Ciclo de Obras-Primas na Sede, 5ªf de Maio - EL, de Luis Buñuel é a primeira. Já amanhã!

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).

"Él é um dos meus filmes favoritos", disse Buñuel nas suas memórias. "Talvez o filme onde pus mais de mim", afirmou a De la Colina e a Turrent na entrevista que lhes concedeu.

O estatuto cimeiro desta obra ímpar tardou em ser reconhecido. Em Cannes, onde, pela terceira vez consecutiva, Buñuel esteve representado, o filme foi muito mal recebido. No México, mesmo gelo. À época, segundo Buñuel, só um homem reparou na importância do filme: o então ainda pouco conhecido psicanalista Jacques Lacan que o escolheu como base dum curso sobre a paranóia.

Só no ano seguinte (quando Él se estreou nas principais capitais europeias) a crítica começou a descobrir a obra, sobretudo a partir de uma excelente análise publicada na Positif, em Maio de 54. Desde então (como escreveu, em 68, Jacques Belmans em lmage et Son) Él foi como o bom vinho: só melhorou com o tempo. "O que à época pôde parecer bizarro e exagerado, assume hoje o aspecto de uma tragédia individual, contada com prodigiosa habilidade e com uma escrita brilhante e ligeira, capaz de iluminar as raízes sociais e morais que determinam o comportamento de um burguês".

Se transcrevi estas palavras é porque elas me parecem encerrar, ainda, um mal-entendido. Él não é só um estudo de um caso de paranóia, nem uma dissecação do comportamento burguês, para o qual o "ter" contaria mais do que o "ser". É um filme que sistematicamente afasta qualquer interpretação linear, e onde a zona de perturbação é mais funda do que o diagnóstico da paranóia, ou de que a análise de um comportamento de classe levado ao extremo. O filme começa e acaba sob o signo da religião: sino no genérico, imagens iniciais na igreja; no final, o protagonista num convento de beneditinos.

É na igreja, nas cerimónias de Quinta-Feira Santa, que somos introduzidos aos protagonistas: Francisco Galván, de 45 anos, puritano, virtuoso e catolicíssimo (saberemos, depois, que ainda é virgem e que as suas virtudes lhe valeram nesse dia o grau de Cavaleiro de Colón) e Gloria Peralta, mais nova 20 anos que ele, uma das muitas mulheres que assiste à cerimónia. Tudo muito normal, até ao primeiro toque de insólito. A cerimónia do lava-pés dura tempo demasiado, como demasiado duram os beijos do padre nos pés nus dos doze escolhidos tradicionais. Uma prodigiosa montagem confere à sequência um sentido equívoco (escolha dos pla¬nos, jogo de olhares, movimentos de câmara) destruindo, como diz Kyrou, a atmosfera religiosa (cantos, liturgia) e transformando a igreja numa espécie de lupanar. É do ponto de vista de Galván que esses pés são vistos (talvez haja poucos exemplos de planos tão subjectivos, até na sua duração) e é do seu ponto de vista que a câmara avança em travelling dos pés beijados e descalços até aos sapatos da assistência. Detém-se nuns e uma panorâmica vertical dá-nos a ver a dona deles: Gloria, noiva dum engenheiro, no pio recolhimento que convém ao dia e hora (o fetichismo do pé e o seu efeito no protagonista voltará a ter maior realce, ao longo de todo o filme). Campo-contra campo com o protagonista. Os dados estão lançados e são profundamente eróticos, como o é a imagem do sino que no filme retomará papel capital (sequência da torre da igreja) como o terá noutras obras de Buñuel, nomeadamente Tristana. Junto de uma pia de água benta, dá-se o primeiro encontro dos dois. Gloria (que objectivamente não viu o olhar do protagonista, nem a sua associação) já está contaminada por uma relação gestual e visual, simultâneamente sagrada (o espaço) e violadora (o olhar).

Os apontamentos seguintes reforçam as obsessões de Francisco: distrai-se nas apresentações à porta da igreja, porque já só pensa em Gloria; interrompe, puritanamente, a cena de "engate" dos seus criados, advertindo que não admite faltas de respeito e despedindo a criada (começa a insinuar-se a estranha relação com o criado, personagem premonitório de tantos equivalentes futuros na obra de Buñuel).

Logo a seguir, o criado deita-o (crucifixo sobre a cama, com baldaquino) e (algum tempo depois) regressa à igreja para rever Gloria (fabulosos enquadramentos e campos-contracampos). Depois é o seu "voyeurismo" (plano do restaurante) e a aceleração a fundo até "roubar" Gloria ao seu noivo engenheiro. "Roubo" que se desenvolve na prodigiosa sequência do jantar (cuja "découpage" é quase tão brilhante como a da célebre festa do Notorious de Hitchcock, que tanto faz lembrar) introduzindo dois fundamentais pontos de suspensão, desses em que Buñuel é mestre: como seria o construtor de tal casa (fabuloso "décor'), o pai de Francisco, que quis reconstituir no México a exposição de 1900 (suspensão sobre a ancestralidade de Galván, ''perfeitamente moral e sensato"); a ultra-buñueliana cena (familiar, hoje, quando lhe conhecemos toda a obra) em que o pó irrompe no salão, devido a uma insólita limpeza do criado num quarto contíguo.


Nessa mesma capital sequência, Francisco, o virgem, expõe a sua concepção sobre o amor (não muito longe do amour fou) e no jardim beija a testa e depois a boca da noiva do amigo (entre estátuas, como em L'Âge d'Or). Raccord abrupto sobre obras, derrocadas e escavações, terreno do engenheiro que já sabemos ter perdido a partida nessa noite. Só que, para lá dos apontamentos eróticos, fetichistas, do barroquismo do décor, do ambíguo criado, da cena do pó, os dados estão lançados para o que se vai seguir: quem com tanta facilidade lhe caiu nos braços não pode cair com a mesma facilidade nos braços de outros? Não será que Gloria o escolheu por razões muito diferentes desse amour fou que o protagonista exige? Estas duas interrogações vão pairar, tanto quanto o resto, sobre todo o filme.

Varrido de cena, o engenheiro regressa logo, embora saibamos depois que muitos anos se passaram. Esses anos são o flash-back, núcleo central do filme, contado por Gloria.

Ao princípio o comboio (outro dos "leit-motifs" buñuelianos) e a primeira "crise de paranóia" quando a mulher se recusa a verbalizar as suas anteriores experiências eróticas. Depois (de novo à volta duma igreja, onde Francisco escolhe o contra-plongé) o episódio com Ricardo (restaurante, hotel, pé, a agulha no buraco da fechadura). A lua-de-mel é um crescendo erótico e paranóico de Francisco, cuja virgindade se volve em perversão ou fora sempre o seu equivalente sem que a mulher o acompanhe em tal movimento. Tudo nela é "normal", tudo nele é "anormal".

Mas os "normais" do filme (por esse efeito de inversão típico de Buñuel) vão dar razão, depois, ao seu comportamento "anormal" (o gerente do hotel, a mãe de Gloria, o padre, sempre cúmplices dele, jamais dela) e o único que é mais ambíguo é o "anormal" criado, o das bicicletas e do pó.

A partir do regresso da "lua-de-mel", todo o décor começa a inverter-se e perverter-se: a cena inicial (o jantar) repete-se com o advogado, "montada" por Francisco, mas virando-se contra ele; as grandes "cenas" alternam com os grandes momentos de erotismo (de novo o pé); o criado é chamado como testemunha do "delírio" de Francisco e toma-o como normal; no alto da torre (com o sino fálico) o protagonista diz que gostaria de ser Deus para "aplastarlos todos" e que "odeia a felicidade dos estúpidos". Entretanto, irrompem as famosas elipses eróticas de Buñuel (os gritos em off da mulher: que lhe estará ele a fazer?; a prodigiosa sequência em que Francisco prepara um arsenal fetichista - corda, agulha, faca, navalha de barba - para um ritual frustrado, que não chegamos a ver).

E, no seu crescente delírio (já depois do flash-back) todo o décor vacila: Francisco começa os seus famosos ziguezagues, os ângulos tornam-se cada vez mais alucinatórios e a "inversão-perversão" culmina no famoso plano em que o vemos batendo ritmadamente com o pau nas escadas (os tambores de L'Age d'Or, os tambores de Calanda) culminando essa "irracionalidade" de que a sequência da carta batida à máquina fora genial prenúncio.

O personagem entrou, passo a passo, na loucura total e, de novo, o espaço da igreja é o tempo dela, com a transfiguração da assistência, beatas e padres rindo-se obscenamente da traição imaginária.

Imaginária? A sequência final, epílogo do filme, é um monumento de ambiguidade. A criança, chamada Francisco, é filha de quem? Não o sabemos. E quando o pacificado protagonista responde ao superior que "tinha razão ", talvez acabe por a ter, o que subverte todo o sentido aparente do filme ou o confirme da forma mais magistralmente irónica. Pois quando observaram a Buñuel que esse final podia afinal dizer que Francisco sempre esteve no pleno uso da razão, o realizador tirou o último tapete debaixo dos nossos pés, objectando: "alto lá, ele continua a andar aos ziguezagues".

Aos ziguezagues, é talvez a súmula e a soma desta obra prodigiosa, que nos impede qualquer certeza: quem são os "normais" e quem são os "anormais"; o que é deformar a realidade ou o que é conformar-se com ela? Que valores (psicológicos, morais ou estéticos) presidem a este universo? Invertendo-os todos, Buñuel conduz-nos à negação da negação.
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel – As Folhas da Cinemateca




Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Luis Alcoriza, baseado numa novela de Mercedes Pinto
Direcção de Fotografia (preto e branco): Gabriel Figueroa
Música: Luis Hemández Breton
Montagem: Carlos Savage e Luis Buñuel
Interpretação: Arturo de Córdova, Delia Garcés, Luis Beristáin, Aurore Walker, Manuel Dondé,
Carlos Martínez Baena, Fernando Casanova, Rafael Banquells
Origem: México
Ano: 1953
Duração: 92'

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