COLUMBUS | 18 DEZ | 21H30 | IPDJ



COLUMBUS
Kogonada, EUA, 2017, 104', M/12



SINOPSE
Casey vive com a mãe numa pequena cidade desconhecida do Midwest cativada pela promessa do modernismo. Jin, um visitante do outro lado do mundo, vem assistir ao seu pai moribundo. Inquietos com o futuro, eles encontram alívio um no outro e na arquitectura que os rodeia.


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FELIZ COMO LÁZARO | 11 DEZ | 21H30 | IPDJ


FELIZ COMO LÁZARO
Alice Rohrwacher
DE/IT/CH/FR, 2018, 127’, M/12


SINOPSE

Esta é a história do encontro entre Lázaro, um jovem camponês tão bondoso que é muitas vezes confundido com um tolo, e Tancredi, um jovem nobre amaldiçoado pela sua imaginação. A vida na isolada aldeia pastoral Inviolata é dominada pela terrível Marquesa Alfonsina de Luna, a rainha dos cigarros. Um elo de lealdade é selado quando Tancredi pede a Lázaro para o ajudar a orquestrar o seu próprio rapto. Esta estranha e improvável aliança é uma revelação para Lázaro. Uma amizade tão preciosa que irá viajar no tempo e levar Lázaro até à cidade no encalço de Tancredi. Pela primeira vez na grande cidade, Lázaro é como um fragmento do passado perdido no mundo moderno.



FESTIVAIS
Festival de Cannes - Melhor Argumento



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VERÃO 1993 | 4 DEZ | 21H30 | IPDJ


VERÃO 1993
Carla Simón
Espanha, 2017, 96’, M/12


FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Carla Simón
Montagem: Didac Palou, Ana Pfaff
Fotografia: Santiago Racaj
Música: Pau Boïgues, Ernest Pipó
interpretação: Laia Artigas, Paula Robles, Bruna Cusí, David Verdaguer e Fermi Reixacha
Origem: Espanha
Ano: 2017
Duração: 97’


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Melhor Primeiro Filme e Grande Prémio do Júri / Generation Kplus




SINOPSE
Espanha, Verão de 1993. No comovente filme auto-biográfico de Carla Simón, após a morte dos seus pais, Frida, de seis anos, enfrenta o primeiro Verão com a sua nova família adoptiva, na Catalunha. Antes do fim da estação, a menina tem de aprender a lidar com as suas emoções e os pais adoptivos têm de aprender a amá-la como se fosse filha deles. Marcado por momentos de exuberância infantil e pensamentos amadurecidos, este drama de crescimento, passado entre tonalidades veranis, é um retrato extraordinariamente enternecedor de como ser criança num mundo de adultos, assente nos desempenhos impecáveis das duas jovens estrelas. 

A ÁRVORE | 27 NOV | 21H30 | IPDJ


A ÁRVORE
André Gil Mata
Bósnia Herzegovina/Portugal, 2018, 104’, M/12



FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: André Gil Mata 
Montagem: Tomás Baltazar 
Fotografia: João Ribeiro 
Interpretação: Petar Fredilac, Filip Zivanovic, Sanja Vrzic
Origem: Portugal/Bósnia Herzegovina
Ano: 2018
Duração: 104’

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlin (2018) – nomeado para melhor primeira longa-metragem – André Gil Mata
IndieLisboa (2018) – Melhor realizador na competição nacional – André Gil Mata


TRAILER



ENTREVISTA AO REALIZADOR

Em Sarajevo, André Gil Mata encontrou um filme de guerra que é uma viagem aos nossos conflitos interiores. Depois do furor do Festival de Berlim e do IndieLisboa, "A Árvore" estreia-se nas salas.
André Gil Mata (São João da Madeira, 1978) filmou “A Árvore” durante um período em que viveu em Sarajevo, onde estava a fazer um doutoramento de realização. A sua terceira longa-metragem, depois de “Cativeiro” (2012) e “Como Me Apaixonei Por Eva Ras” (2016), chega finalmente às salas nacionais, depois de se ter estreado no início de 2018 no Festival internacional de Cinema de Berlim e das honras de abertura da edição deste ano do IndieLisboa, onde André Gil Mata venceu o prémio de Melhor Realizador na Competição Nacional.
Em “A Árvore” acompanha-se o percurso de duas personagens que caminham para um mesmo local. O cenário é de um inverno rigoroso, a caminhada é dolorosa, com um sentimento ténue de esperança, embora o espectador esteja alheado de uma ausência de destino. As imagens são belíssimas, fortes, e em off ouvem-se sons de guerra, bombas, tiros, tropas a marcharem. Não há imagens de guerra, há um cenário desolador que a sugere, mas a sua presença é marcada com mais impacto através do som. O convívio com as imagens e o som tornam “A Árvore” numa experiência sensorial, o próprio filme torna-se num lugar para o espectador reflectir, localizar-se com as personagens e o seu percurso. É um filme de guerra sem o ser, talvez o maior conflito seja o interior, aquele que o espectador irá sentir enquanto caminha o caminho com aquelas personagens. “A Árvore” é um encontro interior, um encontro do cinema com o sagrado.
Estivemos à conversa ao telefone com o realizador, que entretanto voltou para o Porto, sobre a sua visão do cinema e de como chegou a esta ideia de filme de guerra.
Ao longo do filme há algumas referências aos conflitos nos Balcãs no final do século passado. Contudo, o modo como a guerra marca maior presença é através do som, tornando o seu filme numa experiência muito sensorial. O que o levou a referenciar a guerra dessa forma?
Isso surgiu da minha experiência de viver em Sarajevo durante uns anos [desde 2013 até há poucos meses]. Uma das coisas de que me consciencializei durante esse período é de que a imagem da guerra, não necessariamente aquela, mas de todas as guerras, na minha opinião, é explorada de uma forma que, por vezes, a torna quase pornográfica. Sabia que não queria fazer da guerra um espectáculo de fundo e de a mostrar através da imagem. Mas a ideia também surgiu através da criação de uma personagem que se confronta consigo mesmo, com a solidão durante esse período. Não queria mesmo mostrar algo que tivesse a ver com o conflito de guerra, porque para mim isso já está banalizado e eu queria seguir por outro caminho. Queria dar uma experiência que fosse minha, de forma a que essa experiência também passasse para o espectador, que se tornasse dele. Queria que o som não andasse com a imagem, que criasse uma outra linha narrativa e tornasse a experiência da guerra mais sensorial, e que acrescentasse algo mais à imagem. O que acontece no fundo é sempre em off, em relação à personagem mas através do som. Sejam as tropas a caminharem, as bombas…

A árvore acaba também por se tornar numa personagem do filme, é mais do que um ponto de encontro. Como chegou a essa ideia?
Fui para Sarajevo para fazer um doutoramento em realização de cinema e a pessoa que estava a coordenar o doutoramento ficava muito irritado comigo pelo facto de eu não filmar. Após ter chegado, durante algum tempo, não conseguia sequer pensar em filmar. A minha relação com aquele lugar não me permitia sequer pensar em filmar alguma coisa. Quando não conheço os espaços, ou não tenho uma relação afectiva com eles, torna-se muito difícil, para mim, filmar. Mas havia essa premissa de filmar e eu sentia essa pressão. Mas eu não conseguia, andava sempre com uma máquina fotográfica comigo mas também não conseguia tirar fotografias. Além das fotografias que tirava no quarto onde estava a viver, a primeira fotografia que tirei foi na periferia da cidade. O inverno era muito rigoroso, estava sempre a nevar, e fotografei uma árvore junto ao rio, uma árvore despida com um homem ao lado, não percebi bem o que ele estava a fazer, mas havia fumo que estava a sair de junto da árvore. Na minha inocência, por não conhecer os hábitos locais, pensei que ele estava a fazer uma fogueira. Mas quando revelei a fotografia percebi que havia um outro rio ao lado e que o fumo não era de uma fogueira mas do cruzamento das águas: o PH das águas devia ser bastante distinto e criava uma subida de ar, o fumo provinha dali. Mas fiquei com essa imagem de quando tirei a fotografia, de alguém que se tenta aquecer na neve. E daí surgiu-me a ideia de que alguém ao pé de uma árvore pode procurar uma espécie de aconchego, quando estás num vale, sem mais nada. Foi mais uma sensação, uma imagem, que se tornou noutra coisa qualquer. Uma ideia muito simples, de que ao te tentares aquecer encontras um momento tanto exterior como interior. Nunca estive num espaço de guerra, mas imaginei aquele cenário como uma situação em que te podes aquecer, exterior e interiormente, para ganhares esperança, coragem para continuar.
A caminhada de ambas as personagens até à árvore sugere a ideia de peregrinação, principalmente da personagem mais velha, carregando as garrafas vazias às costas. A ausência de uma referência de destino causa essa sensação. A sugestão de peregrinação foi intencional?
Para mim a ideia prende-se mais com um ritual diário da personagem do que uma peregrinação. Tinha consciência de que esse ritual se poderia transformar noutra coisa, devido aos elementos presentes e ao que é sugerido. Acho que tens sempre a consciência que se pode tornar noutra coisa, algo próximo da caminhada de Cristo com a cruz. Mas a ideia base era esse ritual, de alguém que sem motivo, esperança na humanidade, no que o rodeia, que sem olhar para isso sai de casa todas as noites para ir buscar água para ele e para os vizinhos. Era mais uma ideia de comunhão. Creio que num espaço de guerra, pela necessidade de sobrevivência, voltas a conhecer os teus vizinhos e as comunidades tornam-se mais próximas. Aqui no Porto não conheço um vizinho. Hoje em dia vivemos assim, ninguém se interessa muito pela vida de quem está ao lado. Penso que nesses momentos a sociedade volta atrás por necessidade, há uma necessidade de colaborar, porque não conseguimos viver juntos. A ideia partiu daí, ele está a fazer uma ação, e os vizinhos farão outra, sugerindo uma ideia de troca, de trabalho pela sobrevivência, num grupo. Escolhi esse ritual diário, mas poderia ser qualquer outro. A busca da água era bastante importante, porque levaria a personagem para fora do cerco de conflito, levava-o para a natureza, para um certo apaziguamento com ele mesmo.
Mas queria sugerir essa ideia de Cristo a carregar a cruz? O modo como ele carrega as garrafas, com aquele pau, é muito sugestivo…
Tive sempre a imagem desse homem com esse pau de madeira, com as garrafas presas. Se a iria transformar numa imagem fílmica, iria ter sempre essa ligação. Agora foi uma escolha de seguir essa vontade, de ter essa imagem e de ter de viver com essa ligação e conotação, porque os símbolos se sobrepõem às nossas ideias. Achei que não deveria abdicar dessa imagem por causa disso. Se as pessoas lerem com essa ideia, de uma caminhada de Cristo com a cruz, acho que há abertura para isso, para as pessoas interpretarem assim: não conseguimos controlar o que os outros sentem. Não queria suprimir a minha ideia com receio do que os outros pensariam.
Quando o velho encontra a criança, junto à árvore, há varias sugestões, seja o encontro de duas personagens, o encontro de uma visão de futuro ou de passado (conforme a perspetiva das personagens) ou de um certo limite, de que já não existe nada para a frente. Quis deixar isso em aberto?
Para mim é mais um encontro do personagem mais velho com uma outra idade, e vice-versa, sem a personagem mais nova ter essa perceção, porque não consegue, de que está a falar com ele mesmo.
É quase como se acontecesse algo de sagrado, junto à árvore. Intensifica a simbologia da guerra.
Acho que a árvore é um lugar sagrado no sentido em que lhe é permitido, naquele lugar, encontrar-se com ele mesmo. O lado sagrado será esse, de conseguirmos, termos um espaço, para conseguirmos estar connosco. Creio que hoje é muito difícil termos esses espaços, é difícil as pessoas terem esses momentos. Se calhar as pessoas antes tinham esses momentos através da religião, se calhar conseguiam isso. Os lugares ditos sagrados, como tu dizes, acho que se perderam na nossa sociedade ocidental, é muito raro as pessoas encontrarem esses lugares. Sinceramente, eu acredito que o cinema se pode tornar um pouco nesse lugar: tu entras numa sala e, quase por obrigatoriedade, tens de estar contigo mesmo, não podes falar, ou pelo menos não deves, estás num lugar de escuridão, que tem uma enorme relação com o sono e o sonho, e é-te dada uma experiência sensorial que te proporciona o confronto contigo mesmo. O cinema pode ser realmente esse lugar, em que te encontras contigo mesmo, tens o espaço e o tempo para esse encontro, podes confrontar os teus medos, erros, o passado: o cinema pode-se tornar num local sagrado se os filmes também o permitirem. E parte da experiência que eu queria proporcionar com o meu filme passa um bocado por aí, permitir ao espectador ter esse tempo e espaço para estar com ele mesmo.
André Almeida Santos, Observador

MILLA | 20 NOV | 21H30 | IPDJ


MILLA
Valérie Massadian
França/Portugal, 2017, 128’, M/12

FICHA TÉCNICA

Realização e Montagem:  Valérie Massadian
Fotografia: Mel Massadian e Robin Fresson 
Som: Aline Huber   
Interpretação: Séverine Jonckeere, Ethan Jonckeere, Luc Chessel, Élisabeth Cabart, Valentine Carette,
Franck Williams
Origem: França/Portugal
Ano: 2017
Duração: 128'

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Locarno 2017 - Cineastas do Presente - Prémio especial do júri 
DocLisboa - Grande Prémio Cidade de Lisboa para Melhor Filme da Competição Internacional 2017
Muestra de Cine de Lanzarote 2017 - Grand Prix 
Ficunam - Melhor Realizador Competição InternacionaL 2018 


CRÍTICA


Um filme como um pedaço de acompanhamento de uma vida. Se nos agarrarmos a isto, num filme como um projecto de doçura, podemos não reparar nas risadas tão tristes como as feridas que não saram de Milla.
Ainda não houve genérico inicial e já se explicita o desajustamento da personagem de Milla. Há aquele olhar dela sobre Luc, o seu companheiro, que parece falar de uma perda. Ainda não sabemos o que está nela, mas pressente-se a tristeza de quem se sente sem posição, sem lugar. A intervenção do título do filme, Milla, o aparecimento do genérico inicial, parecendo cortar esse olhar da personagem, não protege o espectador dos seus efeitos. O olhar ao fixar-se em Luc fixa-se na sala como se seguisse a fuga de uma esperança irrealizável, já com saudades dela. O plano corta, o olhar fica connosco.
Não será esse o olhar da actriz Severine Jonckeere sobre o seu partenaire Luc Chessel a revelar a inadequação, a maladresse e até a vergonha, a dificuldade de encontrar o seu espaço no filme? Severine é uma rapariga de 16-17 anos, já mãe, que a realizadora descobriu numa casa de abrigo de Cherburgo, e faz um filme ao lado de um actor-que-também-é-crítico-de-cinema e que visivelmente está, ele sim, no seu território.
Nessa fracção de segundo, aquele olhar, que reverbera por toda uma longa-metragem, concentrando diferenças de classe e abandono afectivo e dispensando as demonstrações temáticas, está a violência e a doçura do cinema de Valérie Massadian — cinema que se vem fazendo como um pacto, expondo e amparando a vida agreste das raparigas que são lançadas à conquista dos filmes.
42 anos, francesa de origem arménia, primeiro fotógrafa (e editora fotográfica de Nan Goldin, de quem foi “modelo”), agora realizadora, tem sido fiel, desde a primeira longa-metragem, Nana (melhor Primeira Obra em Locarno 2011), à prática — por isso tem sido inevitável lembrarmo-nos de alguém como Maurice Pialat (1925-2003) de cada vez que encontramos Milla — de ancorar a verdade da ficção na rodagem do filme e nas relações que ali se forjam. (E é também à la Pialat, já agora, a forma como Milla se vê livre dos rodriguinhos do cinoche, termo que era caro ao realizador de La Gueule Ouverte, filme de 1974, e de Aos Nossos Amores, de 1983, para destilar o seu habitual azedume e dar uma sapatada em tudo o que pudesse ter a pretensão de suavizar as rugosidades da vida).
Até agora com apenas duas longas-metragens em seis anos, Nana e Milla (Prémio do Júri na secção Cineasti del presente em Locarno 2017), podemos dizer que o cinema da realizadora tem necessitado de tempo para construir a relação com as suas “actrizes” e ampará-las nos seus gestos — como conversas, diálogos, cujas vozes até parecem sobrepor-se aos gestos e mesmo às próprias vozes da ficção. Por exemplo, é como se Kelyna Lecomte, a miúda de Nana, estivesse a “mandar recados” para fora do enquadramento à realizadora em cada um dos seus totalitários monólogos de construção do mundo; em Milla é um diálogo mais paritário e mais explícito porque Massadian inscreve-se às tantas como personagem na ficção — Milla é Severine, Severine poderá ser Massadian, que pode já ter estado no lugar de Severine...—, abrindo-se aí caminho à contemplação da vida, à melancolia e à doçura. O filme é um pedaço de acompanhamento de uma vida e não já apenas o documento ou a ficção de um pedaço de vida.
E é aqui, já que poderemos ter pecado com uma desajustada invocação do santo nome de Pialat em vão, que vamos atribuir a Massadian o que é de Massadian: a ternura com que investe pela aspereza do mundo.
Nana, vivendo como vivia no bosque sem tempo de fábula, mostrava uma menina de quatro anos com uma voracidade assustadora a descobrir e refazer o mundo. Já para Milla, 16-17 anos e já mãe, não há fábulas à sua altura, tem de se haver com o tempo e com uma paisagem, física, social e humana, que permanece sem compaixão — haverá um terceiro filme, segundo a realizadora, para completar esta trilogia sobre raparigas em idades de transição, e para isso até voltará a Kelyna Lecomte, que hoje é uma pessoa diferente, tem 11 anos.
Além daquele olhar antes do genérico de Severine Jonckeere — como já se percebeu, esta mãe com filho, Ethan, é uma mãe de ficção chamada Milla, mas é Severine —, há as risadas dela, que não disfarçam, antes expõem, o seu desajustamento, o desconforto do seu corpo proletário e redondo que a rapariga de Cherburgo terá de aprender a esquecer ou a encarar, antes de conseguir, finalmente, habitar o filme.
De resistência em resistência, porque a morte aparece pelo meio, o filme autoriza a que se fale de uma calmaria final, um abandono, um repouso. Severine conquista o seu filme? Uma confissão: lutamos, perante Milla como perante Nana, contra ceder aos focos de negrume que vemos irromper, mas é uma luta inglória, encontramo-los a cada revisão; a forma como sobre as personagens se aperta a claustrofobia (à la Chantal Akerman de Jeanne Dielman...), os gestos que se repetem de filme para filme, de personagem para personagem, cada uma sendo o inescapável destino da outra; ou aquela abertura de Milla a repetir-se no plano final, se calhar é apaziguamento, sim — ou será que nada mudou, é o mesmo gesto, é a vida que é assim? Ainda, os blocos de presente com que Milla se instala com as suas elipses mas que vão acumulando para o espectador memória, fazendo-o regressar a indícios que estavam lá atrás. Para acabar como no princípio, o olhar de Severine, e as risadas... tão tristes como feridas que não saram. Está em todos os planos de Milla, mas vamos fazer por esquecer a vida agreste e agarramo-nos ao olhar de doçura.
Vasco câmara, Público


CONVERSA COM A REALIZADORA
"Já não tenho 20 anos, não faço cinema para fazer uma carreira. Já vivi na verdade muitas vidas e o cinema é apenas a última — sem nada de fatalista, porque me dá a sensação de ter encontrado o meu lugar. No cinema, as possibilidades são para mim infinitas: amanhã posso perfeitamente pegar na minha máquina fotográfica e no meu iPhone, ir fazer um filme e fico perfeitamente bem. Mas, quando fiz Nana, foi um tal milagre tê-lo feito sozinha, com 80 mil euros, em absoluta liberdade — havia uma certa virgindade que, desta vez, não existiu. Houve muita gente que gostou de Nana, mas em França não me levaram muito a sério. Houve algumas pessoas pelo mundo fora que me tomaram logo por realizadora, disseram, 'OK, aqui há qualquer coisa', mas não foram muitas! E por muitas razões — o meu sexo, a minha idade, o meu meio social, as minhas vidas anteriores, a minha franqueza, a minha falta de maneiras — não pertenço à casta [francesa] do cinema. Isso não me impedirá de fazer filmes mas..."

O discurso é torrencial, pontuado por gargalhadas sinceras, pausas para pensar, uma ou outra passa nos cigarros comprados em Portugal, tirados de uma carteira onde se vêem crachás de promoção de filmes de amigos seus — O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, e A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho. Valérie Massadian tem uma "história" com Portugal: foi a descoberta do cinema de Pedro Costa que fez esta fotógrafa passar à imagem em movimento; Portugal foi dos raros países onde Nana (2011), história de uma menina de quatro anos à solta na floresta e vencedor do prémio de Melhor Primeira Obra em Locarno 2011, teve estreia comercial; e o colectivo português Terratreme é co-produtor da sua segunda longa, Milla, que saíu vencedora do Prémio do Júri na competição secundária de Locarno 2017, Cineasti del presente.
Esse prémio está ainda no futuro quando conversamos com Valérie Massadian, num pátio recolhido de uma pequena pensão de Locarno, num dia quente de Agosto, pouco depois da primeira sessão pública de Milla. A segunda longa da fotógrafa francesa de ascendência arménia é um dos títulos-âncora da competição do Doclisboa 2017, o que pode parecer estranho para um filme que tem os contornos de ficção, acompanhando o percurso de uma adolescente à deriva, vivendo "à margem" com o seu namorado. Mas a actriz que dá (literalmente) vida a Milla, Séverine Jonckeere, é uma não-profissional recrutada num longo casting em centros de acolhimento, contracenando com Luc Chessel, que tem no currículo pequenos papéis em filmes de Nicolas Klotz ou Benjamin Crotty mas que é, na "vida real", crítico de cinema do jornal Libération. E, tal como Nana cruzava as fronteiras das "ficções do real" ao se deixar levar, no momento, pela presença e pela fantasia da sua pequena actriz, também Milla flutua num limbo onde é dificil perceber o que é real e o que é encenado.
O que Valérie filma é, por entre uma história esboçada de modo solto, o documento do encontro destes corpos, destas pessoas, num enquadramento de cinema, como explica entre um cigarro e um copo de água. "Tive vontade de confrontar estas duas inteligências — a Séverine tem uma inteligência de sobrevivência, quase animal, e o Luc uma inteligência estruturada. Para mim confrontá-los era o melhor meio de conseguir falar da possibilidade, e da impossibilidade, amorosa entre os seres. Porque vão sempre existir momentos de incompreensão. "
Perguntamos-lhe se espera que haja uma "faísca" frente à câmara. "Talvez não uma faísca," diz, "porque uma faísca é qualquer coisa que faz barulho, que se nota. Não, quando coloco a câmara num local, espero que chegue a graça." Explica melhor: "Posso ter uma ideia de realização, mas isso não passa de um ponto de partida. Essa ideia é algo para ser destruído, submergido, partido, perdido, para encontrar outra coisa em seu lugar. O meu primeiro desejo é que, nesses enquadramentos extremamente estruturados, que podemos considerar como fixos, de repente aconteça qualquer coisa de sanguíneo, de vivo, que não se controla — nem o enquadramento, nem quem está à frente da câmara, nem quem está por trás da câmara. Algo que escape à ideia."
Mais à frente na conversa, Valérie falará, entre risos, de "espeleologia" — "é um pouco como andar a pesquisar ouro, e de repente encontramo-lo, na montagem, quando reparamos que está lá qualquer coisa que não tínhamos visto durante a rodagem, uma espécie de prenda." Mas não há improvisação, "ou certamente não como a entendemos, porque a improvisação seria um trabalho sobre o texto e sobre o que é dito," explica a realizadora. "Ora nada está escrito, aliás os argumentos para mim não existem, são apenas pretextos para assaltar bancos!" diz entre gargalhadas sonoras, referindo-se à necessidade burocrática de apresentar um documento escrito para garantir apoios. "Não há diálogo escrito, e o meu trabalho com os actores é um pouco como se faz em música — sobre uma palavra, uma nota, uma emoção. Encontrar esse momento de graça não é improvisação, é apenas tempo. E o tempo é a coisa mais preciosa que existe no cinema: o tempo de fazer, o tempo de pensar, o tempo de montar. "
Por essa mesma bitola, Valérie confessa que há algo de profundamente instintivo no seu cinema. "Foi-me muito fácil filmar Nana. É-me muito fácil trabalhar com crianças — basta-me estar ali, de gatas, toda suja, sem nada que explicar, a brincar e a filmar e a divertir-me. Aqui ia ser diferente, porque estou a trabalhar com gente que já é adulta, que já faz parte do mundo, que já tem consciência da sua imagem, do que vão pensar deles, e é muito mais dificil aceder a esse abandono. Funciono muito por instinto, e no plateau tudo é muito orgânico, sem um pensamento estruturado." É também aí que entra a definição de "ficção do real", porque o que a realizadora filma é também a aprendizagem da vida frente à câmara; o que acontece é, de facto, um do confronto dos seus com a realidade. "Mas procuro ampará-los, senão seria um vampiro, sentir-me-ia suja. A Milla é alguém atirada para um mundo ao qual não está minimamente adaptada — não sabe fazer a cama, dobrar roupa, mas tenta, esforça-se, e aprende e de repente tem de aprender a ocupar-se de uma criança. Nessas cenas queria mostrar a sua fraqueza mas sem cair no ridículo. Porque ela esforça-se, ela tenta, e tenho vontade de a proteger."

Valérie admite, aliás, gue o seu maior medo ao terminar um filme não reside no acolhimento da crítica ou do espectador. “É sentir que não estive à altura das pessoas com quem trabalhei. Lembro-me que acabei Nana uma noite às três da manhã, e saí de casa para ir andar a pé, estava praticamente a levitar e chorava que nem uma madalena, 'consegui, acabei o filme, e não os traí’”. Mais gargalhadas. “ Aqui não acabei o filme às três da manhã nem chorei, mas senti o mesmo: que me podia olhar a própria ao espelho e olhá-los a eles nos olhos, e eles não se ima sentir sujos, traídos, gozados. O filme era digno, honesto, humano, não era perfeiro, mas se eles o vissem e nele encontrassem a alegria e a ternura que procurei, então outras pessoas também o iriam sentir."
Porque, na verdade, é isso que Valérie Massadian quer fazer: levar os espectadores a sentir. ”Se me pedem para ir passar horas com gente que não conheço numa sala escura, não quero que me dêem a papinha feita. Dou por mim com cinco anos de idade como se fosse criança. Fico a ver, à espera que o filme me diga o que tem para me dizer ou para me fazer sentir. Não espero nada de um filme, porque não há na esperar: o filme é projectado e cabe-nos a nós decidir o que vemos nele. A maior parte filmes não nos deixam espaço para sermos nós mesmos, para sentirmos, para pensar. Tudo é dito, redito, explicado, mostrado. Lembro-me de mostrar Nana na aldeia onde o rodámos, e no fim da projecção uma miúda dos seus 25 anos, com três meninos pela mão, veio ter comigo e disse-me 'desculpe, acha que podia ver outra vez o filme? É gue quando vejo um filme é como se me dissessem, aqui sinto isto rio-me e aqui penso desta maneira. E com o seu filme não. Posso ser eu própria a vê-lo.' Virei-me para a minha mãe e disse-lhe, ‘ pronto, já posso morrer feliz."
Valérie Massadian solta uma gargalhada.
Jorge Mourinha, Público

THELMA | 13 NOV | 21H30 | IPDJ


THELMA
Joachim Trier
NO/FR/DK/SE, 2017, 116’, M/16

FICHA TÉCNICA

Realização: Joachim Trier
Argumento: Eskil Vogt e Joachim Trier
Montagem: Olivier Bugge Coutté
Fotografia: Jakob Ihre
Música: Ola Flottum
Interpretação: Eili Harboe, Kaya Wilkins, Henrik Rafaelsen
Origem: NO/FR/DK/SE
Ano: 2017
Duração: 116’







CRÍTICA


Thelma é uma variação inteligente, adulta, sobre o cinema de género, como Kubrick a filmar De Palma, pelo autor de Oslo, 31 de Agosto. 
Ficámos abananados quando descobrimos a segunda longa de Joachim Trier, o devastador Oslo, 31 de Agosto, ainda hoje um dos grandes filmes do século XXI. O norueguês respondeu a esse pequeno clássico com uma experiência em inglês que ficou aquém das expectativas (Ensurdecedor, com Isabelle Huppert e Gabriel Byrne) e regressa agora à terra natal para uma peculiar incursão no género que prolonga os temas dos filmes anteriores: segredos, famílias, silêncios, solidões. O centro de Thelma é a adolescente que lhe dá título — uma miúda normalíssima, algo solitária, metida consigo mesma, sem grandes experiências emocionais que veio da província estudar para uma cidade grande. Nada de original não se desse o caso da miúda ser religiosa e dos pais parecerem ter um ascendente bastante grande sobre ela. 
Com o tempo — que Trier continua a saber gerir admiravelmente — perceberemos o porquê da super-protecção: Thelma tem poderes que desconhece e não compreende, que surgem sempre que ela cede às emoções, se deixa levar pelos seus desejos, em suma, que vêm da sua transformação de menina em mulher. É isso que Trier desenha, de modo calculadamente preciso, ao longo das duas horas de Thelma: o descobrir da sexualidade, a procura de uma identidade própria, a tensão entre família e personalidade, comunidade e individualismo, numa idade em que tudo é vivido com uma intensidade devastadora. 
Não é descabido falar de Thelma como uma versão nórdica, cerebral, exangue da Carrie que Brian de Palma filmou, como se fosse um Kubrick em modo geométrico a dirigi-lo; ou como um equivalente “de género” do magnífico Requiem de Hans-Joachim Schmid, onde a passagem à idade adulta de uma jovem religiosa desencadeava tormentos que tanto podiam ser psíquicos como demoníacos. A comparação não abona em favor de Thelma, mas é inevitável — apesar da performance impecável de Eili Harboe no papel principal [...] 
Mas isto também não deve minimizar o interesse e a inteligência que Thelma realmente tem, o modo como cria quase subrepticiamente um ambiente de mal-estar sem para isso precisar de “inventar”: tudo se passa em cenários quotidianos, realistas, que o espantoso trabalho de fotografia de Jakob Ihre torna alienígenas, desconfortáveis. O problema de Thelma é só um: houve um filme chamado Oslo, 31 de Agosto e Joachim Trier deixou a fasquia demasiado alta. Thelma não chega lá, mas fica mais perto. 
Jorge Mourinha, Público






ENTREVISTA AO REALIZADOR

O cineasta de Oslo 31 de Agosto e de Ensurdecedor está de regresso. Estreou na quinta-feira, Thelma um conto de terror sobre uma universitária que descobre ter poderes maléficos. Uma experiência com o carimbo Joaquim Trier, norueguês que ao DN jurou a pés juntos que faz um cinema sem amarras. 

Antes de chegar aqui lia algures que Joachim Trier fez um "filme de terror lesbiano". É capaz de se rir com essa denominação? 
É divertida!! Se isso aguçar a curiosidade do povo, venha! A verdade é que o filme é um pouco isso mas também é mais do que isso. Se calhar, jogo com essa cena meio de mau gosto associada a certo cinema de vampiros e de como se filma uma lésbica...Trata-se de uma tradição. Ao mesmo tempo, queria fazer um filme com uma personagem forte de uma jovem mulher. Venho de um país que ainda queimava as bruxas no século XVIII...Na Noruega há também um estigma em relação à figura da mulher com poder. Quis fazer um filme sobre uma mulher jovem com super-poderes, um pouco como se fosse uma história de vingança. O terror que o filme tem é muito alegórico. Do momento ponto de vista, é um conto moderno de crise de identidade. 

Ao escolher a jovem como protestante e ela ser de uma família muito conservadora, não está também a abordar o tema da culpa? 
Ela é de uma facção protestante mais radical, cada vez em maior ascensão na América e na Noruega. Eles são muito anti-gay, mas felizmente as igrejas públicas agora na Noruega já casam pessoas do mesmo sexo! Isso é muito importante, sobretudo porque ainda temos esses pequenos grupos protestantes a estigmatizar tudo isso. Lá está, quis colocar toda essa questão do conflito individual acerca da sexualidade num contexto de terror. 

E é interessante a maneira como vemos os símbolos... A serpente, por exemplo. 
Sim, mas no cinema um símbolo deixa de ser um símbolo. Um animal, na cabeça cristã de uma rapariga, pode ser algo muito poderoso. A mim deu-me muito gozo filmar as serpentes, é um animal lindíssimo. Apetecer tocar naquelas criaturas! Dá-me mesmo muito gozo filmar o lado sensual destes animais. 

Mas em relação às cenas de sexo não quis ir pela via do "kinky"... 
Sim, preferi a elegância. Quis transmitir uma certa ideia de sonho puro e transgressivo, coisa que acontece apenas nas mentes mais jovens. A Thelma é alguém que desconhece o seu lugar na vida. Estou a filmar a sua libertação. 

Filma o corpo feminino com um conceito de pureza. Acredita que um corpo de uma mulher possa ser uma fonte primitiva de cinema? 
Sim, de que maneira! É muito interessante essa questão, pois estou a fazer um documentário sobre Edward Munch e ele tem uma série de retratos femininos. A sua irmã morreu muito cedo e o desgosto parece ganhar uma camada sensual. Há ali também uma combinação de pele nua e pureza.

Aposta muito no suspense através da fantasia. Preza o conceito "suspensão de descrença", como se constrói isso?
Perguntam-me muito se acredito no sobrenatural, mas o que está ali é só cinema! O que me interessa é pesquisar a imaginação humana. Fiz uma série de filmes que lidavam com ocorrências reais, mas o conceito do sonho sempre fez parte do meu imaginário. Desta vez quis ir mais longe. 

Sim, mas como consegue depois dar credibilidade a tudo isso
Passa pelo facto de ela ser uma personagem real. 

Mas ao apostar num tema em que converge a questão de um certo fanatismo religioso, está a tocar num tema fundamental da sociedade atual. Não acha que cada vez mais os cineastas deveriam abordar este tema? Wim Wenders fê-lo recentemente mas parece ser um tópico desconfortável...
Sim, os cineastas têm de fazer mais filmes com este tema. Thelma aborda, do ponto de vista religioso, o abuso do poder na nossa cultura. Mas é muito fácil apontar o dedo às novas religiões que estão a impor-se com atitudes fundamentalistas e de opressão aos nossos comportamentos livres. É muito mais complicado depois suster um ponto de vista sobre isso...Creio que o meu filme chegou na altura certa, sobretudo agora que o cristianismo fundamentalista também está a crescer. 

O cinema nórdico parece também estar na moda. A Palma de Ouro para o sueco O Quadrado, de Ruben Ostlund, foi uma espécie de rastilho...
É difícil aferir sobre isso, prefiro acreditar que é mais o valor individual de cada um dos cineastas. Não sou muito apologista que possa estar a acontecer um movimento, mas posso afirmar que estão a surgir mais financiamentos para que se faça um cinema mais livre. Sou um cineasta com poder de montagem final - sempre tive direito ao corte final dos meus filmes! Deixam-me criar tudo o que quero fazer...É preciso continuar a apoiar um sistema que nos dá esta liberdade. Mas na América também se pode filmar recorrendo à subversão, basta olhar para Logan, de James Mangold. Houve ali contrabando: do western para o filme de super-herói. Tudo isso acontece porque no sistema americano não há liberdade. Já ninguém pode fazer cinema puro, são todos obrigados a irem para o filme de super-herói.

Depois de Ensurdecedor/Louder Than Bombs vai voltar aos EUA para filmar? 
Estou interessado, mas o problema é que sou um cineasta do "final cut" e na América é complicado. Gostaria de regressar, vamos ver...Mas foi excitante explorar coisas novas com Thelma. As pessoas estão convencidas que nós temos uma estratégia, um plano para as nossas carreiras, mas na verdade limito-me a fazer os filmes que me apetece na altura em que me apetece. 

Rui Pedro Tendinha em Toronto, dn.pt

MARIPHASA | 6 NOV | 21H30 | IPDJ

MARIPHASA
Sandro Aguilar
Portugal, 2017, 86’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização, Argumento e Montagem: Sandro Aguilar
Fotografia:  Rui Xavier
Som: Miguel Moraes Cabral
Interpretação: António Júlio Duarte, Albano Jerónimo, Isabel Abreu, João Pedro Bénard, Cláudia Éfe, Luísa Cruz, Gonçalo Waddington
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 86’



FESTIVAIS
Berlinale Forum [DE 2018]
Hong Kong International Film Festival [HK 2018]
Indielisboa [PT 2018]
Adana Film Festival [TR 2018]


TRAILER



NOTA DE INTENÇÕES
Veremos facas, espingardas, presas e caçadores, monstros e pesadelos, numa alternância pendular, do movimento à estagnação. Lugares aos quais impiedosamente se regressa, depósitos espontâneos da memória afectiva dos seus ocupantes e sintomas da sua desagregação. Sobretudo madrugadas e noites, urgentes e amnésicas como num filme de lobisomens, em diferido. Do sangue ao corpo - invólucro e contentor. Retenho particularmente do terror, do fantástico, ou do western, a sua capacidade de suspender a descrença do espectador, inaugurando uma comovente disponibilidade para aceitar as naturais propriedades do cinema para propor as suas realidades; para tactear o mundo a partir de um território que não é o nosso.



ENTREVISTA A SANDRO AGUILAR
Para começar, se quisesses falar sobre a forma como Mariphasa surgiu.
É um projeto que teve a sua primeira versão já há alguns, penso que seis, sete anos, pelo menos. Já não ei o que na altura iniciou tudo. Mas era um projeto que vinha na continuidade de coisas que eu tentei fazer o princípio das minhas curtas-metragens, no Corpo e Meio, por exemplo.
Tentar explorar uma lógica vagamente narrativa, e que tivesses aquele aspeto pendular que tinha o Corpo  Meio. Ter uma espécie de linearidade de um personagem que vai de um espaço a outro e depois regressa  o que pode trazer de transformador nesse regresso. Começou por ser um projeto que tinha a ver com a realidade de um espaço, foi pensado e escrito a pensar nos decors que eu tinha encontrado no Corpo e Meio. Não sei porque razão, quando passei para a segunda longa-metragem apeteceu-me voltar ao um filme inicial. É a minha quarta curta-metragem e apetecia-me ter essa espécie de linearidade, de limpeza, pelo menos na premissa inicial. É claro que depois o projeto sofre muitas alterações durante o processo criativo, se somarmos àquilo que é o meu processo normal de trabalho, seis anos de intervalo entre uma primeira ideia e a execução, sendo que eu não continuei a trabalhar sobre aquela ideia. Aquilo que me desperta criativamente tem a ver com a natureza concreta daquilo que ando à procura nos decors, dos atores, de pequenas coisas que vou tropeçando e, portanto, não valia muito a pena estar a trabalhar, começo efetivamente a trabalhar e a enriquecer um projeto na fase em que estou perto do arranque da rodagem. E por isso o projeto ficou em pousio. Foi escrito mais ou menos há seis anos e depois foi repegado dois ou três meses antes da rodagem, em que comecei a ter as primeiras conversas com atores, comecei a visitar decors e as coisas foram-se alterando e o projeto foi ganhando um carácter menos concreto e mais onírico. No projeto original, uma das primeiras ideias, tinha a ver com fazer um remake estranho do Dr. Jekyll and Mr. Hyde: a ideia de haver, num mesmo personagem uma linha de divisão entre um carácter mais domesticado ou civilizado e um carácter mais selvagem e isso poder coabitar no interior de uma personagem. E depois no processo ao estar a escrever comecei a espalhar essa duplicidade por dois espaços, por várias personagens e a coisa começou a espalhar e a mudar um bocadinho o carácter. Dessa ideia inicial resiste a ideia do andar de cima e do andar de baixo, dos dois vizinhos, de um personagem que se olha ao espelho e um personagem diferente que também se olha ao espelho quase vinte minutos mais tarde. Há coisas que vêm dessa primeira abordagem, mas é tudo tão alterado que é difícil perceber de onde é que aquilo tudo vem, porque vai sendo tudo criado à medida que o processo vai avançando.
Curioso falares do Corpo e Meio, porque Mariphasa parece assentar sobre uma ideia perda, parece que falta alguma coisa: começa com um acidente e com uma morte e vemos o que acontece depois.
Durante o tempo que estava a escrever, eu tenho uma espécie de esquemas, quase geométricos da minha relação com as personagens e das relações entre as personagens. A haver um tema “humano” relacionado com este filme tem a ver com qualquer coisa de displacement, de estar fora do seu lugar. Cada personagem aparece a preencher o lugar de outro omisso, digamos assim. Cada um dos personagens do filme tem alguém que falta. E alguém está a preencher o lugar dessa entidade que falta. E, portanto, tal como em Corpo e Meio a ideia de omissão, de alguém que desapareceu e que já não está lá, e de uma coisa, de uma presença ou de outro personagem que equivocamente está a ocupar esse lugar é aquilo que faz avançar tudo. E por isso o filme tem aquela lógica da porta fechada. Havia até explicitamente no argumento original uma alusão à fábula do lobo e dos três porquinhos, do soprar a casa e levar tudo. Lá está, a questão do selvagem e do domesticado, de haver ali uma linha de fronteira física entre qualquer coisa que se passa num interior, que parece estar resguardado, mas que já foi devassado e está em processo de transformação, qualquer coisa do humano para o monstro, que está na origem de tudo isto e que tem a ver com esta coisa, que de forma muito simplista de pode reduzir na premissa do Dr. Jekyll and Mr. Hyde, dessa duplicidade, mas que no fundo não é apenas narrativa, mas é qualquer coisa que existe em cada um de nós, esta tensão entre a energia domesticadora e um instinto qualquer mais selvagem. Essa alusão aos três porquinhos e ao lobo e por isso é que a casa aparece toda revolta como se tivesse sido soprada essas fronteiras, como se esse lado selvagem estivesse pronto a habitar o interior daquelas casas e daquelas personagens. É a ocupação do lugar vazio que faz avançar o filme todo, seja físico ou seja um lugar afetivo que não consegue preencher fisicamente nem qualquer espécie de substituição. Foi difícil escrever este filme porque tal como em muitos outros projetos meus, eu sou anti-narrativo no sentido de que aquilo que me interessa nos personagens é quase um convite à inatividade. É o momento em que eles estão indecisos sobre o que podem fazer para mudar, para se transformarem e uma das regras narrativas mais comuns tem a ver com o contrário disso: a personagem tem que lançar uma linha para um futuro qualquer em que alguma coisa se vai transformar, tem que estabelecer um objetivo e na superação desse objetivo haver qualquer coisa de transformação.

E aqui, mesmo o título do filme, Mariphasa, que é o nome de uma flor, ficcional, flor que serve, justamente, de antídoto a essa transformação. Existe um convite à inatividade ou um convite a uma atividade que se passa internamente a cada uma das personagens e que só temos acesso a alguns momentos da vida deles. Podemos imaginar, ou antecipar ou especular sobre o que é que cada um deles quer, mas nada nos é dito de forma muito clara, não é que eu tenha muita vontade de esconder, mas também porque para cada um daqueles personagens não é muito claro qual seria o pequeno passo ou o grande passo que os poderia fazer sair do processo em questão.  E como existe qualquer coisa de pesadelo, qualquer coisa de post-mortem. De certa maneira há pouco mundo à volta daqueles personagens e há pouca realidade à volta daquilo tudo. É como se houvesse um trabalho de isolamento quase laboratorial, ou seja, é preciso isolar cada um dos componentes que pomos em jogo, partículas ou moléculas, para poder perceber qual é a verdadeira ação que os elementos estão a ter sobre elas. Mas existe assim esse efeito de inatividade. De convite a uma certa estagnação que é aquilo que mais me interessa nos personagens e eu acabo por chegar a essa conclusão não à priori, que foi uma coisa que constatei no processo deste filme, em que eu comecei quase por um arquétipo narrativo muito sedutor, muito normal, muito standard e depois o meu trabalho acaba por ser de apagar esse efeito de reconhecimento da realidade e um aspeto qualquer de transfiguração da realidade e que me vai aproximando destas características de personagens, que por alguma razão é recorrente no meu cinema.
A cena da mãe e do filho e a lógica do pesadelo.
O que eu quis foi dar ao filme esse caráter de pesadelo e a própria lógica do filme fosse de pesadelo, ou seja, os conflitos não são claros, há uma tensão que não sabemos de onde é que vem. Tal como num pesadelo, às vezes um pequeno gesto seria o suficiente para sair da condição em que se está. Por alguma razão, nós não conseguimos fazer esse gesto faz parte da natureza mental do pesadelo para nos manter naquela situação e isso eu acho um desafio muito interessante de trabalhar num filme assim, ou seja, ter as portas, o labirinto através de dois apartamentos, numa lógica labiríntica de habitação do espaço e tem a ver com essa lógica de pesadelo. Essa minha relação com o pesadelo ou o sonho, eu não gosto muito de trabalhar personagens loucas, parece-me um desafio menor, quase um livre trânsito para tudo, nem ter uma dimensão onírica que perca alguma concretude. E por isso, se isto é um pesadelo, é um daqueles pesadelos que nos parecem, que tem características da nossa realidade, isolam características específicas da nossa realidade, mas que não se parecem com ela. Esse equilíbrio é também o que mais me agrada no filme: é ter o aspeto de pesadelo, mas não nada que sinalize o que é que é real e o que não é real. Ou seja, mesmo quando o miúdo acorda do pesadelo, descreve o pesadelo, aquele pesadelo é a coisa mais concreta do filme todo, se calhar é a coisa mais real do filme todo. O que parece mais realista no filme todo é um miúdo a acordar de um pesadelo. E tudo o resto parece fazer parte desse pesadelo ou de outros pesadelos. Essas linhas de comunicação entre essas duas coisas, eu queria que fossem completamente esbatidas.
A questão da paisagem. Os espaços de ruínas, destruídas. Quase entramos num ambiente pós-apocalíptico. A caracterização dos espaços.
Os espaços deste filme são prolongamentos das personagens, prolongamentos de características que eles têm ou quase subtemas do próprio filme. Especificamente sobre os espaços, gosto que aqueles sejam espaços realistas. Aquele apartamento devassado após um assalto é um apartamento devassado após um assalto, tal como eu já vi, tudo fora do sítio. O que não é muito normal é a reação das personagens a isso, ou seja, o facto daquilo ficar assim, de estagnar naquela situação.
Uma fábrica para onde ele vai trabalhar, é aquilo mesmo, nós não manipulamos de forma nenhuma. São restos de toda uma atividade que aconteceu ali e que agora já não existe. Ainda restam ali vestígios, ruínas, ácido, pedra corroída. Isso está lá neste momento. O apartamento do vizinho é um apartamento que tem qualquer coisa de apartamento que já foi acolhedor nos anos 70, e, embora o personagem habite o apartamento, parece estar tal qual foi deixado pelos pais e onde viveu quando era criança, pouco mexeu naquilo, é uma espécie de portal para o passado daquele personagem. O percurso que a personagem principal, o Paulo, faz ao longo do filme faz com que ele, quase que atravesse coisas que tenham a ver com o seu passado ou com o seu crescimento e dentro desta lógica do arquétipo do Dr. Jekyll and Mr. Hyde foi depois espalhar características do personagem por vários outros, ou seja, em vez de trabalhar com uma duplicidade, comecei a espalhar por outros tempos e por outros personagens e há qualquer coisa de miragem, por exemplo, na relação dele com a personagem que faz o João Pedro Bénard, mais velho, qualquer coisa de ponto de chegada e qualquer coisa também de ponto iniciático no miúdo, por exemplo, são os dois extremos. Há também qualquer coisa de substituição da esposa dele que desapareceu ou da filha, há aqui muitos aspetos de substituição dos personagens por outros. O que eu queria é que os espaços pudessem aludir a isto, ou seja, haver qualquer coisa de que eles exprimissem esta dicotomia, mas de uma forma muito linear. Algo que rapidamente fiz quando comecei a escrever: foi que houvesse uma certa promiscuidade nos elementos selvagem ou doméstico/civilizado, esta tensão que eu falava no início, entre qualquer coisa selvagem e qualquer coisa civilizada, que houvesse contaminação de umas coisas para as outras. A fábrica é um não-espaço, não é muito claro o que aquilo é. Alguns indícios de uma fábrica antiga, é um sítio que já parece ter tido atividade, mas está abandonado há muito tempo e tem qualquer coisa de cru, de pedra, de fogo, da água, esses são os elementos primordiais que tem a ver com o sítio para onde ele vai para a obra. Mas depois queria que houvesse uma contaminação, que não fosse muito linear esta dicotomia, porque também não gosto muito dessa limpeza. Os espaços, neste filme, são quase personagens.

O trabalho dos atores. Como foi o teu trabalho com os atores.
É uma mistura de reencontros, com atores com quem já trabalhei noutros filmes, alguns dos quais com alguma progressão no tipo de personagem que, por exemplo, a Isabel vai fazendo ao longo dos meus filmes. Há uma espécie de linha de progressão nos vários personagens que ela vai interpretando. E também com o Albano, com quem também já trabalhei no Voodoo e no Mercúrio. Tem um sabor de um reencontro. No caso do António Júlio Duarte tinha trabalhado com ele no Bunker. Para personagem principal, tal como na Zona, a minha primeira longa queria ter um ator, ou uma presença, que fosse capaz de carregar, em si próprio, pela sua presença haver um carácter definidor do que aquela personagem é, que é uma personagem que sobretudo olha e enfrenta, está a presenciar coisas que acontecem à sua frente e que queria que ele trouxesse o inferno no resto e eu acho que o António Júlio já me oferecia isto. Acho que antes de trabalhar com ele no Bunker já tinha pensado nele para este filme. Depois tenho o Eduardo, que é meu filho, e portanto conheço muito bem; e o João Pedro Bénard que surgiu mais tarde como ideia para este personagem, era mais novo no início, mas depois, das poucas coisas que fiz ao reescrever, foi dar-lhe uma idade diferente, de facto ele estar no outro extremo, oposto ao do miúdo, em termos de possibilidade, em termos de caminho e é um personagem que aparece a queimar fotografias, que parece estar numa últim a noite de despedida de qualquer coisa e de ser assim uma espécie de presença fantasmática, de um futuro possível para o personagem principal. Eu não faço muito essa distinção entre os atores e os não-atores. Eu sei que com alguns deles, como a Isabel ou Albano, não só têm a capacidade técnica e o hábito de trabalharem comigo para não me darem coisas que eu não gosto nas personagens. O trabalho com os atores é uma coisa muito intuitiva, vamos trabalhando de uma determinada forma. Com não-atores, existem outras estratégias para chegar ao mesmo lugar.
O som do filme cria uma tensão durante o filme. A música e a apoteose de Seger, híper romântica, mas que é até usada contra.
Eu não uso muito música nos filmes e neste caso quis, foi uma ideia que surgiu durante o processo. A música do Bob Seger faz uma comunicação entre as duas personagens: o personagem do vizinho e o personagem da rapariga. No início, narrativamente, queria que aquela música, posta muito alta a tocar, fosse uma maneira de azucrinar o homem que vive com a personagem da Isabel e de fazer um convite à personagem da Isabel. A letra muito explicitamente alude a isso “We have got tonight / Who needs tomorrow”, a letra é uma espécie de livre trânsito para o engate: naquela noite, tudo pode acontecer; e depois amanhã logo se vê. Só que, coincidentemente, os personagens não têm muito mais aqui neste filme do que uma noite e portanto parece que eles só têm efetivamente esta noite para, o filme só tem esta noite para acontecer o que quer que seja que tenha que para acontecer. Portanto, acabada esta noite, eles parece que vão se dissolver, vão-se desfazer e vão desaparecer, enquanto personagens e enquanto filme. Nós estamos a apanhar a ação e estes personagens, em meia dúzia de horas que se vão passando, com grandes elisões – o filme quase não tem dia – queria que houvesse este efeito de filme em diferido. Os grandes acontecimentos do filme acontecem fora do filme. Nós temos acesso a uma coisa muito em diferido – seja a morte da filha, seja pequenas coisas narrativas que existem lá – e queria que de uma forma muito explícita, o filme ao não ter dias, ser um momento qualquer em que algumas coisas acontecem para algumas personagens e um momento de inconsciência para outras personagens. Por exemplo, no momento em que o personagem principal está a dormir. E enquanto ele está a dormir não dia. É uma última noite. Há quase que um apelo a um suicídio qualquer coletivo, de que a existência deles é completamente efémera.
Segunda longa; temas repetidos; da Zona até Mariphasa, o que transformou?
Há um aspeto que é bastante diferente na maior parte dos meus filmes. Durante os meus filmes todos, raramente fiz um campo/contracampo e em muitos filmes, quase não existem personagens, eu quase não os filmo. E neste filme, são poucos os planos do filme em que eu não tenho personagem e em que eu não tenho alguém a olhar para alguma coisa. No limite, nos últimos 20 minutos do filme, são campos/contracampos, sem que os personagens se consigam ver uns aos outros. Estender uma coisa que eu nunca fiz para durante 20 minutos parece-me relativamente novo. Filmei estes campos/contracampos com barreiras físicas, que os personagens não se consigam ver. Alguns destes são falsos campos/contracampos. Mesmo que eu filme os personagens, isso não significa que eles não sejam misteriosos, nem para espectador, nem para mim. Eu filmo os personagens, mas não os preencho com elementos narrativos ou com dinâmicas de ação.
Daniel Ribas


CRÍTICA
A segunda longa de Sandro Aguilar é menos uma narrativa, mais um pesadelo emocional paredes-meias com o fantástico, uma história de gente sem saída contada de modo puramente sensorial. Assombroso, inesgotável filme.

Gente perdida, sem saber para onde vai, sem saber o que quer ou o que os espera. O que podem eles fazer contra o destino? Há um acidente. Um funeral. Um homem que já não é bem-vindo. O seu caminho cruza uma mulher e o seu filho, ambos com medo; um outro homem (marido, ex-marido?), caçador, alguém que cria medo. Andam à volta uns dos outros, como animais enjaulados num zoológico. (E às tantas a mulher é veterinária.) Há algo de malsão a trabalhar em Mariphasa, algo de maligno, de mais assustador do que qualquer filme de terror. Mas há também um conforto estranho: o de sabermos que esta gente é como nós. Talvez sejamos nós — gente perdida, transtornada, que já não sabe mais para onde se virar, gente perdida, assustada, à beira de explodir, à beira de libertar algo. O quê? Não sabemos, Sandro Aguilar não no-lo diz. Prefere deixar-nos ali a boiar neste plasma líquido, neste fluido amniótico de vidas com medo, de pesadelos nocturnos, sempre de noite, sempre às escuras, sob o signo do sangue.
Mariphasa é apenas a segunda longa de Aguilar numa carreira feita quase inteiramente, e por deliberação, no formato curto. À imagem da primeira, A Zona, de 2008, e da grande maioria das suas curtas, é um jogo de “unir os pontos” para descobrir a imagem, sob o signo de uma planta que não existe (a “mariphasa” do título, “um antídoto para uma transformação que, a ocorrer, terá consequências terríveis”, nas palavras do seu autor) e que abre o filme às portas do cinema fantástico. O que interessa, contudo, é que tudo o que parece opaco no papel encaixa e faz sentido no ecrã, mesmo que seja um sentido que não se explica (e que o filme não tenta sequer explicar) mas que se sente aqui dentro. Mariphasa não é um filme, é um estado de alma, negro, envolvente contudo inexplicável, abstracto e contudo sempre a intrigar-nos para o tentarmos resolver — assombroso no modo como a sua narrativa não se constrói mas na prática floresce exclusivamente a partir de fragmentos com ligações aparentemente ténues, extraordinário no modo como tudo é sugerido mais do que explicado, deixado ao espectador fazer as ligações que bem entender. Vimos Mariphasa três vezes, em todas elas a sua flor malsã abriu de formas diferentes, em todas elas vimos outro filme vendo o mesmo filme. Mariphasa não se esgota, nunca. São raros os filmes assim.
, Público