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Até dia 5 publicamos os cartazes que serão leiloados.
Séraphine, Martin Provost, 2008
(e porque será dia de festa, haverá bolo de aniversário e champagne!)
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6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! O Quadro Negro, Samira Makhmalbaf.
Godard/Truffaut - OS DOIS DA (NOVA) VAGA. 6ªf, dia 1, 21h30, IPJ. E não é mentira!
Celebrando os 50 anos da Nouvelle Vague, o documentário relembra a apresentação de Os Incompreendidos, de François Truffaut, no Festival de Cannes em 1959, e a criação de Acossado, de Jean-Luc Godard, mostrando assim o nascimento do movimento que mudou a forma de se fazer cinema na França e revelou ao mundo dois dos maiores cineastas de todos os tempos, Truffaut e Godard. Retrata também a amizade naquela época entre os dois artistas de personalidades distintas.
Título Original: Deux de la Vague
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Durante o Festival de Cannes de 2010, surgiu um pequeno burburinho – no Brasil e na Croisette – de que o júri não deveria oferecer a Palma de Ouro este ano, em resposta à prisão do cineasta iraniano Jafar Pahani. Uma ideia totalmente sem propósito, como se pode ver pela recém-libertação do mesmo, em parte justamente pelos protestos dos vencedores Apichatpong Weerasethakul e Juliette Binoche, mas que nos levou de volta a 1968 quando as revoltas crescentes na França fizeram Jean-Luc Godard e François Truffaut liderar as manifestações no Festival que culminaram no cancelamento daquela edição.
1968 foi bem atribulado nos bastidores do mundo cinematográfico francês, com a demissão do mítico Henri Langlois do comando da Cinemateca Francesa e a ruptura entre os jovens diretores e artistas e o Ministro da Cultura da época, André Malraux, antes um dos principais defensores da Nouvelle Vague.
Outra ruptura importante que estava em curso era entre Jean-Luc e François. Dois grandes amigos, que começaram como cinéfilos nas cadeiras da frente da Cinemateca, viraram críticos da Cahiers du Cinéma e quase simultaneamente passaram para a direção de filmes no final dos anos 50, se tornando os principais nomes do movimento que revolucionou o cinema no mundo inteiro. Mas nos anos 60, a carreira deles começou a tomar caminhos distintos: Godard indo para um lado mais revolucionário e político, uma maneira de expor o que estava acontecendo na França e no mundo naquele instante; enquanto Truffaut via no cinema uma maneira de fazer uma poesia no sentido mais doce da palavra, embelezando os quadros e tendo um ritmo muito mais suave, sem nunca levar problemas políticos para as telas. Se no início eram apenas diferenças de linguagens, logo começou a virar uma oposição direta. Enquanto Godard chamava o cinema de Truffaut de nulo e distante do mundo, François acusava Jean-Luc de querer fazer mau uso dos dispositivos lhe dados, culminando numa ruptura oficial em 1973.
É essa história de amizade, militância e ruptura que permeia Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague, que estreou no Festival de Cannes do ano passado, não coincidentemente 50 anos depois do lançamento do movimento com as estreias de Os Incompreendidos e Hiroshima Mon Amour, causando um rebuliço sem precedentes. No momento em que cobre aquele festival, o filme revela o seu melhor e pior aspecto. Enquanto mostra imagens maravilhosas e pouco conhecidas, ele se fecha completamente nos filmes de Godard e Truffaut para explicar toda a revolução cinematográfica em curso, o que acaba gerando um resultado estranho para os que já conhecem um pouco sobre o movimento.
A história segue um tanto burocrática e simplesmente biográfica, não à toa, considerando que o roteirista é Antoine de Baecque, escritor de um livro sobre a Cahiers Du Cinema. O que marca portanto o longa-metragem são as fartas imagens de arquivo da qual ele se utiliza. A cobertura de Cannes em 1959 é um grande exemplo disso, com imagens de Truffaut e o pequeno Jean-Pierre Leaud (protagonista de Os Incompreendidos e ator-feitiche da Nouvelle Vague) passeando pela Riviera, dando entrevistas e curtindo o tratamento superstar no Festival.
Outras imagens de bastidores dos filmes, entrevistas e alguns momentos-chaves do longo ano de 1968 deliciam os cinéfilos, assim como a história da maior colaboração entre eles, o curta Une histoire d’eau, realizado a partir de imagens que François Truffaut filmou a partir de uma enchente em Paris, mas deixou de lado. Godard portanto, pegou todo o material, editou e narrou, dando um toque pessoal a todas aquelas imagens realizadas por seu então parceiro.
Mateus Nagime, cineplayers.com
In Emmanuel Laurent’s new documentary, “Two in the Wave,” the “two” are the filmmakers François Truffaut and Jean-Luc Godard. The wave, needless to say, is La Nouvelle Vague, a journalistic name that not only stuck to Truffaut, Mr. Godard and their colleagues, but that also changed the way film history is understood.
Since the days when that Gallic wave crashed ashore, critics and cinephiles have scanned the horizon looking for the next one, while groups of young directors and critics, sometimes consciously, sometimes not, seek to replicate the daring and self-confidence that bubbled up in France in the late 1950s and early ’60s.
Mr. Laurent, for his part, dutifully combs the beach, gathering wonderful bits of detritus from that much-mythologized moment. The surviving members of the New Wave — Truffaut died in 1984 — are by now venerated members of the old guard. (Mr. Godard, at 79, showed his new film at the Cannes Film Festival on Monday.) But “Two in the Wave” wisely resists the temptation to invite them to share memories of youth. Rather, it gathers newspaper clippings, newsreel footage and movie clips to assemble a present-tense essay that is both time capsule and collage.
Instead of featuring talking-head retrospective interviews, the movie frames its backward looks with images of the actress Isild Le Besco reading old magazine articles and occasionally visiting a historically significant spot in Paris. Her presence is puzzling for a while, until you begin to absorb some of the images that surround her — Jean Seberg in “Breathless,” Anna Karina in “A Woman Is a Woman” — and recall Mr. Godard’s axiom that all he needed to make a film was “a girl and a gun.” Mr. Laurent displays no firearms, but Ms. Le Besco’s silent presence suggests a corollary, namely that any movie can benefit from a beautiful woman with an interesting face.
There is also a third man in “Two in the Wave”: Jean-Pierre Léaud, the actor who worked frequently with both directors and who became the on-screen embodiment of their attitudes and styles. For Truffaut, Mr. Léaud served as a frequent alter ego, appearing as Antoine Doinel in a series of autobiographical films, beginning with “The 400 Blows” in 1959. That movie and “Breathless,” Mr. Godard’s first feature, occupy much of Mr. Laurent’s documentary, which was written and narrated by the film critic Antoine de Baecque. The triumphant arrival of “The 400 Blows” at the Cannes Film Festival in 1959 and the release of “Breathless” a year later feel almost like a single event, one of those epochal moments that divide time into before and after.
Before, there was a group of young movie buffs, haunting the Cinémathèque Française and the offices of Cahiers du Cinéma, disciples of two high priests of postwar cinephilia: the archivist Henri Langlois and the critic André Bazin. They absorbed everything they saw, forming particular affinities with the American directors we now regard (thanks partly to the Cahiers gang) as idols of classic Hollywood.
These Hitchcocko-Hawksians, as they were sometimes known, set out to change French cinema, and in assessing their campaign, “Two in the Wave” becomes frustratingly vague. The grandiose rhetoric of revolution and reinvention is certainly there — mostly courtesy of Mr. Godard, a fount of aphorisms on the nature of “le cinéma” — but apart from a few remarks about hand-held cameras and jump cuts, there is not much in the way of concrete analysis. So the audience is left to guess at what exactly made Truffaut’s and Mr. Godard’s work so transformative.
And yet the evidence provided by the films themselves is a powerful reminder of just how exciting that work remains. “Two in the Wave,” while it provides plenty of biographical information, is above all interested in the artistic personalities of its subjects. It was, after all, the shared love of film that brought them together, despite their differences in temperament and background. And it was partly their divergent ideas about what cinema should become that drove the two men apart. After their initial triumphs, with “The 400 Blows” and “Breathless,” Truffaut and Mr. Godard continued to work closely together through the 1960s. But as Mr. Godard’s work became increasingly politicized, and as his always uncompromising and prickly personality grew even more so, a schism emerged that would become irreparable in 1973.
That year Mr. Godard wrote a letter to Truffaut attacking his film “Day for Night” and enclosing an equally venomous letter to Mr. Léaud. Truffaut returned that letter, along with one of his own — 20 handwritten pages condemning the selfishness and pigheadedness of his longtime friend. And that is where Mr. Laurent’s story ends, as so many tales of artistic camaraderie do. But “Two in the Wave” honors that collaboration by carefully recounting its details and arguing for its significance. The films of Truffaut and Mr. Godard stand or fall by themselves, but together they made history. .
Since the days when that Gallic wave crashed ashore, critics and cinephiles have scanned the horizon looking for the next one, while groups of young directors and critics, sometimes consciously, sometimes not, seek to replicate the daring and self-confidence that bubbled up in France in the late 1950s and early ’60s.
Mr. Laurent, for his part, dutifully combs the beach, gathering wonderful bits of detritus from that much-mythologized moment. The surviving members of the New Wave — Truffaut died in 1984 — are by now venerated members of the old guard. (Mr. Godard, at 79, showed his new film at the Cannes Film Festival on Monday.) But “Two in the Wave” wisely resists the temptation to invite them to share memories of youth. Rather, it gathers newspaper clippings, newsreel footage and movie clips to assemble a present-tense essay that is both time capsule and collage.
Instead of featuring talking-head retrospective interviews, the movie frames its backward looks with images of the actress Isild Le Besco reading old magazine articles and occasionally visiting a historically significant spot in Paris. Her presence is puzzling for a while, until you begin to absorb some of the images that surround her — Jean Seberg in “Breathless,” Anna Karina in “A Woman Is a Woman” — and recall Mr. Godard’s axiom that all he needed to make a film was “a girl and a gun.” Mr. Laurent displays no firearms, but Ms. Le Besco’s silent presence suggests a corollary, namely that any movie can benefit from a beautiful woman with an interesting face.
There is also a third man in “Two in the Wave”: Jean-Pierre Léaud, the actor who worked frequently with both directors and who became the on-screen embodiment of their attitudes and styles. For Truffaut, Mr. Léaud served as a frequent alter ego, appearing as Antoine Doinel in a series of autobiographical films, beginning with “The 400 Blows” in 1959. That movie and “Breathless,” Mr. Godard’s first feature, occupy much of Mr. Laurent’s documentary, which was written and narrated by the film critic Antoine de Baecque. The triumphant arrival of “The 400 Blows” at the Cannes Film Festival in 1959 and the release of “Breathless” a year later feel almost like a single event, one of those epochal moments that divide time into before and after.
Before, there was a group of young movie buffs, haunting the Cinémathèque Française and the offices of Cahiers du Cinéma, disciples of two high priests of postwar cinephilia: the archivist Henri Langlois and the critic André Bazin. They absorbed everything they saw, forming particular affinities with the American directors we now regard (thanks partly to the Cahiers gang) as idols of classic Hollywood.
These Hitchcocko-Hawksians, as they were sometimes known, set out to change French cinema, and in assessing their campaign, “Two in the Wave” becomes frustratingly vague. The grandiose rhetoric of revolution and reinvention is certainly there — mostly courtesy of Mr. Godard, a fount of aphorisms on the nature of “le cinéma” — but apart from a few remarks about hand-held cameras and jump cuts, there is not much in the way of concrete analysis. So the audience is left to guess at what exactly made Truffaut’s and Mr. Godard’s work so transformative.
And yet the evidence provided by the films themselves is a powerful reminder of just how exciting that work remains. “Two in the Wave,” while it provides plenty of biographical information, is above all interested in the artistic personalities of its subjects. It was, after all, the shared love of film that brought them together, despite their differences in temperament and background. And it was partly their divergent ideas about what cinema should become that drove the two men apart. After their initial triumphs, with “The 400 Blows” and “Breathless,” Truffaut and Mr. Godard continued to work closely together through the 1960s. But as Mr. Godard’s work became increasingly politicized, and as his always uncompromising and prickly personality grew even more so, a schism emerged that would become irreparable in 1973.
That year Mr. Godard wrote a letter to Truffaut attacking his film “Day for Night” and enclosing an equally venomous letter to Mr. Léaud. Truffaut returned that letter, along with one of his own — 20 handwritten pages condemning the selfishness and pigheadedness of his longtime friend. And that is where Mr. Laurent’s story ends, as so many tales of artistic camaraderie do. But “Two in the Wave” honors that collaboration by carefully recounting its details and arguing for its significance. The films of Truffaut and Mr. Godard stand or fall by themselves, but together they made history. .
nytimes.com
Título Original: Deux de la Vague
Realização: Emmanuel Laurent
Argumento: Antoine de Baecque
Interpretação: Anouk Aimée, Jean-Pierre Aumont, Charles Aznavour, Jean-Paul Belmondo,
Jacqueline Bisset, Jean-Claude Brialy
Direcção de Fotografia: Etienne de Grammont e Nick de Pencier
Montagem: Marie-France Cuénot
Origem: França
Ano de Estreia: 2010
Duração: 91’
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6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! O Profeta, Jacques Audiard.
6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! História Trágica com Final Feliz, Regina Pessoa.
6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! O Céu Gira, Mercedes Álvarez.
6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! O Dia da Saia, Jean-Paul Lilienfeld.
6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! Taking Woodstock, Ang Lee.
Qual a verdade da mentira em DOS HOMENS E DOS DEUSES? Ajuize por si, 2ªf, IPJ, 21h30.
O filme de Xavier Beauvois (site) conta a história de uma pequena comunidade de monges cistercienses do Mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia, vivida em 1998 durante uma guerra justamente considerada como "assimétrica". Uma história que prescinde de efeitos narrativos para entrar directamente não apenas na intimidade do grupo mas também na interioridade de cada um daqueles homens. Um filme feito de imagens puríssimas e de silêncios quase absolutos onde o uso da palavra, frequentemente cantada, é tão-só uma forma de oração. Todos os ruídos fortes que quebram este manto de silêncio soam como o prenúncio do mal, da desarmonia e da destruição: veículos, helicópteros, armas.
É uma narrativa sobre o martírio, a possibilidade do martírio que, bruscamente, se coloca àquela pacífica comunidade de monges franceses, algures no Atlas, que escolheram viver na pobreza e na partilha. A maior arte desta narrativa cénica é conduzir-nos a todos, actores e espectadores, através de um episódio breve e intenso até um desfecho inevitável, fazendo juntos, eles e nós, todo um processo intelectual de dúvida, medo, recusa e outro espiritual, de graça e aceitação.
Logo após os primeiros actos terroristas, a comunidade é advertida pelas autoridades argelinas dos riscos que corre e aconselhada a partir. A decisão deve ser tomada por votação como sucede nestas comunidades monásticas. Os acontecimentos que alteram o espiritual e laborioso quotidiano dos frades apanham oito homens de surpresa, todos religiosos mas todos diferentes. O processo individual de cada um em busca do que é certo ou errado, dos limites da sua própria resistência e a dura prova a que são submetidas as suas consciências é exemplar do ponto de vista do que possa ser a fé e a vocação. "Vim para cá para ser monge, não para me deixar degolar", diz um deles. "Que sentido tem deixar-nos morrer aqui?", pergunta outro. Porquê não aceitar a protecção do governo? Quem tem a protecção de Deus deve aceitar protecções corruptas? E sair, ir embora, regressar a França ou juntar-se a outra comunidade num local mais seguro? Como é possível abandonar esta população indefesa que confia em nós? Interrogam-se outros.
Um processo que se vai fazendo através da oração, da amizade que os une forjada numa vida pobre, simples e de entrega ao próximo, de vozes que cantam juntas, de diálogos curtos e densos, de gestos físicos, tímidos e fraternos até alcançar a revelação. Percebemos como é importante para o Irmão Christian, cooptado para dirigir a comunidade e estudioso do Corão, a componente religiosa do conflito: o diálogo entre ele e o chefe do GIA, na noite de Natal, é um momento sublime. Tal como os diálogos entre o Irmão Canalizador e o Irmão Christian sobre vocação e dúvida, ou entre o Irmão médico e a rapariga árabe sobre a exaltação da paixão humana. Alguma vez sentiu isso? Pergunta ela. Muitas vezes, até que um amor maior que todos os outros me levou. Responde. Ou quando o Irmão Christian estabelece a relação entre a noite de Natal, o Mistério da Encarnação e a Paixão de Cristo, transpondo-a para o próprio destino da comunidade. Ou, quando interpelado por outro Irmão sobre qual o sentido de morrerem ali, responde que é o mesmo sentido que os fez querer ser monges: não morremos para sermos heróis, morremos por fidelidade a Deus.
Apesar dos mimos, raros naquela comunidade pobre - duas garrafas de vinho, um queijo e O Lago dos Cisnes como música de fundo - o último jantar lembra, de forma pungente, a Última Ceia. Sorrisos, risos e depois lágrimas num tempo de vésperas.
A intensidade da história, a simplicidade daquela comunidade, a força do destino daqueles homens, a espiritualidade, a pureza, o silêncio, a humanidade e o sacrifício supremo fazem deste filme uma raridade. Curiosamente, ou talvez não, os espectadores agradeceram.
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Maria José Nogueira Pinto, Diário de Notícias
E certamente capricho do acaso que estreiem na mesma semana um filme de Xavier Beauvois e outro de Alain Guiraudie, os dois mais importantes cineastas franceses nascidos nos anos 60; aqueles que, depois da paternidade da Nouvelle Vague, melhor partiram, cada um por si, para uma cinefilia autodidata, em busca do seu próprio terreno. E se do poético e libertário Guiraudie até já tinham chegado fotogramas cá ao retângulo, de Beauvois, ele que até gosta do 'princípio, meio e fim' de uma história sem nunca se ter resguardado em elitismos de autor, ele que jamais fez parte do limbo e do magma dos imbecis, nunca as salas portuguesas ouviram falar. Até hoje. Quem explicará tal miséria?
Começamos, portanto, tarde e a más horas, com o opus cinco de Beauvois, filme intenso - os quatro anteriores não o foram menos. Tem um belo título, "Dos Homens e dos Deuses". Grande Prémio do Júri de Cannes 2010. O seu maior êxito comercial até à data (mais de dois milhões de entradas em França).
O filme que representará a França na candidatura ao 'Óscar dos estrangeiros'. Nada disto quer dizer grande coisa... mas, enfim, a distribuição abriu os olhos.
Deuses e homens, altos e baixos, o céu e a terra - sempre os houve no cinema de Beauvois. As suas personagens deterministas sempre estiveram entre uns e outros. Foi assim com a desintegração familiar do pialatiano "Nord", com o negro romantismo de "N'Oublie Pas Que Tu Vas Mourir", com o idealismo do jovem recruta da polícia de "Le Petit Lieutenant". Beauvois adensou mais o mistério entre estas duas fronteiras metafísicas ao interessar-se por um certo mosteiro perdido nas montanhas do Magrebe em que decorre "Dos Homens e dos Deuses".
Estamos nos anos 90. Oito monges franceses cristãos vivem em harmonia com o povo muçulmano - mas essa harmonia vai terminar. O filme inspira-se num facto real: as últimas semanas de vida dos monges cistercienses do mosteiro de Thibirine, na Argélia, raptados e degolados em 1996 por extremistas muçulmanos, em condições que permanecem ainda misteriosas. Nas duas horas de filme, sentimos a violência crescer, pouco a pouco, passo a passo, até ao insustentável. E perguntamo-nos, tal como pergunta Beauvois: porque esperaram pela morte aqueles monges?, o que levou os irmãos Christian, Luc ou Christophe, homens de fé (abandonados por Deus?), a cerrarem ainda mais as fileiras, mantendo-se unidos perante a escalada do terror?
Beauvois nada vai acrescentar ao fait-divers de uma história que, todos sabem à partida, tem final terrível. O que lhe interessa não é o aspeto trivial e jornalístico do episódio, nem sequer aquilo que, para muitos, será o tema fundamental do filme: o extremismo religioso (e, para escavar mais fundo, o terrorismo). Além disso, temos 'más notícias' a dar: Beauvois não é, nunca foi um 'cineasta de temas'. Será por isso que aqueles monges, a partir de certo ponto, se olham entre si como quem olha sereno para a luz de um vitral? Quanto mais apela ao divino (ou à falta dele), mais este filme se toma humano.
Acontece que as personagens de Beauvois, numa direção de atores irrepreensível, se 'elevam', religiosa e moralmente, ao encontro de outras criaturas (místicas) da história. Blasfémia? Não: Beauvois guarda uma distância que dá provas da sua modés¬tia. Não se trata aqui de imitar o que fizeram Dreyer, Rossellini ou Bresson. Apenas de tentar manter um tom de humildade que, essencialmente, documenta gestos do quotidiano, procurando ficar à altura daqueles que estão à nossa frente.
As personagens, por outro lado, são o maior segredo do filme. Consagrados à vida monástica, os monges de Beauvois manter-se-ão fiéis a uma forma de resistência que os condena a ficar - e vão até ao fim do sacrifício. Até que aquele receio de morrer se transforme numa certeza pacificadora, fraternal, que se sabe pronta para o que vai receber. Nesta transformação está a profissão de fé de um filme torturado, controverso, que desafia a nossa consciência.
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Francisco Ferreira, ExpressoMaria José Nogueira Pinto, Diário de Notícias
E certamente capricho do acaso que estreiem na mesma semana um filme de Xavier Beauvois e outro de Alain Guiraudie, os dois mais importantes cineastas franceses nascidos nos anos 60; aqueles que, depois da paternidade da Nouvelle Vague, melhor partiram, cada um por si, para uma cinefilia autodidata, em busca do seu próprio terreno. E se do poético e libertário Guiraudie até já tinham chegado fotogramas cá ao retângulo, de Beauvois, ele que até gosta do 'princípio, meio e fim' de uma história sem nunca se ter resguardado em elitismos de autor, ele que jamais fez parte do limbo e do magma dos imbecis, nunca as salas portuguesas ouviram falar. Até hoje. Quem explicará tal miséria?
Começamos, portanto, tarde e a más horas, com o opus cinco de Beauvois, filme intenso - os quatro anteriores não o foram menos. Tem um belo título, "Dos Homens e dos Deuses". Grande Prémio do Júri de Cannes 2010. O seu maior êxito comercial até à data (mais de dois milhões de entradas em França).
O filme que representará a França na candidatura ao 'Óscar dos estrangeiros'. Nada disto quer dizer grande coisa... mas, enfim, a distribuição abriu os olhos.
Deuses e homens, altos e baixos, o céu e a terra - sempre os houve no cinema de Beauvois. As suas personagens deterministas sempre estiveram entre uns e outros. Foi assim com a desintegração familiar do pialatiano "Nord", com o negro romantismo de "N'Oublie Pas Que Tu Vas Mourir", com o idealismo do jovem recruta da polícia de "Le Petit Lieutenant". Beauvois adensou mais o mistério entre estas duas fronteiras metafísicas ao interessar-se por um certo mosteiro perdido nas montanhas do Magrebe em que decorre "Dos Homens e dos Deuses".
Estamos nos anos 90. Oito monges franceses cristãos vivem em harmonia com o povo muçulmano - mas essa harmonia vai terminar. O filme inspira-se num facto real: as últimas semanas de vida dos monges cistercienses do mosteiro de Thibirine, na Argélia, raptados e degolados em 1996 por extremistas muçulmanos, em condições que permanecem ainda misteriosas. Nas duas horas de filme, sentimos a violência crescer, pouco a pouco, passo a passo, até ao insustentável. E perguntamo-nos, tal como pergunta Beauvois: porque esperaram pela morte aqueles monges?, o que levou os irmãos Christian, Luc ou Christophe, homens de fé (abandonados por Deus?), a cerrarem ainda mais as fileiras, mantendo-se unidos perante a escalada do terror?
Beauvois nada vai acrescentar ao fait-divers de uma história que, todos sabem à partida, tem final terrível. O que lhe interessa não é o aspeto trivial e jornalístico do episódio, nem sequer aquilo que, para muitos, será o tema fundamental do filme: o extremismo religioso (e, para escavar mais fundo, o terrorismo). Além disso, temos 'más notícias' a dar: Beauvois não é, nunca foi um 'cineasta de temas'. Será por isso que aqueles monges, a partir de certo ponto, se olham entre si como quem olha sereno para a luz de um vitral? Quanto mais apela ao divino (ou à falta dele), mais este filme se toma humano.
Acontece que as personagens de Beauvois, numa direção de atores irrepreensível, se 'elevam', religiosa e moralmente, ao encontro de outras criaturas (místicas) da história. Blasfémia? Não: Beauvois guarda uma distância que dá provas da sua modés¬tia. Não se trata aqui de imitar o que fizeram Dreyer, Rossellini ou Bresson. Apenas de tentar manter um tom de humildade que, essencialmente, documenta gestos do quotidiano, procurando ficar à altura daqueles que estão à nossa frente.
As personagens, por outro lado, são o maior segredo do filme. Consagrados à vida monástica, os monges de Beauvois manter-se-ão fiéis a uma forma de resistência que os condena a ficar - e vão até ao fim do sacrifício. Até que aquele receio de morrer se transforme numa certeza pacificadora, fraternal, que se sabe pronta para o que vai receber. Nesta transformação está a profissão de fé de um filme torturado, controverso, que desafia a nossa consciência.
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Título Original: Des Hommes et des Dieux
Realização: Xavier Beauvois
Argumento: Xavier Beauvois , Etienne Comar
Interpretação: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach, Jacques Herlin
Direcção de Fotografia: Caroline Champetier
Montagem: Marie-Julie Maille
Origem: França
Ano de Estreia: 2010
Duração: 120’
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6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! O Sítio das Coisas Selvagens, Spike Jonze.
6 de Abril, 55º aniversário: LEILÃO DE CARTAZES na sede! Le Bassin de JW, João César Monteiro.
4ªf, SEDE, entrada livre, 21h30. BABEL. Beautiful Iñárritu?
Numa montanha, em Marrocos, um pai manda os dois filhos guardar o rebanho de cabras armados com uma espingarda. Em San Diego, uma ama devotada (e imigrante ilegal) recebe um telefonema do patrão antes da ida ao casamento do filho, no México. Richard quis reaproximar-se da mulher, Susan, numa viagem a Marrocos, mas a tensão dela é óbvia até que um acidente reaproxima o casal. Em Tóquio, uma adolescente muda, Chieko, insubordina-se contra tudo e todos e assume um comportamento sexualmente exibicionista. Alejandro González Iftárritu, distinguido pela realização deste Babel na última edição do Festival de Cannes, volta a usar - como em Amor Cão e 21 Gramas – uma estrutura narrativa fragmentada para cruzar histórias que, num efeito borboleta, têm repercussões umas sobre as outras, e para actualizar a parábola bíblica relativa ao desentendimento entre os homens, após uma punição divina os ter posto a falar línguas diferentes.
Servido, além do mais, pelos dotes de dois cúmplices habituais - Guillermo Arriaga como argumentista e Rodrigo Prieto como director de fotografia -, Iñárritu não aprofunda os dramas individuais mas usa¬-os para sublinhar o desentendimento que separa e afasta. E realça como, em situação de crise, a actual o mundial detemina as possibilidades de uns resolverem os seus problemas contra a improbabilidade de que outros seja ouvidos e entendidos...
Babel é um filme com consciência. Assume um ponto de vista, humano, e com escala global, para reter as assimetrias. Faz parte de um cinema transversal, realizado a partir de dentro do sistema, com meios e estrelas e tudo - como O Fiel Jardineiro de Fernando Meirelles -, que, talvez devido à origem dos seus criadores, desafia a bitola norte-americana. Acontece porque a grande democracia existe e o poder da indústria de entretenimento é imenso. Será. Mas tem olhar e dá dimensão ao ser humano e não apenas ao ser ou querer ser americano.
Tragédia, dor, incomunicação, amor, família, diferença... temas universais que, nas mãos de Alejandro González Iñárritu (Cidade do México, 1963) costumam resultar em cinema de grande qualidade. Três filmes feitos das entranhas resumem um modo de entender a vida e o trabalho: Ser cineasta é como ser toureiro, diz de forma assertiva. É uma atitude, uma forma de vida, nada improvisada. Este é um trabalho de sobreviventes. É necessária uma força muito especial, emocional, intelectual, física. A verdade é que o cineasta não concebe outro cinema senão o que represente um envolvimento pessoal muitas vezes tormentoso. Para mim, o cinema é a vida. Pelo menos o cinema que faço, que é a extensão de mim mesmo, que nasce do Sol que me queima o estômago. Os meus filmes são um testemunho da minha experiência vital, com as minhas infinitas limitações e as minhas poucas virtudes. É evidente que há um processo intelectual, mas a semente dos meus filmes não é calculada, não surge de um processo científico, metodológico. Há um lado obsessivo no meu cinema, continua, os temas são muito pessoais. Não se tratam de filmes autobiográficos, mas identifico-me com eles em muitas coisas. 21 Gramas, por exemplo, foi uma necessidade. A minha esposa e eu perdemos um filho, e esse filme foi um processo de entendimento, de coragem e de frustração. Foi muito doloroso. De qualquer forma, os projectos nunca foram pensados em forma de trilogia.
A SUA CARA METADE
Pensado como mosaico de histórias sobre as diferenças entre os seres humanos, o processo de escrita de Babel levou-o a tornar-se uma reflexão sobre o amor e a dor, que é o que une todos os seres humanos. As coisas que fazem felizes uma criança marroquina e uma japonesa não são as mesmas, mas as que lhes provocam dor são. Iñárritu apresenta quatro histórias cruzadas em outros tantos países: Era uma ideia que tinha em si a semente do fracasso, confessa o realizador, reconhecendo certa ambição. Tinha um desenvolvimento muito difícil, mas Guillermo gostou dela e começámos a trabalhá-la.
Iñárritu considera Guillermo Arriaga a sua cara metade profissional, o homem que coescreveu Amor Cão, 21 Gramas e, agora, Babel. Um parceiro perfeito que deixará de sê-lo. A ruptura laboral, provocada por um choque de egos (e por certas desavenças económicas), tornou-se inevitável: Acho que é muito importante que ele se desenvolva, que siga em frente com a exploração que está a fazer como cineasta (acaba de produzir um filme, Los Búfalos de la Noche, baseado no seu próprio romance, e realizará outro, um projec-to ainda muito no início que se intitulará El Sol de los Venados). Encerrámos um ciclo muito produtivo, de muito êxito.
Sem rancores aparentes, lñárritu destaca o lado positivo da sua colaboração: Entre nós há
um intercâmbio interminável de ideias. Guillermo tem uma técnica e uma capacidade de
escrever que lhe permite ordenar toda aquela voragem, aquele mundo caótico que às vezes proponho. Eu, em troca, tenho um deficit de atenção muito poderoso. Não me consigo concentrar mais de dez minutos em algo.
Em qualquer caso, ambos fizeram uma arte do cruzamento de histórias diferentes. Um estilo que cultivaram de forma brilhante nas suas três longas-metragens. O cinema permite explorar dimensões diferentes simultaneamente, aponta, e acrescenta: Gosto muito desse olhar, talvez pela incapacidade de fazer algo longo, ou talvez porque estamos influenciados pela vida tão fragmentada que temos... Não sei. Mas parece-me que este modo de contar oferece oportunidades dramáticas bem bonitas. De qualquer forma, sublinha, neste filme há uma maior linearidade que nos outros que fiz. E há uma outra diferença: Babel é um filme com muita esperança.
ESTRELA EM MARROCOS
Gente normal. Era disso que necessitavam as quatro histórias de Babel. E González Iñárritu, irónico, enfrentou os preconceitos. Com Brad Pitt foi um capricho. Gostei de castigá-lo, envelhecê-lo, transformá-lo num ser humano e conseguir que as pessoas se esqueçam que esse homem era Brad Pitt. Era como plantar uma palmeira num bosque de pinheiros. E fazer que a palmeira não fosse palmeira. O mais curioso é que Brad não era uma estrela na rodagem porque ninguém o conhecia. Era mais um. Estávamos a rodar numa aldeia (Taguenzalte) sem luz, no meio do nada. As pessoas são muito humildes, não têm televisão. Acho que isso o ajudou, porque foi difícil para ele fazer essa personagem.
Outro dos contratempos com que Pitt se deparou foi o argumento. lñárritu explica: Reescrevia o argumento, reestruturava-o sem¬pre que mudávamos de país, consoante as culturas e limitações. Passei o tempo todo a ajustar, a tirar e pôr, a escrever... Foi uma tarefa muito solitária. No caso do Brad, eu queria contar a história dele do ponto de vista da sua esposa, a partir do sofrimento de uma mãe de dois filhos que tinha perdido um terceiro. Originalmente, no argumento, Brad era-lhe infiel. E três semanas antes da rodagem mudei isso, porque me parecia uma vulgaridade. A morte de um filho funcionava porque criava uma implosão muito mais profunda entre eles. Brad não tinha filhos naquela altura e não entendia esta mudança, custou-lhe lidar com um novo elemento dramático.
Além de Pitt, Iñárritu conta com Cate Blanchett, os japoneses Rinko Kikuchi e Yôji Kakusho (Memórias de uma Gueixa), os mexicanos Gael García Bernal e Adriana Barraza e, em pequenos papéis de polícias fronteiriços, Clifton Collins Jr. (Traffic - Ninguém Sai Ileso) e Michael Peña (World Trade Center). Foi um acto de generosidade da parte deles, porque me ajudaram a que o trabalho dos não profissionais (há vários no filme) resultasse credível. E suportaram estoicamente o estilo do realizador: Rodo de forma muito tensa. Não sou implacável, mas sim torturador, muito meticuloso em tudo: do argumento aos créditos. Sou demasiado controlador. E quando dirijo actores posso fazer 75 takes sem me ralar, até eles fazerem o que acho que devem fazer.
MADE IN MÉXICO
Outro grande tema de Babel é a emigração. A personagem de Adriana Barraza (a assistente de um casal americano de classe média-alta que decide levar as crianças de que cuida ao casamento do seu filho, no México) experimenta na própria carne a humilhação dos polícias fronteiriços, algo que vivo frequentemente e que me indigna, conta o realizador. Nos EUA, há uma paranóia de império, onde ser estrangeiro é quase um delito e as fronteiras são um ritual de humilhação. No final, essas fronteiras físicas convertem-se em ideológicas. Estamos a construir muros que nos inabilitam de comunicar com os nossos filhos e mulheres. Os governos não ficam limitados, o que acaba contaminada é a nossa vida quotidiana. Isso é plasmado no filme, embora Alejandro González Iñárritu esteja agradecido ao país que o acolheu. Ou, pelo menos, aos efeitos que tiveram nele a mudança para o outro lado do rio. Viver nos Estados Unidos deu-me vulnerabilidade, despertou-me, questionou-me, perspectivou-me, retirou-me da minha zona de conforto, da minha área segura. Submergiu-me numa sociedade diferente, complexa, contraditória. Pessoalmente não foi fácil, mas como artista é um caldo de possibilidades que me desperta, que me estimula e que me incomoda. Sair foi uma opção de alto risco. E isso fascinava-me.
Em qualquer caso, o cineasta não esquece as suas raízes, embora ele as situe além do puramente geográfico. Em Babel, há um ponto de vista muito determinado. Este mesmo filme feito por um primeiro-mundista teria sido muito diferente. O milagre da arte é o que está entre o olho e o objecto, que é a percepção do artista. O meu olhar partirá sempre de uma latitude, a da experiência vital. Acho que a infância de uma pessoa é a sua pátria. A sombra que eu projecto acompanhar-me-á toda a vida. Para mim, a pátria não é um território, nem uma fronteira nem uma bandeira. É uma ideia, é um ponto de vista. Vai além de uma questão geográfica.
CATE BLANCHETT
Na crista da onda após o seu Oscar como Melhor Actriz Secundária por O Aviador. Cate Blanchett encadeia rodagens a um ritmo endiabrado. Tem três filmes prestes a estrear: The Good German, com George Clooney; Notes on a Scandal, em que contracena com Judi Dench e Babel, onde é uma turista americana que é alvejada numa viagem por Marrocos. Sobre o seu envolvimento em Babel, Cate explica: Queria trabalhar com Alejandro (González lñárritu), que adoro e admiro. Ainda por cima, quanto mais falávamos sobre o meu papel, mais me entusiasmava o desafio. O mais difícil foi retratar a complexidade de uma frágil relação de casal, a da minha personagem com a de Brad (Pitt), através de muito pouco diálogo e em muito pouco tempo. Com esses meios mínimos, devíamos dar densidade a um conflito sentimental que tinha de ser projectado a todo o filme.
Blanchett acha que Iñárritu consegue criar uma atmosfera incrivelmente intensa no set. Assim retira todo o potencial criativo dos envolvidos no projecto. Vive o trabalho dele com uma paixão transbordante e quando estamos ao lado dele, percebemos a sua capacidade de entrega ilimitada. Sentimos que coloca a vida em cada plano que filma.
Cate adorou contar com Brad Pitt como companheiro de rodagem: É muito divertido e aberto, e fazia-me rir continuamente. Também me ajudou a compreender o meu trabalho como actriz, e de uma persrpectiva desconhecida. Costumo ser muito emocional na construção das minhas persona¬gens, mas ele cuida mais os aspectos estético, os detalhes gestuais. Não parava de fazer perguntas a Alejandro, questões que nunca me teriam ocorrido. E isso foi uma ajuda suplementar excepcional.
GAEL GARCIA BERNAL
Os latinos têm em Gael García Bernal um dos seus pontas de lança, um actor cujo valor supera qualquer fronteira nacional e cinematográfica. Honra ganha a pulso após anos de valioso trabalho, que despontou pela mão do realizador com quem volta a colaborar em Babel. Para mim, este filme significou essencialmente um feliz reencontro com muita da gente com quem trabalhei em Amor Cão. Sobretudo Alejandro (González lñárritu), mas também Rodrigo Prieto (director de fotografia), assim como a maioria da equipa técnica.
Gael comenta a sua primeira reacção à leitura do argumento de Babel: Pareceu-me um projecto ambicioso, com muitas histórias e um discurso unificador de enorme fundo político e moral. Mas só capturei a sua dimensão colossal quando o vi terminado. É incrível como Alejandro utilizou o poder metafórico do mito de Babel. Vivemos o paradoxo de um mundo aparentemente global em que cada vez estamos mais afastados. Devemos começar por ouvir-nos uns aos outros ou a torre de Babel que é o mundo pode acabar por ruir.
Sobre a vontade política do filme, Gael pensa que em grande parte ela deve-se à origem mexicana de Alejandro. O México é um país muito politizado. A política é um tema recorrente em toda a convers, seja familiar; íntima ou de rua. Na minha parte do filme esboçam-se problemas como a imigração e o aumento nos controlos de segurança na fronteira com os EUA. A minha opinião pessoal é que o melhor seria que as pessoas que quisessem pudessem ir trabalhar nos EUA de forma legal, mesmo que com uma permissão de trabalho temporário. Assim não haveria tanta gente a arriscar as suas vidas e, ainda por cima, estas pessoas pagariam impostos e seriam até melhor para os governos. Sobre a segurança na fronteira, não acho que construir um muro vá resolver as coisas. Um muro é fácil de derrubar. O prioritário deveria ser atacar as raízes e origens da pobreza.
Título Original: Babel
Realização: Alejandro González Iñárritu
Argumento: Guillermo Arriaga
Interpretação: Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael Garcia Bernal, Adriana Banraza
Direcção de Fotografia: Rodrigo Prieto
Montagem: Douglas Crise e Stephen Mirrione
Música: Gustavo Santaolalla
Origem: EUA/México
Ano de Estreia: 2006
Duração: 124’
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Como traduz isto em plena globalização? Pela abordagem da incomunicação entre culturas, potenciada pela hegemonia política de uns sobre os outros, mas olhando sobretudo as relações pessoais e familiares. E se a (des)estruturação de Babel - que torna o filme pouco imersivo - ilustra justamente a entropia gerada no actual status quo, a realização humaniza as personagens dispondo a história de Susan e Richard no centro e usando excelentes actores.
Servido, além do mais, pelos dotes de dois cúmplices habituais - Guillermo Arriaga como argumentista e Rodrigo Prieto como director de fotografia -, Iñárritu não aprofunda os dramas individuais mas usa¬-os para sublinhar o desentendimento que separa e afasta. E realça como, em situação de crise, a actual o mundial detemina as possibilidades de uns resolverem os seus problemas contra a improbabilidade de que outros seja ouvidos e entendidos...
Babel é um filme com consciência. Assume um ponto de vista, humano, e com escala global, para reter as assimetrias. Faz parte de um cinema transversal, realizado a partir de dentro do sistema, com meios e estrelas e tudo - como O Fiel Jardineiro de Fernando Meirelles -, que, talvez devido à origem dos seus criadores, desafia a bitola norte-americana. Acontece porque a grande democracia existe e o poder da indústria de entretenimento é imenso. Será. Mas tem olhar e dá dimensão ao ser humano e não apenas ao ser ou querer ser americano.
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Maria do Carmo Piçarra, Premiere, Fevereiro 2007
Quatro histórias, quatro países, seis idiomas, centenas de actores (e não actores). Com tudo isso lidou Alejandro González Iñárritu para completar a sua “trilogia da dor” (iniciada com Amor Cão e 21 Gramas). Brad Pitt, Cate Blanchett e Gael García Bernal são os nomes mais conhecidos do grande elenco de um filme feito a partir das entranhas, duríssimo mas cheio de esperança, que nos é apresentado pelo cineasta.
Maria do Carmo Piçarra, Premiere, Fevereiro 2007
Quatro histórias, quatro países, seis idiomas, centenas de actores (e não actores). Com tudo isso lidou Alejandro González Iñárritu para completar a sua “trilogia da dor” (iniciada com Amor Cão e 21 Gramas). Brad Pitt, Cate Blanchett e Gael García Bernal são os nomes mais conhecidos do grande elenco de um filme feito a partir das entranhas, duríssimo mas cheio de esperança, que nos é apresentado pelo cineasta.
Tragédia, dor, incomunicação, amor, família, diferença... temas universais que, nas mãos de Alejandro González Iñárritu (Cidade do México, 1963) costumam resultar em cinema de grande qualidade. Três filmes feitos das entranhas resumem um modo de entender a vida e o trabalho: Ser cineasta é como ser toureiro, diz de forma assertiva. É uma atitude, uma forma de vida, nada improvisada. Este é um trabalho de sobreviventes. É necessária uma força muito especial, emocional, intelectual, física. A verdade é que o cineasta não concebe outro cinema senão o que represente um envolvimento pessoal muitas vezes tormentoso. Para mim, o cinema é a vida. Pelo menos o cinema que faço, que é a extensão de mim mesmo, que nasce do Sol que me queima o estômago. Os meus filmes são um testemunho da minha experiência vital, com as minhas infinitas limitações e as minhas poucas virtudes. É evidente que há um processo intelectual, mas a semente dos meus filmes não é calculada, não surge de um processo científico, metodológico. Há um lado obsessivo no meu cinema, continua, os temas são muito pessoais. Não se tratam de filmes autobiográficos, mas identifico-me com eles em muitas coisas. 21 Gramas, por exemplo, foi uma necessidade. A minha esposa e eu perdemos um filho, e esse filme foi um processo de entendimento, de coragem e de frustração. Foi muito doloroso. De qualquer forma, os projectos nunca foram pensados em forma de trilogia.
A SUA CARA METADE
Pensado como mosaico de histórias sobre as diferenças entre os seres humanos, o processo de escrita de Babel levou-o a tornar-se uma reflexão sobre o amor e a dor, que é o que une todos os seres humanos. As coisas que fazem felizes uma criança marroquina e uma japonesa não são as mesmas, mas as que lhes provocam dor são. Iñárritu apresenta quatro histórias cruzadas em outros tantos países: Era uma ideia que tinha em si a semente do fracasso, confessa o realizador, reconhecendo certa ambição. Tinha um desenvolvimento muito difícil, mas Guillermo gostou dela e começámos a trabalhá-la.
Iñárritu considera Guillermo Arriaga a sua cara metade profissional, o homem que coescreveu Amor Cão, 21 Gramas e, agora, Babel. Um parceiro perfeito que deixará de sê-lo. A ruptura laboral, provocada por um choque de egos (e por certas desavenças económicas), tornou-se inevitável: Acho que é muito importante que ele se desenvolva, que siga em frente com a exploração que está a fazer como cineasta (acaba de produzir um filme, Los Búfalos de la Noche, baseado no seu próprio romance, e realizará outro, um projec-to ainda muito no início que se intitulará El Sol de los Venados). Encerrámos um ciclo muito produtivo, de muito êxito.
Sem rancores aparentes, lñárritu destaca o lado positivo da sua colaboração: Entre nós há
um intercâmbio interminável de ideias. Guillermo tem uma técnica e uma capacidade de
escrever que lhe permite ordenar toda aquela voragem, aquele mundo caótico que às vezes proponho. Eu, em troca, tenho um deficit de atenção muito poderoso. Não me consigo concentrar mais de dez minutos em algo.
Em qualquer caso, ambos fizeram uma arte do cruzamento de histórias diferentes. Um estilo que cultivaram de forma brilhante nas suas três longas-metragens. O cinema permite explorar dimensões diferentes simultaneamente, aponta, e acrescenta: Gosto muito desse olhar, talvez pela incapacidade de fazer algo longo, ou talvez porque estamos influenciados pela vida tão fragmentada que temos... Não sei. Mas parece-me que este modo de contar oferece oportunidades dramáticas bem bonitas. De qualquer forma, sublinha, neste filme há uma maior linearidade que nos outros que fiz. E há uma outra diferença: Babel é um filme com muita esperança.
ESTRELA EM MARROCOS
Gente normal. Era disso que necessitavam as quatro histórias de Babel. E González Iñárritu, irónico, enfrentou os preconceitos. Com Brad Pitt foi um capricho. Gostei de castigá-lo, envelhecê-lo, transformá-lo num ser humano e conseguir que as pessoas se esqueçam que esse homem era Brad Pitt. Era como plantar uma palmeira num bosque de pinheiros. E fazer que a palmeira não fosse palmeira. O mais curioso é que Brad não era uma estrela na rodagem porque ninguém o conhecia. Era mais um. Estávamos a rodar numa aldeia (Taguenzalte) sem luz, no meio do nada. As pessoas são muito humildes, não têm televisão. Acho que isso o ajudou, porque foi difícil para ele fazer essa personagem.
Outro dos contratempos com que Pitt se deparou foi o argumento. lñárritu explica: Reescrevia o argumento, reestruturava-o sem¬pre que mudávamos de país, consoante as culturas e limitações. Passei o tempo todo a ajustar, a tirar e pôr, a escrever... Foi uma tarefa muito solitária. No caso do Brad, eu queria contar a história dele do ponto de vista da sua esposa, a partir do sofrimento de uma mãe de dois filhos que tinha perdido um terceiro. Originalmente, no argumento, Brad era-lhe infiel. E três semanas antes da rodagem mudei isso, porque me parecia uma vulgaridade. A morte de um filho funcionava porque criava uma implosão muito mais profunda entre eles. Brad não tinha filhos naquela altura e não entendia esta mudança, custou-lhe lidar com um novo elemento dramático.
Além de Pitt, Iñárritu conta com Cate Blanchett, os japoneses Rinko Kikuchi e Yôji Kakusho (Memórias de uma Gueixa), os mexicanos Gael García Bernal e Adriana Barraza e, em pequenos papéis de polícias fronteiriços, Clifton Collins Jr. (Traffic - Ninguém Sai Ileso) e Michael Peña (World Trade Center). Foi um acto de generosidade da parte deles, porque me ajudaram a que o trabalho dos não profissionais (há vários no filme) resultasse credível. E suportaram estoicamente o estilo do realizador: Rodo de forma muito tensa. Não sou implacável, mas sim torturador, muito meticuloso em tudo: do argumento aos créditos. Sou demasiado controlador. E quando dirijo actores posso fazer 75 takes sem me ralar, até eles fazerem o que acho que devem fazer.
MADE IN MÉXICO
Outro grande tema de Babel é a emigração. A personagem de Adriana Barraza (a assistente de um casal americano de classe média-alta que decide levar as crianças de que cuida ao casamento do seu filho, no México) experimenta na própria carne a humilhação dos polícias fronteiriços, algo que vivo frequentemente e que me indigna, conta o realizador. Nos EUA, há uma paranóia de império, onde ser estrangeiro é quase um delito e as fronteiras são um ritual de humilhação. No final, essas fronteiras físicas convertem-se em ideológicas. Estamos a construir muros que nos inabilitam de comunicar com os nossos filhos e mulheres. Os governos não ficam limitados, o que acaba contaminada é a nossa vida quotidiana. Isso é plasmado no filme, embora Alejandro González Iñárritu esteja agradecido ao país que o acolheu. Ou, pelo menos, aos efeitos que tiveram nele a mudança para o outro lado do rio. Viver nos Estados Unidos deu-me vulnerabilidade, despertou-me, questionou-me, perspectivou-me, retirou-me da minha zona de conforto, da minha área segura. Submergiu-me numa sociedade diferente, complexa, contraditória. Pessoalmente não foi fácil, mas como artista é um caldo de possibilidades que me desperta, que me estimula e que me incomoda. Sair foi uma opção de alto risco. E isso fascinava-me.
Em qualquer caso, o cineasta não esquece as suas raízes, embora ele as situe além do puramente geográfico. Em Babel, há um ponto de vista muito determinado. Este mesmo filme feito por um primeiro-mundista teria sido muito diferente. O milagre da arte é o que está entre o olho e o objecto, que é a percepção do artista. O meu olhar partirá sempre de uma latitude, a da experiência vital. Acho que a infância de uma pessoa é a sua pátria. A sombra que eu projecto acompanhar-me-á toda a vida. Para mim, a pátria não é um território, nem uma fronteira nem uma bandeira. É uma ideia, é um ponto de vista. Vai além de uma questão geográfica.
CATE BLANCHETT
Na crista da onda após o seu Oscar como Melhor Actriz Secundária por O Aviador. Cate Blanchett encadeia rodagens a um ritmo endiabrado. Tem três filmes prestes a estrear: The Good German, com George Clooney; Notes on a Scandal, em que contracena com Judi Dench e Babel, onde é uma turista americana que é alvejada numa viagem por Marrocos. Sobre o seu envolvimento em Babel, Cate explica: Queria trabalhar com Alejandro (González lñárritu), que adoro e admiro. Ainda por cima, quanto mais falávamos sobre o meu papel, mais me entusiasmava o desafio. O mais difícil foi retratar a complexidade de uma frágil relação de casal, a da minha personagem com a de Brad (Pitt), através de muito pouco diálogo e em muito pouco tempo. Com esses meios mínimos, devíamos dar densidade a um conflito sentimental que tinha de ser projectado a todo o filme.
Blanchett acha que Iñárritu consegue criar uma atmosfera incrivelmente intensa no set. Assim retira todo o potencial criativo dos envolvidos no projecto. Vive o trabalho dele com uma paixão transbordante e quando estamos ao lado dele, percebemos a sua capacidade de entrega ilimitada. Sentimos que coloca a vida em cada plano que filma.
Cate adorou contar com Brad Pitt como companheiro de rodagem: É muito divertido e aberto, e fazia-me rir continuamente. Também me ajudou a compreender o meu trabalho como actriz, e de uma persrpectiva desconhecida. Costumo ser muito emocional na construção das minhas persona¬gens, mas ele cuida mais os aspectos estético, os detalhes gestuais. Não parava de fazer perguntas a Alejandro, questões que nunca me teriam ocorrido. E isso foi uma ajuda suplementar excepcional.
GAEL GARCIA BERNAL
Os latinos têm em Gael García Bernal um dos seus pontas de lança, um actor cujo valor supera qualquer fronteira nacional e cinematográfica. Honra ganha a pulso após anos de valioso trabalho, que despontou pela mão do realizador com quem volta a colaborar em Babel. Para mim, este filme significou essencialmente um feliz reencontro com muita da gente com quem trabalhei em Amor Cão. Sobretudo Alejandro (González lñárritu), mas também Rodrigo Prieto (director de fotografia), assim como a maioria da equipa técnica.
Gael comenta a sua primeira reacção à leitura do argumento de Babel: Pareceu-me um projecto ambicioso, com muitas histórias e um discurso unificador de enorme fundo político e moral. Mas só capturei a sua dimensão colossal quando o vi terminado. É incrível como Alejandro utilizou o poder metafórico do mito de Babel. Vivemos o paradoxo de um mundo aparentemente global em que cada vez estamos mais afastados. Devemos começar por ouvir-nos uns aos outros ou a torre de Babel que é o mundo pode acabar por ruir.
Sobre a vontade política do filme, Gael pensa que em grande parte ela deve-se à origem mexicana de Alejandro. O México é um país muito politizado. A política é um tema recorrente em toda a convers, seja familiar; íntima ou de rua. Na minha parte do filme esboçam-se problemas como a imigração e o aumento nos controlos de segurança na fronteira com os EUA. A minha opinião pessoal é que o melhor seria que as pessoas que quisessem pudessem ir trabalhar nos EUA de forma legal, mesmo que com uma permissão de trabalho temporário. Assim não haveria tanta gente a arriscar as suas vidas e, ainda por cima, estas pessoas pagariam impostos e seriam até melhor para os governos. Sobre a segurança na fronteira, não acho que construir um muro vá resolver as coisas. Um muro é fácil de derrubar. O prioritário deveria ser atacar as raízes e origens da pobreza.
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Àlex Montoya, Première, Dezembro, 2006
Título Original: Babel
Realização: Alejandro González Iñárritu
Argumento: Guillermo Arriaga
Interpretação: Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael Garcia Bernal, Adriana Banraza
Direcção de Fotografia: Rodrigo Prieto
Montagem: Douglas Crise e Stephen Mirrione
Música: Gustavo Santaolalla
Origem: EUA/México
Ano de Estreia: 2006
Duração: 124’
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ATENÇÃO! TODOS OS OUTROS substitui O MÁGICO. 2ªf, 21h30, IPJ.
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Às vezes, temos que ter um bocadinho de paciência com certas pessoas com que travamos conhecimento, dar-lhes algum tempo para que revelem as suas qualidades, em vez de nos desinteressarmos delas logo à primeira impressão. Isto também sucede com alguns filmes: precisamos de os deixar correr, de lhes dar algum tempo para que nos provem o que valem, em vez de lhes estamparmos um rótulo 15 minutos depois de terem começado.
Todos os Outros, segunda-longa metragem da alemã Maren Ade, é um desses filmes. É fácil, ao primeiro contacto, classificá-lo de Bergman light ou de Cassavetes low fi (dois dos realizadores que Ade conta entre os seus favoritos), mas é também muito injusto. Passado na Sardenha, Todos os Outros tem como protagonistas um jovem casal, Chris (Lars Eidinger), arquitecto em começo de carreira, e Gitti (Birgit Minichmayr), publicista de uma banda rock pouco conhecida, em férias na casa de Verão dos pais dele. A relação entre ambos revela-se menos segura do que aparentava, quando surge um casal com mais sucesso e mais confiante na vida do que eles.
Todos os Outros tem aí uns 15 minutos de palha, mas Marian Ade sabe filmar o funcionamento íntimo, emocional e psicológico de um casal que ainda não acertou as agulhas da sua relação.
Grande Prémio do Júri (ex aequo com Gigante, de Adrián Biniez) e Prémio de Melhor Actriz para Minichmayr no Festival de Berlim de 2009.
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Sérgio Abranches, Timeout
Depois de Christian Petzold ("Yella") e de Maria Speth ("Madonas"), mais uma cineasta da "nova escola de Berlim" chega ao circuito comercial português. "Todos os Outros" é a segunda longa-metragem de Maren Ade, realizadora nascida em 1976 em Karlsruhe, e quem viu os filmes de Petzold ou de Speth (ou de Angela Schanelec ou de Valeska Griesebach, cá mostrados em retrospectivas e festivais), aperceber-se-á de um certo ar de família: a mesma implacabilidade do quotidiano, que se pode ritualizar ou desgovernar mas sem nunca se "transfigurar". Ou o que vale por dizer, no caso de "Todos os Outros", que Maren Ade trabalha sobre uma espécie de banalidade (um casal em férias), por vezes mesmo vulgaridade (a cena do jantar com o outro casal, ainda mais banal e vulgar), que mais do que uma ideia de "realismo" persegue uma impressão de autenticidade (física, psicológica, relacional), exposta com um rigor exaustivo mas discreto - é reparar na profusão de pequenos gestos muito simples (as mãos dos actores, sobretudo), que "enchem" os muitos planos em que aparentemente "não se passa nada" (mas também é isso que faz de "Todos os Outros" um filme que é para "ser visto", não para "ser contado").
Empatia nenhuma, por todas estas razões e mais algumas, e até a luz do Mediterrâneo (é na Sardenha que o casal passa férias) aparece em contratipo, singularmente arrefecida e quase "cruel". O rapaz e a rapariga ainda não se conhecem bem, e por isso também ainda não se entendem bem, há hesitações, mal entendidos, gestos e frases em falso. Maren Ade filma a intimidade e o desconforto, certamente, mas acima disso filma a "imperfeição" - que, com o tempo, é o que traz algum "heroísmo" às personagens, pela tenacidade com que lhe resistem. Não há empatia (não se busca "identificação"), mas há uma proximidade na relação de Ade com as personagens que se vai resolvendo ao longo do filme, como se também ela resistisse tenazmente à imperfeição deles, não desistisse de gostar deles.
E há um "ponto de vista" que adensa um pouco as coisas: é muito mais o olhar da rapariga sobre o rapaz (na noite em que fica sozinha a câmara fica com ela, não vai com o rapaz) do que dele sobre ela, são duas mulheres (Maren Ade e a personagem) a olharem a "masculinidade" (que o rapaz, que pode ser bastante idiota, directamente evoca logo num dos primeiros diálogos). Quando, na cena final e parcialmente inexplicada (referência ao "milagre" do final da "Viagem a Itália"?), o rapaz lhe pede que "olhe para ele", o ponto de vista feminino de "Todos os Outros" emerge com extraordinária delicadeza - porque é ao contrário, é ele que está, pela primeira vez, a olhar realmente para ela. Maren Ade corta logo a seguir, o filme está ganho e, suspeitamos, um casal também.
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Luís Miguel Oliveira, Público
CONTÉM DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
"Todos os Outros" é a segunda longa de Maren Ade, premiada no Festival de Berlim de 2009 com o Grande Prémio do Júri. A realizadora alemã filmou as férias de um jovem casal alemão em Itália. E a forma como todos os outros ausentes são um fantasma presente.
"Todos os Outros" é a segunda longa escrita e realizada por Maren Ade: a história de um jovem casal alemão que passa férias numa casa na Sardenha, mas cuja viagem parece fazer esquecer, aos poucos, aquilo que os juntou à partida. O cenário surge como ideal para Ade trabalhar aquilo que, por vezes, acaba por definir um casal: a montagem das percepções que cada um deles cria sobre si.
"Interessou-me fazer um filme sobre todos os detalhes que formam uma relação", diz a realizadora. "Um filme sobre uma comunicação secreta que é própria de cada casal. Sempre imaginei que se as duas personagens regressassem a casa e alguém lhes perguntasse como tinham sido as férias, não poderiam realmente explicar o que tinha acontecido entre eles."
O casal é Chris, jovem arquitecto em busca de reconhecimento profissional, e Gitti, mulher extrovertida com um charmoso trabalho na indústria da música. A "missão de férias" dos dois - passarem dias sem "todos os outros" - vira-se contra eles. Longe dos outros, descobrem, significará uma outra condição: estarem longe daquilo que eles são. A ausência do seu círculo de vida dá lugar à projecção das suas inseguranças sobre o valor que cada um faz de si e do seu parceiro.
A fuga do casal ao seu mundo proporciona, segundo Maren Ade, um terreno para a exploração daquela que é sua matéria. "Foi importante trabalhar a influência do círculo social no casal", diz. "Queria ter um mundo de fora que entrasse pelo filme adentro, que surgisse como um tubarão na relação deles." Os outros, ausentes destes dias de prazer, acabam por influir no vazio a que o casal se entrega. Uma das projecções da vida do casal materializa-se no encontro imprevisto com um outro casal amigo - uma certa imagem concretizada daquilo que eles poderiam ser, se assim quisessem ou se conformassem. A diferença de sucesso entre os dois pares traduz-se num jogo de poder entre a felicidade agressiva do casal amigo e o desconforto realista do casal protagonista, deparados com o que não conseguem ser. "O outro casal amigo é uma fantasia do primeiro casal, uma coisa horrível que surge naquele momento. Não é um casal que os dois poderiam descrever com admiração, mas mesmo assim tem uma influência forte neles."
A indefinição de um género
A cumplicidade física entre Chris e Gitti é evidente no início do filme: os seus corpos, abertos ao Verão, surgem confortáveis um com o outro. "Não é fácil acreditar que duas pessoas são um casal no cinema", diz a realizadora. "Temos sempre a sensação que se tocam pela primeira vez. Ensaiei muito com os actores a linguagem de um casal, como esses sinais se traduzem fisicamente nas coisas pequenas".
É quando cada um se interroga sobre o papel do outro na relação que o equilíbrio é posto em jogo. "Estava interessada nesse aspecto das relações de hoje em que o homem e a mulher são muito iguais e os seus papéis estão indefinidos." Essa indefinição, um jogo constante de poder entre os dois géneros, irá atravessar o filme, tanto pela disponibilidade de cada um para o outro como pelas suas aparências físicas variáveis e inseguras.
O espaço físico das férias - a casa da mãe de Chris - acaba também por surgir como fantasma na relação, no momento em que o casal se tenta projectar no lugar de pai e de mãe, dois refúgios para a sua insegurança.
"A casa, por ser dos pais, é algo que os torna em crianças. À medida que o filme avança, ficamos com a ideia que tem uma influência neles, como uma terceira pessoa que os observa e influencia as suas decisões." Uma pressão dos outros, de novo, sobre aquele que deve ser o papel do casal, e que transfigura um perante o outro. Algo que Maren Ade associa à maneira como nos relacionamos hoje. "Sei que, por um lado, não queremos ser como todos os outros, mas por outro não estamos livres daquilo que os outros fazem ou pensam. Olhar para outras orientações é um gesto humano, e é algo com que temos de lidar na nossa geração. Hoje somos muito livres, temos todas as possibilidades para descobrir quem queremos ser e com quem queremos estar. Mas essa possibilidade não torna as relações fáceis."
Um género no cinema
Os filmes feitos das imagens de uma relação são já um género cinematográfico. Olhando para "Todos os Outros", retrato de um casal numa terra que não conhece (a Itália), lembramo-nos das férias de um outro casal estrangeiro: Ingrid Bergman e George Sanders em "Viagem em Itália" (1954) - obra-prima de Roberto Rossellini -, olhar duro mas milagroso sobre o que existe entre as imagens de um casal. "Vi alguns filmes com os actores e 'Viagem em Itália' foi um deles". Assume, contudo, outras influências nos créditos iniciais do filme, lembrando aquele que mais se debruçou sobre a matéria de vida que vem da convivência de um casal. "Vi 'Cenas da Vida Conjugal' (1973) do Ingmar Bergman e o que me mais influenciou", especifica, "foi a questão do poder: como o casal mudava e quem seria, em cada momento, o mais forte dos dois." Contudo, as personagens de Maren Ade não optam pela discussão sobre as suas paixões e inseguranças. Em "Todos os Outros", cada um prefere desviar-se desse questionamento e partir para um refúgio: o confronto físico e infantil que os desvia da responsabilização sobre o futuro da sua relação. O choque já não se mostra pelas palavras, mas pela diferença dos bruscos gestos físicos de cada um. Maren Ade sublinha esse ponto de não-retorno das relações: "Chega-se a um momento em que já não é possível falar sobre aquilo que está a acontecer. Por isso, começam a comunicar de forma física." Acabando num gesto terminal que simboliza o fim de uma linha.
O novo cinema alemão
Ao vencer o Grande Prémio do Júri de Berlim de 2009 (ex-aequo com "Gigante" de Adrián Biniez), "Todos os Outros" simbolizou o reconhecimento do novo cinema alemão, a chamada "Nova Escola de Berlim". A expressão serve para descrever a geração de alunos da dffb (a academia de cinema da cidade) que ganhou destaque a partir do novo milénio: Angela Schanelec (alvo de uma retrospectiva organizada pelo crítico André Dias para a Culturgest em 2009); Christian Petzold (cujo "Yella" estreou em Portugal e que esteve no ciclo sobre a Nova Escola de Berlim, em 2008, no São Jorge, também por André Dias) e Thomas Arslan. Outros realizadores foram associados ao grupo, apesar de não terem passado pela escola. Os seus filmes, contudo, são trabalhados em conjunto, numa colaboração que vem da sensibilidade comum e da amizade que os liga para além do cinema.
"É uma parte do cinema alemão de que gosto e que me orgulha", diz Ade. "Sou amiga de vários deles. Discutimos os filmes juntos, convido-os para a montagem e mostro-lhes a primeira versão dos meus filmes. Preciso desse contacto, escrevo sozinha e é óptimo ter essa influência de fora." Uma influência de cineastas que forma a novíssima geração do cinema alemão. "Neste filme", especifica, "trabalhei com Valeska Grisebach ['Mein Stern', 2001; 'Sehsucht', 2006], Ulrich Köhler ['Bungalow', 2002; 'Montag kommen die Fenster', 2006], Henner Winckler ['Klassenfahrt', 2002; 'Lucy', 2006] e Christoph Hochhäusler ['Milchwald', 2003; 'Falscher Bekenner', 2005; 'Unter dir die Stadt', 2010]."
O novo cinema alemão centra-se em personagens que vivem em choque com o percurso dos seus sentimentos, alienados dos motivos de um país que vive, por fim, no seu presente. Como se esse olhar perguntasse: e agora, para onde vamos?
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Jorge Mourinha, Público
Título original: Alle Anderen
Realização: Maren Ade
Argumento: Maren Ade
Direcção de fotografia: Bernhard Keller
Montagem: Heike Parplies
Intérpretes:
Birgit Minichmayr, Lars Eidinger, Hans-Jochen Wagner, Nicole Marischka, Mira Partecke
Origem: Alemanha
Ano: 2009
Duração; 119'
Classificação: M/16
A ALTERAÇÃO DE FILME DEVEU-SE A ERRO DA DISTRIBUIDORA DE O MÁGICO (CASTELLO LOPES), ASSUMIDO PELA PRÓPRIA. NÃO QUISEMOS PRIVAR O NOSSO PÚBLICO DA HABITUAL SESSÃO ÀS 2ªF. ASSIM, OPTÁMOS POR UM TÍTULO QUE ESTEVE NA CALHA PARA ESTE MÊS. E, COMO VERIFICÁVEL NESTE POST, FOI UMA BOA TROCA :-)
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6ªf, IPJ, 22h, entrada livre - CUBO: um filme de culto, um conto filosófico, terror inteligente. Mentes Perigosas, uma co-org AAUalg/CCF.
Bar aberto. Filme apresentado por Alberto Santos (jovem universitário).
Primeira longa-metragem do canadiano Vincenzo Natali, Cubo chega até nós com um atraso de cerca de três anos, que, em termos de vida de um filme nos dias que correm, é muito. Mas o que o espectador pode perder em surpresa ganha em segurança. Isto é, não parte para o filme mais ou menos desprevenido mas com um (possível) saber do estatuto de culto que o filme angariou no decorrer desse tempo. Mesmo assim é uma surpresa, e bem mais estimulante (em termos de cinema e de ficção), de outros «exercícios» de principiante que se tomaram notórios, desde um El Mariachi, de um tal Rodriguez que criou fama com o filme e deitou-se a dormir, a um O Projecto Blair Witch. Como estes, também Cubo foi um filme feito com pouco dinheiro, e as suas filmagens limitaram-se a 20 dias num armazém onde foi construído o «cubo» onde os personagens se encontram.
A diferença entre este filme e outros feitos nas mesmas condições é que Cubo procura ser obra limpa e convincente, sem expor em demasia as suas fragilidades e pobreza. O filme de Natali assume-se, antes de mais, como um clássico Série B dos anos 50, no estilo dos que Jack Arnold fazia para a Universal, só para dar um exemplo de série bem carpinteirada e respeitando as regras da verosimilhança. Aliás, Cubo é um dos raros trabalhos que hoje em dia nos dá uma imagem convincente desse tipo de filmes, pela forma como usa o número reduzido de personagens, num espaço que, apesar de variar, percebemos quase sempre único (passa-se de sala cúbica para sala cúbica, em tudo semelha-te, só mudando a cor a as armadilhas que encerra), e desenvolve a acção explorando as tensões que nascem entre os personagens, conseguindo, inclusive, surpreender com as mudanças de comporta-mento de alguns deles.
Se me referi aos anos 50 e à Série B, é porque o filme de Natali está bem marcado por um imaginário desse tempo e desse género de filmes. O argumento lembra, entre outras histórias, um famoso episódio da série «Twilight Zone», (que não há muitos anos a RTP2 repetiu na íntegra, e cuja influência continua a exercer-se em quem a descobre), aquele em que seis pes¬soas se encontram, sem saberem como, no interior de uma «caixa», passando o resto do episódio a tentar sair dali.
Tal como a série de Rod Serling, que tinha sempre uma espécie de comentário filosófico a encerrar a história, também não é difícil detectar esse comentário no filme de Natali, não de forma objectiva, como na série, mas como conclusão tirada pelo espectador, como fazem outros modernos «contos filosóficos» do cinema americano contemporâneo, como um Forrest Gump ou um Truman Show. Mas isto, por si só, não é particularmente relevante. O que importa neste muito conseguido trabalho de Natali é a forma como ele gere o suspense, as tensões entre os personagens e as surpresas dos momentos de choque, sem nunca cair no mau gosto ou no excesso «gore», recurso usado por tantos outros que falham no que é mais importante, a imaginação. E este é o trunfo de Cubo, um filme que consegue transmitir-nos a sensação de claustrofobia que domina aqueles estranhos seres.
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Manuel Cintra Ferreira, Expresso, 21/10/00
... eis um filme tipo "Corre, Lola, corre", de Tom Tkywer, isto é, filme que se encanta com a arte que o argumento para cinema pode ser, e ter. O ponto de partida situa-se entre o fantástico e a ficção kafkiana, o ponto de chegada constitui uma experiência rara e inolvidável.
«Cube» foi o vencedor do Grande Prémio da edição de 1999 do Fantasporto, Secção Oficial Competitiva, a qual (ainda) se reserva ao cinema fantástico. Abre com uma das mais interessantes sequências que o género proporcionou nos últimos tempos. Toma o seu tempo, cria atmosfera, introduz o cenário e maravilha o espectador. O conteúdo da sequência introdutória - sem grande relevo para a narrativa que se segue pós-créditos iniciais - será aquilo pelo que este filme mais será recordado (o que sucede especificamente fica guardado para quem tiver oportunidade de o ver - e não admirará se, tal como «Retroactive», o vencedor do ano passado, «Cube» não venha a ser comprado para edição vídeo, e aqui o dano será menor, já que não se utiliza écran largo -, mas previne-se que é "natural" que a maioria dos textos referentes a esta obra façam questão de descrever a cena em pormenor).
O melhor de «Cube» é o seu conceito e o aproveitamento que se faz do cenário. Afinal não é preciso muito mais do que uma única sala em forma de cubo, iluminada com diferentes cores, para dar a impressão de que se passa por dezenas de salas diferentes. Pelo início somos impelidos a ter algum interesse pelas causas, mas cedo compreendemos que tal é secundário, e que são os efeitos apenas o que interessa, se bem que seja relativamente óbvio que se trata de alguma espécie de experiência, e que os personagens serão cobaias humanas. Mas, se eles perderam as memórias mais recentes (em particular em relação ao modo como foram ali parar), também podemos colocar uma série de outras hipóteses, incluindo até tratarem-se de verdadeiros condenados, a cumprir uma pena legítima, sob a autoridade de determinado Estado, num futuro próximo (não há referências a nacionalidades no filme, como parece ser apanágio em produções Canadianas Anglófonas, para assim melhor se penetrar no mercado dos EUA). Mas isto são meras especulações para confundir o leitor, que, se chegar ao fim do filme, concluirá que é um "debate" irrelevante, apesar de se admitir que a busca pelas hipóteses mais remotas e disparatadas poderá ser divertida q.b., mesmo que não constitua o momento alto de uma qualquer reunião social.
Uma das conclusões que se pode tirar do filme de Natali, cujos créditos prévios incluem episódios da série Psi Factor (exibida pela TVI entre nós) e uma curta que estaria na génese desta sua primeira longa metragem - «Elevated» (1997), em que três pessoas estão presas num elevador avariado -, é que funcionaria melhor num formato mais curto. Daí a curiosidade em ver «Elevated». É que o ponto de partida de «Cube» é muito sedutor e o design de produção minimalista extremamente adequado (tem de se admitir ser complicado suster a atenção do público durante hora e meia, sobre o que é, afinal, sempre o mesmo cenário), mas parece que já espremeu todo o sumo quando se chega ao meio do filme.
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cinedie.com
Título original: Cubo
Realização: Vincenzo Natali
Argumento: André Bijelic, Vincenzo Natali, Graeme Manson
Música: Mark Korven
Fotografia: Derek Rogers
Montagem: John Sanders
Interpretação: Nicole de Boer, Nicky Guadagni, David Hewlett, Andrew Miller,
Primeira longa-metragem do canadiano Vincenzo Natali, Cubo chega até nós com um atraso de cerca de três anos, que, em termos de vida de um filme nos dias que correm, é muito. Mas o que o espectador pode perder em surpresa ganha em segurança. Isto é, não parte para o filme mais ou menos desprevenido mas com um (possível) saber do estatuto de culto que o filme angariou no decorrer desse tempo. Mesmo assim é uma surpresa, e bem mais estimulante (em termos de cinema e de ficção), de outros «exercícios» de principiante que se tomaram notórios, desde um El Mariachi, de um tal Rodriguez que criou fama com o filme e deitou-se a dormir, a um O Projecto Blair Witch. Como estes, também Cubo foi um filme feito com pouco dinheiro, e as suas filmagens limitaram-se a 20 dias num armazém onde foi construído o «cubo» onde os personagens se encontram.
A diferença entre este filme e outros feitos nas mesmas condições é que Cubo procura ser obra limpa e convincente, sem expor em demasia as suas fragilidades e pobreza. O filme de Natali assume-se, antes de mais, como um clássico Série B dos anos 50, no estilo dos que Jack Arnold fazia para a Universal, só para dar um exemplo de série bem carpinteirada e respeitando as regras da verosimilhança. Aliás, Cubo é um dos raros trabalhos que hoje em dia nos dá uma imagem convincente desse tipo de filmes, pela forma como usa o número reduzido de personagens, num espaço que, apesar de variar, percebemos quase sempre único (passa-se de sala cúbica para sala cúbica, em tudo semelha-te, só mudando a cor a as armadilhas que encerra), e desenvolve a acção explorando as tensões que nascem entre os personagens, conseguindo, inclusive, surpreender com as mudanças de comporta-mento de alguns deles.
Se me referi aos anos 50 e à Série B, é porque o filme de Natali está bem marcado por um imaginário desse tempo e desse género de filmes. O argumento lembra, entre outras histórias, um famoso episódio da série «Twilight Zone», (que não há muitos anos a RTP2 repetiu na íntegra, e cuja influência continua a exercer-se em quem a descobre), aquele em que seis pes¬soas se encontram, sem saberem como, no interior de uma «caixa», passando o resto do episódio a tentar sair dali.
Tal como a série de Rod Serling, que tinha sempre uma espécie de comentário filosófico a encerrar a história, também não é difícil detectar esse comentário no filme de Natali, não de forma objectiva, como na série, mas como conclusão tirada pelo espectador, como fazem outros modernos «contos filosóficos» do cinema americano contemporâneo, como um Forrest Gump ou um Truman Show. Mas isto, por si só, não é particularmente relevante. O que importa neste muito conseguido trabalho de Natali é a forma como ele gere o suspense, as tensões entre os personagens e as surpresas dos momentos de choque, sem nunca cair no mau gosto ou no excesso «gore», recurso usado por tantos outros que falham no que é mais importante, a imaginação. E este é o trunfo de Cubo, um filme que consegue transmitir-nos a sensação de claustrofobia que domina aqueles estranhos seres.
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Manuel Cintra Ferreira, Expresso, 21/10/00
... eis um filme tipo "Corre, Lola, corre", de Tom Tkywer, isto é, filme que se encanta com a arte que o argumento para cinema pode ser, e ter. O ponto de partida situa-se entre o fantástico e a ficção kafkiana, o ponto de chegada constitui uma experiência rara e inolvidável.
«Cube» foi o vencedor do Grande Prémio da edição de 1999 do Fantasporto, Secção Oficial Competitiva, a qual (ainda) se reserva ao cinema fantástico. Abre com uma das mais interessantes sequências que o género proporcionou nos últimos tempos. Toma o seu tempo, cria atmosfera, introduz o cenário e maravilha o espectador. O conteúdo da sequência introdutória - sem grande relevo para a narrativa que se segue pós-créditos iniciais - será aquilo pelo que este filme mais será recordado (o que sucede especificamente fica guardado para quem tiver oportunidade de o ver - e não admirará se, tal como «Retroactive», o vencedor do ano passado, «Cube» não venha a ser comprado para edição vídeo, e aqui o dano será menor, já que não se utiliza écran largo -, mas previne-se que é "natural" que a maioria dos textos referentes a esta obra façam questão de descrever a cena em pormenor).
O melhor de «Cube» é o seu conceito e o aproveitamento que se faz do cenário. Afinal não é preciso muito mais do que uma única sala em forma de cubo, iluminada com diferentes cores, para dar a impressão de que se passa por dezenas de salas diferentes. Pelo início somos impelidos a ter algum interesse pelas causas, mas cedo compreendemos que tal é secundário, e que são os efeitos apenas o que interessa, se bem que seja relativamente óbvio que se trata de alguma espécie de experiência, e que os personagens serão cobaias humanas. Mas, se eles perderam as memórias mais recentes (em particular em relação ao modo como foram ali parar), também podemos colocar uma série de outras hipóteses, incluindo até tratarem-se de verdadeiros condenados, a cumprir uma pena legítima, sob a autoridade de determinado Estado, num futuro próximo (não há referências a nacionalidades no filme, como parece ser apanágio em produções Canadianas Anglófonas, para assim melhor se penetrar no mercado dos EUA). Mas isto são meras especulações para confundir o leitor, que, se chegar ao fim do filme, concluirá que é um "debate" irrelevante, apesar de se admitir que a busca pelas hipóteses mais remotas e disparatadas poderá ser divertida q.b., mesmo que não constitua o momento alto de uma qualquer reunião social.
Uma das conclusões que se pode tirar do filme de Natali, cujos créditos prévios incluem episódios da série Psi Factor (exibida pela TVI entre nós) e uma curta que estaria na génese desta sua primeira longa metragem - «Elevated» (1997), em que três pessoas estão presas num elevador avariado -, é que funcionaria melhor num formato mais curto. Daí a curiosidade em ver «Elevated». É que o ponto de partida de «Cube» é muito sedutor e o design de produção minimalista extremamente adequado (tem de se admitir ser complicado suster a atenção do público durante hora e meia, sobre o que é, afinal, sempre o mesmo cenário), mas parece que já espremeu todo o sumo quando se chega ao meio do filme.
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cinedie.com
Título original: Cubo
Realização: Vincenzo Natali
Argumento: André Bijelic, Vincenzo Natali, Graeme Manson
Música: Mark Korven
Fotografia: Derek Rogers
Montagem: John Sanders
Interpretação: Nicole de Boer, Nicky Guadagni, David Hewlett, Andrew Miller,
Julian Richings, Wayne Robson, Maurice Dean Wint
Origem: Canadá
Ano: 1997
Duração: 90’
Origem: Canadá
Ano: 1997
Duração: 90’
4ªf, SEDE, entrada livre, 21h30. 21 GRAMAS. Beautiful Iñárritu?
Acompanhado de chá, café e bolinhos! :-)
SITE
O maior prodígio do filme é precisamente esse: apesar da montagem dar mais pulos do que um gafanhoto, no final o espectador tem diante de si uma história com sentido e bem engendrada. Um dos filmes mais intelectualmente estimulantes dos últimos tempos. E dizer isto já não é dizer pouco.
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João Miguel Tavares, Première
Ganharia o filme com uma montagem mais convencional, menos parkinsoniana? Quem sabe? Seria obra diferente, sem dúvida (...) O bom deste objecto particular é que não vende os actores à ânsia formalista. Dá-lhes personagens, oxigénio, vísceras e palco tridimensional para actuar.
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António Rodrigues, Diário de Notícias
Depois do interessante episódio do filme "potpourri" sobre o 11 de Setembro e de um sobrevalorizado "Amores Perros", chegam-nos novas e desconcertantes notícias de Alejandro Iñárruti, o bem mais interessante "21 Gramas". Existe um incontestável talento narrativo, para fazer do mosaico dispersivo unidades com sentido, ressalta a capacidade de direcção de actores e o gosto pela estranheza visual, sempre colocada no ponto certo. Fica sempre, no entanto, um estranho sabor a vazio, a encenação sobre o nada, a manipulação dos sentimentos sem um grama de sentimento.
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Mário Jorge Torres, Ípsilon
Um drama sobre pessoas comuns, com problemas comuns, mas de soluções impossíveis.
Já ouvi algumas reclamações sobre 21 Gramas ser um filme clichê. Ouvi também várias pessoas comentando que iriam assisti-lo porque adoram filmes de suspense, sobre almas e tal, e outras que iriam achando que ele tivesse alguma relação com drogas. Não, o filme não é sobre isso. Passa bem longe, por sinal. Ele tem uma referência ao peso da alma sim, onde muitos estudos já ligam essas 21 gramas ao peso perdido por um corpo quando ele falece. Mas essa característica é usada apenas para poetizar o final do filme, não tem nada a ver com sua temática, narrativa ou desenvolvimento. Também não é sobre drogas: apenas um dos três personagens principais tem algo a ver com elas, mas o nome também não se refere a isso.
O primeiro filme americano do mexicano Alejandro González, o mesmo por trás do ótimo Amores Brutos, é muito mais do que uma simples história que se choca em um ponto com algumas situações clichês. Outras até gratuitas. É um filme extremamente sensível, com personagens sofridos, de difícil identificação e, se você olhar de uma maneira bem simples de se dizer, normais. Ele conta a história de Paul Rivers (Sean Penn), um matemático que tem um problema cardíaco e está a espera de um coração. Christina Peck (Naomi Watts), sofre com a perda de familiares e é uma ex-viciada em drogas. Jack Jordan (Benicio Del Toro) é um ex-presidiário que busca seu caminho pela religião agora, mas vive com a sombra do seu passado. Todos esses personagens tem seus destinos cruzados na construção deste cativante drama.
É difícil falar mais sobre a história sem soltar detalhes ou contar pontos de impacto, mas ela não é somente isso. A montagem é feita de um modo bastante curioso, sem uma linha cronológica definida. Às vezes temos uma situação do futuro, depois do passado, depois do presente, tudo colocado de maneira aparentemente solta, mas que age diretamente no nosso sentimento de se preocupar com o personagem ou não. O legal é que não há uma indicação de quando é passado ou futuro, ou seja, vamos nos acostumando com esse estilo com o passar do filme, e às vezes sabemos o destino de um personagem, ou os motivos que o levaram a agir de uma certa maneira no passado, mas que pela montagem, só aparece depois no filme. É como se um personagem estivesse atrás de outro para se vingar, mas só descobríssemos o porquê depois (não, isso não é do filme, é apenas um exemplo de como a montagem age no nosso modo de sentir o filme). Só que esse estilo acaba por acarretar alguns problemas, como por exemplo algumas informações que são liberadas cedo demais, fazendo com que algumas cenas subseqüentes se tornem desnecessárias ou desinteressantes.
O ponto forte, sem dúvida, são as interpretações do trio principal. Depois de brilhar em Sobre Meninos e Lobos, Sean Penn encara um outro personagem difícil, que dentro da história nem tem muito o porquê sofrer. Ao contrário dos personagens de Benicio e Naomi, ele parece ser o único a procurar uma dor ao invés de ficar feliz com o que aconteceu. Só que o modo como isso acontece nunca soa artificial, porque Penn torna o personagem humano demais para isso. Naomi Watts finalmente tem um papel que pesa bem mais do que suas oportunidades anteriores, em O Chamado e no trabalho em que David Lynch a descobriu, Cidade dos Sonhos. A dor de sua personagem sem dúvida é a mais forte dos três, e a loiraça (que tem até cenas de nudez) não decepciona fazendo um trabalho excepcional. Benicio Del Toro está inacreditável e capta toda a ambigüidade do personagem, a ação que cometeu e a culpa que o acompanha. O engraçado é que li algumas reclamações a respeito de algumas ações dos personagens, que pareciam "inexplicáveis" dentro do filme. Mas para essas pessoas eu pergunto: numa situação idêntica ao que os personagens viveram, será que é justo com eles mesmo procurar uma certa razão? Não creio. Claramente o filme aborda também ações de espontaneidade, desespero, todos em busca da felicidade de cada um.
Aliás, o filme é muito sobre isso. Vencer o passado, continuar a viver, encontrarmos uma razão para ser feliz. Se pensarmos por esse lado, realmente existem vários filmes sobre o assunto. Mas o modo como 21 Gramas é contado o torna especial, com a sensibilidade que Alejandro já demonstrou em seus trabalhos anteriores, mesmo que pareça um pouco melodramático demais para alguns. Se adicionarmos as interpretações já comentadas, temos uma pequena grande obra, em um filme realmente envolvente, que nos faz entrar nele. E só isso já vale muito a pena.
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Rodrigo Cunha, cineplayers
Título Original: 21 Grams
Realização: Alejandro González Iñárritu
Argumento: Guillermo Arriaga
Interpretação: Sean Penn, Benicio Del Toro, Naomi Watts, Charlotte Gainsbourg, Melissa Leo, Clea DuVall
Direcção de Fotografia: Rodrigo Prieto
Montagem: Stephen Mirrione
Música: Gustavo Santaolalla
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2003
Duração: 124’
2ªf, IPJ, 21h30: 57 sketches de 1'30'' formam uma tragicomédia sobre a humanidade. TU QUE VIVES, de Roy Andersson
"Tu Que Vives". Tinha tudo para dar errado. Mas deu certo
É improvável que um austríaco aspirante a pintor se torne líder de multidões e leve à execução de milhões de judeus. Tal como é improvável que um estudante de 19 anos crie no dormitório da faculdade uma rede social que vai fazer dele multimilionário quando chegar aos 23. Mas tudo isto aconteceu. A teoria do Cisne Negro, publicada em 2007 pelo filósofo e matemático libanês radicado nos EUA Nassim Nicholas Taleb, trata esses acontecimentos improváveis, difíceis de prever e com grande impacto.
Amanhã estreia em Portugal um fenómeno cisne negro, o filme "Tu Que Vives", de Roy Andersson. A rodagem foi interrompida uma série de vezes, envolveu polémicas com financiadores, é realizado por um quase desconhecido que em 40 anos dirigiu quatro longas-metragens e que só para concluir esta levou sete anos. Mais: "Tu que vives" é um filme sueco.
Mas assim que conseguiu sair da casca, começou a ganhar prémios internacionais, num total de oito, incluindo os galardões para melhor realizador nos Festivais de Chicago e Fantasporto. O crítico do jornal britânico "The Guardian" apelidou Andersson de "génio". E o filme reúne consenso absoluto no agregador de críticas rottentomatoes.com: é 100% fresco. A título de comparação, "Avatar", o maior fenómeno cinematográfico de 2010, tem apenas 83% de críticas positivas.
Mas o que é afinal "Tu Que vives"? O comunicado de imprensa descreve-o como uma obra sobre "o ser humano", um "ser que nos dá vontade de rir e chorar". Por outras palavras: "Tu que vives" é uma tragicomédia sobre a humanidade, dividida em 50 sketches com cerca de um minuto e meio cada. Não existe trama central. Todas as personagens lidam com questões que expõem os seus medos, tristezas e alegrias, num mosaico a tender para o apocalíptico.
As situações narradas são tão invulgares como estas: um carpinteiro sonha estar a ser condenado e executado por partir um jarrão chinês com 200 anos quando tentava fazer o truque de puxar a toalha de mesa; antes de uma reunião importante, um consultor sofre o que será o inverso de um "mohawk", perpetrado por um barbeiro zangado; uma mulher obesa lamenta a sua vida apenas para mais tarde rejeitar o afecto de um homem que quer oferecer-lhe flores.
O filme foi quase todo rodado no estúdio privado de Andersson, de 67 anos, uma figura controversa na Suécia. Ele é o homem que diz que Ingmar Bergman - o maior ícone do cinema sueco - não era assim tão bom. Também não hesita em acusar um dos responsáveis do instituto nacional de cinema de nepotismo. E afirma que prefere trabalhar com actores amadores porque os profissionais têm rostos demasiado batidos.
Mas Andersson também é um perfeccionista, muito mais influenciado pela pintura do que pelo próprio cinema. Quarenta e nove dos 50 cenários do filme foram criados pela sua equipa a partir dos esboços que fez. Queria uma estética minimalista, inspirada no expressionismo alemão. Para financiar o filme, preferiu realizar anúncios publicitários e recorrer a uma loja de penhores a ter de prescindir da liberdade criativa.
O realizador sueco já está a trabalhar num sucessor para "Tu que vives", que por sua vez é uma continuação de "Songs from the Second Floor". Juntos, serão uma espécie de trilogia sobre a existência humana. Data de conclusão: 2013, diz ele.
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Joana Stichini Vilela, Jornal I
Como um filme sobre gente tão depressiva nos consegue fazer rir e deixar bem dispostos é uma questão que apenas “Du Levande” responde.
Realizado por Roy Anderson, esta ode à vida – aos pequenos e grandes problemas – é um prodígio e um regalo para os nossos sentidos, apresentando umas série de personagens desconexos a viverem como podem. Tudo é apresentando em forma de vinhetas (57), em profundos quadros sem movimentos da câmara, num estilo quase de sketch anedótico, mas repleto de vida, e de pequenas trivialidades profundamente estilizadas que no fundo não são assim tão surreais como aparentam. Aliás, Andersson é o rei de encontrar um significado no nada, e faz-nos rir com as desgraças dos outros, que muitas vezes também são nossas, senão constantemente.
E é surpreendente como o filme nos cativa, e interage mesmo connosco, entre o drama, a comédia e o musical (brilhantemente introduzido), num ritmo lento mas hilariante. Para ajudar, há que falar na estética dos cenários, super apurada, e que dão a sensação constante de tudo fazer parte de um sonho. Aliás, Anderson é um profundo conhecedor de arquitectura e design, tendo sido cada cenário estudado de maneira a agir quase como uma personagem.
Quando o filme realmente apresenta um tom mais onírico, ainda acaba por ser mais visualmente poderoso. Tal como Buñuel o faz em “O Discreto charme da burguesia”, quando alguém fala de um sonho, esse é imediatamente apresentado. Realce para o homem que sonha com o puxar a toalha numa mesa repleta de loiças antigas. O castigo? A cadeira eléctrica, porque a prisão perpétua não é suficiente. E enquanto os juízes bebem canecas de cerveja e o advogado chora, o réu afirma: É assim a vida.
Numa outra situação uma jovem conta do seu casamento imaginário com um músico. É hilariante toda a sequência. Depois há a professora a quem o marido chamou simplória, o homem que durante o sexo fala do seu drama com o fundo de pensões, e muitas outras histórias de uma verdadeira tragicomédia exuberante.
Não tenham dúvidas. Apesar de ser de 2007, “É assim a vida” é o primeiro grande filme a estrear nas nossas salas em 2011.
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Jorge Pereira, c7nema.net
INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Em 40 anos de carreira, o sueco Roy Andersson apenas dirigiu quatro filmes. "Tu Que Vives" revela ao público português um cineasta inclassificável que leva o tempo que for preciso para filmar porque "a arte precisa de tempo".
"É tudo o que vemos ou que parecemos um mero sonho dentro de um sonho?"
"É tudo o que vemos ou que parecemos um mero sonho dentro de um sonho?"
A citação de Edgar Allen Poe faz sentido a propósito de "Tu Que Vives", muito embora Roy Andersson lhe prefira Goethe em epígrafe do seu filme. Mas, entre o romantismo mórbido de um e do outro, vai só um passo que só não dá porque provavelmente não lhe passou pela cabeça.
É que o sonho é uma das chaves de "Tu que Vives": porque "os sonhos e as memórias ajudam-nos a 'limpar' a cabeça, a tornar as coisas mais nítidas", diz-nos Roy Andersson ao telefone do seu escritório em Estocolmo. "Estou muito contente com 'Tu que Vives', porque pela primeira vez no meu cinema ousei criar sonhos. E o que quero é criar filmes tão simples como os sonhos ou as memórias."
Só que esses filmes "simples" levam tempo a fazer. Muito tempo.
Andersson, 68 anos, apenas assinou quatro filmes em... 40 anos de carreira, o que o torna um dos grandes concorrentes de outros eremitas reclusos como Terrence Malick. A sua primeira longa, "A Swedish Love Story", feita num registo "mais naturalista, numa altura em que era grande fã do neo-realismo italiano", foi um êxito em 1970 - "mas ao fim de algum tempo compreendi que o realismo já não era suficiente. Foi quando mudei para um estilo mais abstracto", que se constrói por "quadros", episódios do quotidiano rodados em estúdio com actores maioritariamente não profissionais (alguns deles descobertos pelo cineasta na loja da IKEA que costuma frequentar).
Esse "estilo mais abstracto" foi inaugurado com "Giliap" (1975), filme "maldito" que lhe fechou as portas do cinema durante 25 anos, forçando-o a virar-se para a publicidade para sobreviver, e atingiu a sua cristalização em "Tu que Vives", que agora chega às nossas salas. Datado de 2007 (e apresentado nesse mesmo ano na secção Un Certain Regard de Cannes, antes de vencer Melhor Realização no Fantasporto 2008), levou três anos a completar, dista sete anos do anterior "Songs from the Second Floor" e não tem ainda sucessor à vista. Tanto tempo porquê?
No seu inglês escolar mas inteligível, Andersson explica: "Sou perfeccionista, sou muito preciso, preocupo-me com cada pormenor mais ínfimo. Costumo dizer que quero criar filmes num estilo simplificado, condensado, pegar nas situações mais difíceis e complicadas e torná-las de compreensão muito fácil. É muito difícil ser fácil, é necessário ser exacto, preciso. E isso implica ter de rodar em estúdio, construir os cenários de raiz... Se tivesse uma equipa maior, mais dinheiro para filmar, podia seguramente trabalhar mais depressa. Mas não creio que fosse mais rápido. Fazer filmes como eu faço não é possível com menos tempo."
E não é possível porque Andersson diz levar entre "duas a três semanas e três meses" para filmar cada um dos seus episódios, alguns inspirados pela sua infância ou pela sua vida, outros sugeridos por romances, filmes, obras de arte. Exemplo: num dos quadros de "Tu que Vives", um quarto parece mover-se como uma carruagem de comboio pelos subúrbios de uma grande cidade. Não é ilusão de óptica nem efeito especial: a equipa cenográfica construiu um cenário que se move realmente no espaço que exigiu longas semanas de trabalho...
Como Andersson explica, invocando influências vindas mais da pintura clássica do que do cinema, ele não está tanto a querer fazer cinema como "quadros em movimento. O cinema é uma expressão essencialmente visual - o cinema actual conta histórias, preocupa-se em construir um bom diálogo, mas esquece-se das qualidades visuais. Podemos ficar sentados a olhar para um quadro durante muito tempo, mas é muito raro fazermos isso perante um filme. E é por isso que me quero concentrar nas qualidades visuais que o cinema permite."
Os episódios que Andersson filma com tanto rigor e perfeccionismo são histórias de quotidianos banais, "fait-divers" entre a comédia e a tragédia onde uma palavra mal usada pode dar azo a uma tragédia muito pouco ridícula. "O absurdo e o trivial andam de braço dado, as pessoas mais banais do mundo têm sonhos absurdos... O humor e o absurdo ajudam ao reconhecimento de que todos nós já passámos por situações destas. As minhas personagens são vulneráveis, tal como todos nós." E são personagens sempre a bater na parede, incapazes de ultrapassarem as suas dificuldades. "Essa é a tragédia escondida da condição humana: todos temos os nossos sonhos e ambições, queremos ter controle sobre a nossa vida e o nosso futuro. Mas falhamos sempre, ou pelo menos na maior parte das vezes. Penso que toda a gente se consegue identificar com isso."
Será isso que explica a devoção que o seu cinema austero recebe de um círculo de ferrenhos, sem ter conseguido saltar para o êxito "mainstream"? O realizador também não tem uma explicação: "As pessoas nunca viram filmes como os meus, ficam algo perplexas... Por vezes, leva tempo a encontrar-se o caminho até um filme."
Pelo menos tanto tempo quanto o que Roy Andersson leva a filmar? "Há um pintor russo, um dos grandes realistas da sua época, chamado Ilya Repin [1844-1930], que fez um quadro sobre uma carta que os cossacos enviaram a um sultão turco. Levou onze anos a pintar esse quadro. Depois de saber disso, deixei de ter problemas por levar três anos a fazer um filme. A arte precisa de tempo."
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Jorge Mourinha, Público
Título Original: Du Levande
Realização: Roy Andersson
Argumento: Roy Andersson
Direcção de Fotografia: Gustav Danielsson
Montagem: Anna Märta Waern
Música: Benny Andersson
Interpretação: Elisabet Helander, Jugge Nohall, Jan Wikblad, Björn Englund,
Birgitta Persson, Lennart Eriksson, Jessika Lundberg, Eric Bäckman
Origem: Suécia/ Alemanha/ França/ Dinamarca/ Noruega/ Japão
Ano de Estreia: 2007
Duração: 95’
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AAUalg-CCF: Mentes Perigosas. IPJ, 6ªf 11, 21h30, entrada livre. Com um belo começo!
REQUIEM FOR A DREAM, Darren Aronofski, EUA, 2000, 102'
Bar aberto. Todos os filmes antecedidos por apresentação e seguidos de debate.
"Requiem for a Dream" foi um dos grandes filmes de 2001 esquecidos pelo grande ecrã português. Custa a crer que este filme tenha sido ignorado em Portugal, tendo passado directamente para o circuito de vídeo. Marcou inclusivamente presença nos Óscares de 2001, com a nomeação de Ellen Burstyn (pela sexta vez) na categoria de melhor actriz principal, pela sua interpretação do papel de Sara Goldfarb. Sara é uma mulher viúva, solitária, cuja relação mais próxima é com a sua televisão e com os mais bizarros programas televisivos. Mas Sara é apenas uma das viciadas. Todos as personagens que interessam em "Requiem for a Dream" são viciados em qualquer coisa - chocolate, televisão, comprimidos de dieta, heroína - e consumidos pelo vício. O realizador Darren Aronofsky parece ser viciado em imagens. São imagens fortes, de obsessão auto-destrutiva, com personagens como Sara, o filho Harry (Jared Leto), a sua namorada Marion Silver (Jennifer Connely) e o "dealer" do filho Tyrone C. Love (Marlon Wayans) a iludirem-se constantemente e a degradarem-se. Um filme com uma visão desesperante, a não perder.
Público
"A Vida Não É Um Sonho” é uma história moderna, vivida nas ruas de Brooklyn, onde se cruzam vivências paralelas de quatro pessoas que decidem procurar uma vida melhor. Por um lado existe Sara (Ellen Burstyn), uma solitária que redescobre o prazer da vida com a possibilidade de aparecer na televisão. Por outro, temos o seu filho Harry (Jared Leto), a sua namorada Marion (Jennifer Conelly) e o seu melhor amigo Tyrone (Marlon Wayans) que querem montar um negócio para viciados de venda de drogas leves porta a porta. Mas rapidamente todos descobrem que será difícil atingir as suas aspirações... recusando-se, no entanto, a desistir mesmo quando o destino lhes prega partidas ainda mais sérias.
Bem, o que dizer? “Requiem for a Dream” deve ser dos filmes mais pertubadores sobre o mundo dos “junkies”, ou seja, dos viciados (seja em heroína ou pura e simplesmente em comprimidos medicinais) já feitos. Darren Aronofsky realiza, assim, uma obra completamente soberba e dependente do seu grafismo e banda sonora. Cada imagem e cada som é exemplarmente bem tratado e transformado num momento de beleza indiscutível. Em termos técnicos, nada falha a este filme.
Sem moralismos, “Requiem for a Dream” pura e simplesmente mostra o percurso triste, mas real, de várias personagens ligadas, de um modo ou de outro, a um vicío, de uma forma muitas vezes chocante e até mesmo sádica, que nos provoca um nó na garganta. Cada personagem acarreta uma mensagem consigo, mensagem essa que variará consoante os nossos sentidos e vivências. “A Vida Não É Um Sonho” deixa, de uma forma despreocupada, o espectador navegar e simplesmente tomar conhecimento de factos reais, em que à medida que o vício vai ganhando força, o descalabro emocional e fisíco aumenta em cada uma das personagens.
Mas, como disse anteriormente, o maior trunfo deste filme é a sua realização e montagem. Aronofsky permite ao espectador ficar desconfortável com as sensações, sentimentos e angústias vividas por cada uma das personagens. É esse o seu maior trunfo, levar-nos ao limite.
Um filme extremamente sensorial, obrigatório para qualquer amante da vida humana. Porque a excelência não é um acto mas sim um hábito.
Miguel Reis
Bar aberto. Todos os filmes antecedidos por apresentação e seguidos de debate.
"Requiem for a Dream" foi um dos grandes filmes de 2001 esquecidos pelo grande ecrã português. Custa a crer que este filme tenha sido ignorado em Portugal, tendo passado directamente para o circuito de vídeo. Marcou inclusivamente presença nos Óscares de 2001, com a nomeação de Ellen Burstyn (pela sexta vez) na categoria de melhor actriz principal, pela sua interpretação do papel de Sara Goldfarb. Sara é uma mulher viúva, solitária, cuja relação mais próxima é com a sua televisão e com os mais bizarros programas televisivos. Mas Sara é apenas uma das viciadas. Todos as personagens que interessam em "Requiem for a Dream" são viciados em qualquer coisa - chocolate, televisão, comprimidos de dieta, heroína - e consumidos pelo vício. O realizador Darren Aronofsky parece ser viciado em imagens. São imagens fortes, de obsessão auto-destrutiva, com personagens como Sara, o filho Harry (Jared Leto), a sua namorada Marion Silver (Jennifer Connely) e o "dealer" do filho Tyrone C. Love (Marlon Wayans) a iludirem-se constantemente e a degradarem-se. Um filme com uma visão desesperante, a não perder.
Público
"A Vida Não É Um Sonho” é uma história moderna, vivida nas ruas de Brooklyn, onde se cruzam vivências paralelas de quatro pessoas que decidem procurar uma vida melhor. Por um lado existe Sara (Ellen Burstyn), uma solitária que redescobre o prazer da vida com a possibilidade de aparecer na televisão. Por outro, temos o seu filho Harry (Jared Leto), a sua namorada Marion (Jennifer Conelly) e o seu melhor amigo Tyrone (Marlon Wayans) que querem montar um negócio para viciados de venda de drogas leves porta a porta. Mas rapidamente todos descobrem que será difícil atingir as suas aspirações... recusando-se, no entanto, a desistir mesmo quando o destino lhes prega partidas ainda mais sérias.
Bem, o que dizer? “Requiem for a Dream” deve ser dos filmes mais pertubadores sobre o mundo dos “junkies”, ou seja, dos viciados (seja em heroína ou pura e simplesmente em comprimidos medicinais) já feitos. Darren Aronofsky realiza, assim, uma obra completamente soberba e dependente do seu grafismo e banda sonora. Cada imagem e cada som é exemplarmente bem tratado e transformado num momento de beleza indiscutível. Em termos técnicos, nada falha a este filme.
Sem moralismos, “Requiem for a Dream” pura e simplesmente mostra o percurso triste, mas real, de várias personagens ligadas, de um modo ou de outro, a um vicío, de uma forma muitas vezes chocante e até mesmo sádica, que nos provoca um nó na garganta. Cada personagem acarreta uma mensagem consigo, mensagem essa que variará consoante os nossos sentidos e vivências. “A Vida Não É Um Sonho” deixa, de uma forma despreocupada, o espectador navegar e simplesmente tomar conhecimento de factos reais, em que à medida que o vício vai ganhando força, o descalabro emocional e fisíco aumenta em cada uma das personagens.
Mas, como disse anteriormente, o maior trunfo deste filme é a sua realização e montagem. Aronofsky permite ao espectador ficar desconfortável com as sensações, sentimentos e angústias vividas por cada uma das personagens. É esse o seu maior trunfo, levar-nos ao limite.
Um filme extremamente sensorial, obrigatório para qualquer amante da vida humana. Porque a excelência não é um acto mas sim um hábito.
Miguel Reis
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