, ou a relação com Clémenti, parecem produto da imaginação de Séverine, Buñuel respondeu: "Não. Uma mulher que pergunta ao marido o que é um bordel, não podia inventar as aberrações que lá vê", citando ainda, em abono desse realismo, a conversa com Piccoli quando este lhe dá a morada do número 11, da Cité Jean de Saumur. Explicações que não são muito convincentes e contradizem o essencial, na frase já citada que abole as fronteiras entre o real e o imaginário.


Melhor é acompanhar a prodigiosa estrutura desta prodigiosa obra. Tudo começa e tudo acaba numa tarde de outono, num parque, com folhas caídas pelo chão. Na banda sonora ouvimos o barulho da carruagem e uns guizos que não são muito plausíveis. Ao longo do filme, duas pistas (se quisermos ser lógicos) nos são dadas para essa luz outonal e para essas campainhas. Ambas são dadas por Michel Piccoli, contraponto sádico do masoquismo da protagonista. ("Você gosta de ser humilhada, eu não" diz mais ou menos ele quando se encontram no bordel). Quando Piccoli se refere, na repetição onírica da sequência da neve, à luz negra do sol de outono e quando, noutra sequência onírica, ouvimos e vemos os guizos dos touros: "La plupart d'eux s'appele remords, sauf le dernier qui s'appele expiation ". Ora, entre o negro, o remorso e a expiação, ocorrem os fantasmas eróticos de Séverine, que precisa tanto do prazer como do castigo e que inúmeras vezes repete ter de pagar pelo que fez. Se o não tivesse, o seu prazer seria menor e daí a admirável introdução da cena em off, em que Piccoli conta a Pierre "toda a verdade", para que Séverine possa descer aos abismos da sua culpa. Paralítico, cego e mudo, Sorel chora e essas lágrimas são essenciais à auto-punição da protagonista.

Volto ao início: conversa banal do casal burguês, com referências implícitas à frigidez de Séverine (mais uma vez, é tentadora a aproximação com o mundo de Hitchcock e com a frígida Marnie). Subitamente, Pierre perde o seu carácter passivo e manda parar a carruagem, ordenando o espancamento e a violação da mulher pelos cocheiros (cocheiros que regressam na carruagem do duque e no plano final) e, pela primeira vez, surge a estranha associação aos gatos, que voltará a funcio¬nar em casa do duque ("Pierre, Pierre, je t'en supplie, ne lâche pas les chats"; "Monsieur le duc, je fais entrer les chats?"). Se descobrimos depois (ou julgamos descobrir, pois que neste filme não convém ser dogmático) que a violação foi "imaginária", jamais descobriremos o sentido dessa história dos gatos, como jamais descobriremos o que o japonês tinha dentro da caixinha, ou porque é que o duque e Piccoli falam, ambos, dos "asphodèles ", entre muitas outras coisas. Acordando do "sonho", no quarto conjugal, Séverine fala ao marido da carruagem, mas sem lhe revelar o que se passou. Na sequência seguinte (estância da neve) saberá das diferenças entre os magnetizadores e os hipnotizadores, diferença essencial e obscura, pois que tanto o magnetismo como o hipnotismo vão funcionar para ela. Piccoli hipnotiza-a ou magnetiza-a? Do que ela "sonhou", sob a banal conversa da referida estância, saberemos depois, sob espécie onírica. Mas são Piccoli e a sua companheira que lhe falam das casas clandestinas e é o primeiro quem lhe dá uma morada exacta. A perturbação de Séverine começa (as recordações da infância, do pecado e da recusa à hóstia) e decide-se a entrar, toda de negro e em figuras de repetição, na casa de Mme Anais. A "belle de nuit" transforma-se em "belle de jour", gata borralheira ao con¬trário. Na sucessão das espantosas personagens que entram naquela casa, uma há que ganha relevo especial: o professor masoquista, com a sua assombrosa meta¬morfose, perante o qual Séverine é incapaz de representar um papel que, fundamentalmente, é seu. Espreita pelo "olho" da parede o que o médico faz com a colega e comenta com a patroa: "Comment peut-on descendre si bas?". O olhar de Mme Anais não nos deixa margem para dúvidas, como as não deixa o paralelo episódio com o japonês. Quando Muni entra no quarto e a lamenta, Séverine ergue o rosto radioso das almofadas e diz-lhe: "Qu'est-ce que tu en sais, Pallas?". E sobrevém o encontro com o duque e o episódio da morte, entre asfódelos, gatos, o criado e esse estranho ritual, cujo alcance mais uma vez nos é elidido (só Séverine viu o que o duque fazia debaixo do caixão). Nós, espectadores, só imaginamos, como na caixa do japonês, como em todos os seus "sonhos" ou como em todos os dias vividos no número 11 daquela rua.


E esta é a suprema astúcia de Buñuel: coloca-nos na posição e na perversão de Séverine, sempre querendo ver mais, sempre nos sendo frustrada a visão. A tal confusão entre o real e o imaginário provém desse mesmo "catecismo do travesti", para usar uma expressão de Comolli. Se nunca sabemos bem onde estamos, se nos perdemos nas máscaras, é porque o nosso desejo é semelhante ao de Séverine, com ela apagando, quando a luz se faz na sala, os traços comprometedores da obscuridade. Séverine queimou a roupa interior, a seguir ao seu primeiro dia nocturno. Nós queimamos essas imagens de desejo na ficção que permite a frase "isto é um filme". Tranquilos, voltamos a casa, com a tranquilidade da cena reconciliadora final de Sorel e Deneuve. Mas se as imagens se queimaram, ficaram-nos, neste filme sem música (como quase todos os derradeiros filmes de Buñuel) os sons e as campainhas. Sinal do nosso alarme, sinal da nossa culpa. Sinal do nosso medo e do nosso desejo de viagens até ao fim da noite e até ao fim dos fantasmas.
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel - As Folhas da Cinemateca



Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Jean-Claude Carriere, baseado no romance homónimo de Joseph Kessel
Direcção de Fotografia: Sacha Vierny
Montagem: Louisette Hautecoeur
Interpretação: Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page,

Pierre Clémenti, Francisco Rabal, Georges Marchal, François Maistre

País: França/Itália
Ano: 1967
Duração: 101’

2ªf, 18h, Conversa à volta de Florbela Espanca.

Clube Farense. Entrada livre.

Com a presença do realizador Vicente Alves do Ó e de Dr João Minhoto Marques (FCHS) e a moderação de Dr Vítor Reia Baptista (ESE-CIAC).

Organização UAlg.

(para o caso de estar a passar despercebido... :-)