MILLA | 20 NOV | 21H30 | IPDJ


MILLA
Valérie Massadian
França/Portugal, 2017, 128’, M/12

FICHA TÉCNICA

Realização e Montagem:  Valérie Massadian
Fotografia: Mel Massadian e Robin Fresson 
Som: Aline Huber   
Interpretação: Séverine Jonckeere, Ethan Jonckeere, Luc Chessel, Élisabeth Cabart, Valentine Carette,
Franck Williams
Origem: França/Portugal
Ano: 2017
Duração: 128'

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Locarno 2017 - Cineastas do Presente - Prémio especial do júri 
DocLisboa - Grande Prémio Cidade de Lisboa para Melhor Filme da Competição Internacional 2017
Muestra de Cine de Lanzarote 2017 - Grand Prix 
Ficunam - Melhor Realizador Competição InternacionaL 2018 


CRÍTICA


Um filme como um pedaço de acompanhamento de uma vida. Se nos agarrarmos a isto, num filme como um projecto de doçura, podemos não reparar nas risadas tão tristes como as feridas que não saram de Milla.
Ainda não houve genérico inicial e já se explicita o desajustamento da personagem de Milla. Há aquele olhar dela sobre Luc, o seu companheiro, que parece falar de uma perda. Ainda não sabemos o que está nela, mas pressente-se a tristeza de quem se sente sem posição, sem lugar. A intervenção do título do filme, Milla, o aparecimento do genérico inicial, parecendo cortar esse olhar da personagem, não protege o espectador dos seus efeitos. O olhar ao fixar-se em Luc fixa-se na sala como se seguisse a fuga de uma esperança irrealizável, já com saudades dela. O plano corta, o olhar fica connosco.
Não será esse o olhar da actriz Severine Jonckeere sobre o seu partenaire Luc Chessel a revelar a inadequação, a maladresse e até a vergonha, a dificuldade de encontrar o seu espaço no filme? Severine é uma rapariga de 16-17 anos, já mãe, que a realizadora descobriu numa casa de abrigo de Cherburgo, e faz um filme ao lado de um actor-que-também-é-crítico-de-cinema e que visivelmente está, ele sim, no seu território.
Nessa fracção de segundo, aquele olhar, que reverbera por toda uma longa-metragem, concentrando diferenças de classe e abandono afectivo e dispensando as demonstrações temáticas, está a violência e a doçura do cinema de Valérie Massadian — cinema que se vem fazendo como um pacto, expondo e amparando a vida agreste das raparigas que são lançadas à conquista dos filmes.
42 anos, francesa de origem arménia, primeiro fotógrafa (e editora fotográfica de Nan Goldin, de quem foi “modelo”), agora realizadora, tem sido fiel, desde a primeira longa-metragem, Nana (melhor Primeira Obra em Locarno 2011), à prática — por isso tem sido inevitável lembrarmo-nos de alguém como Maurice Pialat (1925-2003) de cada vez que encontramos Milla — de ancorar a verdade da ficção na rodagem do filme e nas relações que ali se forjam. (E é também à la Pialat, já agora, a forma como Milla se vê livre dos rodriguinhos do cinoche, termo que era caro ao realizador de La Gueule Ouverte, filme de 1974, e de Aos Nossos Amores, de 1983, para destilar o seu habitual azedume e dar uma sapatada em tudo o que pudesse ter a pretensão de suavizar as rugosidades da vida).
Até agora com apenas duas longas-metragens em seis anos, Nana e Milla (Prémio do Júri na secção Cineasti del presente em Locarno 2017), podemos dizer que o cinema da realizadora tem necessitado de tempo para construir a relação com as suas “actrizes” e ampará-las nos seus gestos — como conversas, diálogos, cujas vozes até parecem sobrepor-se aos gestos e mesmo às próprias vozes da ficção. Por exemplo, é como se Kelyna Lecomte, a miúda de Nana, estivesse a “mandar recados” para fora do enquadramento à realizadora em cada um dos seus totalitários monólogos de construção do mundo; em Milla é um diálogo mais paritário e mais explícito porque Massadian inscreve-se às tantas como personagem na ficção — Milla é Severine, Severine poderá ser Massadian, que pode já ter estado no lugar de Severine...—, abrindo-se aí caminho à contemplação da vida, à melancolia e à doçura. O filme é um pedaço de acompanhamento de uma vida e não já apenas o documento ou a ficção de um pedaço de vida.
E é aqui, já que poderemos ter pecado com uma desajustada invocação do santo nome de Pialat em vão, que vamos atribuir a Massadian o que é de Massadian: a ternura com que investe pela aspereza do mundo.
Nana, vivendo como vivia no bosque sem tempo de fábula, mostrava uma menina de quatro anos com uma voracidade assustadora a descobrir e refazer o mundo. Já para Milla, 16-17 anos e já mãe, não há fábulas à sua altura, tem de se haver com o tempo e com uma paisagem, física, social e humana, que permanece sem compaixão — haverá um terceiro filme, segundo a realizadora, para completar esta trilogia sobre raparigas em idades de transição, e para isso até voltará a Kelyna Lecomte, que hoje é uma pessoa diferente, tem 11 anos.
Além daquele olhar antes do genérico de Severine Jonckeere — como já se percebeu, esta mãe com filho, Ethan, é uma mãe de ficção chamada Milla, mas é Severine —, há as risadas dela, que não disfarçam, antes expõem, o seu desajustamento, o desconforto do seu corpo proletário e redondo que a rapariga de Cherburgo terá de aprender a esquecer ou a encarar, antes de conseguir, finalmente, habitar o filme.
De resistência em resistência, porque a morte aparece pelo meio, o filme autoriza a que se fale de uma calmaria final, um abandono, um repouso. Severine conquista o seu filme? Uma confissão: lutamos, perante Milla como perante Nana, contra ceder aos focos de negrume que vemos irromper, mas é uma luta inglória, encontramo-los a cada revisão; a forma como sobre as personagens se aperta a claustrofobia (à la Chantal Akerman de Jeanne Dielman...), os gestos que se repetem de filme para filme, de personagem para personagem, cada uma sendo o inescapável destino da outra; ou aquela abertura de Milla a repetir-se no plano final, se calhar é apaziguamento, sim — ou será que nada mudou, é o mesmo gesto, é a vida que é assim? Ainda, os blocos de presente com que Milla se instala com as suas elipses mas que vão acumulando para o espectador memória, fazendo-o regressar a indícios que estavam lá atrás. Para acabar como no princípio, o olhar de Severine, e as risadas... tão tristes como feridas que não saram. Está em todos os planos de Milla, mas vamos fazer por esquecer a vida agreste e agarramo-nos ao olhar de doçura.
Vasco câmara, Público


CONVERSA COM A REALIZADORA
"Já não tenho 20 anos, não faço cinema para fazer uma carreira. Já vivi na verdade muitas vidas e o cinema é apenas a última — sem nada de fatalista, porque me dá a sensação de ter encontrado o meu lugar. No cinema, as possibilidades são para mim infinitas: amanhã posso perfeitamente pegar na minha máquina fotográfica e no meu iPhone, ir fazer um filme e fico perfeitamente bem. Mas, quando fiz Nana, foi um tal milagre tê-lo feito sozinha, com 80 mil euros, em absoluta liberdade — havia uma certa virgindade que, desta vez, não existiu. Houve muita gente que gostou de Nana, mas em França não me levaram muito a sério. Houve algumas pessoas pelo mundo fora que me tomaram logo por realizadora, disseram, 'OK, aqui há qualquer coisa', mas não foram muitas! E por muitas razões — o meu sexo, a minha idade, o meu meio social, as minhas vidas anteriores, a minha franqueza, a minha falta de maneiras — não pertenço à casta [francesa] do cinema. Isso não me impedirá de fazer filmes mas..."

O discurso é torrencial, pontuado por gargalhadas sinceras, pausas para pensar, uma ou outra passa nos cigarros comprados em Portugal, tirados de uma carteira onde se vêem crachás de promoção de filmes de amigos seus — O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, e A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho. Valérie Massadian tem uma "história" com Portugal: foi a descoberta do cinema de Pedro Costa que fez esta fotógrafa passar à imagem em movimento; Portugal foi dos raros países onde Nana (2011), história de uma menina de quatro anos à solta na floresta e vencedor do prémio de Melhor Primeira Obra em Locarno 2011, teve estreia comercial; e o colectivo português Terratreme é co-produtor da sua segunda longa, Milla, que saíu vencedora do Prémio do Júri na competição secundária de Locarno 2017, Cineasti del presente.
Esse prémio está ainda no futuro quando conversamos com Valérie Massadian, num pátio recolhido de uma pequena pensão de Locarno, num dia quente de Agosto, pouco depois da primeira sessão pública de Milla. A segunda longa da fotógrafa francesa de ascendência arménia é um dos títulos-âncora da competição do Doclisboa 2017, o que pode parecer estranho para um filme que tem os contornos de ficção, acompanhando o percurso de uma adolescente à deriva, vivendo "à margem" com o seu namorado. Mas a actriz que dá (literalmente) vida a Milla, Séverine Jonckeere, é uma não-profissional recrutada num longo casting em centros de acolhimento, contracenando com Luc Chessel, que tem no currículo pequenos papéis em filmes de Nicolas Klotz ou Benjamin Crotty mas que é, na "vida real", crítico de cinema do jornal Libération. E, tal como Nana cruzava as fronteiras das "ficções do real" ao se deixar levar, no momento, pela presença e pela fantasia da sua pequena actriz, também Milla flutua num limbo onde é dificil perceber o que é real e o que é encenado.
O que Valérie filma é, por entre uma história esboçada de modo solto, o documento do encontro destes corpos, destas pessoas, num enquadramento de cinema, como explica entre um cigarro e um copo de água. "Tive vontade de confrontar estas duas inteligências — a Séverine tem uma inteligência de sobrevivência, quase animal, e o Luc uma inteligência estruturada. Para mim confrontá-los era o melhor meio de conseguir falar da possibilidade, e da impossibilidade, amorosa entre os seres. Porque vão sempre existir momentos de incompreensão. "
Perguntamos-lhe se espera que haja uma "faísca" frente à câmara. "Talvez não uma faísca," diz, "porque uma faísca é qualquer coisa que faz barulho, que se nota. Não, quando coloco a câmara num local, espero que chegue a graça." Explica melhor: "Posso ter uma ideia de realização, mas isso não passa de um ponto de partida. Essa ideia é algo para ser destruído, submergido, partido, perdido, para encontrar outra coisa em seu lugar. O meu primeiro desejo é que, nesses enquadramentos extremamente estruturados, que podemos considerar como fixos, de repente aconteça qualquer coisa de sanguíneo, de vivo, que não se controla — nem o enquadramento, nem quem está à frente da câmara, nem quem está por trás da câmara. Algo que escape à ideia."
Mais à frente na conversa, Valérie falará, entre risos, de "espeleologia" — "é um pouco como andar a pesquisar ouro, e de repente encontramo-lo, na montagem, quando reparamos que está lá qualquer coisa que não tínhamos visto durante a rodagem, uma espécie de prenda." Mas não há improvisação, "ou certamente não como a entendemos, porque a improvisação seria um trabalho sobre o texto e sobre o que é dito," explica a realizadora. "Ora nada está escrito, aliás os argumentos para mim não existem, são apenas pretextos para assaltar bancos!" diz entre gargalhadas sonoras, referindo-se à necessidade burocrática de apresentar um documento escrito para garantir apoios. "Não há diálogo escrito, e o meu trabalho com os actores é um pouco como se faz em música — sobre uma palavra, uma nota, uma emoção. Encontrar esse momento de graça não é improvisação, é apenas tempo. E o tempo é a coisa mais preciosa que existe no cinema: o tempo de fazer, o tempo de pensar, o tempo de montar. "
Por essa mesma bitola, Valérie confessa que há algo de profundamente instintivo no seu cinema. "Foi-me muito fácil filmar Nana. É-me muito fácil trabalhar com crianças — basta-me estar ali, de gatas, toda suja, sem nada que explicar, a brincar e a filmar e a divertir-me. Aqui ia ser diferente, porque estou a trabalhar com gente que já é adulta, que já faz parte do mundo, que já tem consciência da sua imagem, do que vão pensar deles, e é muito mais dificil aceder a esse abandono. Funciono muito por instinto, e no plateau tudo é muito orgânico, sem um pensamento estruturado." É também aí que entra a definição de "ficção do real", porque o que a realizadora filma é também a aprendizagem da vida frente à câmara; o que acontece é, de facto, um do confronto dos seus com a realidade. "Mas procuro ampará-los, senão seria um vampiro, sentir-me-ia suja. A Milla é alguém atirada para um mundo ao qual não está minimamente adaptada — não sabe fazer a cama, dobrar roupa, mas tenta, esforça-se, e aprende e de repente tem de aprender a ocupar-se de uma criança. Nessas cenas queria mostrar a sua fraqueza mas sem cair no ridículo. Porque ela esforça-se, ela tenta, e tenho vontade de a proteger."

Valérie admite, aliás, gue o seu maior medo ao terminar um filme não reside no acolhimento da crítica ou do espectador. “É sentir que não estive à altura das pessoas com quem trabalhei. Lembro-me que acabei Nana uma noite às três da manhã, e saí de casa para ir andar a pé, estava praticamente a levitar e chorava que nem uma madalena, 'consegui, acabei o filme, e não os traí’”. Mais gargalhadas. “ Aqui não acabei o filme às três da manhã nem chorei, mas senti o mesmo: que me podia olhar a própria ao espelho e olhá-los a eles nos olhos, e eles não se ima sentir sujos, traídos, gozados. O filme era digno, honesto, humano, não era perfeiro, mas se eles o vissem e nele encontrassem a alegria e a ternura que procurei, então outras pessoas também o iriam sentir."
Porque, na verdade, é isso que Valérie Massadian quer fazer: levar os espectadores a sentir. ”Se me pedem para ir passar horas com gente que não conheço numa sala escura, não quero que me dêem a papinha feita. Dou por mim com cinco anos de idade como se fosse criança. Fico a ver, à espera que o filme me diga o que tem para me dizer ou para me fazer sentir. Não espero nada de um filme, porque não há na esperar: o filme é projectado e cabe-nos a nós decidir o que vemos nele. A maior parte filmes não nos deixam espaço para sermos nós mesmos, para sentirmos, para pensar. Tudo é dito, redito, explicado, mostrado. Lembro-me de mostrar Nana na aldeia onde o rodámos, e no fim da projecção uma miúda dos seus 25 anos, com três meninos pela mão, veio ter comigo e disse-me 'desculpe, acha que podia ver outra vez o filme? É gue quando vejo um filme é como se me dissessem, aqui sinto isto rio-me e aqui penso desta maneira. E com o seu filme não. Posso ser eu própria a vê-lo.' Virei-me para a minha mãe e disse-lhe, ‘ pronto, já posso morrer feliz."
Valérie Massadian solta uma gargalhada.
Jorge Mourinha, Público

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