DIA
30 - ALVORADA VERMELHA, João
Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Portugal, 2011, 20’
A ÚLTIMA VEZ QUE VI MACAU, João
Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Portugal/França, 2012, 85’
FICHA TÉCNICA:
Título
original: A
Última Vez Que Vi Macau
Realizadores:
João
Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata
Com:
João
Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Lydie Barbara
Género:Documentário Classificação:M/12
Outros dados:FRA/POR, 2012, Cores, 85 min.
SINOPSE:
Um homem viaja de Lisboa a Macau, uma das mais multiculturais e
labirínticas cidades do mundo, a pedido de Candy (Cindy Crash), amiga de longa
data, que lhe diz estar a viver coisas estranhas e assustadoras. Ele, que
vivera em Macau há muitos anos e ali passara os melhores tempos da sua vida,
encara a viagem como um regresso às suas origens e às suas memórias mais
felizes. A longa-metragem, que mistura o documentário e o policial, marca a
terceira co-realização de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata
(depois de "China China" e de "Alvorada Vermelha").
Escolhido como filme de abertura da edição de 2012 do Doclisboa, ganhou o prémio
da secção de documentário do Festival de Cinema de Turim, Itália, e teve uma
menção especial do júri do Festival de Locarno. Em complemento, a curta
"Alvorada Vermelha", também de João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata.
CRÍTICA:
Produto mais ambicioso da
expedição a Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, A Última
Vez que Vi Macau é um feliz casamento entre “ficção” e “documento”, na acepção
convencional dos termos, conquistado na dissociação entre a banda de imagem e a
banda de som. Na imagem, um desfile de planos de Macau, ruas e casas, ao perto
e ao longe, raramente encenados, ou “preparados”, para a câmara. No som, e
sempre em off, um longo monólogo, em jeito e em espírito de film noir, onde o
protagonista envolve numa história de mistério (o que aconteceu à sua “amiga”
Candy?) as reflexões suscitadas pelo reencontro, muitos anos depois, com o
território macaense. Lembramo-nos de algumas conversas que tivemos depois da
exibição do filme no último DocLisboa (onde A Última Vez... foi exibido na
sessão de abertura), e de algumas reservas apontadas à “arbitrariedade” dessa
relação entre som e imagem. Pensamos, pelo contrário, que essa arbitrariedade
não só não merece reservas como é, ela própria e por ela própria, o fulcro do
filme, que se encontra aí, nessa aparente ausência de necessidade da conjunção
entre o que a imagem mostra e o que o som diz (ou vice-versa). É o real como
espigão da ficção, a cidade de Macau como viveiro de “um milhão de histórias”,
glosando a lengalenga introdutória de uma célebre série sobre “cidades nuas”.
Mais directos ao que de
facto importa, Rodrigues e Guerra da Mata também glosam: o Macao de Sternberg,
expoente do exotismo hollywoodiano de coloração noir, de que pelo menos um
plano é incluído no filme, matriz cinéfila que vem contrapor, de algum modo
“infectando-o”, o real reconhecimento territorial. A mecânica do filme sugere
que um deles (provavelmente Guerra da Mata) tem de facto uma história pessoal
com Macau, enquanto para outro (João Pedro Rodrigues) Macau é, antes de outra
coisa qualquer, um território mental povoado por fantasmas de cinema. Esta
outra espécie de “dissociação”, prévia e essencial, é raiz do grande jogo que
os cineastas vão jogar àquela terra de casinos, como se tudo (cinema e real)
puxasse para seu lado até se tornar claro que a realidade e os seus fantasmas
são, pelo poder do cinema, uma e a mesma coisa, e caminhassem lado a lado,
alegremente, rumo à dissolução no belo “apocalipse” final (tão grande é esse
poder do cinema que pode destruir uma cidade).
Alvorada Vermelha, que
aparece como “bónus” desta sessão, foi o primeiro filme macaense dos
realizadores, mostrado pela primeira vez em 2011. Com o seu título que também
convoca uma aura hollywoodiana, não faz nem da alvorada nem do vermelho
(vermelho de sangue) palavras vãs. Um mercado macaense, e os trabalhos de
preparação daquilo (peixes, sobretudo) daquilo que virá a ser “comida”. Na
crueza intrínseca das suas imagens, lembretes de uma relação esquecida (ou
escondida) entre homens e natureza, traz para o primeiro plano aquilo que a
dominante cultura “gourmet” sublimou: mata-se para comer, há vísceras, sangue,
facalhões e mãos humanas na cadeia alimentar.
Luís Miguel Oliveira, Ipsílon
Documentário
sobre uma ausência? Ficção sobre uma angústia? Fusão inesperada do passado com
o presente?
Bem-vindos a um diário de bordo fascinante “em que nem tudo o que parece é”: “A Última Vez que Vi Macau” .
Bem-vindos a um diário de bordo fascinante “em que nem tudo o que parece é”: “A Última Vez que Vi Macau” .
“A
Última Vez que Vi Macau” chega finalmente às salas depois do seu estonteante
percurso pelos festivais internacionais desde a estreia em Locarno. Em
complemento, é exibida “Alvorada Vermelha”, uma curta também filmada em Macau
que ganhou autonomia no trabalho mais recente de João Pedro Rodrigues (J.P.) e
de João Rui Guerra da Mata (J.R.). Conversámos com os dois realizadores sobre
esta viagem tão real como sonhada à ex-colónia portuguesa, em que a personagem
de Guerra da Mata, em ambientes thrillescos, tenta salvar uma amiga de longa
data, Candy (Cindy Scrash), que está ser ameaçada por gente pouco recomendável.
Pelo caminho, é o cinema que interroga o eu próprio poder de representação.
Qual é a origem de “A Última Vez que Vi Macau”?
Qual é a origem de “A Última Vez que Vi Macau”?
J.P. — Quando partimos para
Macau, com um apoio financeiro do ICA para um documentário, a ideia do trabalho
era pouco clara. Começámos por filmar aquilo que a cidade nos deu,
classificámos a informação, e o filme só começa a ganhar forma durante o
processo de rodagem e na montagem, que funcionaram paralelamente. Passámos seis
meses em Macau ao longo de três visitas. Fomos para lá no fim de 2009, voltámos
na primavera de 2010 e um ano
depois, em 2011.
J.R. —
Este filme tem várias camadas de leitura, quer a nível narrativo quer a nível
emocional. O meu pai foi oficial da marinha durante o Estado Novo e viveu em
vários sítios. Nasci em Moçambique, vim cedo para Lisboa e depois parti, ainda
miúdo, para Macau, regressando depois. Há vinte anos, conheci o João Pedro,
começámos a trabalhar juntos e desde então que andávamos a adiar uma visita a
Macau, onde passei parte da minha infância. Queria saber até que ponto as
minhas memórias de Macau correspondiam ainda à realidade, ou se elas se
transformaram entretanto num produto da minha imaginação, numa matéria
ficcional.
Já a relação do João Pedro com Macau era distinta. Foi por isso que decidiram coassinar a realização do filme?
J.P. — Sem
nunca lá ter estado antes, eu tinha, várias ideias sobre Macau na cabeça. Tinha
o relato das memórias do João Rui. Tinha também a representação de Macau que o
cinema clássico me deu, enquanto um espaço labiríntico, secreto, cheio de
perigos. A Macau do filme de Sternberg, por exemplo. Embora quase todo rodado
em estúdio, o filme de Sternberg parte de imagens documentais e de um travelling
filmado num barco em que aparece a capitania do porto e a casa em que o
João Rui, de facto, viveu. Este tipo de coincidências começou a surgir de uma
forma inexplicável. A Macau que descobrimos começou lentamente a tornar-se um
espaço mental, uma espécie de jogo lúdico com um espírito de grande aventura.
Quisemos refazer essa aventura, vivê-la durante a rodagem. No fundo, nunca
acreditámos muito na palavra ‘documentário’ e foi essa ‘falta de convicção’ que
acabou por nos levar para outro rumo.
J.R. — A
Macau ‘óbvia’, turística, que se pode ver no YouTube, não nos interessava. Não
queríamos filmar os casinos e uma parte da cidade que, de belo, aliás, tem
muito pouco. Há pessoas que não reconhecem a Macau que nós mostramos porque o
filme não é o estereótipo da cidade, foge do cartão postal e dessa noção de
‘belo’, que é ambígua. O que me fascina em Macau são as suas contradições
arquitetónicas e culturais. A minha personagem diz às tantas que passou ali os
melhores anos da sua vida e eu queria que este filme fosse a continuação disso:
a história de um observador que constata uma transformação radical da paisagem.
E queria voltar a perder-me em becos e vielas. Perder-me no tal espaço
imaginário, fragmentado, que ao mesmo tempo é um espaço físico ‘habitado’,
oposto ao do turista. Por outro lado, foi através dos jornais portugueses de
Macau que soubemos da morte da Jane Russell, a protagonista de “Macau”. O filme
de Sternberg ganhou então uma importância decisiva.
A sua personagem, João Rui, parte para Macau para ajudar uma amiga, Candy. Ela ‘abre’ o filme com uma interpretação de ‘You Kill Me’, a canção que Jane Russell cantava em “Macau”. Quem é a Candy?
J.R. — É a nossa Jane Russell!
A sua personagem, João Rui, parte para Macau para ajudar uma amiga, Candy. Ela ‘abre’ o filme com uma interpretação de ‘You Kill Me’, a canção que Jane Russell cantava em “Macau”. Quem é a Candy?
J.R. — É a nossa Jane Russell!
J.P. — E
ao mesmo tempo é a Cindy Scrash, a maravilhosa performer dos shows de
travesti e uma pessoa que adoramos.
J.R. — A
Cindy tem uma aura e uma star quality do cinema clássico que já não são
deste tempo. Aliás, o nome da personagem, Candy, é outro somatório de
coincidências. A gata em que eu me transformo no final do filme chama-se Candy,
por causa da Candy Darling do Warhol. Quando estávamos em Macau, descobrimos um
bambu com a inscrição Candy, outro feliz acaso. O que eu quero dizer com isto é
que Macau é uma cidade que se ficciona a si própria. Candy é a personagem que
lança os dados do filme e também o jogo de aparências que se estabelece com o
espectador.
“Macau
é a mais amável e a mais cruel das cidades, onde nem tudo o que parece ser,
é”...
J.R. — Eis a tagline do nosso cartaz
J.R. — Eis a tagline do nosso cartaz
Há
duas vozes off, a de João Rui, que viaja só e é de facto uma personagem,
e outra voz, que é a sua, João Pedro, mas que “não está lá”. Gostava que
me falassem de uma noção de off no filme que me
parece uma proposta narrativa radical. A Macau ficcionada é sobretudo sonora,
não visual. É um fora de campo, quase de ficção científica, com aquela
misteriosa gaiola que anda de mão em mão...
J.R. — A gaiola é um macguffin, o símbolo de uma identidade cultural que, receio, vai desaparecer, tal como o Mercado Vermelho em que filmámos “Alvorada Vermelha”, ou tal como o patoá, outrora a língua dos macaenses e hoje praticamente extinta.
J.R. — A gaiola é um macguffin, o símbolo de uma identidade cultural que, receio, vai desaparecer, tal como o Mercado Vermelho em que filmámos “Alvorada Vermelha”, ou tal como o patoá, outrora a língua dos macaenses e hoje praticamente extinta.
J.P.
— E a ideia de ficção científica agrada-me bastante... Eu acho que a minha voz
off aparece já como um comentário, não sobre Macau, mas sim sobre a construção
do próprio filme. É uma voz que dialoga, que conta. A voz do “era uma vez” dos
contos tradicionais e a voz da “última vez”, que nunca é a última. Não sei se
não voltaremos a filmar ali...
J.R. — O
som levou-nos meses de trabalho e foi todo reconstruído de raiz. Tínhamos a
sensação de que, se quiséssemos, podíamos contar outra história completamente
diferente sobre aquelas imagens. Quando eu era miúdo, lembro-me de ver filmes
no cinema e na TV em Macau, em línguas que não compreendia. Então, inventava
histórias sobre o que via. Queria recuperar esse grau de liberdade...
J.P. — Como se cada espaço real tivesse um fantasma equivalente. Cada plano tem o seu fantasma, que vem do som e dos seus subterfúgios.
J.P. — Como se cada espaço real tivesse um fantasma equivalente. Cada plano tem o seu fantasma, que vem do som e dos seus subterfúgios.
No final do filme, as pessoas começam a desaparecer, Macau começa a ficar
deserta e os animais tomam o lugar dos homens. Porquê?
J.P.
— Há uma coisa que eu detesto no cinema e que se chama conforto. Detesto um
cinema de estilo. Ora, este filme, pelas suas próprias condições de produção, e
também pelo seu delírio mais ou menos controlado, permitiu-me correr riscos,
pôr-me em causa. Aposta numa história detectivesca em que experimentei e filmei
coisas que até então não tinha feito. Mas “A Última Vez...” não é um filme
menos íntimo do que os outros. Pelo contrário, parece-me cada vez mais difícil
fazer cinema na atualidade sem se falar de si próprio.
J.R. —
Quanto à transformação dos homens em animais, são também coisas que vieram ter
connosco. Há agora imensas matilhas de cães vadios em Macau, coisa que não
existia no meu tempo porque eles iam parar à panela. E quando filmámos,
estávamos no ano do tigré, é por isso que a Candy surge ao pé deles. Talvez os
homens precisem desta transformação para se salvarem. Afinal de contas, a
metamorfose é há muito tempo uma das maiores obsessões do cinema do João Pedro.
Francisco Ferreira, Expresso, 16/3/13