Obras-Primas na Sede, 5ªf 24 - TRISTANA, AMOR PERVERSO de Luis Buñuel, o Herege.

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).


Tristana foi o único dos dez filmes realizados por Buñuel entre 1956 e 1970 cuja exibição foi autorizada em Portugal pelo antigo regime. Para o espectador comum, sem viagens ao estrangeiro, seguiu-se cronologicamente à estreia de Ensayo de un Crimen, obra de 1955, exibida em 1967. Tinhamos, por aqui, perdido o contacto com Buñuel nas produções de 55 e 56. Retomávamo-lo com um filme catorze anos posteriores e "saltando" sobre toda a sua celebrada produção dos anos 60.

Houve razões para que isso acontecesse: Tristana era um filme espanhol e, desta vez, não se repetiu o escândalo de Viridiana. O filme teve estreia mundial em Madrid com "luz verde" de Fraga Iribarne, mas depois de muitas peripécias e de uma proibição inicial do projecto em 62.

Por outro lado, é curioso notar que Buñuel, farto de ver um seu antigo sonho abortar (a primeira vez que o pensou realizar foi em 52, no México) chegou a pensar rodar o filme em Portugal. Braga e Viseu foram locais pensados e visitados, então, por Buñuel, para substituir Toledo em caso de necessidade.

Pela segunda vez adaptou Galdós (Nazarín foi a primeira). O filme teve espectacular acolhimento, quer junto do público, quer junto da crítica. Mesmo críticos bastante rigorosos e reticentes em relação à obra de Buñuel, abriram uma excepção para Tristana, considerada por muitos a obra-prima de Buñuel (curiosamente, a única crítica bastante reticente foi a espanhola, mesmo a mais hostil ao franquismo).

Se é óbvio que há uma certa ruptura com os filmes imediatamente precedentes e com os três filmes finais, será porque, como sustentam alguns, a narração é mais clássica? Não julgo que o adjectivo se justifique (e já lá vamos) mas o lugar da narratividade é mais coeso, quer por se tratar da adaptação dum livro, quer por ser a única obra post Simon deI Desierto em que o co-argumentista não foi Carrière, mas Julio Alejandro, com quem Buñuel trabalhou em Nazarín, Viridiana e Simon deI Desierto. E se Buñuel deve, eventualmente, a Jean-Claude Carrière os grandes sucessos comerciais que nunca, no passado, havia tido, como deve a Serge Silberman (produtor de Le Journal, La Voie Lactée, Le Charme Discret, Le Fantôme de la Liberté, Cet Obscur Objet) produções muito cuidadas e muito calculadas, julgo, pessoalmente, que qualquer deles lhe forçou a mão, levando-o a fazer "trop Buñuel", ou "Buñuel mieux que nature".


Como bem notou J.F. Aranda no artigo A Dialéctica do Ilogismo em Buñuel, publicado no catálogo da Cinemateca em 1982, há, nas obras escritas com Carrière, um "espírito de medida", "um bom gosto e equilíbrio formais", "que não se casam bem com os arrebatamentos do touro enraivecido que Buñuel é". "Arestas polidas", "subversões mitigadas", o que é sobretudo sensível em Le Charme Discret e Le Fantôme de la Liberté.

Tristana, para além do caso sui generis de Cet Obscur Objet, é o único filme de Buñuel dos anos 70, em que a "medida" e o "bem feitinho" não se notam, é o último grande filme radical de Buñuel.

Por outro lado, Tristana representa o ponto limite da peregrinação de Buñuel em torno de um arquétipo feminino, que tivera geniais expressões anteriores em Susana, na Catalina de Abismos de Pasión, em The Young One, em Viridiana, na Céléstine do Journal ou em Belle de Jour. Combinando-o, no limite da explosividade, com análoga peregrinação em torno de arquétipos masculinos desenvolvidos em Susana, EI Bruto, ÉI, Viridiana, Le Journal. Muito simplificadamente: as perversas e os perversos velhos, para utilizar um adjectivo tão do gosto da publicidade (Susana e Tristana levaram esse aposto ou continuado, nos títulos respectivos em França e em Portugal).

Mas não é nada indiferente que os protagonistas do filme catalisem essa tendência nos actores que melhor os fixam: Catherine Deneuve (a de Belle de Jour) e Fernando Rey (o de Viridiana e, depois, do Charme e do Obscur Objet).

Uma digressão tão breve quanto possível para me explicar melhor: as protagonistas dos citados filmes "femininos" sempre pareceram dar alguma razão aos protagonistas dos citados filmes "masculinos". Imaginemos Francisco Galván (o de ÉI) a ver Belle de Jour: o seu delírio "paranóico" encontraria confirmação em semelhantes imagens e, para lá de tudo o que já pensava da mulher, tê-la-ia "visto" imediatamente a entrar para uma casa de passe. Mas se a Séverine de Belle de Jour tivesse visto Él, lamentaria não ter como marido Arturo de Cordova em vez de Jean Sorel, para a torturar melhor.


Em Tristana esse verso e reverso tornaram-se um só. Catherine Deneuve acrescenta a componente sádica à componente masoquista e Fernando Rey segue o caminho inverso.

Tristana, a quem D. Lope começa por chamar "mi hijita adorada" ("solo te pido que me queiras como a un padre') inicia a sua "educação" em casa de Fernando Rey, ajoelhada aos pés deste a calçar-lhe as pantufas. O miúdo onanista e o "pai", simultaneamente libertador e castrador, fundem-se nos seus fantasmas e sonhos eróticos. O primeiro dos seus pesadelos vem depois da subida à torre da igreja (como em ÉI), de ter tocado os sinos fálicos (como em ÉI) e de ter sido apalpada pelo surdo-mudo nas escadas do campanário (junte-se ainda a conotação alimentar da sequência das migas). E o sino (fálus) transforma-se na cabeça do "pai", como aquele badalando e como aquele objecto de desejo e ameaça ("toque de agonia", "toque de glória").

É quando acorda do pesadelo que Fernando Rey a toca pela primeira vez a ela ("como si hubiera visto al diablo"). Esse "diabo" (tutor-pai-amante) vai-se desdobrando em discursos contraditórios: no café é libertino, em casa diz que "mujer honrada, pierna quebrada y en casa" (mal sabendo como o seu voto se cumpriria). No café admite duas excepções à posse de mulheres: "la esposa de un amigo" e "esa extraña flor, tan rara hoy, que nasce de la perfecta inocencia". Palavras não eram ditas e surge a imagem de Tristana, "la perfecta inocencia" que não vai ser excepção mas obsessão e regra.

A "perfecta inocencia" vai molhando o pão no ovo até à prodigiosa sequência das colunas, do bispo e do beijo. Tudo começa com um passeio, em que D. Lope sublinha a Tristana o "cheiro apodrecedor da conjugalidade" e lhe diz "no te cases nunca, Tristanita. El amor debe ser livre". Sobrevém a assombrosa e insólita associação com as colunas (entre dois objectos iguais, um tem que ser o preferido), "sintoma" ou síndroma de escolha repetido ao longo do filme: os frutos, as ruas. Tristana entra na igreja e debruça-se sobre a estátua do bispo jacente. "Em que pensas?", pergunta-lhe Rey. "Que precisa de pantufas novas" é a surpreendente resposta. Depois é o beijo, primeiro na cara, a seguir na boca (como mais tarde se repetirá com Horácio). E Tristana ri quase histericamente, antes de ir para a cama com o tutor (sequência seguinte), essa cama onde um cão se instalara, donde um cão é expulso, ficando, como nós, voyeur frustrado. Essa prodigiosa ascensão do filme culmina todos os fantasmas de Tristana: o incesto, a imagem do padre, a escolha como escolho da liberdade. Aí se perfaz o seu prazer. O movimento posterior do filme é o inverso. Tristana trai Fernando Rey com um jovem demasiado brando, atira-lhe as pantufas para o caixote do lixo, foge-lhe e começa a odiá-lo. De "velho lúbrico", Fernando Rey volve-se em "vítima propiciatória"? Nada é tão simples em Buñuel. Mesmo quando abandonado, D. Lope tem a certeza (como Jorge tinha na Viridiana) que Tristana há-de voltar e o estigma fica no cumprimento do seu voto inicial: Tristana volta "de pierna quebrada" e essa prodigiosa amputação volta a reunir junto a ela os dois fantasmas da impotência: o miúdo e o velho. Oferece-se aos prazeres solitários do primeiro numa das mais assombrosas sequências eróticas da história do cinema (o sorriso de Tristana) e o seu ódio contra D. Lope cresce quando ele deixa de "mudar de cara como de camisa", quando a sua força sexual se esbate ("quanto melhor ele é, mais o odeio", diz ao padre). E se o deixa morrer no fim (a chamada telefónica em lapso) os seus pesadelos mantêm-se os mesmos, com a cabeça e as pantufas do tutor em grande plano.


E será por acaso que falando deste filme, Buñuel só fala do Acaso? Entre duas ruas iguais, Tristana escolheu uma e o perro sarnoso levou-a a Horácio. Entre duas colunas iguais, Tristana escolheu uma e o bispo jacente levou-a a D. Lope. Ou os dois grãos-de-bico. Porque se fixa sobre ela, nessa silenciosíssima sequência da casa de jantar, uma tão intensa divisão? E uma tão intensa luz, quando escolhe um e, após o traveling que leva ao grande plano, o mastiga lentamente?

E com mais alguma atenção repararemos que essa divisão e luz voltam a aparecer depois da primeira tarde de amor com Horácio, quando atira o chapéu ao ar e D. Lope lhe diz "que guapa estás". O seu reverso (ou será o seu análogo?) são os planos circulantes de Tristana, durante "a última ceia", com o barulho das muletas a ecoarem, uma vez mais, os tambores de Calanda.

A morte, uma janela aberta para parte nenhuma e a repetição circular de tudo nas recapitulações oníricas. A perna amputada e a cabeça cortada. Corpos e órgãos sem junção possível. Parafraseando Fernando Rey para o médico: "Que arte é esta que só cura mutilando?" As peças do amor e do desejo jamais se conjugam e só ficam as mutilações.

Talvez, por isso, Alfred Hitchcock (supremo admirador deste filme) só dizia a Buñuel: "Oh, that leg, that damned cut leg". Porque essa é a imagem da única conjugação possível: solitária.
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel – A Folhas da Cinemateca




Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Julio Alejandro, baseado no romance homónimo de Benito Pérez Galdós
Direcção de Fotografia: José F. Aguayo
Montagem: Pedro del Rey
Arranjo Musical: Luis Buñuel (Estudo n°12 de Chopin)
Interpretação: Catherine Deneuve (Tristana), Fernando Rey (D. Lope), Lola Gaos (Saturna), Franco Nero (Horacio), Jesús Femández (Saturno),
Antonio Cases (D. Cosme), Vicente Soler (o padre), José Calvo (o sineiro), Sergio Mendizábal (o professor), Fernando Cebrián (o médico)
Origem: Espanha/Itália/França
Ano: 1970
Duração: 100 ‘

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