MILLA
Valérie
Massadian
França/Portugal, 2017, 128’,
M/12
FICHA TÉCNICA
Realização e Montagem: Valérie Massadian
Fotografia: Mel Massadian e Robin Fresson
Som:
Aline Huber
Interpretação:
Séverine Jonckeere, Ethan Jonckeere, Luc Chessel, Élisabeth Cabart, Valentine
Carette,
Franck
Williams
Origem: França/Portugal
Ano: 2017
Duração: 128'
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Locarno 2017 - Cineastas do Presente -
Prémio especial do júri
DocLisboa - Grande Prémio Cidade de Lisboa para Melhor
Filme da Competição Internacional 2017
Muestra de Cine de Lanzarote 2017 - Grand Prix
Ficunam - Melhor Realizador Competição InternacionaL
2018
CRÍTICA
Um filme como um pedaço de
acompanhamento de uma vida. Se nos agarrarmos a isto, num filme como um projecto
de doçura, podemos não reparar nas risadas tão tristes como as feridas que não
saram de Milla.
Ainda não houve genérico inicial e já se
explicita o desajustamento da personagem de Milla. Há aquele olhar dela sobre
Luc, o seu companheiro, que parece falar de uma perda. Ainda não sabemos o que
está nela, mas pressente-se a tristeza de quem se sente sem posição, sem lugar.
A intervenção do título do filme, Milla,
o aparecimento do genérico inicial, parecendo cortar esse olhar da personagem,
não protege o espectador dos seus efeitos. O olhar ao fixar-se em Luc fixa-se
na sala como se seguisse a fuga de uma esperança irrealizável, já com saudades
dela. O plano corta, o olhar fica connosco.
Não será esse o olhar da actriz Severine Jonckeere
sobre o seu partenaire Luc Chessel a
revelar a inadequação, a maladresse e
até a vergonha, a dificuldade de encontrar o seu espaço no filme? Severine é
uma rapariga de 16-17 anos, já mãe, que a realizadora descobriu numa casa de
abrigo de Cherburgo, e faz um filme ao lado de um
actor-que-também-é-crítico-de-cinema e que visivelmente está, ele sim, no seu
território.
Nessa fracção de segundo, aquele olhar, que reverbera
por toda uma longa-metragem, concentrando diferenças de classe e abandono
afectivo e dispensando as demonstrações temáticas, está a violência e a doçura
do cinema de Valérie Massadian — cinema que se vem fazendo como um pacto,
expondo e amparando a vida agreste das raparigas que são lançadas à conquista
dos filmes.
42 anos, francesa de origem arménia, primeiro
fotógrafa (e editora fotográfica de Nan Goldin, de quem foi “modelo”), agora
realizadora, tem sido fiel, desde a primeira longa-metragem, Nana (melhor
Primeira Obra em Locarno 2011), à prática — por isso tem sido inevitável
lembrarmo-nos de alguém como Maurice Pialat (1925-2003) de cada vez que
encontramos Milla — de ancorar a verdade da ficção na rodagem
do filme e nas relações que ali se forjam. (E é também à la Pialat, já agora, a
forma como Milla se vê livre dos rodriguinhos do cinoche,
termo que era caro ao realizador de La Gueule Ouverte, filme de
1974, e de Aos Nossos Amores, de 1983, para destilar o seu habitual
azedume e dar uma sapatada em tudo o que pudesse ter a pretensão de suavizar as
rugosidades da vida).
Até agora com apenas duas longas-metragens em seis
anos, Nana e Milla (Prémio do Júri na secção
Cineasti del presente em Locarno 2017), podemos dizer que o cinema da
realizadora tem necessitado de tempo para construir a relação com as suas
“actrizes” e ampará-las nos seus gestos — como conversas, diálogos, cujas vozes
até parecem sobrepor-se aos gestos e mesmo às próprias vozes da ficção. Por
exemplo, é como se Kelyna Lecomte, a miúda de Nana, estivesse a
“mandar recados” para fora do enquadramento à realizadora em cada um dos seus
totalitários monólogos de construção do mundo; em Milla é um
diálogo mais paritário e mais explícito porque Massadian inscreve-se às tantas
como personagem na ficção — Milla é Severine, Severine poderá ser Massadian,
que pode já ter estado no lugar de Severine...—, abrindo-se aí caminho à
contemplação da vida, à melancolia e à doçura. O filme é um pedaço de
acompanhamento de uma vida e não já apenas o documento ou a ficção de um pedaço
de vida.
E é aqui, já que poderemos ter pecado com uma desajustada
invocação do santo nome de Pialat em vão, que vamos atribuir a Massadian o que
é de Massadian: a ternura com que investe pela aspereza do mundo.
Nana, vivendo como vivia no bosque sem tempo de
fábula, mostrava uma menina de quatro anos com uma voracidade assustadora a
descobrir e refazer o mundo. Já para Milla, 16-17 anos e já mãe, não há fábulas
à sua altura, tem de se haver com o tempo e com uma paisagem, física, social e
humana, que permanece sem compaixão — haverá um terceiro filme, segundo a realizadora,
para completar esta trilogia sobre raparigas em idades de transição, e para
isso até voltará a Kelyna Lecomte, que hoje é uma pessoa diferente, tem 11
anos.
Além daquele olhar antes do genérico de Severine
Jonckeere — como já se percebeu, esta mãe com filho, Ethan, é uma mãe de ficção
chamada Milla, mas é Severine —, há as risadas dela, que não disfarçam, antes
expõem, o seu desajustamento, o desconforto do seu corpo proletário e redondo
que a rapariga de Cherburgo terá de aprender a esquecer ou a encarar, antes de
conseguir, finalmente, habitar o filme.
De resistência em resistência, porque a morte aparece
pelo meio, o filme autoriza a que se fale de uma calmaria final, um abandono,
um repouso. Severine conquista o seu filme? Uma confissão: lutamos, perante Milla como
perante Nana, contra ceder aos focos de negrume que vemos irromper,
mas é uma luta inglória, encontramo-los a cada revisão; a forma como sobre as
personagens se aperta a claustrofobia (à la Chantal Akerman de Jeanne
Dielman...), os gestos que se repetem de filme para filme, de personagem
para personagem, cada uma sendo o inescapável destino da outra; ou aquela
abertura de Milla a repetir-se no plano final, se calhar é
apaziguamento, sim — ou será que nada mudou, é o mesmo gesto, é a vida que é
assim? Ainda, os blocos de presente com que Milla se instala com as
suas elipses mas que vão acumulando para o espectador memória, fazendo-o
regressar a indícios que estavam lá atrás. Para acabar como no princípio, o
olhar de Severine, e as risadas... tão tristes como feridas que não saram. Está
em todos os planos de Milla, mas vamos fazer por esquecer a vida
agreste e agarramo-nos ao olhar de doçura.
Vasco
câmara, Público
CONVERSA COM A REALIZADORA
"Já não tenho 20 anos, não faço
cinema para fazer uma carreira. Já vivi na verdade muitas vidas e o cinema é
apenas a última — sem nada de fatalista, porque me dá a sensação de ter
encontrado o meu lugar. No cinema, as possibilidades são para mim infinitas:
amanhã posso perfeitamente pegar na minha máquina fotográfica e no meu iPhone,
ir fazer um filme e fico perfeitamente bem. Mas, quando fiz Nana, foi um tal milagre tê-lo feito
sozinha, com 80 mil euros, em absoluta liberdade — havia uma certa virgindade
que, desta vez, não existiu. Houve muita gente que gostou de Nana, mas em França não me levaram muito
a sério. Houve algumas pessoas pelo mundo fora que me tomaram logo por
realizadora, disseram, 'OK, aqui há qualquer coisa', mas não foram muitas! E
por muitas razões — o meu sexo, a minha idade, o meu meio social, as minhas vidas
anteriores, a minha franqueza, a minha falta de maneiras — não pertenço à casta
[francesa] do cinema. Isso não me impedirá de fazer filmes mas..."
O
discurso é torrencial, pontuado por gargalhadas sinceras, pausas para pensar,
uma ou outra passa nos cigarros comprados em Portugal, tirados de uma carteira
onde se vêem crachás de promoção de filmes de amigos seus — O Ornitólogo, de
João Pedro Rodrigues, e A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho. Valérie Massadian
tem uma "história" com Portugal: foi a descoberta do cinema de Pedro
Costa que fez esta fotógrafa passar à imagem em movimento; Portugal foi dos
raros países onde Nana (2011),
história de uma menina de quatro anos à solta na floresta e vencedor do prémio
de Melhor Primeira Obra em Locarno 2011, teve estreia comercial; e o colectivo
português Terratreme é co-produtor da sua segunda longa, Milla, que saíu vencedora do Prémio do Júri na competição
secundária de Locarno 2017, Cineasti del presente.
Esse prémio
está ainda no futuro quando conversamos com Valérie Massadian, num pátio
recolhido de uma pequena pensão de Locarno, num dia quente de Agosto, pouco
depois da primeira sessão pública de Milla.
A segunda longa da fotógrafa francesa de ascendência arménia é um dos
títulos-âncora da competição do Doclisboa 2017, o que pode parecer estranho
para um filme que tem os
contornos de ficção, acompanhando o percurso de uma adolescente à
deriva, vivendo "à margem" com o seu namorado. Mas a actriz que dá
(literalmente) vida a Milla, Séverine Jonckeere, é uma não-profissional
recrutada num longo casting em centros de acolhimento, contracenando com Luc
Chessel, que tem no currículo pequenos papéis em filmes de Nicolas Klotz ou
Benjamin Crotty mas que é, na "vida real", crítico de cinema do
jornal Libération. E, tal como Nana
cruzava as fronteiras das "ficções do real" ao se deixar levar, no
momento, pela presença e pela fantasia da sua pequena actriz, também Milla flutua num limbo onde é dificil
perceber o que é real e o que é encenado.
O que
Valérie filma é, por entre uma história esboçada de modo solto, o documento do
encontro destes corpos, destas pessoas, num enquadramento de cinema, como
explica entre um cigarro e um copo de água. "Tive vontade de confrontar
estas duas inteligências — a Séverine tem uma inteligência de sobrevivência,
quase animal, e o Luc uma
inteligência estruturada. Para mim confrontá-los era o melhor meio de conseguir
falar da possibilidade, e da impossibilidade, amorosa entre os seres.
Porque vão sempre existir momentos de incompreensão. "
Perguntamos-lhe
se espera que haja uma "faísca" frente à câmara. "Talvez não uma
faísca," diz, "porque uma faísca é qualquer coisa que faz barulho,
que se nota. Não, quando coloco a câmara num local, espero que chegue a
graça." Explica melhor: "Posso ter uma ideia de realização, mas isso
não passa de um ponto de partida. Essa ideia é algo para ser destruído,
submergido, partido, perdido, para encontrar outra coisa em seu lugar. O meu
primeiro desejo é que, nesses enquadramentos extremamente estruturados, que
podemos considerar como fixos, de repente aconteça qualquer coisa de sanguíneo,
de vivo, que não se controla — nem o enquadramento, nem quem está à frente da câmara,
nem quem está por trás da câmara. Algo que escape à ideia."
Mais à frente na conversa, Valérie falará,
entre risos, de "espeleologia" — "é um pouco como andar a
pesquisar ouro, e de repente encontramo-lo, na montagem, quando reparamos que
está lá qualquer coisa que não tínhamos visto durante a rodagem, uma espécie de
prenda." Mas não há improvisação, "ou certamente não como a
entendemos, porque a improvisação seria um trabalho sobre o texto e sobre o que é
dito," explica a realizadora. "Ora nada está escrito, aliás
os argumentos para mim não
existem, são apenas pretextos para assaltar bancos!" diz entre gargalhadas
sonoras, referindo-se à necessidade burocrática de apresentar um documento
escrito para garantir apoios. "Não há diálogo escrito, e o meu trabalho
com os actores é um pouco como se faz em música — sobre uma palavra, uma nota,
uma emoção. Encontrar esse momento de graça não é improvisação, é apenas tempo.
E o tempo é a coisa mais preciosa que existe no cinema: o tempo de fazer, o
tempo de pensar, o tempo de montar. "
Por essa mesma bitola, Valérie
confessa que há algo de profundamente instintivo no seu cinema. "Foi-me
muito fácil filmar Nana. É-me muito
fácil trabalhar com crianças — basta-me estar ali, de gatas, toda suja, sem
nada que explicar, a brincar e a filmar e a divertir-me. Aqui ia ser diferente,
porque estou a trabalhar com gente que já é adulta, que já faz parte do mundo,
que já tem consciência da sua imagem, do que vão pensar deles, e é muito mais
dificil aceder a esse abandono. Funciono muito por instinto, e no plateau tudo é muito orgânico, sem um
pensamento estruturado." É também aí que entra a definição de "ficção
do real", porque o que a realizadora filma é também a aprendizagem da vida
frente à câmara; o que acontece
é, de facto, um do confronto dos seus com a realidade. "Mas procuro ampará-los,
senão seria um vampiro, sentir-me-ia suja. A Milla é alguém atirada para um mundo ao qual não está
minimamente adaptada — não sabe fazer a cama, dobrar roupa, mas tenta,
esforça-se, e aprende e de repente tem de aprender a ocupar-se de uma criança. Nessas cenas
queria mostrar a sua fraqueza mas sem cair no ridículo. Porque ela esforça-se, ela tenta, e tenho
vontade de a proteger."
Valérie
admite, aliás, gue o seu maior medo ao terminar um filme não reside no
acolhimento da crítica ou do espectador. “É sentir que não
estive à altura das pessoas com quem trabalhei. Lembro-me que acabei Nana uma noite às três da manhã, e saí de casa para ir andar a pé, estava
praticamente a levitar e chorava que nem uma madalena, 'consegui, acabei o
filme, e não os traí’”. Mais gargalhadas. “ Aqui não acabei
o filme às três da manhã nem chorei, mas senti o mesmo: que me podia olhar a própria ao espelho
e olhá-los a eles nos olhos, e eles não se ima sentir sujos, traídos, gozados. O filme
era digno, honesto, humano,
não era perfeiro, mas se eles o vissem e nele encontrassem a alegria e a ternura que procurei, então
outras pessoas também o iriam
sentir."
Porque, na verdade, é isso que Valérie Massadian quer fazer: levar os espectadores a sentir.
”Se me pedem para ir passar horas
com gente que não conheço numa sala
escura, não quero que
me dêem a papinha feita. Dou por mim
com cinco anos de idade
como
se fosse criança. Fico a ver, à espera que
o filme me diga o que tem para me dizer ou para me fazer sentir. Não espero nada de
um filme, porque não há na esperar:
o filme é projectado e cabe-nos a nós decidir o que vemos nele. A maior parte filmes não nos deixam espaço para sermos nós mesmos, para sentirmos,
para pensar. Tudo é dito, redito, explicado, mostrado. Lembro-me de mostrar Nana na aldeia onde o rodámos, e no fim da
projecção uma miúda dos seus 25 anos, com três meninos pela mão, veio ter comigo e disse-me
'desculpe, acha que podia ver outra vez o filme? É gue quando vejo um filme é
como se me dissessem, aqui sinto isto rio-me e aqui penso desta maneira. E com
o seu filme não. Posso ser eu própria a
vê-lo.' Virei-me para a minha mãe e disse-lhe, ‘
pronto, já posso morrer feliz."
Valérie
Massadian solta uma
gargalhada.
Jorge
Mourinha, Público
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