Desassossego - parte 5, a inquietação de antónio rodrigues

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!) e do protagonista CLÁUDIO DA SILVA

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.




INQUIETAÇÃO, RECEIO, AGITAÇÃO, PERTURBAÇÃO, ALVOROÇO
(definições dos dicionários para desassossego)

O homem, um dia, emergiu do sonho
como de um deserto viscoso,
olhou para a vã luz da tarde, que confundiu de início
com a da aurora e percebeu que não tinha sonhado.
Durante toda aquela noite e todo o dia
a atroz lucidez da insónia se abateu sobre ele.
Jorge Luis Borges, “As Ruínas Circulares”

Numa entrevista de 1996, inserida no catálogo de uma retrospectiva que lhe foi consagrada em Bergamo, quando lhe perguntaram quais eram as características comuns que uniam os cineastas portugueses João Botelho respondeu: “a presença da literatura e sobretudo da poesia nos filmes, a escolha de enquadramentos secos, com uma composição muito cuidada, uma montagem descarnada. E a falta de dinheiro, que nos leva a fazer coisas estranhas…”.

Passados tantos anos e depois das mudanças radicais que o mundo conheceu desde então, estas observações não são certamente válidas para todos os cineastas portugueses em actividade (inclusive para os mais talentosos entre os mais novos), mas continuam a ser válidas para o cinema que faz João Botelho. Muito precisamente, para Filme do Desassossego. No entanto, algo mudou no que toca uma das características mencionadas por ele: a falta de dinheiro. O dinheiro continuou a ser pouco para este tipo de cinema e deverá ser cada vez mais escasso, pois o poder político já não se interessa de todo por alianças provisórias com os artistas que pensam e fazem pensar. Chegou à conclusão que eles já não lhes servem de nada. Mas houve uma mudança técnica, o suporte digital, que tornou o acto de filmar muito mais barato do que a rodagem em película. Por conseguinte, passou a ser possível filmar com menos dinheiro. O digital, no entanto, é uma faca de dois gumes. Como é extremamente (talvez excessivamente) simples filmar em suporte digital e que se pode obter de imediato uma imagem, sem se ter de esperar pelos custosos resultados do laboratório para ver o resultado daquilo que se filmou, não são poucos os que se contentam com qualquer imagem, com qualquer resultado: não trabalham a luz, o
enquadramento, a presença dos corpos, o peso da imagem. As novas tecnologias acarretaram um maremoto de amadorismo e desleixo formal, a tal ponto que não seria descabido sugerir uma volta aos Lumière: não para filmar como eles, mas para ver como faziam. Há mais consciência e maior domínio da matéria cinematográfica (do enquadramento, da duração, do acaso) nos filmes feitos pelos irmãos Lumière em 1895 do que em muitos filmes actuais, sobretudo os documentários, cujos realizadores são incapazes de terem ponto de vista e não conseguem fazer um plano que seja fixo e tenha mais de três segundos de duração, um plano que tenha consistência. Mas isto não é uma fatalidade. E se a imagem digital não terá jamais o mesmo peso e a mesma densidade do que a imagem em película (nem pode ter: a matéria é outra, são tão diferentes como a madeira e o betão), os cineastas que começaram por trabalhar em película e que não são poucos, nem são todos velhos (os mais novos têm cerca de trinta anos) chegam directa e naturalmente a uma imagem que tem peso e estrutura, que tem sentido, em que os ângulos de câmara e a luz são escolhidos, como um escritor escolhe as suas palavras e constrói as suas frases. As “coisas estranhas” a que se referia João Botelho em 1996 continuaram a ser possíveis e necessárias, o luxo de pobres que consiste em fazer cinema com consciência e estilo continua a ser possível. Filme do Desassossego é um desses filmes e, felizmente, é um exemplo entre muitos.

É um tanto ingénuo afirmar que ao se confrontar a O Livro do Desassossego João Botelho abordou uma tarefa impossível. Uma tarefa só é impossível se for abordada com meios inadequados. Descendente, como outros cineastas portugueses mais velhos e mais novos do que ele, de duas grandes vertentes do cinema moderno, complementares e até certo ponto antinómicas que são Jean-Marie Straub e Jean-Luc Godard, Botelho não se deixou intimidar pelo prestígio, a vastidão e a complexidade do texto de Pessoa. Nem se deixou intimidar pelo facto da maioria dos seus espectadores potenciais e reais desconhecerem por completo este texto. Não o abordou com a intenção de o ilustrar, mas num diálogo com uma matéria preexistente, num verdadeiro trabalho de encenação, não a encenação de acontecimentos dramáticos, de uma narrativa, mas a encenação de palavras e de ideias. Neste sentido, foi straubiano, não nas aparências, mas na essência e por isso o filme é tão denso, quase sem frestas. E ao situar o filme na Lisboa de hoje, com tudo o que a cidade pode ter de semelhante e diferente da de Fernando Pessoa, extraindo todos os monólogos e diálogos do texto pessoano, Botelho transformou este texto numa vasta citação, levando a um ponto extremo a poética da citação que está no cerne do cinema de Godard. Mas, para ele, Straub (Conversa Acabada) e Godard (Tráfico) nunca foram modelos e sim exemplos, pontos de partida e não de chegada, pontos de onde se partia nos anos 70 e 80, uma vez constatado o fim do ciclo do cinema clássico, uma vez definitivamente encerrado o período clássico do cinema, que Botelho conhece e ama (Hitchcock, Renoir e tantos outros) e do qual também descende, mas que optou desde sempre por não tentar prolongar.

O primeiro filme de João Botelho, Conversa Acabada (1982) aborda Fernando Pessoa, através da sua correspondência com Mário de Sá Carneiro, num filme composto por um diálogo à distância, que só é interrompido pela morte, pelo silêncio final. Em Filme do Desassossego o diálogo é mais complexo e se passa a dois níveis: com o texto pessoano e com o espectador, que talvez seja meu semelhante, meu irmão, talvez não. Tudo começa do modo mais simples: o encontro entre Fernando Pessoa e Bernardo Soares, que é mais um alter ego do que um heterónimo. Pessoa é caracterizado com o chapéu, os óculos e a gabardine a que o associamos (mas sem bigode), Bernardo Soares é um homem de trinta anos dos nossos tempos, com a cara e a roupa de um homem de hoje. Num bar nocturno e soturno, que podia estar na Lisboa dos anos 30 como na de hoje, ambos começam por observar uma cena que pode ter lugar em qualquer cidade e em qualquer época: um grupo de ricos que vem se acanalhar com a plebe e a aventura acaba por lhes correr mal. A partir deste núcleo, desta abertura que, não por acaso, poderia perfeitamente ser a de um filme “narrativo” e “realista”, o espectador é levado por uma série de meandros, em cenas nocturnas e diurnas, por becos, ruas, praças e pelas margens do Tejo, através de um labirinto sem fim nem centro, com a presença constante de O Livro do Desassossego, de diversos dos seus fragmentos estanques e magníficos, que nunca são ditos de modo pomposo, com a dignidade antiquada que muitos julgam ser obrigatório dar a um “grande texto”. Botelho inventa situações em que decide inserir o texto. Passamos por modestos quartos, assistimos ao enterro de uma criança, vemos pessoas que saem pelas ruas e pessoas que vivem na rua, uma manifestação política (só os pés dos manifestantes, nenhum slogan), uma mãe de família que canta um fado numa praça, um pedinte no metro que ouve Caetano Veloso cantar um texto de Pessoa (duas faces da língua portuguesa), diálogos na sala e na cozinha de um restaurante (o palco e os bastidores de uma sociedade), caras diversas numa repartição de trabalho, uma festa ostensivamente rica, agressiva, decadente - que parece clamar por uma revolução - uma cena de uma ópera sobre Luís II da Baviera. Os personagens que vemos neste périplo são semelhantes aos que vemos de perto ou de relance em outros filmes de João Botelho, Tráfico, Três Palmeiras, A Mulher que Queria Ser Presidente dos Estados Unidos da América, O Fatalista. Contrapostos e justapostos, sem nome próprio nem identidade definida, são figuras do mosaico do mundo, formas humanas e sociais que podemos ver, idênticos ou quase, nas ruas, nos locais onde trabalhamos, nos teatros, nos museus, nos cafés e restaurantes, cuja presença responde às ideias
expostas no texto de Pessoa. Cada bloco do filme é uma incursão numa parte da realidade que nos cerca, espelhada pelo cinema, cada um destes momentos é ao mesmo tempo representação e análise. E no desenlace, numa solução narrativa que é frequente no cinema clássico, tudo parece ter sido um sonho. Voltamos ao ponto de partida, ao mesmo bar sinistro onde tudo começara e onde Fernando Pessoa e Bernardo Soares se tinham encontrado. Mas Pessoa recusa o manuscrito de O Livro do Desassossego que o dono do bar lhe dá, julgando que ele se esquecera de o levar, porque o livro não é dele, é do outro, o outro que ninguém viu e só existe na imaginação dele. Bernardo Soares imaginara Fernando Pessoa da mesma maneira que Pessoa o imaginara, um é o sonho do outro, o que é uma maneira extremamente inteligente de fechar a narrativa de modo circular e, ao mesmo tempo, deixá-la em aberto. A aventura do realizador e do espectador através de texto pessoano, que se desdobra em cenários e em situações variadas e complexas, até desembocar na representação de uma ópera sobre um rei louco, que fascinou escritores e cineastas (entre os quais Fernando Pessoa), é enquadrada por dois episódios “realistas”, que situam definitivamente O Livro do Desassossego aqui e hoje. É como se tudo o que vemos e ouvimos fosse o fruto de uma conversa inacabada entre Fernando Pessoa e
Bernardo Soares.

Filme do Desassossego pode parecer árduo a alguns porque é extremamente denso, mas permite que o espectador se abandone à sedução da forma. A organização do espaço, a composição dos planos, com alguns impressionantes cenários e adereços, o recorte absolutamente nítido das figuras, a coexistência de corpos idealizados –corpos glamour, de cinema - e de corpos mostrados na sua crua banalidade, são elementos que seduzem o espectador que se interessa pelas formas cinematográficas. Mas não o adormecem, permitem que o texto de Pessoa em vez de ser dado como uma leitura seja dado como um percurso. Há inclusive momentos de alta virtuosidade como pura mise en scène (no sentido em que se emprega a palavra virtuosidade em música) como o monólogo dividido em três partes em que a câmara, lentamente, se aproxima cada vez mais da actriz, até chegar à sua boca (o que desperta no espectador associações com a pintura e o cinema). Este é um elaborado momento de cinema, executado com elegância, mas não é gratuito, puramente ornamental. É daquela boca vermelha, tão cinematograficamente perfeita, que sai o texto de Fernando Pessoa, aquele grande plano sobre uma boca também é um grande plano sobre o texto. O simples facto deste filme existir é um gesto de teimosia, de resistência. Mas Filme do Desassossego é uma obra que dá prazer e emoção, os prazeres e a emoção que pode proporcionar a “atroz lucidez”. Inquietos, receosos, agitados, perturbados, alvoroçados: desassossegados.

António Rodrigues, Cinemateca Portuguesa

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