2ªf, IPJ, 21h30: 57 sketches de 1'30'' formam uma tragicomédia sobre a humanidade. TU QUE VIVES, de Roy Andersson




"Tu Que Vives". Tinha tudo para dar errado. Mas deu certo

É improvável que um austríaco aspirante a pintor se torne líder de multidões e leve à execução de milhões de judeus. Tal como é improvável que um estudante de 19 anos crie no dormitório da faculdade uma rede social que vai fazer dele multimilionário quando chegar aos 23. Mas tudo isto aconteceu. A teoria do Cisne Negro, publicada em 2007 pelo filósofo e matemático libanês radicado nos EUA Nassim Nicholas Taleb, trata esses acontecimentos improváveis, difíceis de prever e com grande impacto.

Amanhã estreia em Portugal um fenómeno cisne negro, o filme "Tu Que Vives", de Roy Andersson. A rodagem foi interrompida uma série de vezes, envolveu polémicas com financiadores, é realizado por um quase desconhecido que em 40 anos dirigiu quatro longas-metragens e que só para concluir esta levou sete anos. Mais: "Tu que vives" é um filme sueco.

Mas assim que conseguiu sair da casca, começou a ganhar prémios internacionais, num total de oito, incluindo os galardões para melhor realizador nos Festivais de Chicago e Fantasporto. O crítico do jornal britânico "The Guardian" apelidou Andersson de "génio". E o filme reúne consenso absoluto no agregador de críticas rottentomatoes.com: é 100% fresco. A título de comparação, "Avatar", o maior fenómeno cinematográfico de 2010, tem apenas 83% de críticas positivas.

Mas o que é afinal "Tu Que vives"? O comunicado de imprensa descreve-o como uma obra sobre "o ser humano", um "ser que nos dá vontade de rir e chorar". Por outras palavras: "Tu que vives" é uma tragicomédia sobre a humanidade, dividida em 50 sketches com cerca de um minuto e meio cada. Não existe trama central. Todas as personagens lidam com questões que expõem os seus medos, tristezas e alegrias, num mosaico a tender para o apocalíptico.

As situações narradas são tão invulgares como estas: um carpinteiro sonha estar a ser condenado e executado por partir um jarrão chinês com 200 anos quando tentava fazer o truque de puxar a toalha de mesa; antes de uma reunião importante, um consultor sofre o que será o inverso de um "mohawk", perpetrado por um barbeiro zangado; uma mulher obesa lamenta a sua vida apenas para mais tarde rejeitar o afecto de um homem que quer oferecer-lhe flores.

O filme foi quase todo rodado no estúdio privado de Andersson, de 67 anos, uma figura controversa na Suécia. Ele é o homem que diz que Ingmar Bergman - o maior ícone do cinema sueco - não era assim tão bom. Também não hesita em acusar um dos responsáveis do instituto nacional de cinema de nepotismo. E afirma que prefere trabalhar com actores amadores porque os profissionais têm rostos demasiado batidos.

Mas Andersson também é um perfeccionista, muito mais influenciado pela pintura do que pelo próprio cinema. Quarenta e nove dos 50 cenários do filme foram criados pela sua equipa a partir dos esboços que fez. Queria uma estética minimalista, inspirada no expressionismo alemão. Para financiar o filme, preferiu realizar anúncios publicitários e recorrer a uma loja de penhores a ter de prescindir da liberdade criativa.

O realizador sueco já está a trabalhar num sucessor para "Tu que vives", que por sua vez é uma continuação de "Songs from the Second Floor". Juntos, serão uma espécie de trilogia sobre a existência humana. Data de conclusão: 2013, diz ele.
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Joana Stichini Vilela, Jornal I


Como um filme sobre gente tão depressiva nos consegue fazer rir e deixar bem dispostos é uma questão que apenas “Du Levande” responde.

Realizado por Roy Anderson, esta ode à vida – aos pequenos e grandes problemas – é um prodígio e um regalo para os nossos sentidos, apresentando umas série de personagens desconexos a viverem como podem. Tudo é apresentando em forma de vinhetas (57), em profundos quadros sem movimentos da câmara, num estilo quase de sketch anedótico, mas repleto de vida, e de pequenas trivialidades profundamente estilizadas que no fundo não são assim tão surreais como aparentam. Aliás, Andersson é o rei de encontrar um significado no nada, e faz-nos rir com as desgraças dos outros, que muitas vezes também são nossas, senão constantemente.

E é surpreendente como o filme nos cativa, e interage mesmo connosco, entre o drama, a comédia e o musical (brilhantemente introduzido), num ritmo lento mas hilariante. Para ajudar, há que falar na estética dos cenários, super apurada, e que dão a sensação constante de tudo fazer parte de um sonho. Aliás, Anderson é um profundo conhecedor de arquitectura e design, tendo sido cada cenário estudado de maneira a agir quase como uma personagem.

Quando o filme realmente apresenta um tom mais onírico, ainda acaba por ser mais visualmente poderoso. Tal como Buñuel o faz em “O Discreto charme da burguesia”, quando alguém fala de um sonho, esse é imediatamente apresentado. Realce para o homem que sonha com o puxar a toalha numa mesa repleta de loiças antigas. O castigo? A cadeira eléctrica, porque a prisão perpétua não é suficiente. E enquanto os juízes bebem canecas de cerveja e o advogado chora, o réu afirma: É assim a vida.

Numa outra situação uma jovem conta do seu casamento imaginário com um músico. É hilariante toda a sequência. Depois há a professora a quem o marido chamou simplória, o homem que durante o sexo fala do seu drama com o fundo de pensões, e muitas outras histórias de uma verdadeira tragicomédia exuberante.

Não tenham dúvidas. Apesar de ser de 2007, “É assim a vida” é o primeiro grande filme a estrear nas nossas salas em 2011.
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Jorge Pereira, c7nema.net




INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Em 40 anos de carreira, o sueco Roy Andersson apenas dirigiu quatro filmes. "Tu Que Vives" revela ao público português um cineasta inclassificável que leva o tempo que for preciso para filmar porque "a arte precisa de tempo".

"É tudo o que vemos ou que parecemos um mero sonho dentro de um sonho?"

A citação de Edgar Allen Poe faz sentido a propósito de "Tu Que Vives", muito embora Roy Andersson lhe prefira Goethe em epígrafe do seu filme. Mas, entre o romantismo mórbido de um e do outro, vai só um passo que só não dá porque provavelmente não lhe passou pela cabeça.

É que o sonho é uma das chaves de "Tu que Vives": porque "os sonhos e as memórias ajudam-nos a 'limpar' a cabeça, a tornar as coisas mais nítidas", diz-nos Roy Andersson ao telefone do seu escritório em Estocolmo. "Estou muito contente com 'Tu que Vives', porque pela primeira vez no meu cinema ousei criar sonhos. E o que quero é criar filmes tão simples como os sonhos ou as memórias."

Só que esses filmes "simples" levam tempo a fazer. Muito tempo.

Andersson, 68 anos, apenas assinou quatro filmes em... 40 anos de carreira, o que o torna um dos grandes concorrentes de outros eremitas reclusos como Terrence Malick. A sua primeira longa, "A Swedish Love Story", feita num registo "mais naturalista, numa altura em que era grande fã do neo-realismo italiano", foi um êxito em 1970 - "mas ao fim de algum tempo compreendi que o realismo já não era suficiente. Foi quando mudei para um estilo mais abstracto", que se constrói por "quadros", episódios do quotidiano rodados em estúdio com actores maioritariamente não profissionais (alguns deles descobertos pelo cineasta na loja da IKEA que costuma frequentar).

Esse "estilo mais abstracto" foi inaugurado com "Giliap" (1975), filme "maldito" que lhe fechou as portas do cinema durante 25 anos, forçando-o a virar-se para a publicidade para sobreviver, e atingiu a sua cristalização em "Tu que Vives", que agora chega às nossas salas. Datado de 2007 (e apresentado nesse mesmo ano na secção Un Certain Regard de Cannes, antes de vencer Melhor Realização no Fantasporto 2008), levou três anos a completar, dista sete anos do anterior "Songs from the Second Floor" e não tem ainda sucessor à vista. Tanto tempo porquê?

No seu inglês escolar mas inteligível, Andersson explica: "Sou perfeccionista, sou muito preciso, preocupo-me com cada pormenor mais ínfimo. Costumo dizer que quero criar filmes num estilo simplificado, condensado, pegar nas situações mais difíceis e complicadas e torná-las de compreensão muito fácil. É muito difícil ser fácil, é necessário ser exacto, preciso. E isso implica ter de rodar em estúdio, construir os cenários de raiz... Se tivesse uma equipa maior, mais dinheiro para filmar, podia seguramente trabalhar mais depressa. Mas não creio que fosse mais rápido. Fazer filmes como eu faço não é possível com menos tempo."


E não é possível porque Andersson diz levar entre "duas a três semanas e três meses" para filmar cada um dos seus episódios, alguns inspirados pela sua infância ou pela sua vida, outros sugeridos por romances, filmes, obras de arte. Exemplo: num dos quadros de "Tu que Vives", um quarto parece mover-se como uma carruagem de comboio pelos subúrbios de uma grande cidade. Não é ilusão de óptica nem efeito especial: a equipa cenográfica construiu um cenário que se move realmente no espaço que exigiu longas semanas de trabalho...

Como Andersson explica, invocando influências vindas mais da pintura clássica do que do cinema, ele não está tanto a querer fazer cinema como "quadros em movimento. O cinema é uma expressão essencialmente visual - o cinema actual conta histórias, preocupa-se em construir um bom diálogo, mas esquece-se das qualidades visuais. Podemos ficar sentados a olhar para um quadro durante muito tempo, mas é muito raro fazermos isso perante um filme. E é por isso que me quero concentrar nas qualidades visuais que o cinema permite."

Os episódios que Andersson filma com tanto rigor e perfeccionismo são histórias de quotidianos banais, "fait-divers" entre a comédia e a tragédia onde uma palavra mal usada pode dar azo a uma tragédia muito pouco ridícula. "O absurdo e o trivial andam de braço dado, as pessoas mais banais do mundo têm sonhos absurdos... O humor e o absurdo ajudam ao reconhecimento de que todos nós já passámos por situações destas. As minhas personagens são vulneráveis, tal como todos nós." E são personagens sempre a bater na parede, incapazes de ultrapassarem as suas dificuldades. "Essa é a tragédia escondida da condição humana: todos temos os nossos sonhos e ambições, queremos ter controle sobre a nossa vida e o nosso futuro. Mas falhamos sempre, ou pelo menos na maior parte das vezes. Penso que toda a gente se consegue identificar com isso."

Será isso que explica a devoção que o seu cinema austero recebe de um círculo de ferrenhos, sem ter conseguido saltar para o êxito "mainstream"? O realizador também não tem uma explicação: "As pessoas nunca viram filmes como os meus, ficam algo perplexas... Por vezes, leva tempo a encontrar-se o caminho até um filme."
Pelo menos tanto tempo quanto o que Roy Andersson leva a filmar? "Há um pintor russo, um dos grandes realistas da sua época, chamado Ilya Repin [1844-1930], que fez um quadro sobre uma carta que os cossacos enviaram a um sultão turco. Levou onze anos a pintar esse quadro. Depois de saber disso, deixei de ter problemas por levar três anos a fazer um filme. A arte precisa de tempo."
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Jorge Mourinha, Público





Título Original: Du Levande
Realização: Roy Andersson
Argumento: Roy Andersson
Direcção de Fotografia: Gustav Danielsson
Montagem: Anna Märta Waern
Música: Benny Andersson
Interpretação: Elisabet Helander, Jugge Nohall, Jan Wikblad, Björn Englund,
Birgitta Persson, Lennart Eriksson, Jessika Lundberg, Eric Bäckman
Origem: Suécia/ Alemanha/ França/ Dinamarca/ Noruega/ Japão
Ano de Estreia: 2007
Duração: 95’

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