recebemos por mail, pedimos autorização, obtivemo-la. eis uma apreciação do Filme do Desassossego:

Acabei de ver o Filme do Desassossego e vou partilhar aqui o que não fui capaz de partilhar na conversa pós-filme com o realizador. Senti o filme como uma peça de teatro não porque tenha sido feito com essa intenção (como por exemplo os Cães Danados) mas porque apenas o senti assim. E este apenas não é pouco pois o filme foi simples e belo.

Belo pelo som das palavras, belo pela fotografia, belo pelo desenvolvimento da trama que não tinha mas que cada um montava para si.

A peça que eu senti era um monólogo com dois actos intervalados pela cena da ópera.

No primeiro acto o Bernardo Soares desmultiplicasse em vários personagens (um pouco como na Confissão de Lúcio mas com uma desmultiplicação muito maior) e cenários (também senti os cenários como sendo parte do próprio Bernardo Soares). No segundo acto os personagens fundem-se em apenas um levando ao desenlace final – eu sou Deus.


Podia continuar a dissertar mas não vale a pena pois este filme é uma experiência singular. Obrigado ao João Botelho e ao Cláudio Silva por tornarem isso possível. E ao Cineclube por não ter deixado os farenses no esquecimento.

Tito

.
.
(obrigado nós!)

Eduardo Marinho.avi



.

josé e pilar, brilhante doc do MGM, está em exibição em Olhão até à próxima 4ªf. sabia? vá!

«Caros amigos e amigas,

Como sabem, o filme José e Pilar estreou na passada quinta-feira. A afluência em sala tem sido reduzida, fenómeno já habitual no cinema que não seja made in hollywood, pelo que, se gostaram do filme, pedimo-vos que passem palavra e que o divulguem; pois a primeira semana é crucial para que os exibidores o mantenham em sala.

O filme está em exibição em Lisboa, Porto, Cascais, Almada, Aveiro, Braga e Coimbra (nestas 3 últimas cidades é onde tem tido piores resultados, apesar de todas a críticas favoráveis).
No Brasil já foi visto por várias dezenas de milhar de pessoas e no próximo Sábado, dia 27 de Novembro, José e Pilar será filme de abertura do festival de Ronda (Espanha), onde será apresentado pelo Juiz Baltazar Garzón.

Um grande abraço a todos e obrigado por tudo,

Miguel»


a todos os que não couberam na nossa ante-estreia e aos demais...vão e passem palavra! o filme é magnífico!

GRANDE PRÉMIO INDIE LISBOA - cinema independente do melhor! Vão-me buscar alecrim, dos irmãos Safdie, é 2ªf, IPJ, 21h30.


Um homem irrequieto, dois miúdos reguilas e uma cidade acordada. De olhos bem abertos para a Nova Iorque de Vão-me Buscar Alecrim, o filme autobiográfico dos Irmãos Safdie.

Chuck Katz escreveu um livro com itinerários cinéfilos pelas ruas de Nova-Iorque. Já teve várias edições e é um deleite para os amantes de cinema que vistam a cidade. Através dele pode-se saber qual a conduta de metro que levantou as saias a Marylin Monroe, o bar em que Tom Cruise fazia os cocktails de Cocktail ou a praça em que Edward Norton cantou apaixonadamente para Drew Barrymore no musical de Woody Allen Toda a Gente diz que te amo. São páginas e páginas de referências de uma cidade que todos conhecemos dos filmes, mas que nunca vemos da mesma maneira. Apesar de tudo o que já foi feito, os irmãos Safdie, realizadores de Vão-me buscar Alecrim, descobrem um novo ângulo, que não é mais do que uma visão pessoalíssima da Nova Iorque que os viu crescer.

Vão-me buscar Alecrim ganhou o prémio principal da última edição do Indie Lisboa. É uma homenagem ao pai e à própria cidade, com fortes traços autobiográficos. Esclareça-se: aqueles dois irmãos reguilas, interpretados por Serge e Frey Ranaldo (filhos de Lee Ranaldo dos Sonic Youth), não são mais do que os próprios realizadores. E muito do que o filme mostra aconteceu-lhes mesmo.

De certa forma, é uma história de amor paternal, de um pai que se confunde com um irmão mais velho, numa paixão assolapada, imatura mas consistente pelos filhos. Tal faz com que o seu amor nunca seja posto em causa, mesmo quando, de forma imprudente ou negligente, põe a vida das crianças em risco, através do uso imponderado de soporíferos. Perdoamos imediatamente aquele pai, assim como os próprios filhos o fazem ao realizarem este carinhoso filme. Até porque, muito provavelmente, também o pai, que era projeccionista, influenciou as suas vocações.

A admiração por John Cassavetes é evidente. Logo no início, a câmara, aparentemente distraída, encontra, como por acaso, um homem, que acaba por ser o protagonista. Depois de comprar um cachorro quente, salta uma vedação do Central Park e tropeça, deixando cair a salsicha e tudo o resto. Ri-se sozinho, como se fosse um tolo. E assim fica retratada a personagem brilhantemente interpretada por Ronald Bronstein, um grande actor que nem sequer actor é (os irmãos Safdie levaram o espírito independente ao extremo de convidar o seu editor de imagem para actor principal). Percebemos que Lenny está apenas feliz porque chegou a altura do ano em que fica com os filhos.

Aquela vedação do Central Park, em que ele tropeça, é o que o separa da zona fina de Upper Manhatan, onde os filhos vivem tranquilamente com a mãe. Os miúdos são uns traquinas, capazes das maiores tropelias, como carregarem uma bisnaga de urina e disparem contra o babysitter. Mas o pai não lhes fica a trás, com o seu carácter hiperactivo, acriançado, irresponsável. Mostra uma envolvência física e emocional com os filhos, como um leão com as suas crias.

Assim é transmitida uma sensação de felicidade louca e espontânea, como de uma paixão, apesar de os resgatar de uma casa luxuosa, para um apartamento minúsculo da zona baixa da cidade, provavelmente Greenwich Village ou Soho.

A personagem, tal como nós, não se conforma com o fim daqueles dias, num tempo em que a custodia era mal dividida entre divorciados. E, mais uma vez, aceitamos o que o que aparentemente é condenável: o pai, que serve para quase tudo menos para ser pai, rapta os filhos, e parte, de frigorífico às costas, com as crianças debaixo dos braços, no esplendoroso teleférico de Roosevelt Island. E até acreditamos que a viagem não acaba logo ali, do outro lado do rio, mas apenas numa nuvem dos céus de Manhattan.
.
Manuel Halpern, Visão



Na edição de Junho de 2010 dos "Cahlers du Chiéma", Benny Safdie, o mais novo dos cineastas e irmãos nova-Iorquinos que assinam esta estreia, foi convidado a escrever um texto sobre o lançamento em DVD de "Hi Mom!" (1970), filme mítico de Brian De Palma, com Robert De Niro. Talvez esta seja uma estranha forma de começar a falar de um filme, mas muito do mistério de "Vão-me Buscar Alecrim" (o título português ficou com imensa piada) resumiu-o Benny nesse texto. Afirma ele: "É o lado completamente frenético da narrativa que torna o filme tão excitante e divertido," Mais tarde: "Do início ao fim, o filme adapta o estilo do documentário (...) a interpretação torna-se muito realista e sentimo-nos imergir noutro mundo: suspendi a respiração ao ver tudo aquilo decorrer, como se fosse em direto, pois não sabemos mais onde a realidade se encontra," Ora, não pode haver melhor convite para entrar em "Vão-me Buscar Alecrim" do que aquelas palavras: é que Benny escreveu (sobre De Palma) do mesmo modo que os dois irmãos filmam. E o que eles filmam vem da urgência do momento, do improviso, por vezes da total confusão. Decorre tudo tão depressa que jamais há tempo para fazer uma pausa - mas só um planeamento engenhoso consegue garantir o triunfo deste efeito. Em 2008, Josh foi notado em Cannes, na Quinzena, com a longa-metragem "The Pleasure of Being Robbed". Os dois Irmãos já tinham assinado algumas curtas. À Quinzena voltaram, em 2009, com este (co-assinado) "Vão-me Buscar Alecrim". E, no passado mês de abril, o filme estreou finalmente em Portugal, no IndieLisboa, vencendo o prémio máximo. Agora, sim, entramos no 'alecrim', para falar do seu herói, espécie de 'pai-coragem', trintão gasto e de cabelo grisalho, divorciado, doido varrido, com vida desregrada... Chama-se Lenny (extraordinário papel de Ronny Bronstein, realizador de um filme inédito em Portugal de que gostamos muito: "Frownland"), vive sozinho e, durante duas semanas, apenas duas num ano inteiro, ele tem direito a ficar com a guarda dos seus dois filhos menores, dois rapazes. Mas Lenny é tudo menos responsável. É uma criança grande. Os dois miúdos são uma figuração dos próprios Safdie, que fazem aqui o retrato do seu pai. E o trio mete-se invariavelmente em sarilhos. Mas "Vão-me Buscar Alecrim" ultrapassa em muito o tom da autobiografia: é que aquele 'pai vagabundo' vai viver cada segundo das duas semanas com os filhos como se fosse o último. No gesto, reinventa-se uma paternidade nova, contraditória, polémica nas ruas, febris de uma Nova Iorque que Jamais foi filmada assim. A improvisação nunca tomba na caricatura, numa figura de estilo: ela é o próprio assunto do filme, a sua natureza mais absurda, emotiva e assustadora - até chegarmos à tal imersão de que falava Benny, uma imersão que deixa a story contagiar-se tanto pelo real como pelo lado mais fantástico do quotidiano que a rodeia. Sublime. Que o filme encontre entre nós o culto que merece.
.
Francisco Ferreira, Expresso




É refrescante a forma de filmar a infância assim: o caos total.

No cinema actual (americano, mas para além dele) não deve haver coisa mais estereotipada do que o olhar sobre a infância, sobre as crianças, sobre as relações entre pais e filhos pequenos. Neste panorama, é refrescante encontrar um filme que, como "Vão-me Buscar Alecrim", seja capaz de filmar a história (disfuncional) de um pai divorciado (um "pai solteiro") e dos seus dois filhos desta maneira: caos total, a linha da irresponsabilidade cruzada mais do que uma vez, e no entanto... E no entanto, a relação entre aqueles três exala uma autenticidade sentimental comovente, uma espécie de felicidade acossada menos pelos sucessivos desastres do que pela maneira condenatória como o mundo (os "outros") olha para os desastres. Quer dizer, "Vão-me Buscar Alecrim" é a história de um "pai-herói", mas cuja heroicidade só é (só será, um dia) reconhecida pelos filhos. Toda a gente, todos os adultos, dos professores da escola à mãe das crianças, vê naquele homem apenas um irresponsável eventualmente perigoso; mas aqueles dois miúdos, Sage e Frey, quando crescerem, farão muito provavelmente um filme sobre o pai (que até é projeccionista e lhes mostra filmes, em película e tudo). Assim o fizeram, pelo menos, Joshua e Benny Safdie, dois nova-iorquinos de vinte e poucos anos: "Vão-me Buscar Alecrim" é a autobiográfica homenagem ao pai de ambos.

Podemos acreditar facilmente nesta Manhattan de "hot-dogs" e jardins, apartamentos atravancados, tascas e lojinhas - podemos acreditar que é nesta Manhattan que as pessoas, de facto vivem. Há uma cena em que se evoca directamente aquela célebre foto a preto-e-branco de Weegee com os miúdos a tomarem banho de mangueira na rua (a mesma foto que, no "Padrinho", Coppola também "reconstituiu", e pouco importa que ela tenha sido tirada, salvo erro, em Brooklyn), o que faz todo o sentido porque é a "rua", em sentido lato, que os Safdie querem filmar. E, no entanto, reconhecendo embora a pertinência do enquadramento de "Vão-me Buscar Alecrim" na nobre linhagem do "realismo independente nova-iorquino" (Cassavetes ''et al''), os outros emparceiramentos que o filme dos Safdie nos sugere estão um pouco longe de Manhattan: aquele belo filme do georgiano Otar Iosseliani, "Era uma vez um Melro Cantor", e o seu protagonista, sobre-comprometido como o pai dos Safdie, a lutar contra o tempo e contra o espaço para conseguir estar aonde tem de estar à hora a que tem de estar, o seu voluntarismo e entusiasmo sempre a jogarem contra ele; e, claro, o sítio de onde têm vindo sistematicamente os mais espantosos e "irregulares" retratos da infância e da família, o Irão: reparem na maneira como os Safdie conseguem criar um sentimento de angústia profunda a partir dos mais anódinos acontecimentos domésticos e, num ápice, dar o salto para o acontecimento extraordinário e extraordinariamente angustiante (toda a sequência, semi-absurda, com os miúdos adormecidos por um excesso de sedativos, é "cinema iraniano made in Manhatan", e não o dizemos com nenhuma espécie de provocação).

Longe de Manhattan: o plano final, supra-sumo da melancolia desafectada com que os Safdie filmam esta história, sugere que talvez do outro lado do rio, não muito longe mas suficientemente longe dali, o pai e os dois filhos encontrem o que lhes falta, o tempo e o espaço.
.
Luís Miguel Oliveira, Ípsilon




Ponte para a infância de Josh e Ben Safdie (inclui declarações dos realizadores)

Dois irmãos, o caos na infância e a necessidade de catarse. Dois cineastas, o filme do trauma e uma transbordante fantasia. Que nos rapta. Uma das estreias do ano: "Vão-me buscar alecrim"/"Go get some rosemary". Em busca da infância perdida de Joshua e Ben Safdie com a ponte Queensboro em fundo

Joshua e Ben Safdie fizeram a educação sexual na Queensboro Bridge com o carro do pai imobilizado no trânsito e as bujardas de Howard Stern na rádio. Os nova-iorquinos exasperavam com as filas no único acesso grátis a Manhattan e desenvolveram uma relação de ódio com a ponte. Mas Paul Simon, por exemplo, gostava e fez-lhe uma serenata em andamento : é ouvir "The 59th Street Bridge Song (Feelin'Groovy)" do álbum "Parsley, Sage, Rosemary and Thyme", de Simon & Garfunkel, 1966. Joshua e Ben passaram a infância ali. A entrarem e saírem de Manhattan. Por baixo da Queensboro, um Grand Canyon de asfalto - a Primeira Avenida -, o East River, Roosevelt Island e o subúrbio onde eles viviam, Queens. Por cima, um teleférico vermelho.

Joshua: "Todos aqueles cabos, e no entanto um elemento de leveza. A liberdade que aquelas pessoas que vão no teleférico têm. Como uma espécie de fuga. Tudo parece pesado, e no entanto quando o teleférico levanta...".

Joshua e Ben perguntavam-se quando eram crianças: para onde iam aquelas pessoas?

Passaram 15 anos, o teleférico já não levanta - obras de remodelação só voltam a pôr a funcionar o meio de transporte para Roosevelt Island em Setembro - mas os irmãos contemplam, numa manhã de Junho com temperatura de Agosto, o cenário onde filmaram a sequência final da sua longa-metragem "Vão-me buscar alecrim"/"Go get some rosemary". Contemplam um pedaço da memória, e a verdade é que a sequência do filme experimenta-se como uma epifania.

Quando embarcam no apelo "triunfante" daquela hipótese de fuga de Manhattan, os Safdie estão a referir-se a um momento no filme em que um pai divorciado, Lenny, misto de mágico, aldrabão e disfuncional compulsivo (profissão: projeccionista), encontra finalmente um acordo no seu tempo e no tempo dos seus dois filhos. Como se só a bordo do teleférico, no ar, afastado da terra, os conseguisse raptar ao caos que ele próprio cria. É uma vitória mas também é uma derrota.

Eles são Lenny (Ronald Bronstein) e Sage e Frey (na vida real filhos de Lee Ranaldo dos Sonic Youth) e estão, obviamente, no lugar de Alberto, o pai, e dos irmãos Joshua e Ben. Que são também filhos de um casamento que cedo acabou. O pai não era projeccionista mas filmou obsessivamente a infância dos filhos. Quando lhes quis explicar o que tinha sido a vida familiar, encurtou o discurso e deu-lhes como exemplo a batalha entre Dustin Hoffman e Meryl Streep pela posse do filho em "Kramer contra Kramer", o filme de Robert Benton. E um dia depositou-lhes nas mãos as centenas de horas de imagens deles. Portanto, para Joshua e Ben, a vida vive-se para ser documentada. Portanto o cinema tinha de ser o legado. E tinha de ser biografia.




Sabem que são filhos do trauma. Há anos que os amigos lhes dizem que a sua infância dava um filme e que deviam fazê-lo. Esse pode ser um lugar-comum, mas no caso deles ganha mesmo sinais de vida - cinematográfica.

Quando, em "Vão-me buscar alecrim", filmam Lenny a pôr os filhos "K.O.", a dormir com comprimidos, para os miúdos não se assustarem com a sua ausência porque teve de substituir um colega na cabine de projecção, Joshua e Ben até podiam esperar que os espectadores do filme se dividissem. Mas não esperavam reacções tão "politicamente correctas" de alguma imprensa americana que os vê como vítimas de abuso.

Joshua: "Percebemos que aquela cena podia ser um ponto de viragem, mas estávamos sobretudo preocupados com o que aquilo significava para nós e não para a sociedade americana."
Talvez pressentindo o pudor do jornalista em explicitar a pergunta ("o vosso pai drogava-vos com comprimidos?"), Joshua antecipa-se: "Aquela cena está no lugar de outros dramas que nos aconteceram. Mas a verdade é que a relação das pessoas com a infância é culturalmente grosseira. Pelo menos na sociedade americana. As excessivas precauções repugnam-me. Interessa-me quando as crianças são tratadas como outras pessoas."

Joshua e Ben não (se) olham como vítimas. O que aprenderam com Alberto - e o que os filhos de Lenny provavelmente aprenderão com o pai de "Vão-me buscar alecrim", embora nunca se vá saber como essa história vai acabar... - é que o caos e a disfunção podem ser uma explosão de fantasia. "Vão-me buscar alecrim" começa por parecer um estudo de personagem e de cidade, tem momentos de "screwball comedy" crispada, mas é permeável pelo fantástico e pela ficção científica, como uma energia intrusiva que corrói o edifício por vários lados (há por lá um insecto gigante, como um urso polar se cruzava no "road movie" de uma cleptomaníaca em "The Pleasure of Being Robbed", obra a solo de Joshua, de 2008).

É como um assalto. E quem é assaltado é o espectador, sem possibilidade de se acostumar a um registo, ficando ao sabor angustiante da desordem de Lenny. A necessitar de um momento de descarga, a sequência final no teleférico. O Ípsilon marcou encontro com os Safdie no local do crime, Rua 59, Manhattan. O momento em que uma ficção termina em ascensão foi o início dos Safdie como cineastas tal como os conhecemos hoje, autores de longas, curtas e curtíssimas metragens.

Joshua: "Somos filhos desta personagem, que está dentro de nós. Este filme foi a forma de entendermos que há mais de uma década andamos a estudar o comportamento dele. Mas também somos uma espécie de pai dele. O nosso pai tem hoje 50 anos mas não vamos ter com ele para pedir conselhos. Ele é que vem ter connosco para nos pedir conselhos. A minha mãe e o meu pai já viram o filme. Ele umas oito vezes. Ela, que não vive com ele já há uns 20 anos, não tem memória dele por isso para todos os efeitos, o Lenny do filme é a cara do meu pai. E claro, acha que o filme é uma 'carta de ódio' ao ex-marido. Ele, pelo contrário, acha que os seus defeitos são as suas qualidades. O facto de cada um ver o filme a partir da sua própria realidade faz sentido para nós."

O estudo da personagem continuará, porque a próxima longa que os irmãos estão a escrever, "Uncut gems", passa-se no mundo da indústria da joalharia, "ali para a Rua 47". A escolha pode parecer uma guinada depois de "Vão-me buscar alecrim", mas o cinema continua ancorado no pai: os anos em que ele trabalhou no mundo "obscuro" das jóias.

Joshua: "Benny e eu andávamos a precisar disto, e a única forma de fazermos a catarse da nossa infância, para sabermos como foram os nossos primeiros 11 anos de vida, era ficcioná-la. Há uma razão para os gregos terem inventado o teatro. Recriar apenas a nossa infância não tem interesse, é mais interessante como a vivemos. Por isso, é como quando contamos a alguém um sonho: temos que acrescentar sempre um ponto para tornar a coisa mais interessante."

E os dois olham para os cartazes que anunciam o novo teleférico remodelado que vai surgir em Setembro. Já não vai ser como antes.

Ben: "Este filme mostra pela última vez o teleférico tal como era. Lá vão outra vez dizer que 'Vão-me buscar alecrim' é um filme de época."

O teatro de uma cidade

É verdade que a pergunta surge insistente: em que época se passa "Vão-me buscar alecrim"?. Há quem jure que esta Nova Iorque suja só existiu assim no cinema americano dos anos 70 e que estas personagens, Lenny sobretudo, estão sob influência, como nos filmes de John Cassavetes. Menciona-se o nome e Joshua e Ben ameaçam revirar os olhos. Dizem eles que antes de se falar de Cassavetes tem que se falar de "Ladrões de Bicicletas" de Vittorio de Sica (1948) ou de "Bleak Moments" de Mike Leigh (1971). Mas se calhar nem se deve começar pelo cinema.

Joshua: "Nunca a referência a filmes foi um tema nas nossas conversas. E na verdade não tínhamos visto nenhum filme de John Cassavetes antes de fazermos este."

Ben: "Não é verdade. Tínhamos visto 'Uma Mulher sob Influência'. E não te esqueças que tínhamos um professor na universidade de Boston, Ray Carney, que escreveu um livro sobre Cassavetes e sobre a natureza maníaca das personagens dele. Essa natureza corresponde a um certo modo de vida que tem a ver com Lenny. Mas, se se reparar, Cassavetes estava demoradamente com as suas personagens, até à exaustão, e nós obrigamos o espectador a saltar de situação em situação, quase que o frustrando."

Joshua: "Sim, não é possível sintetizar as coisas no nome Cassavetes. Se tem que se falar de filmes que estiveram antes deste, então temos de falar de 'Milestones' de Robert Kramer [1975]."

O nome de Cassavetes pode parecer incontornável, mas novas visões do filme mudam a forma de engavetar "Vão-me buscar alecrim". Isso e entrar em www.redbucketfilms.com, o sítio em que os irmãos apresentam as várias plataformas do trabalho da sua produtora, Red Bucket Films, que partilham com três amigos e colegas da universidade de Boston. É uma associação de gostos e impulsos individuais mas disponíveis para a solidariedade: quando um deles precisa, os outros põem-se ao serviço do projecto alheio com a função que for necessária. E a experiência com a ficção não se fica só pelos filmes, estende-se aos livros, fanzines e ambiciona chegar ao museu, expondo os objectos que vão coleccionando no seu périplo pelas cidades - como Lisboa, por exemplo, onde estiveram a apresentar o filme no IndieLisboa deste ano e a receber o prémio principal do festival. O "twist" é que nesse mostruário de objectos, histórias e filmes, o verdadeiro está misturado com o falso, o documental com o ficcional.




Mas entre-se em www.redbucketfilms.com, veja-se a série "Buttons", instantâneos, alguns só duram segundos, de Nova Iorque que Joshua e Ben roubam à cidade com as suas câmaras digitais. Ou então as curtas em que Nova Iorque e arredores surgem transfigurados, habitando um tempo que não é imediatamente reconhecível, e entre o burlesco (a presença "keatoniana" de Ben como actor) e o onírico, levando o espectador a querer insistentemente datá-lo. Isto para dizer que, afinal, é menos o cinema e mais a relação com a cidade que está na base daquilo que os Safdie fazem. Temos por isso que confessar que esperávamos encontrar na Rua 59 dois rapazes a verem o mundo avidamente com as suas câmaras digitais, como se só elas provassem que "aquilo" aconteceu, mas afinal quem apareceu foram dois exemplares de uma outra vertigem, proustiana, à moda de Manhattan.

Joshua: "Se nos encontrasse há um ano era assim que nos veria, mas depois começou a tornar-se um problema. Estávamos a viver experiências apenas para as registar, apenas pelo dispositivo. Resolvemos suspender isso. Estamos agora a enveredar por uma abordagem mais interior, de recriação. Mas é verdade que há um ano poucas pessoas andavam com as suas câmaras digitais e hoje é o que toda a gente faz. E, sim, são as coisas que vemos nas ruas de Nova Iorque que estão na origem de algumas das cenas dos nossos filmes." Josh resume: "The theatrics of the city."

Mas então "Vão-me buscar alecrim" é passado ou é presente? Por que é que anda por lá Abel Ferrara (um "cameo") a falar em Bill Withers, singer songwritter dos 70s? É tudo hoje, "agora", mas como Ben se encarrega de explicar, isso também é tudo "passado".

Ben: "Queremos sempre desesperadamente captar o agora, mas nunca conseguimos porque a partir do momento em que o filmamos é sempre passado, estamos sempre a olhar para trás. Mas é um passado lembrado no presente, não é o passado pelo passado. É a memória de coisas que passaram. Pode datar-se a memória? Eu diria que a nossa Nova Iorque é intemporal."

Era disso que falávamos, Proust em Manhattan - Ben fala menos, embora compense o maior voluntarismo dicursivo do irmão com uma disponibilidade no olhar que é transbordante e com uma capacidade de síntese que ilumina o que Josh acabou de dizer; a sintonia, de resto, é de siameses, assim como a pulsão para a pantomima.

Sobre Ferrara e Bill Withers, Joshua explica então que deram ao realizador, tornado aqui actor, uma série de discos que ele era suposto andar a vender na rua, numa sequência do filme. E foi Ferrara que escolheu o singer-songwriter negro dos anos 70 no meio dos discos "modernos" que a produção pôs à sua disposição. Não houve nenhum preciosismo ou calculismo de época.




Ferrara, para Joshua, é uma personagem perfeita para aquilo que ele chama "the theatrics of the city". Conheceu-o, quando tinha 18 anos, de uma forma que deverá ser muito nova-iorquina: Ferrara era vizinho de um amigo dos irmãos Safdie, e do apartamento onde morava muito barulho antecipava invariavelmente "uma porta que se abria e alguém que era atirado pelas escadas abaixo".

"Trabalhei depois numa loja de vídeo e ele era a única pessoa que estava autorizada a levar filmes grátis. Quantas vezes vi depois o Abel na rua à noite, e a chamar por mim [imita a voz rachada de Ferrara]: 'Josh, Josh, dá-me dinheiro.' Ele é o verdadeiro poeta da rua de Nova Iorque. Fazia sentido para nós que numa determinada cena do filme ele entrasse em contacto com Lenny."

Mais "teatro de uma cidade": "Outro dia vi um rapaz na rua com o som muito alto a sair de uma 'boombox' e a dançar e alguém pediu para ele baixar o som e ele respondeu: 'Fuck, I'm taking my city with me'. Esta cidade precisa da anarquia individual. A infelicidade adora companhia. Não quero que Nova Iorque seja um gigantesco Starbucks. Gosto de ter medo das pessoas na rua, se calhar porque isso me distrai dos meus problemas."

E o perigo espreita em Nova Iorque. Não um mosquito gigante não um urso polar, mas o irascível Dirty Harry transportado de São Francisco para Manhattan e disfarçado de papagaio. "Give me your finger and make my day!", mesmo numa esquina de acesso à Queensboro Bridge, é um íman que atrai Joshua e Ben Safdie. Dentro da loja de animais, asas abertas e "hellos" e "goodbyes" papagueados ao melhor estilo rachado de Abel Ferrara.

Isto é "Vão-me buscar alecrim".
.
Vasco Câmara, Público


Realização e Argumento: Josh & Benny Safdie
Interpretação: Ronnie Bronstien, Sage Ranaldo, Frey Ranaldo, Victor Puccio, Éleonore Hendricks,
Sean Williams, Dakota Goldhor, Aren Topdjian, Aber Ferrara, Leah Singer, Salvie Sansone, Jake Braff
Direcção de Fotografia: Brett Jutkiewicz e Josh Safdie
Montagem: Josh & Benny Safdie, Brett Jutkiewicz
Origem: EUA/França
Ano de Estreia: 2009
Duração: 100’




Desassossego - parte 7, as entrevistas ao realizador

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.







ENTREVISTAS

Começou, há 30 anos, com um encontro entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, passou por Dickens, Diderot, Agustina (introduzir aqui Carolina Salgado é quase sacrílego). Agora, João Botelho regressa à língua que é a sua pátria com Filme do Desassossego.

O realizador ousou entrar no infinito particular de Bernardo Soares. Numa fase complicada da sua vida, o Livro do Desassossego caiu-lhe em cima: "Salvou-me a vida". O livro, os fragmentos, as palavras, toda aquela "depressão serena e tormentosa", a transcendência, a melancolia, o estranhamento, a incomodidade de uma cidade que acolhe e é hostil vão andar em digressão por telas de todo o país. E de um não-livro, de uma ruína literária João Botelho ergueu um filme que não é de época mas que é fora de época. E de um livro-caos, encontrou o seu pedaço de cosmos, sem fim, nem meio, nem princípio - exactamente por esta desordem.

Desta fez tentou o impossível ao adaptar ao cinema um livro que muitos sustentam que nem existe?
Não é impossível. As pessoas pensam sempre que é difícil adaptar literatura ao cinema, quando os textos são muito bons. Difícil é não ter medo dos textos. Diz-se que para fazer um bom filme é preciso utilizar um mau romance. Hitchock é que sabia disso, de romances de cordel fazia obras primas do cinema. Pegar em obras muito fortes da literatura é arriscado. Há inconvenientes que são os de fazer cinema em Portugal: os filmes são raros, há pouco dinheiro, é cada vez mais difícil filmar... Mas há uma vantagem que é a de ser ir arriscando, de ser fazerem protótipos e não séries e repetições, e tentar que os filmes sejam importantes. Por exemplo, com a Conversa Acabada, há 30 anos, interessou-me pegar no modernismo português como afirmação de algo inovador da cultura portuguesa. Peguei na relação entre o Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, que tinha a ver com a criação e a amizade. Foi talvez a coisa mais arriscada que fiz na vida. Agora apeteceu-me voltar à carga. Senti-me novo, outra vez...

Lembra-se de algum caso em que um bom livro tenha dado um bom filme?
Sei lá... Rebecca de Daphne du Maurier. Hitchcock fez-lhe uma boa adaptação.

O Leopardo de Visconti?
Nem sei se o filme nem é melhor que o romance. Mas neste caso, eu não fiz um filme do Livro do Desassossego, eu fiz uma parte do Livro do Desassossego, aproveitei bocados. O Livro do Desassossego tem uma vantagem sobre as outras coisas, é um livro que não tem princípio nem meio nem fim. O Richard Zenith vai na sétima versão, cada um pode fazer um livro de desassossego diferente, pegar naquilo e ordená-lo por metonímicas, associações de ideias, cronologias, racords de luz e de música...

Qual foi a sua ordem?
Foi a ordem que Pessoa me indicou. (risos) A sério. Uma é a ideia do tempo que me ajudou a estruturar o filme todo. O tempo do sonho nunca é o tempo da vida. No cinema também não. O filme é estruturado em três dias e três noites na vida de Bernardo Soares, mas podem ser três minutos. Na primeira cena faltam três minutos para as três da manhã e na última, o relógio marca três. E, na verdade, o filme dura uma hora e 59 minutos... São caixas dentro de caixas...

O filme acompanha as deambulações quase sonâmbulas de Bernardo Soares...
Ele não é um heterónimo, é quase um Fernando Pessoa, mora em Lisboa na mesma rua ("sou da rua dos douradores como a humanidade de inteira"), tem quase a mesma profissão de Pessoa, que não é guarda-livros mas também trabalha num escritório, leva uma vida miserável, de abnegação, de isolamento. E essa ideia de viagem que não vai ter a lado nenhum também me ajudou. "Comboio andando ao Cais do Sodré. Chego a Lisboa mas a nenhuma conclusão" Uau! (risos)

Fernando Pessoa odiava viajar...
Mas se calhar sem sair do mesmo lugar foi a pessoa que mais viajou. A ideia de tempo e de viagens que não existem, esse fingimentos interessaram-me muito na construção deste filme. Porque no cinema também é tudo a fingir. A única verdade do cinema é a relação entre o espectador e aquilo que vê. De resto, não se viaja, não se morre no cinema, não se vai para a cama no cinema a não ser nos pornos. E houve uma frase muito bonita que me confirmou o desejo de ser democrátrico quando filmo: "Devem-se iluminar as polainas com a mesma luz que se iluminam as caras dos santos". E eu tentei fazer isso toda a minha vida. Os ricos e os pobres devem ter a mesma dignidade de luz. O cinema é luz e sombra e pessoas aflitas lá dentro. E o Livro do Desassossego é isso também: luzes e sombras e uma pessoa aflita. Mas a melhor frase de todas, aquela que me deu o filme, diz que os grandes textos dele "só existem lidos em voz alta ou em voz baixa desde que se ouçam". Portanto, só no cinema ou no teatro fazem sentido. Têm uma musicalidade, e uma outra camada completamente estranha em relação ao que está escrito. O que está escrito tem um sentido ou um não sentido ou o quiser, mas ganha-se outro quando se começa a falar em voz alta. Mesmo com o meu sotaque do Alto Douro, a gente começa a falar e cria-se uma dimensão estranha.

Mas se só lhe tivessem interessado as imagens filmava com o ecrã em preto como o João César Monteiro... As palavras também lhe inspiraram imagens?
Não sei se consegui ou não, mas tentei não ilustrar nada, o texto devia ganhar, e estar sempre acima de qualquer coisa. Apenas criei situações em que os textos pudessem ser ditos. Tentei tornar Lisboa o mais abstracta possível, tornando-a muito inquietante. Quando ele sai desesperado da igreja depois de resposta sobre a existência de Deus dada por um coro de crianças diabólicas, mudo a geografia da cidade, a casa dos bicos está em cima da calçada de São Francisco... Isso tem a ver com ideia de modernidade, de cubismo, com esta Lisboa de cartão como planos esmagados em cima uns dos outros. Lisboa não é muito bonita casa a casa, mas é deslumbrante com as casas todas juntas. Deu-me essa ideia de distorcer Lisboa, também através de vidros pintados à frente da câmara, planos filmados a partir de espelhos, sombras artesanais projectadas na parede. Coisas de estranheza. Eu não gosto muito das coisas, gosto das ideias das coisas. Fui buscar o escritório mais sinistro que podia encontrar em Lisboa, no Arquivo Militar em Chelas, com salas e salas monumentais e corredores muito estreitos, que desse a sensação de esmagamento às pessoas que lá trabalham. O sótão onde Bernardo Soares vive, angustia-o pelo vazio. O restaurante Sol Mar, nas portas de Santo Antão podia ser um décor de hoje, de ontem ou daqui a 40 anos. A ideia era sempre criar estranheza. Como o travelling da fila das sopa dos pobres nas arcadas do Terreiro do Paço e a rapariga nua debaixo de um casaco de peles a passar...

Mas esse já é um toque muito seu...
Essa cena foi-me inspirada num filme em que há um concurso de aristocratas para ver quem traz a coisa mais excêntrica. Ganha o que leva um pobre... Ricos e pobres divertem-se da mesma maneira. Têm suas drogas, apenas as dos ricos são mais requintadas.

Um é a sopa dos pobres outro o manjar dos ricos...
Mas é tudo igual. Só a pose de divertimento nos ricos é diferente da dos pobres.

A Alexandra Lencastre faz de centro de mesa...
A Alexandra é uma querida. É uma brincadeira por causa da Mulher que Queria Ser Presidente dos EUA e também uma homenagem à própria Alexandra.

Alexandra Lencastre, Catarina Wallenstein, Ana Moreira, Mónica Calle, Margarida Vila-Nova, Rita Blanco... Quase que dá vontade de perguntar que actriz não entra no seu filme?
A Maria João Luís que é óptima, por exemplo, quem me dera...

Mas descobriu um Bernardo Soares admirável...
O Cláudio Silva é um grande actor mas não lhe têm ligado muito. É um rapaz predestinado para representar, tem uma excelente voz, é calmo e inquietante. É um grande actor mas que andava um bocado perdido por aí...Vi-o numa peça de Shakespeare, no Dona Maria, Tanto Amor Desperdiçado, e ele fazia um papel deslumbrante. Eu disse: "É este!". Teve uma doença infantil que lhe deu uma pequena deficiência física. Ele é muito bonito e dramático - assim uma mistura entre Gael Garcia Bernal e Johnny Depp. Tem uma grande coragem de interpretação. Entrou mesmo no personagem, foi um óptimo portador. Dei-lhe uma pequena indicação: "Ó Cláudio, no cinema os olhos são mais importantes que o resto. Não pestanejes". E ele não pestanejou o filme inteiro. Apenas duas vezes quando o fumo do tabaco lhe incomodava os olhos e, mesmo assim, pestaneja em câmara lenta, que é uma coisa que só a Anna Magnani conseguia.

Ao longo deste processo nunca se sentiu um profanador, ao dar um cosmos a um livro-caos?
Quis fazer um filme sério a partir daquele que é talvez a obra mais importante da literatura portuguesa do século XX. Mas não lhe dei sentidos, aquilo não tem repostas só perguntas. Queria encontrar uma Lisboa que fosse justa com o texto. Nem realista, nem vouyeurista. Queria inquietar. Os filmes não devem confortar as pessoas. Kafka diz que a literatura deve rasgar, dividir, partir incomodar, em última instância levar suicídio. Depois há uma criança que diz 'Ó pai... ' (Risos) As pessoas não devem ficar indiferentes nem consumidoras. O sexo no filme é seco, duro, não é voyeurista... Há uma violência física extraordinário, sem uma única palavra. Queria que o texto fosse mais importante. Como o grande plano da boca da Catarina no texto da Educação Sentimental dito na íntegra. É ali, na língua, na saliva, no lábio, é dali que sai a voz, a origem...

Porque que é que as mulheres são sempre assim nos seus filmes, lábios vermelhos, vestidos de cores saturadas e penteados exuberantes?
Porque ficam mais giras (risos). São ideias de mulheres, não são mulheres. Quando fiz A Mulher que Queria Ser Presidente... fui acusado de misógino. Não era nada, aquilo era a Sarah Palin dez anos antes. Era igual, juro-lhe, era uma ideia do que iria acontecer.
Quando fiz o Tráfico, ninguém diria que Portugal ia ficar assim, mas ficou... Nós realizadores temos tempo para pensar, portanto podemos anunciar qualquer coisa. Gosto de estilizar, de ser abstracto. Passo a vida fazer a uma coisa nos meus filmes: dar um rebuçado ao espectador e depois tirá-lo de repente. Só têm um defeito: vê-se a estrutura toda, onde está a câmara, de onde vem a luz, como é montado...

Isso é bom ou mau?
Há pessoas que dizem que é mau porque retira às pessoas a capacidade de se evadirem, mas eu sou contra o cinema da ilusão, sou a favor do cinema da matéria. Gosto de pintura abstracta. Quando ouço musica não penso em nada. O problema do cinema é que concretiza de mais. Na literatura há uma liberdade que o cinema não tem. Diz-nos: "Aquele senhor anda com sapatos castanhos e camisa verde" e nós podemos imaginar centenas de tons de castanhos e de verde. No cinema não, é aquele castanho e aquele verde. A ideia é chegar a esta abstracção. Mas nunca se consegue a abstracção que outras artes conseguem. Tem sempre de contar, tem sempre de mostrar. O cinema é uma arte com pecado. No princípio para se ver cinema metia-se uma moedinha e tornava-se logo negócio, nunca se conseguiu libertar desse lado, porque é caro e tem de haver retorno. Depois é uma arte vampírica, não é uma coisa pura, vai buscar ao teatro, à música, à poesia... É uma ladroagem. Eu sou um vampiro. Por exemplo, este filme está estruturado em torno de dois pintores: um é Gerhard Richter sobre o desfoque e a percepção, por isso é que Pessoa limpa os óculos no início. Outro é Lucian Freud para a posição e aquele torcer dos corpos. E depois há um com que ando toda a vida que é o "sr Caravaggio". que me ensinou o que era a sombra e a luz, a luz pontual que ilumina uma mão e um olho. E depois há aquela memória que se me vai acumulando, a arte pop, cores fortes, os lábios vermelhos, os homens cinzentos e mulheres exuberantes...

No filme há 12 minutos de ópera, três fados, uma música estranha de Lula Pena, outra de Caetano, um bocadinho de rap numa cozinha - mas não é um musical. Em que género o inscreve?
Em nenhum. Podia ser assim como as peças do Brecht em que há sempre zonas musicas que comentam a cena anterior, Aqui as partes musicais, ligam, mais do que comentam. O Eisenstein fez a montagem de atracções, do pára e arranca, como a vida. Só que é cinema, não a vida. Logo é abstracto.

Conta-se que o Eisenstein queria filmar também algo tão impossível como O Capital...
Seria uma coisa genial. Garanto-lhe que se pode fazer um grande filme sobre O Capital, juro-lhe. As pessoas têm a mania que o cinema é uma coisa só, uma arte de se contar histórias, mas não é...

Talvez agora com o trecho "a minha pátria é a língua portuguesa" no seu filme as pessoas reparem que é um texto nada patriótico...
Porque Pessoa foi tudo, de direita, de esquerda, do centro e viva a contradição! Um génio! Eduardo Lourenço diz que esse trecho é a maior invenção desde as Descobertas. Ele diz que não se importava nada que nos invadissem, que viessem os espanhóis, desde que não o incomodassem pessoalmente. E acaba esse trecho com uma frase notável: "Eu não escrevo em português, escrevo eu mesmo". Depois há partes de um individualismo absoluto, sobre o isolamento e a capacidade de criar. No meu filme, ele acaba a dizer 'Deus sou eu , ah, ah ah'... (risos) É preciso ter muita lata...

Também é preciso ter muita lata para ter entrado neste universo pessoano?
Calhou-me... Caiu-me na cabeça. Estava numa fase estranha da minha vida, naquelas fases em que a pessoa nem sabe se está velho se está novo, e comecei a ler o Livro do Desassossego, em simultâneo com a Corte do Norte. Aquilo salvou-me. O que é o meu sofrimento ao pé deste? Aquele grande texto está para lá de nós. É um livro da abdicação e do prazer enorme de se estar sozinho. É um prazer enorme da solidão. É um tratado de escrita.

Fernando Pessoa dizia que Bernardo Soares era ele "sem afectividade nem racionalidade". Parece que sobra pouco para a sua personagem?
Sobra tanto, minha querida, sobra tanto... É a transcendência. A arte abstracta também não tem afectividade nem racionalidade e eu choro perante um Pollock. É emoção pura, arrepia-me, fico angustiado. Há coisas que nos deixam num estado superior da vida, levam-nos para cima. Há coisas que estão para além da expressão dos sentimentos... Há uma frase que diz que "quando a arte era a observância cuidada das regras havia poucos artistas e eram muito bons, quando a arte se transformou numa expressão dos sentimentos é uma porcaria, toda a gente pode ser artista porque toda a gente tem sentimentos..."(risos). Há coisas que estão para lá dos sentimentos, são construções...Quantas horas terá levado Pessoa a escrever isto, quantos neurónios terá gastado? Para escrever assim só mesmo levando uma vida anónima e desinteressante. E quando morreu aos 47 parecia que tinha 80...Como o Da Vinci parecia que tinha 100.

Porque é que optou por não estrear o filme no circuito comercial?
Esta é uma opção comercial, garanto-lhe. Os circuitos comerciais estão reduzidos a centros comerciais. A Corte do Norte foi esmagada por centros comerciais. Hoje quem vai ao cinema são crianças entre os 8 e 18 e querem ver entretenimento, com pipocas, telemoveis, galhofas, e medos e sustos. São contos para crianças, conta-se tudo em três minutos. No tempo dos grandes clássicos cada plano tinha dez ideias, agora uma ideia dá para um filme inteiro. Muitos efeitos, muitas imagens, três mil planos, os miúdos hoje só se concentram com o desfilar das imagens, se a pessoa lhe der um plano fixo, são incapazes de ver o vento nas árvores. Têm um cérebro, se calhar, muito maior do que o meu, mas não tem pensamento abstracto, não projectam geometricamente no espaço, não entendem as contradições e a dialéctica, mas têm gosto. Este filme vai ter mais espectadores e receitas nos cineteatros do país. E vou ter uma coisa fantástica que já não tenho há muito tempo: pessoas em silêncio a ver e ouvir.

Mas face a isso, essa opção, é uma desistência ou uma resistência?
É uma dissidência. Quando se é resistente perde-se sempre, ensinou-me Jean-Marie Straub. Porque é que eu hei-de de ter 10 mil espectadores se posso ter 40 mil? Se não posso ganhar as maiorias, quero ganhar as minorias.

Ana Margarida de Carvalho, Visão


É uma das obras mais arriscadas da filmografia de João Botelho: "Filme do Desassossego", adaptação do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, tem estreia absoluta no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, na próxima quarta-feira, dia 29. É uma obra central da literatura portuguesa, das mais traduzidas a nível mundial, que chega agora ao cinema, dando corpo a Bernardo Soares, o quase-heterónimo que Pessoa criou para espelhar a sua vida diária em Lisboa, e às projecções que Botelho construiu da cidade. Num gesto radical, o cineasta recusou distribuir o filme nas salas de cinema do país e optou por criar o seu próprio roteiro alternativo: depois da estreia, o filme será exibido numa rede de salas de espectáculo e de cineteatros espalhada pelo continente e pelas ilhas.

Como se adapta o "Livro do Desassossego"? É um livro em que tudo é relativo e o relativo é absoluto....
Podia fazer um filme de 50 horas ou 50 filmes de uma hora. O "Livro do Desassossego" não é um livro definitivo, é um livro aberto. Podíamos ir pela cronologia de vida, por associação de ideias. Mas quis uma cronologia na progressão: há um hiato de 15 anos entre a primeira fase do texto e o final, mais maduro. Qualquer um de nós pode fazer um "Livro do Desassossego": o Pessoa permitiu isso, é um puzzle sem fim nem solução. E isso é muito agradável no cinema. Tinha isso como ponto de partida: a ideia de que o cinema é aberto. Há três coisas no "Livro do Desassossego" que me levaram a esse risco. A primeira é a sua ideia de luz: devem iluminar-se as caras dos santos e as polainas das pessoas normais da mesma maneira. Pessoa ia ao cinema - o Richard Zenith [investigador pessoano e organizador da edição do "Livro do Desassossego" na Assírio & Alvim] disse-me que havia textos inéditos dele sobre cinema. Depois, havia um texto sobre a distorção do tempo. Como o tempo do cinema nunca é o da vida, isso deu-me a estrutura do filme. Parece que se passa em três dias e três noites, e depois em três minutos, mas na verdade passa-se no tempo real do filme. Por fim, havia uma afirmação fundamental: o "Livro do Desassossego" só existe em voz alta. Isso permitiu-me brincar com canções e óperas.

Essa oralidade torna a adaptação cinematográfica difícil devido à presença da declamação. É um filme em que toda a cidade tende para a literatura, o que pode ser sufocante.
Mas a ideia é sufocar. O grande risco está em não permitir que os actores interpretem o texto; não queria que acrescentassem sentidos abusivos. Por outro lado, queria tornar o filme o mais abstracto possível, com índices de realidade e de inverosimilhança e uma geografia de Lisboa fora do tempo, que tanto pode ser de há 30 anos como de daqui a 50. O filme são fragmentos em série, tal como a escrita de Bernardo Soares. Bernardo Soares está cada vez mais angustiado, e, quando parece que atinge o sossego, fica de novo desassossegado. Dá-nos armadilhas sucessivas, como quando diz "a minha pátria é a língua portuguesa" e a seguir "não escrevo em português, escrevo eu mesmo". O grande problema é ser digno do texto e não o violentar. Se calhar, o ideal seria fazer como o João César Monteiro, só com negro e texto. Mas precisava de uma Lisboa abstracta que permitisse a circulação de alguém que não é uma pessoa igual ao Pessoa, mas um quase-igual.

De onde vem a sua relação com o livro?
Estava numa crise de vida, comecei a ler o livro e não parei. O meu sofrimento, ao pé daquele, era ridículo. Salvou-me porque era um livro muito violento sobre a abdicação. Diz que não é preciso dançar, basta ver dançar. A grande dificuldade foi escolher o que deitar fora, trabalhei seis meses até chegar a uma solução razoável. Sei que é apenas uma das hipóteses de filmar o "Livro do Desassossego". Há textos que deixei quase integrais, como "Educação Sentimental", um dos mais comoventes que já li. Queria chegar à origem, fazer o grande plano da matéria do texto na sua boca. Chegar a isso foi muito atractivo.

Como é que se consegue ser livre a adaptar um livro com uma carga cultural tão pesada?
É-se livre quando se arrisca. O texto é do "Livro do Desassossego", mas fiz alterações para haver ligações. Ser livre é usar uma premissa que aprendi com Godard: pôr tudo num filme. Lumière é o meu início do cinema, mas este filme está cheio de Méliès: há vidros pintados à frente da câmara, sombras projectadas com papéis e um projector no chão. Tenho coisas feitas à mão, algo que me interessava experimentar. Há muitos planos feitos contra o espelho para dar uma inquietação da imagem. Não tinha muitos meios, mas gosto de filmar as ideias, como a ideia da morte e a ideia do sexo, sem "voyeurismo". Isso sim é complicado.

Como é que se filma o sonho?
Não há um único sonho, são cenas de ficção. Bernardo Soares inventa conversas como, por exemplo, a de Rita Blanco com Miguel Guilherme sobre a literatura e a gramática. Bernardo Soares diz: "Eles nunca disseram isto, inventei esta cena porque achei que deviam falar assim" . Interessava-me a possibilidade de uma ficção quase sem ficção. O cinema é uma associação de ideias, gosto que o cérebro circule, que não existam soluções mas inquietações. É um filme cheio de perguntas sobre a forma e as situações. No final, o livro não é dele: Pessoa inventou uma personagem e Bernardo Soares inventou as pessoas. E o que é decisivo nele é a maneira de escrever. Nem é o que está escrito - é a maneira como ele escreve. No texto da morte do Luís II da Baviera, dei conta de que podia dividi-lo em rimas musicais, como nas canções do filme. Queria afirmar a musicalidade de Pessoa.

Existe também uma ficção da cidade, cenas em que as paisagens de Lisboa se sobrepõem.
Interessou-me um texto dele sobre o cubismo. Filmei quase tudo a 50 metros de minha casa. É uma liberdade do cinema: ele vive na Rua dos Douradores, mas filmei-o noutro sítio. O escritório é o Arquivo Histórico Militar em Chelas, o mais angustiante que encontrei - são corredores de 80 metros de prateleiras com a nossa vida. Quis mudar a geografia de Lisboa porque Pessoa foi o maior viajante do mundo sem nunca ter saído da cidade. A sua escrita tem muitos níveis: psicanálise, psicologia, sociologia, textos de direita, de esquerda, anárquicos. É a fragmentação de um mundo sem centro, tal como o mundo de hoje. E isso é uma premonição em relação ao futuro.

Não existe o perigo de recriar a Lisboa de Pessoa como um postal?
Sei que Pessoa frequentava o Terreiro do Paço e gostava de estar no Cais das Colunas. Pôr a Lula Pena a cantar "O Criador de Argonautas" quando a personagem está em contraluz em relação à paisagem serve para atenuar isso. Pode parecer um postal, mas por outro lado é o meu Infante, é a perda do mar.
Quando abordo a solidão do Pessoa quanto à ideia de Deus, fui buscar a Igreja da Inquisição mais negra, com mais passado e peso cultural sobre Lisboa, onde houve um incêndio e se faziam os autos de fé. Quis uma geografia que destruísse a ideia do postal bem feito. É evidente que não podia fugir à Rua dos Douradores, aquela rua miserável e pequenina que foi uma grande parte da vida dele.

Acha que a Lisboa de Pessoa ainda está presente?
Sim. Ele pensava o futuro. Há uma luz que se faz em certas pessoas, como quando se faz as "Demoiselles d'Avignon" e se muda a pintura do mundo. Sei que os heterónimos já existiam, mas Pessoa criou um mundo de escrita, uma nova maneira de ligar as palavras portuguesas. Tive a sua arca comigo quando fiz "Conversa Acabada" (1982) e nem se sonhava com o "Livro do Desassossego", só se ouviu falar dele alguns anos depois... Encontrei folhas que pareciam can¬ções do Cole Porter. Ele meteu-se em tudo, era um cérebro descomunal.
Outro elemento do presente é a maneira como associa as actrizes às imagens a que estão associadas na representação ou na vida: a Mónica Calle como corpo nu, a Margarida Vila-Nova como mãe, a Ana Moreira como rapariga pálida, a Alexandra Lencastre como centro da mesa...
É a democracia do texto - utilizar os actores como são. O Cláudio da Silva, que interpreta o Bernardo Soares, anda com a manca que realmente tem. Quando diz que tem dificuldade em andar, é um texto meu, tive de justificar um actor que teve pólio na infância. Esse defeito (ou virtude) físico permitiu-me criar um desequilíbrio, sem o disfarçar. Trata-se de não esconder ou alterar as pessoas, poderem ser elas a dizer um texto de Pessoa. Peguei na minha família de actores e juntei outros, como a Maria Antunes, que trabalha no Lux e é a minha Vénus de peles. Quando filmo, pego sempre em dois pintores: peguei em Lucian Freud para filmar os corpos e em Gerhard Richter para a desfocagem. Depois destruí-os, porque é algo que não sei fazer, mas há sempre um ponto de partida de re¬erência. São matérias e convocações que me ajudam. Há coisas do Griffith neste filme, são memórias.

Como objecto cultural, o "Livro do Desassossego" também tem uma função escolar. O filme não vai passar nas salas de cinema e vai ser distribuído numa rede de teatros e escolas.
Vou fazer sessões à tarde em que vou falar de cinema, e também para os alunos das escolas e das faculdades. Há filmes que precisam disso. Fiquei muito triste com "A Corte do Norte" (2008): é uma boa adaptação de um livro da Agustina Bessa-Luís e fez uma merda de espectadores, desculpe a expressão. Já chega de salas de coca-colas, perdemos as salas todas. No centro do Porto, não há uma sala de cinema; em Lisboa, só em centros comerciais. É preciso criar dignidade no cinema, Inspirei-me no "Miserere" da Cornucópia, há uns meses, no Teatro Nacional D. Maria II. Estavam lá miúdos, uma confusão enorme, telemóveis ligados. Começou a peça e calaram-se, viram-na religiosamente. A dignidade da sala impôs respeito. E é também a ideia do cinema ambulante: uma carrinha e um projector, Somos apoiados pelo Estado, por isso devemos fazer serviço público. Não se pode estar numa sala a ouvir o texto de Bernardo Soares a comer e a beber.

As salas de cinema já não são dignas dos filmes?
Não. É uma coisa para aventuras infanto-juvenis. A maioria das pessoas que vão ao cinema são miúdos. Os adultos têm mais relação com as séries televisivas americanas, onde há mais cinema clássico, do que em filmes com três mil planos. Hoje, ir ao cinema é consumir, tanto faz comprar sapatos como ver um filme. Desapareceu a ideia da sala escura, a dignidade do espectáculo. Os adultos vêem em casa, com agrado, os "Sopranos" e o "The Office", que é uma invenção inacreditável do ponto de vista cinematográfico; eles olham para a câmara e não se sabe se é verdade ou mentira. Os miúdos vão às salas porque é uma aventura de adolescentes. Há miúdos que acham que o cinema começou com o Tarantino!

Mas que futuro é que as salas têm se cineastas que carregam a história do cinema já não passam lá os seus filmes?
É preciso fazer novas salas.

Mas se tirarmos os espectadores delas...
É preciso inventar circuitos de arte e ensaio que não sejam de consumo imediato. Quero chegar ao máximo número de pessoas, nunca penso fazer 300 mil espectadores, mas quero, pelo menos, 30 mil, não três mil. E a maneira de o fazer é com projecções no país inteiro. Depois, faço uma sessão na Aula Magna para 1.400 pessoas. Vou também a outras universidades arrastar as pessoas para uma sessão.

Vai seleccionar os seus espectadores...
Quem me dera que fosse para todos, mas não querem. Se eu pusesse o filme numa sala comercial, destruíam-me.

Numa sala comercial com 20 espectadores. 19 podem detestar o filme, mas há um que adora. Pode mudar a vida desse espectador.
Mas os 19 que detestam incomodam a pessoa que adora. Quero um sítio onde as pessoas sejam livres, sem telemóveis a perturbar a atenção. Como dizia o ManoeI de Oliveira, bastam dois espectadores para o filme existir, mas temos de chegar ao maior número de pessoas possível. Em Portugal, se o cinema não for apoiado pelo Estado, não existe. Os filmes que se dizem comerciais dão mais prejuízo do que os filmes de arte e ensaio. Não saem de cá e o mercado português não dá para pagar um décimo do filme. Somos apoiados pelo Estado, por isso temos de devolver a atenção que o Estado nos dá para ganhar o maior número de pessoas. Trata-se de dar a possibilidade de existir a um cinema que pensa.

Mas custa-lhe não poder fazer isso com outros filmes? Porque o "Livro do Desassossego" é um objecto que, à partida, permite...
Pode ser a inauguração de uma rede. Comprámos um projector para ir de sala em sala, vamos tentar pagá-lo com a exibição. Há teatros fantásticos: uns dão a receita, outros compram a exibição. Numa sala de cinema, o distribuidor dá apenas um quinto do bilhete ao produtor.
Francisco Valente, Público


Desassossego - parte 6, a rodagem

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!)

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.



RODAGEM
Desassossego: s. M. 1. Inquietação. 2. perturbação de ânimo. Assim é explicada a palavra pelo dicionário. Mas o desassossego é mais do que isso. Quem o diz é João Botelho, que passados quase trinta anos após Conversa Acabada (um filme sobre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro), volta a mergulhar no universo pessoano. Tem pela frente a difícil tarefa de adaptar uma obra considerada um verdadeiro puzzle em aberto. Bernardo Soares, semi-heterónimo do poeta e escritor Fernando Pessoa, assina Livro do Desassossego. Anos mais tarde, João Botelho transporta esta história fragmentada para o cinema. O desafio é arriscado, mas seguramente o mais aliciante da carreira do realizador.

Passam poucos minutos depois das 23 horas. Chuva e vento fustigam o Terreiro do Paço, em Lisboa. Ao fundo, debaixo das arcadas, do lado esquerdo, uma vasta equipa de produção prepara o décor para que seja filmada mais uma cena de Filme do Desassossego. De cigarro na mão, João Botelho gesticula por entre os figurantes que participam nesta cena. O cinema em Portugal é muito precário e, portanto, quando se faz, deve-se fazer arriscado. (...) é um livro quase impossível de adaptar, vou correr um risco, afirma mais tarde quando gentilmente nos cede alguns minutos de entrevista antes de iniciar as filmagens dessa noite. Foram necessários cerca de dois anos a João Botelho para escolher os textos e compor o argumento baseado na obra mais conhecida, e traduzida para 37 línguas, de Fernando Pessoa. Tira o maço de cigarros do bolso, fica com eles na mão e esclarece: É evidente que isto não é o livro (...) do desassossego chama-se Filme do Desassossego e é um bocadinho do livro, mas é a minha adaptação (...). O livro é o limite do isolamento e espero que o filme também o seja. Apesar da profunda complexidade do texto de Livro do Desassossego, João Botelho encontrou três grandes indicações cinematográficas que o levaram a acreditar nas possibilidades desta adaptação: Em primeiro lugar, a luz é aqui muito importante. A luz que ilumina o face dos santos deve iluminar os sapatos dos homens comuns. Depois, o distorção do tempo: o tempo no cinema é como nos sonhos, nunca é o tempo real. E a terceira é que o Livro do Desassossego é feito para ser lido em voz alta. Detalhes visuais que levaram o realizador, nascido em Lamego, a acreditar na possibilidade desta adaptação. Não se considera um argumentista na verdadeira acessão da palavra, mas um ladrão de histórias: Acho que os realizadores roubam de todo o lado, são vampiros das outras coisas e eu roubei, a história do livro de uma certa maneira. (..). O texto do livro é maravilhoso, não é sobre o sonho, mas sim sobre a teoria dos sonhos, mas é sobretudo um texto sobre a língua portuguesa.

Esta nova incursão de Botelho ao universo de Pessoa deve-se ao enorme apreço que o realizador nutre pela escrita do autor modernista. Acende um cigarro e diz: Primeiro é uma defesa de um dos grandes textos da Literatura Portuguesa, se calhar o maior texto escrito no século XX (...) Preocupei-me muito com o texto, em ser fiel, em não perder uma palavra, uma sílaba, uma vírgula e em musicá-lo bem. E segundo é dizer que o texto não caiu do céu, caiu das preocupações individuais das pessoas e tem a ver com as pessoas hoje. Preocupações de ontem idênticas às de hoje. Problemas que assombram o quotidiano das pessoas, cada vez mais isoladas numa redoma chamada solidão. Apaixonado pelo próprio país, Botelho consegue com este filme realizar outro desejo antigo, o de filmar Lisboa. Uma homenagem que presta à cidade que diz amar. Nunca filmei um filme inteiro em Lisboa (...) e hoje estou a filmar finalmente o coração de Lisboa, no Terreiro do Paço, diz, esboçando um largo sorriso e soltando urna gargalhada. E é no Terreiro do Paço que se juntam mais de duas dezenas de figurantes para ouvirem as marcações do realizador. Um vento forte e gelado continua a soprar velozmente. mas a chuva parou. A cena que se filma é a recriação de uma sopa dos pobres. Por entre as dezenas de figurantes, habituados a trabalhar em cinema e contratados para esta cena, alguns são verdadeiros sem-abrigo da cidade de Lisboa. Passaram o dia com a equipa, jantaram com eles e partilharam histórias de vida. Receberam um cachet pela participação nesta produção nacional, onde a distância entre realidade e ficção ficou assim encurtada. Filme do Desassossego conta a história de três dias e três noites na vida de Bernardo Soares, personagem fictícia, sobre quem o realizador tem uma opinião que diverge de muitos especialistas: Bernardo Soares é quase igual a Pessoa, é quase um anagrama. Não é um heterónimo, ao contrário do que as pessoas pensam. Tem o mesmo tipo de profissão, o mesmo tipo de vida, o mesmo isolamento. Similares em quase tudo, como explica Botelho, diferem, no entanto, na escrita. Enquanto que Fernando Pessoa escreve versos, o semi-heterónimo expressa-se em prosa poética.
Para interpretar o papel de Bernardo Soares, a figura central deste drama, o realizador escolheu Cláudio da Silva. Com pouco mais de 30 anos, este actor é essencialmente conhecido pelos seus desempenhos no teatro. João Botelho acende outro cigarro e entusiasma-se ao falar do actor: Vi o Cláudio numa peça chamada Tanto Amor Desperdiçado, de Shahespeare. E achei-o incrível (...), é uma pessoa fora do vulgar e tem uma capacidade enorme de transportar, para a face, a imagem de um interior. Não sei o que ele pensa, mas o que ele diz faz-nos pensar quinhentas coisas que estão lá dentro.
Com um olhar profundo e misterioso, de quem abandona por instantes e para uma breve entrevista a personagem que habita por estes dias, Cláudio da Silva confessa-nos que a preparação desta personagem não diferiu muito do método que utiliza no teatro: Trabalha-se como normalmente se trabalha um personagem de teatro. Estuda-se o pape, lêem-se os livros que forem precisos e está-se atento às coisas que acontecem na nossa vida. Vai-se ouvindo o que as outras pessoas têm para dizer sobre o papel. recolhendo esse tipo de informação, para ir compondo a coisa. Enquanto apaga o cigarro, Botelho acrescenta: É um actor magnífico e grandioso (...) e depois tem uma coisa fantástica que é: não pestaneja. Acho que o cinema são os olhos. O olhar de um actor que dá vida a um homem complexo que toma nota dos próprios pensamentos fragmentados. Esta é uma história sobre a solidão e o desespero dos dias que correm, sobre o desassossego. De repente. Cláudio da Silva joga a mão ao bolso do casaco. Procura pelo caderno onde vai anotando pensamentos e ideias. Li uma vez uma coisa interessante a respeito disso... Continua a procurar no caderno. Encontra finalmente o que procura e lê: É o movimento do mistério. A pergunta era sobre o significado da palavra desassossego. A produção chama pelo actor principal do filme. Vão ensaiar a cena completa. Antes de se despedir, Cláudio reforça ainda: Sinto uma responsabilidade enorme pela importância que o livro tem e por trabalhar com o João, pela confiança que me foi oferecida. Para além de Cláudio da Silva, o filme conta ainda com um elenco composto por mais de 40 actores, entre os quais Margarida Vila-Nova, António Pedro Cerdeira, Rui Morrison, Ana Moreira, Suzana Borges, André Gomes, escolhas recorrentes nos filmes do realizador português.

Para o filme, serviu de ajuda preciosa à equipa de produção um protocolo assinado entre o realizador e a Câmara Municipal de Lisboa. O filme é caro, tem muita gente, muitos décors, é caro para Portugal e barato para o mundo. (...) Portanto, sugeri um protocolo. Fiz um documentário sobre Lisboa e Pessoa (...) e, em contrapartida. a câmara ajudou-nos, cedeu locais e autorizações para filmar e algum dinheiro para fazer o filme, explica o realizador. Os Lugares de Pessoa é o nome do documentário que se encontra já totalmente pronto e editado. Será lançado em Abril, para ser utilizado pela autarquia em acções de promoção. Produzido pela Ar de Filmes, Filme do Desassossego tem estreia marcada para o final do Verão. Um filme que brinca com os contrastes da história fragmentada de um homem solitário.

Paula Campos, Première, Abril 2010

Desassossego - parte 5, a inquietação de antónio rodrigues

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.




INQUIETAÇÃO, RECEIO, AGITAÇÃO, PERTURBAÇÃO, ALVOROÇO
(definições dos dicionários para desassossego)

O homem, um dia, emergiu do sonho
como de um deserto viscoso,
olhou para a vã luz da tarde, que confundiu de início
com a da aurora e percebeu que não tinha sonhado.
Durante toda aquela noite e todo o dia
a atroz lucidez da insónia se abateu sobre ele.
Jorge Luis Borges, “As Ruínas Circulares”

Numa entrevista de 1996, inserida no catálogo de uma retrospectiva que lhe foi consagrada em Bergamo, quando lhe perguntaram quais eram as características comuns que uniam os cineastas portugueses João Botelho respondeu: “a presença da literatura e sobretudo da poesia nos filmes, a escolha de enquadramentos secos, com uma composição muito cuidada, uma montagem descarnada. E a falta de dinheiro, que nos leva a fazer coisas estranhas…”.

Passados tantos anos e depois das mudanças radicais que o mundo conheceu desde então, estas observações não são certamente válidas para todos os cineastas portugueses em actividade (inclusive para os mais talentosos entre os mais novos), mas continuam a ser válidas para o cinema que faz João Botelho. Muito precisamente, para Filme do Desassossego. No entanto, algo mudou no que toca uma das características mencionadas por ele: a falta de dinheiro. O dinheiro continuou a ser pouco para este tipo de cinema e deverá ser cada vez mais escasso, pois o poder político já não se interessa de todo por alianças provisórias com os artistas que pensam e fazem pensar. Chegou à conclusão que eles já não lhes servem de nada. Mas houve uma mudança técnica, o suporte digital, que tornou o acto de filmar muito mais barato do que a rodagem em película. Por conseguinte, passou a ser possível filmar com menos dinheiro. O digital, no entanto, é uma faca de dois gumes. Como é extremamente (talvez excessivamente) simples filmar em suporte digital e que se pode obter de imediato uma imagem, sem se ter de esperar pelos custosos resultados do laboratório para ver o resultado daquilo que se filmou, não são poucos os que se contentam com qualquer imagem, com qualquer resultado: não trabalham a luz, o
enquadramento, a presença dos corpos, o peso da imagem. As novas tecnologias acarretaram um maremoto de amadorismo e desleixo formal, a tal ponto que não seria descabido sugerir uma volta aos Lumière: não para filmar como eles, mas para ver como faziam. Há mais consciência e maior domínio da matéria cinematográfica (do enquadramento, da duração, do acaso) nos filmes feitos pelos irmãos Lumière em 1895 do que em muitos filmes actuais, sobretudo os documentários, cujos realizadores são incapazes de terem ponto de vista e não conseguem fazer um plano que seja fixo e tenha mais de três segundos de duração, um plano que tenha consistência. Mas isto não é uma fatalidade. E se a imagem digital não terá jamais o mesmo peso e a mesma densidade do que a imagem em película (nem pode ter: a matéria é outra, são tão diferentes como a madeira e o betão), os cineastas que começaram por trabalhar em película e que não são poucos, nem são todos velhos (os mais novos têm cerca de trinta anos) chegam directa e naturalmente a uma imagem que tem peso e estrutura, que tem sentido, em que os ângulos de câmara e a luz são escolhidos, como um escritor escolhe as suas palavras e constrói as suas frases. As “coisas estranhas” a que se referia João Botelho em 1996 continuaram a ser possíveis e necessárias, o luxo de pobres que consiste em fazer cinema com consciência e estilo continua a ser possível. Filme do Desassossego é um desses filmes e, felizmente, é um exemplo entre muitos.

É um tanto ingénuo afirmar que ao se confrontar a O Livro do Desassossego João Botelho abordou uma tarefa impossível. Uma tarefa só é impossível se for abordada com meios inadequados. Descendente, como outros cineastas portugueses mais velhos e mais novos do que ele, de duas grandes vertentes do cinema moderno, complementares e até certo ponto antinómicas que são Jean-Marie Straub e Jean-Luc Godard, Botelho não se deixou intimidar pelo prestígio, a vastidão e a complexidade do texto de Pessoa. Nem se deixou intimidar pelo facto da maioria dos seus espectadores potenciais e reais desconhecerem por completo este texto. Não o abordou com a intenção de o ilustrar, mas num diálogo com uma matéria preexistente, num verdadeiro trabalho de encenação, não a encenação de acontecimentos dramáticos, de uma narrativa, mas a encenação de palavras e de ideias. Neste sentido, foi straubiano, não nas aparências, mas na essência e por isso o filme é tão denso, quase sem frestas. E ao situar o filme na Lisboa de hoje, com tudo o que a cidade pode ter de semelhante e diferente da de Fernando Pessoa, extraindo todos os monólogos e diálogos do texto pessoano, Botelho transformou este texto numa vasta citação, levando a um ponto extremo a poética da citação que está no cerne do cinema de Godard. Mas, para ele, Straub (Conversa Acabada) e Godard (Tráfico) nunca foram modelos e sim exemplos, pontos de partida e não de chegada, pontos de onde se partia nos anos 70 e 80, uma vez constatado o fim do ciclo do cinema clássico, uma vez definitivamente encerrado o período clássico do cinema, que Botelho conhece e ama (Hitchcock, Renoir e tantos outros) e do qual também descende, mas que optou desde sempre por não tentar prolongar.

O primeiro filme de João Botelho, Conversa Acabada (1982) aborda Fernando Pessoa, através da sua correspondência com Mário de Sá Carneiro, num filme composto por um diálogo à distância, que só é interrompido pela morte, pelo silêncio final. Em Filme do Desassossego o diálogo é mais complexo e se passa a dois níveis: com o texto pessoano e com o espectador, que talvez seja meu semelhante, meu irmão, talvez não. Tudo começa do modo mais simples: o encontro entre Fernando Pessoa e Bernardo Soares, que é mais um alter ego do que um heterónimo. Pessoa é caracterizado com o chapéu, os óculos e a gabardine a que o associamos (mas sem bigode), Bernardo Soares é um homem de trinta anos dos nossos tempos, com a cara e a roupa de um homem de hoje. Num bar nocturno e soturno, que podia estar na Lisboa dos anos 30 como na de hoje, ambos começam por observar uma cena que pode ter lugar em qualquer cidade e em qualquer época: um grupo de ricos que vem se acanalhar com a plebe e a aventura acaba por lhes correr mal. A partir deste núcleo, desta abertura que, não por acaso, poderia perfeitamente ser a de um filme “narrativo” e “realista”, o espectador é levado por uma série de meandros, em cenas nocturnas e diurnas, por becos, ruas, praças e pelas margens do Tejo, através de um labirinto sem fim nem centro, com a presença constante de O Livro do Desassossego, de diversos dos seus fragmentos estanques e magníficos, que nunca são ditos de modo pomposo, com a dignidade antiquada que muitos julgam ser obrigatório dar a um “grande texto”. Botelho inventa situações em que decide inserir o texto. Passamos por modestos quartos, assistimos ao enterro de uma criança, vemos pessoas que saem pelas ruas e pessoas que vivem na rua, uma manifestação política (só os pés dos manifestantes, nenhum slogan), uma mãe de família que canta um fado numa praça, um pedinte no metro que ouve Caetano Veloso cantar um texto de Pessoa (duas faces da língua portuguesa), diálogos na sala e na cozinha de um restaurante (o palco e os bastidores de uma sociedade), caras diversas numa repartição de trabalho, uma festa ostensivamente rica, agressiva, decadente - que parece clamar por uma revolução - uma cena de uma ópera sobre Luís II da Baviera. Os personagens que vemos neste périplo são semelhantes aos que vemos de perto ou de relance em outros filmes de João Botelho, Tráfico, Três Palmeiras, A Mulher que Queria Ser Presidente dos Estados Unidos da América, O Fatalista. Contrapostos e justapostos, sem nome próprio nem identidade definida, são figuras do mosaico do mundo, formas humanas e sociais que podemos ver, idênticos ou quase, nas ruas, nos locais onde trabalhamos, nos teatros, nos museus, nos cafés e restaurantes, cuja presença responde às ideias
expostas no texto de Pessoa. Cada bloco do filme é uma incursão numa parte da realidade que nos cerca, espelhada pelo cinema, cada um destes momentos é ao mesmo tempo representação e análise. E no desenlace, numa solução narrativa que é frequente no cinema clássico, tudo parece ter sido um sonho. Voltamos ao ponto de partida, ao mesmo bar sinistro onde tudo começara e onde Fernando Pessoa e Bernardo Soares se tinham encontrado. Mas Pessoa recusa o manuscrito de O Livro do Desassossego que o dono do bar lhe dá, julgando que ele se esquecera de o levar, porque o livro não é dele, é do outro, o outro que ninguém viu e só existe na imaginação dele. Bernardo Soares imaginara Fernando Pessoa da mesma maneira que Pessoa o imaginara, um é o sonho do outro, o que é uma maneira extremamente inteligente de fechar a narrativa de modo circular e, ao mesmo tempo, deixá-la em aberto. A aventura do realizador e do espectador através de texto pessoano, que se desdobra em cenários e em situações variadas e complexas, até desembocar na representação de uma ópera sobre um rei louco, que fascinou escritores e cineastas (entre os quais Fernando Pessoa), é enquadrada por dois episódios “realistas”, que situam definitivamente O Livro do Desassossego aqui e hoje. É como se tudo o que vemos e ouvimos fosse o fruto de uma conversa inacabada entre Fernando Pessoa e
Bernardo Soares.

Filme do Desassossego pode parecer árduo a alguns porque é extremamente denso, mas permite que o espectador se abandone à sedução da forma. A organização do espaço, a composição dos planos, com alguns impressionantes cenários e adereços, o recorte absolutamente nítido das figuras, a coexistência de corpos idealizados –corpos glamour, de cinema - e de corpos mostrados na sua crua banalidade, são elementos que seduzem o espectador que se interessa pelas formas cinematográficas. Mas não o adormecem, permitem que o texto de Pessoa em vez de ser dado como uma leitura seja dado como um percurso. Há inclusive momentos de alta virtuosidade como pura mise en scène (no sentido em que se emprega a palavra virtuosidade em música) como o monólogo dividido em três partes em que a câmara, lentamente, se aproxima cada vez mais da actriz, até chegar à sua boca (o que desperta no espectador associações com a pintura e o cinema). Este é um elaborado momento de cinema, executado com elegância, mas não é gratuito, puramente ornamental. É daquela boca vermelha, tão cinematograficamente perfeita, que sai o texto de Fernando Pessoa, aquele grande plano sobre uma boca também é um grande plano sobre o texto. O simples facto deste filme existir é um gesto de teimosia, de resistência. Mas Filme do Desassossego é uma obra que dá prazer e emoção, os prazeres e a emoção que pode proporcionar a “atroz lucidez”. Inquietos, receosos, agitados, perturbados, alvoroçados: desassossegados.

António Rodrigues, Cinemateca Portuguesa

Desassossego - parte 4, a raiva dos iluminados de jorge leitão ramos

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.

O livro de Bernardo Soares não tem transposição fílmica possível. Como todas as obras de arte, é algo de intraduzível, pois depurou uma linguagem até ao cristal. Mais: na perfeita indefinição de género (não é romance, nem poesia, nem ensaio, antes uma prosa que edifica uma perturbação de sentidos) não se pode saber nunca o que o "Livro do Desassossego" pede como rima. O que João Botelho intenta é um instalação na bruma frondosa desse monumento pessoano, uma catedral de névoa. E consegue-o, mercê de um filme onde fragmentos de ficção dão suporte de atenção ao que, deveras, é do domínio não só do indizível (é impossível contar o "Filme do Desassossego"), mas, muitas vezes, do insignificável.

As imagens, os sons, as palavras acontecem numa massa que é melopeia, projetando o nosso entendimento para lugares onde, é uso, só a poesia chega. Não tem uma história, tem visões - que tanto podem ter a cor de uma ópera tocada e cantada entre pedras na serra de Sintra como o marulhar do Cais das Colunas, mendigos derramados pelas arcadas do Terreiro do Paço, plácidos diante de um fado improvável que irrompe ou burgueses a desandar em briga ébria nas ruelas e bares do Cais do Sodré. E mergulha-no numa beleza visual que, evidentemente, já sabíamos pertencer aos instrumentos expressivos de Botelho, mas nunca pareceu tão justa como aqui. Para mais, os seus atores - imensa galeria de notáveis - foram postados em atitude artificialista, propiciando que, mesmo quando as falas têm uma significação direta, se sinta sobretudo a espessura das palavras. Ao ver este filme, é possível convocar diversas figuras tutelares - Greenaway e Syberberg serão as mais óbvias, mas não será idiotice dizer que também Duras e Jarman, Cesário Verde e Pablo Picasso -, contudo o que mais gosto nele é a sensação de que o cineasta transformou influências em algo de profundamente original, de tal maneira que, mesmo quando evoca, nunca está a fazer "à maneira de..."

Há muitos anos, levei uma criança pequena a uma peça teatral fascinante, mas em manifesto desajuste com a sua idade. No fim disse-me "não percebi nada, mas gostei tanto!" É esse risco de imergir num universo embriagador sem que, por estatuto, seja acompanhado de compreensão, que João Botelho pede neste filme. Entre poesia, ópera, mulheres nuas, decadentismo, uma Lisboa desmanchada e uma prosa sublime. Fazendo-nos caminhar às apalpadelas e em estado de maravilhamento num território que é tão reconhecível como a nossa casa e tão estranho como um sonho caprichoso.

E que bom é fitar o cinema português outra vez de pé, outra vez a desafiar o público para um grande salto! Há neste filme de João Botelho uma tão grande vontade de romper com o status quo em que se despenhou a maior parte da nossa cinematografia dos últimos anos - e o país também, está bom de ver - que eu avisto facas nos dentes, um olhar assassino, uma bomba de manufactura caseira, mas muito eficiente, nas suas entranhas. Uma arte feita com a raiva dos iluminados que levam tudo à frente.

Jorge Leitão Ramos, Expresso



Desassossego - parte 3, a conversa inacabada de pedro mexia

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.




Conversa inacabada

Trinta anos depois de Conversa Acabada, a conversa continua inacabada. A primeira longa-metragem de João Botelho leu o início da nossa modernidade à luz de um diálogo. Um diálogo quase perfeito, embora angustiado, fracturado e precocemente interrompido. A correspondência entre Pessoa e Sá-Carneiro teve interlocutores reais, mas os textos é que ficam. E por isso Botelho fez «um documentário sobre poesia que progride e se resolve em drama poético».

Filme do Desassossego sugere que o Livro do Desassossego é a continuação, em drama poético, dessa conversa, desta vez enquanto monólogo. Pessoa já não dialoga com um outro mas com outros dentro de si mesmo. Criou os heterónimos (entre os quais Bernardo Soares). E transforma em ficção poética aquilo que observa nas ruas da Baixa.

O carácter fragmentário do Livro do Desassossego é transposto para a tela através de uma sucessão de quadros que animam os textos de Pessoa. Tal como em Conversa Acabada, não se procura qualquer realismo, mas uma assumida encenação, que neste caso se distribui numa multiplicidade de vozes lisboetas, mais ou menos intemporais, dos burgueses aos pedintes. Trata-se, uma vez mais, de um «filme de textos», o que não é estranho num cineasta que trabalhou Diderot e Dickens, Garrett e Agustina.

A encenação dos textos do desassossego divide-se entre o pudor e a boémia. Lisboa e os seus habitantes aparecem como um circo sentencioso, cheio de tristes alcoolizados, ridículas preciosas, aparições eróticas e Esteves da tabacaria. Pessoa ouve a gente por quem passa, e é essa gente que dá vida às palavras que ele escreveu, como se a cidade fosse um fantoche e ele um ventríloquo. Lisboa, aliás, é aqui filmada sem a menor cedência ao postal ilustrado, é uma Lisboa fantástica, quase uma Lisboa de Escher, desdobrada em formas imaginadas e impossíveis.
Já Pessoa, o funcionário cansado, parece uma criatura infotografável, como numa cena que ironiza a própria dificuldade de passar estes textos ao cinema. Pessoa é o contrário das multidões que atravessam as ruas, «não sou de multidões», diz ele, sofre fechado em quartos e em escritórios, ameaçado por espelhos, labirintos e ventanias. Cláudio da Silva encarna com grande justeza o pudor de Pessoa (que é também o pudor de Botelho), e sofre as agruras da sua infatigável consciência, que nunca o deixa em paz.

Pessoa defendia a «dignidade do tédio», redimida através da fúria de escrever. Foi isso que João Botelho nos deu. Tédio e fúria. Pudor e consciência. Isso a que chamamos «desassossego».
Pedro Mexia



Desassossego - parte 2, o desejo de não desejar de joão lopes

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.


O desejo de não desejar

Escreve Pessoa, prefaciador do “Livro do Desassossego”: “Nunca — eu o creio — houve criatura por fora humana que mais complexamente cedesse a sua consciência de si própria”.

Esta cedência da consciência envolve um assombramento visceralmente português (se é que num país ocupado pela pornografia telenovelesca ainda temos a serenidade ou, se for caso disso, a coragem de contemplar os fantasmas da nossa intimidade). É o assombramento de um desejo que transporta a nitidez indizível da morte. Ou ainda: o desejo de não desejar.

Esse é, afinal, o desafio sempre actual, ou melhor, sempre presente de Bernardo Soares: o de renegar qualquer certeza do destino, pensando e escrevendo num universo de tão depurada geometria emocional que, no limite, poderia dispensar a convulsão mágica do desejo. Esse é também o desafio imenso, desassossegado e cru, do filme de João Botelho: como filmar o antidesejo de desejar ser português?

Não por acaso, «Filme do Desassossego» repele a peste do determinismo televisivo. Não, não se trata de evocar um génio da cultura para ilustrar qualquer heroísmo oficial. Não, este não é o retrato de um símbolo do ser português. Desde logo, porque o herói se distingue pela sua fuga a qualquer missão que não caiba na espessura intratável do texto. Depois, porque agonizamos numa avalancha de simbologias que, nas últimas décadas, nos fizeram perder o contacto tanto com a densidade existencial do salazarismo como com as energias que, apesar de tudo, o desmantelaram.

Este é um filme orgulhosamente primitivo, “griffithiano” por método, não por revivalismo. Nele se celebra a crueza original de ser uma imagem e ser um som, essas coisas de que se faz o cinematógrafo, oferecendo-nos passaportes para o não ser que não cabe nos telejornais. “O lema que hoje mais requeiro para definição do meu espírito é o de criador de indiferenças”, Bernardo Soares dixit.

Num avisado axioma, Roland Barthes ensinou-nos que, nisto de cultura, o desejo tende a ser medieval. Talvez isso nos ajude a dizer o que aqui acontece: «Filme do Desassossego» é um glorioso objecto medieval. Tanto pior para a modernidade.

João Lopes, Cinema 2000