IDA de Pawel Pawlikowski, 28 Outubro, 21h30, IPDJ



IDA
Pawel Pawlikowski, Polónia/Dinamarca, 2013, 82’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização: Pawel Pawlikowski,
Argumento: Pawel Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz
Montagem: Jarosław Kamiński
Imagem: Łukasz Żal e Ryszard Lenczewski
Música Original Kristian Selin Eidnes Andersen
Interpretação: Agata Kulesza, Agata Trzebuchowska, Joanna Kulig
Origem: Polónia/Dinamarca
Ano: 2013
Duração: 82’



FESTIVAIS E PRÉMIOS
Londres – Melhor Filme
Toronto – Prémio da Crítica Internacional
Varsóvia – Grande Prémio
Gijón – Melhor Filme, Actriz, Argumento



CRÍTICA
Um dos mais belos filmes que vamos ver em sala este ano é minimalista e discreto nas formas e palavras, mas intenso nos sentidos que transporta e assombroso nas imagens que nos mostra. Ida assinala um regresso à Polónia de Pawel Pawlikowski, realizador que há alguns anos se mudara para o Reino Unido, onde assinou filmes como Amor de Verão ou A Última Oportunidade. O regresso destapa memórias e ecos silenciosos de tempos passados mas que todavia habitam ainda a consciência da Polónia dos nossos dias. E releva um cinema cuidado e muito pessoal, que já mereceu em alguns textos críticos alusões a possíveis heranças de um Bresson.


É através dos silêncios e do que fica por dizer que Ida nos transporta, a partir de uma ação que decorre na Polónia dos anos 60, a memórias vividas nos tempos da II Guerra Mundial e, também, do tempo que se lhe seguiu, quando um regime comunista ali foi instituído sob a força presente dos soviéticos (então sob o consulado de Estaline).
Ida é a protagonista. Uma jovem noviça que cresceu num convento – de onde nunca saiu – e a quem a Madre Superiora manda que visite a sua única familiar viva: uma tia que, em tempos, foi violenta força na justiça que cimentou o poder do regime comunista. Se junto da tia fica clara, mesmo que nunca muito falada, uma inquietude perante atos passados, em Ida uma revolução silenciosa e interior brota quando lhe é dito que, afinal, é filha de judeus mortos durante a guerra. Se em 2013 vimos dois filmes que nos colocaram perante pontos de vista diferentes sobre a II Guerra Mundial – Lore, de Cate Shortland, observando a alma de um povo derrotado através de cinco irmãos que tudo perderam e No Nevoeiro, de Sergei Loznitsa, que nos deu um conto de ética num tempo em que muitos optam pelo salve-se-quem-puder – Ida, mesmo sem recuar a esses tempos, acaba por representar mais uma expressão no cinema atual de ecos da II Guerra Mundial, cuja memória convoca implicitamente.
Além desse confronto com o passado e a sua própria identidade, a jovem Ida observa e desperta para sinais de uma vida contemporânea, reparando sobretudo na presença de um jovem saxofonista que toca Coltrane (a presença do jazz sublinhando aqui sinais de uma abertura que, sobretudo pela música, fez da Polónia um dos países do lado de lá do muro nos quais houve sinais de alargamento de horizontes e curiosidade pela cultura ocidental antes mesmo da queda do muro).

Aos gritos mudos, tanto nas memórias de um país que se evoca como no conflito interior da protagonista, Ida junta um dos mais belos trabalhos de direção de fotografia a preto e branco que o cinema tem visto nos últimos tempos, merecendo também atenção o olhar que enquadra figuras e lugares, muitas vezes deslocando os atores dos focos habituais do olhar, por vezes reduzindo-os a parte de composições onde outras linhas e espaços desenham um todo, como que a lembrar que somos parte pequena de algo maior.

Nuno Galopim, sound—vision.blogspot.pt

SÓ OS AMANTES SOBREVIVEM, 21 OUTUBRO, 21H30, IPDJ


SÓ OS AMANTES SOBREVIVEM
Jim Jarmusch
Reino Unido/ Alemanha/ Grécia, 2013, 123’, M/14


FICHA TÉCNICA
Título Original: Only Lovers Left Alive
Realização e Argumento: Jim Jarmusch
Montagem: Affonso Gonçalves
Fotografia: Yorick Le Saux
Música: SQÜRL (Jim Jarmusch, Carter Logan, Shane Stoneback), Jozef van Wissem
Interpretação: Tom Hiddleston, Tilda Swinton, Mia Wasikowska, John Hurt, Anton Yelchin, Slimane Dazi
Origem: Reino Unido/Alemanha/Grécia
Ano: 2013
Duração: 123’





CRÍTICA
Escusado será dizer que os amantes do novo filme de Jim Jarmusch (um casal very british: Tom Hidelleston e Tilda Swinton) vêm de tempos imemoriais, de uma ideia de Éden, ou não se chamassem eles Adam e Eve... Em montagem paralela, o cineasta começa a aproximá-los ‘magneticamente’.
Adam vive num decadente palacete dos arredores abandonados de Detroit (e não é Detroit por acaso...), ao lado de guitarras raras, amplificadores e gravadores em banda magnética. Eve vive em esconderijo mais quente, nos becos e ruelas de Tânger, perto do seu iPhone e de um Christopher Marlowe (o pequeno papel de John Hurt evoca o dramaturgo elizabetano) que assume no filme o papel de figura paterna. Adam e Eve não se veem há muitos anos. Andam por cá, na Terra, há séculos e séculos, privaram com Shakespeare e Byron (“esse pomposo...”), conheceram Proust e Kafka. São vampiros dândis, chiquérrimos, têm aura de estrelas rock e só bebem ‘sangue vintage’ (tipo O negativo). Só que Eve, através de uma videochamada, percebe que Adam não está bem e decide rumar a Detroit para um reencontro que nada tem de paradisíaco. Mais tarde, e após a visita da irmã dela que os considera um par de “snobes condescendentes”, é Adam quem vem com a amante para Tânger à procura de melhor sorte: é que os humanos, esses filisteus a que o filme chama de zombies, estão a dar cabo do mundo. A contaminar a sua beleza.


Jim Jarmusch vinha de um filme que se encaixou muito mal na sua filmografia, o muito poseur e conceptualmente confuso “The Limits of Control”. Também aqui, como sempre em Jim, se falava de um inquérito ao romantismo e à solidão, de uma Humanidade prestes a ruir num mundo em que já não dá vontade de viver. “Só os Amantes Sobrevivem”, pelo contrário, é puro sangue novo. Embora Jarmusch parta de ‘família conhecida’ e com tradição na história do cinema (a do filme de vampiros), opera a esse género já de si fantástico uma torção assinalável que apaga todas as suas convenções: ora cruza, saindo imaculado da ousadia, os seus sedentos heróis com a mitologia rock (não nos sai da cabeça o ‘Can’t Hardly Standing’, de Charlie Feathers, uma das belas escolhas musicais do cineasta), ora descobre na narrativa um tempo muito estranho que é coisa para se saborear devagar, com prazer.
Adam e Eve, heróis imortais, podem estar separados pelo espaço, mas não estão separados pelo tempo. Esse tempo (figurado na rotação do disco da sequência inicial) é uma espiral, uma trip sem fim que, de facto, não se concluirá, tal como não se concluía a viagem de William Blake no túmulo da sua piroga indiana em “Dead Man”. O que nos diz Jarmusch? Talvez nos diga que o desejo de exílio da natureza humana é tão predador e tão eterno como a vida das suas criaturas crepusculares e sem consolo. E também Jarmusch renasce aqui, através de Adam, através de Eve, um filme em que temos vontade de ficar para sempre.
Francisco Ferreira, Expresso, 13/6/14


ENTREVISTA AO REALIZADOR
[...]
“Only Lovers Left Alive” é filme de doces apocalipses, a cruzar a mitologia vampírica com a mitologia rock. Tem nome de film noir americano, ou de série B, e não é exagero dizer que inaugura um subgénero. Traz uma história de amor, a de Adam e Eve (!), vampiros ‘civilizados’, ligados por uma paixão de séculos, e que agora se abastecem de sangue tipo O negativo nos hospitais — só que a raridade está cada vez mais cara e o sangue dos humanos, a que o filme chama de “zombies”, anda cada vez mais contaminado. Adam vive nos arrabaldes abandonados de Detroit, numa casa-estúdio recheada de guitarras e amplificadores. Eve está em Tânger, cidade que acolheu o decano dos vampiros, Marlowe (John Hurt). Ela começa por ir à América ver Adam, recebendo entretanto a visita da sua irmã, também sedenta (Mia Wasikowska). Mais tarde, é ele que vem a Marrocos, noutro filme de Jarmusch em trânsito entre cidades, com o cineasta a encarregar-se também das malhas de guitarra e da seleção de uma banda sonora sublime.
Como é que chegámos aos vampiros?
É uma velha história. A Tilda Swinton disse-me em tempos num festival que eu tinha passado a vida a fazer filmes de vampiros. Isto foi muito antes da rodagem de “The Limites of Control”, em que ela própria entrou. O argumento começou aí, e depois eu inspirei-me um pouco num dos últimos livros de Mark Twain, “The Diaries of Adam and Eve”, embora o filme, apesar dos nomes das personagens, não lhe fazer referência direta. A Tilda é uma mulher fantástica. Tem uma inteligência rara, interessa-se por mil coisas diferentes, da cultura underground à geologia. E é uma grande cinéfila. Acabei por escrever este papel para ela.
Quem são aqueles dois amantes?
São seres marginais, boémios à sua maneira e muito sofisticados. Atravessaram o mundo, estão cá há séculos e viveram sempre no lado mais obscuro da sociedade. E são vampiros, embora não partilhem uma história banal de vampiros. Aquele comentário de Tilda tinha-me marcado. Eu nunca havia pensado nisso, mas os vampiros são criaturas da sombra, são outsiders em que me reencontro e reconheço. Vivem de noite, como eu vivi quase sempre. E são profundamente humanos na sua busca incessante de sangue. Às tantas, comecei a pensar nisto: como seriam as nossas relações e a nossa experiência se vivêssemos ao longo de séculos? Conseguiríamos suportar tanta nostalgia? Não o sabemos, mas este recuo sobre a história da Humanidade intrigou-me. Depois há aquela ideia de que os vampiros encarnam uma forma de apocalipse. Adam e Eve começam a aperceber-se que a extinção está próxima. Descobrem que se tornaram metáforas da atual vida humana e que estão vulneráveis aos comportamentos irrefletidos dos homens.
São, contudo, vampiros diferentes: Adam é músico, tal como você, vive no recato de um subúrbio de Detroit, Eve usa as novas tecnólogias, adaptou-se ao presente e é ela que toma a iniciativa. Digamos que o Adam é mais vintage. Você também é assim?
Sim, sou como o Adam. Não sou ‘o’ Adam, mas sou como ele. Vejo-o facilmente integrado no movimento nova-iorquino que me lançou. Ele é guitarrista, e a música que faz é bastante minimal. Detesta o virtuosismo, como os músicos em torno dos quais eu girava quando comecei a fazer filmes, os Ramones, os Television, a Patti Smith, os Heartbreakers, e depois os Talking Heads.

Esse tempo foi importante para si?
Foi, porque havia uma liberdade de espírito muito grande no fim dos anos 70. Vivíamos em dissidência absoluta, uma coisa romântica e muito fora da lei. Líamos os poetas malditos do século XIX. Nessa altura, eu só queria tocar guitarra e escrever poesia, tinha uma banda, não pensava em fazer cinema.
O Adam é daqueles tipos que ainda prefere o analógico ao digital...
É uma questão de bom gosto. Ele é um romântico puro, é mais sensível e mais frágil do que Eve, mas os meus filmes falaram quase sempre disso, de mulheres desembaraçadas e de homens recolhidos nos seus próprios problemas. Por outro lado, não acredito que as novas tecnologias nos tenham dado mais conforto, pelo contrário. Não tenho e-mail, prefiro passar o tempo a fazer outras coisas.
Quais?
 A ler, a tocar, a escrever argumentos ou simplesmente a conversar com a família e os amigos.
Os seus filmes alimentaram-se sempre de um cinema de género. Tinha alguma predileção especial por filmes de vampiros?
Hum... Lembro-me de ver em criança o “Drácula”, com o Bela Lugosi. E o “Nosferatu”, de Murnau. São filmes que marcam. Eu cresci em Akron, no Ohio, uma terra que detestava. A minha mãe era crítica de cinema num jornal local e chegou a entrevistar o Humphrey Bogart. Acho que o que mais me interessou foi ver como o estereótipo do vampiro se foi alterando no cinema, do “Drácula” de Tod Browning aos filmes da Hammer, do “The Fearless Vampire Killers”, do Polanski, ao “The Hunger”, do Tony Scott, até filmes contemporâneos em que os vampiros já não têm de responder aos clichés do costume, como em “The Addiction”, do Abel Ferrara. Ah, e há ainda o “Vampiro” do Dreyer, claro. Eu também quis entrar nesta família. Deixar a minha marca. Com vampiros que andam de luvas brancas e de óculos escuros.,.
Como é que encontrou aquela casa de Detroit em que vive o Adam?
Procurámos um décor assim, e quando o encontrámos disse a mim mesmo que não me importava de viver ali. Depois havia pessoas da equipa que me diziam: “Jim, mas isto parece a tua casa”. Eu também tenho velhas guitarras em casa, amplificadores dos anos 50. Precisava de um ambiente que me fosse familiar. E Detroit não é Detroit por acaso. Eu cresci na zona de Cleveland, a menos de 200 milhas, e minha adolescência Detroit era uma cidade mítica. Um dia parti para lá à boleia, debaixo de frio e chuva, para ver um concerto dos MC5, que foi anulado. Fui recolhido por um bando de hippies que me encheram a cabeça co suas ideias e me fizeram fumar charros. Os The Stooges, de Iggy Pop, também estavam em Detroit.
Mas a cidade que você filma é a Detroit atual, em ruínas, entregue ao abandono... É uma cidade fantasma com um passado musical glorioso que Adam, de certa forma, ainda representa. Detroit tornou-se um símbolo do declínio do império norte-americano. A crise rebentou aquilo tudo, 70% das casas do centro estão desocupadas, há escolas desertas, parece que estamos em Chernobyl. A população negra teve de partir e vive agora a milhas do centro, em bairros sem eletricidade. Esta ideia da queda do sonho americano sempre me impressionou muito, está em todos os meus filmes desde o “Stranger Than Paradise”. Mas, apesar de tudo, Detroit ainda tem vida. Há muitos artistas e muitas associações que se criaram. Estão a tentar salvar a cidade do “ruin porn”, que agora se tornou uma coisa um bocado chique. 

E Tânger?
Bom, Tânger é a eternidade. A cidade que tantas civilizações tentaram tomar e que ficou sempre na mesma. A cidade da beat generation e dos Stones. Gosto de lá estar, gosto do seu lado cosmopolita e dos vendedores ambulantes poliglotas. Gosto da cultura ligada ao haxixe. Vemos a Espanha no horizonte, mas ao mesmo tempo esta a ‘milhares de quilómetros’ de distância da Europa. Os meus vampiros, ali, só podiam sentir-se em casa.
A última: porque é que começou o filme com um plano picado sobre um gira-discos?
Porque o movimento circular do disco responde à errância das minhas personagens. Elas estão condenadas à vida infinita. A estrutura também segue essa forma circular, tal como “Dead Man”. Aliás, acho que estes dois filmes têm muitos pontos em comum. De todo que fiz, são os meus preferidos.  
Francisco Ferreira, Expresso, 7/6/14


CIÚME, 14 OUTUBRO, 21H30, IPDJ



CIÚME
Philippe Garrel, França, 2013, 77’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: La Jalousie
Realização: Philippe Garrel
Argumento : Marc Cholodenko, Caroline Deruas-Garrel, Philippe Garrel, Arlette Langmann
Montagem: Yann Dedet
Fotografia: Willy Kurant
Música: Jean-Louis Aubert
Interpretação: Louis Garrel, Anna Mouglalis, Emanuela Ponzano, Arthur Igual
Origem: França
Ano: 2013
Duração: 77’


NOTA DO REALIZADOR
A ideia que sustenta este filme é que o meu filho Louis interpreta o seu avô aos 30 anos - a actual idade de Louis – apesar de se passar nos dias de hoje. Fala de um caso de amor do meu pai com uma mulher – e, por admirá-la, eu causei, involuntariamente, ciúmes à minha exemplar mãe. Eu era uma criança que estava a ser criada pela minha mãe (no filme, eu sou a menina).
Estas são as origens históricas deste filme contemporâneo - o meu filho interpretando o meu pai quando ele tinha trinta anos.
Philippe Garrel



CRÍTICA
Há o receio de não conseguir amar, de não conseguir filmar, de perder tudo entre dois planos.
Não podemos estar sempre a repetir as mesmas coisas a cada novo filme de Philippe Garrel, mas é sempre difícil não começar (algures) por isto. Quanto mais se sabe do cinema de Garrel, mais os seus filmes fazem sentido. Cabe-nos aqui dar um pouco do que já recebemos. Por exemplo: se Garrel não trabalhasse com pessoas que lhe são caras, porventura não teria coragem de pegar numa câmara. Garrel tem “a câmara no lugar do coração”, bela boutade que o define e define a infância perdida — e o cinema é a infância perdida — de “L’Enfant Secret”. Mas tudo isto soará a vago para a maioria das pessoas, para quem nos lê. Nos filmes de Garrel, no seu cinema manufaturado e doméstico, não há muita gente no ecrã nem muita gente nas salas. As coisas são o que são. Mas “Ciúme” estreou-se em sala, contra todas as expectativas. Nem todos os países se podem orgulhar disso.
Tentemos ser mais concretos. Primeiro plano: uma mulher chora. Chora em scope no mais belo 35 mm a preto e branco do mundo que ainda se pode encontrar e que um certo cinema ainda se dá ao luxo de fazer. Chora entre as paredes de um quarto tal como outrora chorou outra mulher no filme que Garrel anda há 40 anos a querer dar continuidade, o filme de toda a ressaca política dos anos 70, o filme em que as pessoas eram mais importantes do que o cinema e que se fazia, precisamente, para que se pudesse continuar a viver. O filme em relação ao qual, conscientemente ou não, Garrel tenta ‘propor um remake’, “La Maman et Ia Putain”, de Jean Eustache.
“Ciúme” começa com uma situação comum do quotidiano: um casal em processo de separação. Louis (Louis Garrel) deixa Clotilde (Rebecca Convenant), com quem tem uma filha menor, a pequena Charlotte. Parte para os braços da nova namorada, Claudia (Anna Mouglalis). O destino já tomou o seu rumo. Louis e Claudia são atores de uma pequena trupe de teatro. Claudia gosta de Louis, mas tem medo que ele a deixe. Mais à frente, é Claudia quem encontra um arquiteto e é Louis quem tem medo de ficar sozinho. Não o ficará realmente, porque Clotilde continuará presente (é a mãe da sua filha). E também porque há Charlotte — que é outra espécie de amor e a quem Louis às tantas perguntará: “Também tu tens ciúmes de mim?”
Mas há outra dimensão em “Ciúme” que, embora não seja nova em Garrel, adquire neste filme particular importância: um rasto autobiográfico indelével, intimamente ligado ao cinema — e assim tem sido desde “Les Baisers de Secours” (1989), esse making of em que Philippe se filmava a fazer filmes com Maurice Garrel, seu pai, e com Louis Garrel, seu filho. Não por acaso, “Les Baisers de Secours” foi também a primeira colaboração com o argumentista que escreveu todos os filmes de Garrel desde então, Marc Cholodenko. O que quero dizer é que os filmes de Garrel — e isto agora vem menos de Eustache do que de Godard — têm um valor universal intrínseco, uma sinceridade a toda à prova que comove e magoa, mas são também um diário de bordo de quem os faz e onde os alter egos, mais ou menos nítidos, bem como a vontade de falar por portas travessas em nome da primeira pessoa, se vão sucedendo.
“Se voltas a dizer que vais morrer, sou eu que te mato”, dirá logo no início Claudia antes de ouvir de outra personagem um sábio conselho de Séneca. Não sabe nem desconfia, nem ela nem Louis, do que o futuro está para trazer — e às vezes há tentações, de resto frequentes em Garrel, para acabar depressa com tudo. Parece-me, no entanto, que o que ganha aqui forma, aquilo que de novo este filme traz é a definição do próprio ciúme em si.
“Ciúme” está infiltrado e vai organizar-se em torno do, chamemos-lhe infeliz, mas humano, sentimento do seu título. Das relações de dependência que ele cria. Do tão difícil que é por vezes na vida seguir caminho e dizer adeus, para sempre, sem olhar para o espelho retrovisor — e Garrel é alguém com dificuldade em dizer adeus, os fantasmas do passado visitam-no sem cessar, e é também um cineasta angustiado pelo tempo, inconformado com cada segundo que passa. Acontece que o ciúme deste “Ciúme” não é banal. Nem é apenas o de dois amantes. É que há uma história atrás que o filme não conta mas que Philippe contou: Louis está a interpretar anacronicamente a convulsão amorosa que o seu avô Maurice viveu quando tinha 30 anos e que o levou a trocar a família, era Philippe criança, por outra mulher. Não, o ciúme deste filme é outro: é o ciúme de pais e filhos (de um pai e de uma filha na ficção), é o ciúme dos mortos que a vida já não pode trazer de volta, dos filmes que já não se podem fazer e, neste ponto, é um filme de Garrel sobre o sofrimento do seu próprio cinema.
Em Portugal, não passou “Un Été Brûlant”, trabalho anterior de Garrel, muito próximo de “Le Mépris”, de Godard, e em que o ‘fantasma’ de Maurice Garrel surgia às tantas no ecrã (o ator faleceu logo a seguir a essa rodagem). Muito provavelmente, é ainda o pai Maurice que Philippe procura através do seu filho Louis. Pelo ciúme, encontrou uma ligação filial, a paternidade, outra forma de amor. Enquanto isso, o ciúme deixou de ser o que era. Deixou de ser morte de homem. E deu-nos o que habitualmente não dá: serenidade.
Francisco Ferreira, Expresso, 2/8/14





ENTREVISTA AO RELIZADOR
Porquê o título, Ciúme?
O título estava no manuscrito que eu mantive ao meu lado durante os seis meses que levou para escrever o argumento. Eu ia dormir todas as noites com ele e acordava todas as manhãs com ele. Então, eu pensei que era possível mantê-lo. Uma vez tentei o título Discórdia, mas rapidamente me livrei deste nome, ou o nome livrou-se de mim. O ciúme é pior do que a discórdia, mas também é algo que todos já sentiram e pelo qual todos já sentiram culpa... Há um lado que estamos a tentar esclarecer. O ciúme é um enigma com que toda a gente já teve de lidar.
Há também os títulos de dois capítulos: "Eu mantive os Anjos" e " Faíscas num barril de pólvora".
É frequente fazer isto; é útil para mim quando filmo. Mais tarde, pergunto-me se deveria removê-los, mas acabo sempre por querer mantê-los, mesmo que não seja muito cinematográfico. É uma forma de manter o momento do nascimento de um filme perto de mim.
"Eu mantive os Anjos" é bastante misterioso.
Ele vem de um professor no Liceu Montaigne, que foi muito importante para mim e que é representado no filme pelo homem mais velho a quem Louis vai visitar no final, aquele que diz que ele entende personagens fictícias melhor do que as da vida real. Ia visitar este professor de francês até ele ser muito velho e lembro-me que na última vez que nos vimos lhe perguntei: "Ainda não acredita em Deus?" ao que ele respondeu "Não, mas eu mantive os anjos". Nunca me esqueci. Mais tarde, ele morreu.
Claro que no filme ele se refere, obviamente, a ter mantido os filhos, ao facto de que o rompimento entre o homem e a mulher não envolver uma ruptura com a filha.
O argumento foi co-escrito por Caroline Deruas, Arlette Langmann, Marc Cholodenko e você. Quatro argumentistas - não são muitos?
Sim, foi a primeira vez que dirigi uma coisa semelhante e acho interessante. Dois homens e duas mulheres. Na verdade, escrevemos o primeiro rascunho em três meses, muito rapidamente. Depois foi só uma questão de adicionar pequenos retoques.
Arlette Langmann para o argumento, Yann Dedet como editor, mesmo Willy Kurant... Todos eles sugerem uma referência a Pialat.
Exacto. Nunca tive problemas em referir os mestres, da mesma forma que os pintores estudam nos museus. Não é uma questão de imitação, mas estaremos mais bem equipados, se pudermos ter como referência o que os grandes artistas descobriram antes. Sou um discípulo de Bresson, Godard e Truffaut. E há também outras referências.
É esta abundância de inspiração reflectida pelo facto de que havia vários argumentistas?
É importante para mim que o script deva ser o resultado de diferentes contribuições. O argumento final é o fruto da contribuição dos quatro participantes. Partimos de uma tela simples e daí todos captaram cenas que escrevemos separadamente. Mais tarde, juntámo-las e vimos qual o resultado, se o que tínhamos era o suficiente, para fazer o conjunto da história compreensível. Depois a verdadeira unidade na narrativa tem de ser escrita com a câmara, durante as filmagens. Às vezes, duas pessoas escrevem a mesma
cena, cada um de modo próprio, e tentamos decidir mais tarde qual versão funciona melhor.
Assim, um escritor assume o comando das cenas passadas no teatro, e outro as cenas com a criança...
Não, de maneira nenhuma. Todo mundo trata cenas em todos os pontos da história. É realmente livre, o que é necessário é que em determinado momento nós tenhamos, entre nós quatro, coberto a história como um todo. Dentro da narrativa, o facto de que nós passamos de uma cena escrita por um homem para outra escrita por uma mulher traz uma diversidade de sentimentos, de relação com o mundo, que é o que eu procuro. A escrita masculina e feminina são frequentemente muito diferentes.

Há uma diferença geracional, bem como aquela de género, por exemplo, entre Arlette Langmann e Caroline Deruas
Sim, isso também importa, mesmo que eu não acredite que seja tão importante.
É este argumento partilhado muito fiel ao que vemos no filme ou houve espaço para mudança?
É a história que escrevemos, como a escrevemos, mas houve uma grande liberdade na filmagem. Há partes improvisadas, o que escrevemos não foi utilizado obrigatoriamente nos diálogos; muitas vezes é a “situação pela situação” que me interessa. Quando a cena está escrita, favorecendo a situação relativamente ao diálogo ou ao próprio drama, os actores têm espaço para improvisar.
Quanto é que Louis se envolveu no script? Desde o início que sabe que ele vai desempenhar o papel, este é o vosso quarto filme juntos, ele é seu filho... É difícil imaginar que ele não tenha influenciado a personagem, que também tem o seu nome...
Ele não se envolveu directamente, mas é claro que nós, os argumentistas, sabíamos que ele ia interpretar o papel. A sua personagem foi escrita tendo em conta os laços pessoais que ele tem com tal e tal situação, e, claramente, o Louis do filme assemelha-se a ele. Eu tive a sorte de ter sido capaz de o estudar como actor durante um longo período de tempo, da mesma forma como o fiz com o meu pai quando eu era mais jovem. Foi uma grande ajuda para mim. Além disso, Louis é muito bom a improvisar, eu sei que dentro da moldura e enquadramento que lhe demos, ele vai saber como inventar, que o vai desenvolver bem, trazendo coisas que “vêm” dele.
Isto implica deixar aos actores muito espaço.
Sim. Quando Louis diz que as cenas não devem ser demasiado vinculativas, ele está certo. Essa abertura permite tanto o que está escrito como o que é improvisado, para alcançar uma certa unidade, uma verdade. Para mim, fazer o filme significa, em grande parte, garantir que isso aconteça. Como se o fosse definindo à medida que se vai filmando. Quando faço um filme eu não quero apenas terminar um projecto que o teria precedido. Não há fantasia no filme seguido apenas da sua fabricação: isto seria apenas a prática. Na escrita e na filmagem, algo toma forma, algo aparece no acto de fazer. Como a canção do
fim que diz: “Coloque o seu fardo aqui”.
Quando se fala de improviso, sobre o filme que aparece no momento em que está sendo feito, isso significa que filma sem saber o que vai acontecer?
Não, de maneira nenhuma, trabalhamos muito em cada cena. Primeiro, durante os ensaios, depois na rodagem, em seguida, depois de se terem decidido as posições de câmara, e, ainda, após a iluminação ter sido organizada, o som, etc... até esse momento ainda não filmámos nada. Somente quando todos se sentirem preparados é que digo "Acção!" E, em princípio, só fazemos um take. A menos que haja um incidente grave que necessite de um segundo take.
Por que filma em scope? Isso ajuda-o na sua forma de trabalhar?
É o único luxo relacionado com a imagem a que eu tenho acesso. Eu uso o verdadeiro scope anamórfico, 35mm. Dá excelentes resultados, principalmente - e paradoxalmente - em lugares muito apertados. Este sistema de filmagem permite que a câmara capte os pormenores nas margens extremas da imagem, dando-lhe um alcance que os outros métodos não oferecem. Mas para isso precisa de um excepcional cameraman, como Jean- Paul Meurisse, que é capaz de filmar em scope com uma câmara portátil na perfeição. Foi assim que a maioria das cenas foram filmadas.
Há algumas escolhas de framing muito fortes, tão mais poderosas quanto não são exigidas pela narração. Em particular, os close-ups que ocorrem frequentemente, quando o que deve ser dito já foi dito, e que funcionam de uma maneira diferente.
Isto vem do cinema mudo. Fiz cinema mudo, eu adoro filmes mudos. Eles deixaram a sua marca em mim, mesmo que saiba que nunca vou voltar a ter a possibilidade de fazer um. Eu adoraria, embora… tenho certeza de que saberia como fazê-lo. Para certos closes-ups usei lentes especiais, desenhadas para filmar a partir de muito perto, que permitem aos rostos uma incrível expressividade.
Está a trabalhar com Willy Kurant como D.F. como uma espécie de continuidade da sua longa colaboração com William Lubtchansky?
… e Raoul Coutard. Precisamente. Os três carregam uma história excepcional; fizeram os filmes mais rápidos de sempre. A partir dos anos sessenta e isto não pode ser esquecido. Willy Kurant fez desde então Masculino Feminino ou Skolimowski’s The Departure. Estes três foram os criadores da Nouvelle Vague, e como os realizadores ou actores, autodidactas que construíram o seu próprio conhecimento, a sua própria capacidade de responder às situações.
Exigiu algo em particular relativamente à imagem?
Para o meu filme anterior That Summer, fundamentado na cor, pedi a Willy Kurant um efeito guache, em vez de um efeito de pintura a óleo como a maioria das imagens coloridas em cinema. E aqui, no Ciúme, a preto e branco, pedi-lhe o efeito de carvão vegetal, ao invés de lápis preto. E ele fê-lo muito bem. Como Coutard ou Lubtchansky, ele percebe estas exigências. Eles trabalham a fotografia, a luz, o filme em si, quando não foram talhados para isso, em princípio. E - e isto é o mais importante - com Willy, como também com Raoul ou William, assim que definem o local do “spot”, eles sabem exactamente como posicioná- lo de modo a que os atores pareçam bem. Imediatamente! E para todas as cenas, sem nunca repetir-se. É excepcional, especialmente quando tem que se filmar muito rápido, como fizemos.
Filma Anna Mouglalis, em particular o seu rosto, como nunca vimos antes.
Não há nenhum truque especial, não pedi para ela fazer nada de especial relativamente à sua aparência, isto acontece da forma mais obscura. A relação entre a nossa vida e o que filme representa para nós… um filme tem sempre a sua “própria história”, o seu “próprio lugar”. Isso é o que deve ter acontecido. Mais uma vez, não se deve absolutamente tentar fazer algo que foi planeado com antecedência. É por isso que o cinema é uma arte colectiva, ele pode receber tudo o que vem de quem participa, salvaguardando apenas uma condição: que lhe permita essa possibilidade.

Procura a relação com a vida de um modo mais preciso, mais directo do que muitos cineastas. Ciúme é um filme sobre relações de casal, relações pais-filhos, co-escrito com Caroline Deruas, interpretado por seu filho e sua filha...
Sim, é quase uma operação química, misturei elementos, tornando-os mais visíveis e mais rápidos, mas com a ideia de que ela diz respeito a todos. O que eu faço aparecer é como um pigmento que dá cor, de alguma forma, a todas as vidas. O título Ciúme refere-se a este fenómeno e parece-me que toda a gente sabe imediatamente do que se trata, todos já sentiram isso em suas vidas, desde a infância, em múltiplas formas.
A actriz Esther Garrel é também sua filha e irmã de Louis. O que procurava quando a escolheu para o papel?
É o aspecto documental do filme. Esther é a irmã de Louis, ela interpreta a irmã de Louis e eu estou retratando os meus filhos. É tudo o que posso dizer.
Teve alguma particular dificuldade a dirigir Olga Milshtein, a menina que interpreta Charlotte filha de Louis?
Não. Ela é a filha de alguém que conheço, que trabalha no filme. Eu tinha notado que ela era muito engraçada, com muita presença. Mas fiquei preocupado; realmente nunca tinha dirigido uma criança. Arlette e Caroline tinham escrito cenas de Charlotte e quis saber como estava indo para continuar a fazê-lo. Acontece que Jacques Doillon, que é muito melhor do que eu com as crianças, também tinha notado Olga, e tinha filmado Un Enfant de Toi com ela. Assim, ele ensinou-lhe como estar na frente de uma câmara e eu beneficiei com isso. Eu não fiz nada de especial, vi-a a fazer as suas cenas com os outros actores, e ela gostou. Foi praticamente a mesma relação que tive com os outros actores, a maioria dos quais eu ensinei no Conservatório - incluindo Louis, mas não Anna, que fez os seus estudos no Conservatório, mas não comigo. Olga era uma "antiga aluna" de Jacques Doillon.
Como surgiu a cena inesperada quando Anna Mouglalis lava os pés do velho escritor?
A partir do desejo de uma imagem. No argumento, ela faz-lhe uma massagem. Eu pensei que isto seria mais bonito. Algumas ideias visuais - neste caso, claramente, uma referência à história sagrada e à arte – adquirem o seu lugar na construção da cena durante as filmagens e, consequentemente, transformam-na. Uma jovem mulher lavando os pés de um homem velho é uma imagem clássica que em um momento encontra o seu lugar. Aqui, novamente, esta forma de usar uma poderosa imagem visual carregada de história, vem do cinema mudo.
Um dos principais aspectos do filme são os pais. De Louis e Esther, pai ausente, já falecido; e os pais substitutos que Louis e Claudia encontram - o velho professor e o velho escritor. Será que os pais substitutos aparecem como que “um padrão num tapete”?
Sim, das mulheres. Arlette Langmann e Caroline Deruas. Cada uma escreveu uma cena com um homem velho. Tendo gostado de ambas as cenas, mantive-as. Queria filmar actores mais velhos, pessoas que representaram muito, mas cujos rostos não fossem
conhecidos. O meu pai apresentou-me a dois actores, Robert Bazil e Jean Pommier. Um já estava a trabalhar em Wild Innocence e outro em Regular Lovers.
Porque escolheu Jean-Louis Aubert para a música?
Há muito tempo ouvi dizer que ele gostaria de trabalhar comigo em um clip de música. Na altura, eu não podia, mas a ideia permaneceu. Quando o seu mais recente CD "Roc'éclair" saiu, ouvi-o dizer, numa entrevista, que estava ligado à morte de seu pai. Caroline comprou- me "Roc'éclair", e achei a forma como ele evocou o que sentiu, sem o mencionar, muito bonita. Mais tarde, durante as filmagens de Ciúme eu estava à procura de uma ideia para a música, algo simples. E o meu director de produção, Serge Catoire, sugeriu entrar em contacto com Jean-Louis Aubert. Mais uma vez, os elementos encontraram o seu lugar. Mostrei a Aubert o filme, ele gostou e começou a escrever a música imediatamente. Todo o filme foi feito assim: muito rápido, mas também muito simplesmente.
Pediu-lhe algo de particular?
Não, eu só lhe disse que sentia que deveriam ser como canções, só que sem letras. Foi o que ele fez, ele entendeu muito bem.
Há uma espécie de continuidade na música dos seus filmes.
Sim, privilegio a música escrita por músicos de rock, mas baladas... como John Cale fez para alguns dos meus outros filmes, este tipo de música realmente serve-me bem. Há provavelmente uma coisa geracional com esse tipo de música, desde os meus primeiros filmes, a partir de Les enfants désaccordés em 1964 e Marie pour mémoire em 1967. Mas tudo se resume aos encontros; fazemos filmes com o que encontramos pelo nosso caminho de vida.
"Ouvre ton Coeur" (Open Your Heart), a canção nos créditos finais, não foi composta para o filme.
Não, Jean-Louis Aubert tinha acabado de a escrever quando nos encontrámos. Assim, ele disse-me: Estou trabalhando nisto, e cantou-a para mim depois de eu lhe ter mostrado o filme. Ele e eu concordámos que ela se iria encaixar muito bem.
Jean-Michel Frodon


Night Moves, 7 Outubro, 21h30, IPDJ

7 outubro | 21h30 | IPDJ
NIGHT MOVES
Kelly Reichardt, EUA, 2013, 112’, M/14

FICHA TÉCNICA
Título Original: Night Moves
Realização: Kelly Reichardt
Argumento: Jonathan Raymond, Kelly Reichardt
Montagem: Kelly Reichardt
Fotografia: Christopher Blauvelt
Música: Jeff Grace
Interpretação: Jesse Eisenberg, Dakota Fanning, Alia Shawkat, Peter Sarsgaard, James Le Gros, Katherine Waterston
Origem: EUA
Ano: 2013
Duração: 112’

Festivais e Prémios
Festival de Veneza - Selecção Oficial
Festival de Toronto - Selecção Oficial

Deauville Film Festival – Grande Prémio



CRÍTICA

A americana Kelly Reichardt continua a filmar as atribuladas relações entre os humanos e a Natureza — no seu mais recente e magnífico filme, "Night Moves", ela encena a actividade de um grupo ecológico no labirinto das suas próprias opções políticas.

Quanto mais vamos descobrindo o trabalho da americana Kelly Reichardt [...], mais se acentua uma emoção paradoxal: por um lado, há nos seus filmes um persistente fascínio pelos elementos naturais e, mais do que isso, pela própria noção mítica de Natureza; por outro lado, tudo se passa como se os humanos não soubessem lidar com a crueza desses elementos, perdendo-se nela e perdendo as razões da sua identidade.

Pensemos, por exemplo, na ambígua deambulação pelas montanhas do Oregon, em "Old Joy" (2006). Ou ainda na revisitação desencantada do western e da descoberta do Oeste em "O Atalho" (2010). Agora, com "Night Moves" (2013), a perturbação aumenta porque, afinal, os protagonistas são os elementos de um pequeno grupo ecológico que decide afirmar os seus valores através da destruição de uma barragem...

A escolha do elenco de "Night Moves" é, em si mesma, reveladora. De facto, ao entregar os papéis principais a Jesse Eisenberg (o Mark Zuckerberg de David Fincher em "A Rede Social"), Dakota Fanning (já adulta, mas que em "Guerra dos Mundos", ainda adolescente, sob a direcção de Steven Spielberg, "roubava" todas as cenas a Tom Cruise) e Peter Sarsgaard (sempre enigmático e inquietante, tal como, por exemplo, em "Lovelace"), Reichardt escolhe intérpretes que escapam a qualquer modelo mais ou menos retórico.

Daí a genuína inquietação deste conto moral sobre a defesa da Natureza. Em vez de excluir as personagens para criar uma espécie de abstracção "teórica" sobre as razões da ecologia, Reichardt vai mergulhando no labirinto de ideias e emoções que circulam entre as suas personagens, afinal distanciando-se de qualquer dicotomia simplista entre "prós" e "contras". No limite, "Night Moves" é um filme sobre o peso específico dos gestos políticos, desde o espaço social até às regiões mais secretas da consciência individual.

João Lopes, rtp.pt/cinemax/



ENTREVISTA À REALIZADORA
Josh, Dena e Harmon — papéis de Jesse Eisenberg, Dakota Fanning e Peter Sarsgaard — são em “Night Moves” três ecoativistas do Oregon que decidem rebentar uma barragem hidroelétrica nociva para o meio ambiente. Voltam depois para as suas casas, em silêncio, sem reivindicarem o ato, esperando que o gesto radical fale por si próprio e desperte consciências — mas é no pós-atentado e suas consequências que o filme começa realmente a levantar questões.
Kelly é um coração inquieto e toca agora num ‘ecoterrorismo’ que, pela perspicácia e inteligência com que é apresentado, nos permite falar do renascimento de um cinema em estado de militância.
A natureza sempre esteve muito presente nos seus filmes, foi um pano de fundo importante, recorrente. Mas em “Night Moves” ela está no seio da intriga...
“Night Moves” não deixa de ser para mim uma ficção com personagens de ficção. Acontece que estas têm uma intenção política, de facto. Diria que, desta vez, a natureza está presente na mente das personagens e não apenas na minha. Foi este o caminho que o Jonathan Raymond (argumentista de quase todos os meus filmes) e eu tomámos no guião. Considerando o estado do mundo e o modo como a humanidade o está a destruir, perguntámo-nos porque é que, afinal, não surgem mais pessoas a rebentar com certas coisas — com uma barragem hidroelétrica que está a exterminar salmões, por exemplo. Perguntámo-nos o que nos impede, de facto, de fazermos algo tão radical como isso. É claro que há muito boas razões para não o fazermos...
Como é que a ideia do filme nasceu?
O Jonathan lembrou-se de escrever uma história sobre militantes ecologistas radicais e a ideia de introduzir esse tema muito contemporâneo num filme mais ou menos policial interessou-me logo. O Jonathan nasceu no noroeste americano. A Earth Liberation Front na América, de resto, surgiu ali, na cidade em que eu vivo, em Portland, e as contestações às barragens estão na ordem do dia. A intriga foi-se modificando depois. Tornou-se claro que queríamos mostrar personagens convictas da sua ideologia fundamentalista e que se descobrem presas a um sistema que as vai destruir.
Há alguma fonte autobiográfica nas suas personagens?
Não. Há uma questão de proximidade, isso sim. Gosto de entrar em mundos e em personagens que são novos para mim, que precisam de ser investigados e me obrigam a refletir sobre a sua existência.
A viagem é um tema importante para si. Mark e Kurt, as personagens de “Old Joy”, reúnem-se numa viagem campestre. A Wendy de “Wendy and Lucy” parte à deriva sem saber para onde vai. A viagem é também decisiva para as famílias que se perdem no Oregon em “O Atalho”, western que se passa em meados do século XIX...
Essa é uma grande questão que me coloco à minha própria vida: porque será que tenho esta predileção pelo road movie? “Night Moves” é diferente: a viagem, aqui, é interior. É curioso falar disso porque eu acho que os filmes que faço refletem muito o meu ritmo natural. Não sei se já fez uma viagem de onze horas de carro mas isso altera por completo a noção de tempo que temos. E eu acho isso muito intrigante. Acho que as nossas vidas são tensas porque vivemos num mundo em que estamos sempre à espera de qualquer coisa, de um telefonema, de um e-mail... É como se tivéssemos sempre o tempo contado. As minhas personagens talvez queiram fugir disso. Gostam de perder tempo. E aqui surgem impasses, crises narrativas, coisas que me interessam.

Há uma grande divisão de comportamentos em relação ao ambiente entre o leste e o oeste americanos?
Sim, uma enorme divisão de consciências e de sensibilidades. Em Nova Iorque as pessoas estão-se nas tintas para o ambiente. Acham que reciclar o lixo é o suficiente. Sabe, eu cresci quando a Patty Hearst aparecia nos jornais, quando a ativista underground Angela Davis, do Partido Comunista dos EUA, estava a ser julgada e noto que os padrões de comportamento delas não são tão diferentes dos dos ecologistas do meu filme. É claro que os media farão sempre com que as pessoas os vejam como terroristas mais perigosos do que a poluição maciça da atmosfera e da água consentida pelo Governo. Esta mentalidade, de resto, não mudou muito até ao 11 de Setembro. Fizemos com que a ação do fiime se passasse no pós-11 de Setembro e não agora porque hoje já é impossível praticar uma atitude política extrema deste género sem se ser detetado e travado imediatamente.

Josh e Dana querem levar a sua avante mas não estão politicamente preparados nem para se organizarem nem para lidarem com as consequências dos seus atos. São ingénuos?
São novos. Dou aulas na universidade há já algum tempo. Lido com a juventude. Lembro-me da ação de jovens como aqueles nos anos 90, alguns ligados à Earth Liberation Front. Lembro-me dos seus atentados à bomba contra as coisas mais diversas, pistas de esqui que se construíam nas florestas, etc. E de pensar: mas bolas, eles só têm vinte anos, não sabem nada da vida e agora vão apanhar dez anos de cadeia, as suas vidas estão destruídas. Por outro lado, e olhando para os dias de hoje, lamento que já não haja esquerda nos EUA, por exemplo. Ou que essa esquerda esteja gorda, preguiçosa, confortável. As pessoas acostumam-se depressa à rotina e morrem politicamente. Josh e Dana são ingénuos, claro, ao contrário de Harmon, a personagem de Peter Saarsgard, que só quer fazer explodir as coisas. Josh e Dana acreditam piamente naquilo que estão a fazer mas depois são assaltados por uma ambiguidade de sentimentos, perdem o controlo da situação. Perdem a noção de grupo. E eu acho que é aqui que o filme nos pergunta: se estes miúdos extremistas estão a proceder mal, então qual é o procedimento certo? E o que é que nós, adultos, podemos fazer para agir e mudar as coisas? “Night Moves” não responde à pergunta. Não tem uma ‘agenda política’. Mas o meu desejo secreto é que essa pergunta ecoe em cada espectador.
Francisco Ferreira, Expresso