A
ÁRVORE
André Gil Mata
Bósnia Herzegovina/Portugal, 2018, 104’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: André Gil
Mata
Montagem: Tomás Baltazar
Fotografia: João
Ribeiro
Interpretação: Petar
Fredilac, Filip Zivanovic, Sanja Vrzic
Origem: Portugal/Bósnia Herzegovina
Ano: 2018
Duração: 104’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlin (2018) – nomeado para melhor
primeira longa-metragem – André Gil Mata
IndieLisboa (2018) – Melhor realizador na competição
nacional – André Gil Mata
TRAILER
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Em Sarajevo, André Gil Mata encontrou um filme de guerra
que é uma viagem aos nossos conflitos interiores. Depois do furor do Festival
de Berlim e do IndieLisboa, "A Árvore" estreia-se nas salas.
André Gil Mata (São João da Madeira, 1978) filmou “A
Árvore” durante um período em que viveu em Sarajevo, onde estava a fazer um
doutoramento de realização. A sua terceira longa-metragem, depois de
“Cativeiro” (2012) e “Como Me Apaixonei Por Eva Ras” (2016), chega finalmente
às salas nacionais, depois de se ter estreado no início de 2018 no Festival
internacional de Cinema de Berlim e das honras de abertura da edição deste ano
do IndieLisboa, onde André Gil Mata venceu o prémio de Melhor Realizador na
Competição Nacional.
Em “A Árvore” acompanha-se o percurso de
duas personagens que caminham para um mesmo local. O cenário é de um inverno
rigoroso, a caminhada é dolorosa, com um sentimento ténue de esperança, embora
o espectador esteja alheado de uma ausência de destino. As imagens são
belíssimas, fortes, e em off ouvem-se sons de guerra, bombas, tiros, tropas a
marcharem. Não há imagens de guerra, há um cenário desolador que a sugere, mas
a sua presença é marcada com mais impacto através do som. O convívio com as
imagens e o som tornam “A Árvore” numa experiência sensorial, o próprio filme
torna-se num lugar para o espectador reflectir, localizar-se com as personagens
e o seu percurso. É um filme de guerra sem o ser, talvez o maior conflito seja
o interior, aquele que o espectador irá sentir enquanto caminha o caminho com
aquelas personagens. “A Árvore” é um encontro interior, um encontro do cinema com
o sagrado.
Estivemos à conversa ao telefone com o realizador, que
entretanto voltou para o Porto, sobre a sua visão do cinema e de como chegou a
esta ideia de filme de guerra.
Ao longo do filme há algumas
referências aos conflitos nos Balcãs no final do século passado. Contudo, o
modo como a guerra marca maior presença é através do som, tornando o seu filme
numa experiência muito sensorial. O que o levou a referenciar a guerra dessa
forma?
Isso surgiu da minha experiência de viver
em Sarajevo durante uns anos [desde 2013 até há poucos meses]. Uma das coisas
de que me consciencializei durante esse período é de que a imagem da guerra,
não necessariamente aquela, mas de todas as guerras, na minha opinião, é
explorada de uma forma que, por vezes, a torna quase pornográfica. Sabia que
não queria fazer da guerra um espectáculo de fundo e de a mostrar através da
imagem. Mas a ideia também surgiu através da criação de uma personagem que se
confronta consigo mesmo, com a solidão durante esse período. Não queria mesmo
mostrar algo que tivesse a ver com o conflito de guerra, porque para mim isso
já está banalizado e eu queria seguir por outro caminho. Queria dar uma
experiência que fosse minha, de forma a que essa experiência também passasse
para o espectador, que se tornasse dele. Queria que o som não andasse com a
imagem, que criasse uma outra linha narrativa e tornasse a experiência da
guerra mais sensorial, e que acrescentasse algo mais à imagem. O que acontece
no fundo é sempre em off, em relação à personagem mas através do som. Sejam as
tropas a caminharem, as bombas…
A árvore acaba também por se
tornar numa personagem do filme, é mais do que um ponto de encontro. Como
chegou a essa ideia?
Fui para Sarajevo para fazer um
doutoramento em realização de cinema e a pessoa que estava a coordenar o
doutoramento ficava muito irritado comigo pelo facto de eu não filmar. Após ter
chegado, durante algum tempo, não conseguia sequer pensar em filmar. A minha
relação com aquele lugar não me permitia sequer pensar em filmar alguma coisa.
Quando não conheço os espaços, ou não tenho uma relação afectiva com eles,
torna-se muito difícil, para mim, filmar. Mas havia essa premissa de filmar e
eu sentia essa pressão. Mas eu não conseguia, andava sempre com uma máquina
fotográfica comigo mas também não conseguia tirar fotografias. Além das
fotografias que tirava no quarto onde estava a viver, a primeira fotografia que
tirei foi na periferia da cidade. O inverno era muito rigoroso, estava sempre a
nevar, e fotografei uma árvore junto ao rio, uma árvore despida com um homem ao
lado, não percebi bem o que ele estava a fazer, mas havia fumo que estava a
sair de junto da árvore. Na minha inocência, por não conhecer os hábitos
locais, pensei que ele estava a fazer uma fogueira. Mas quando revelei a
fotografia percebi que havia um outro rio ao lado e que o fumo não era de uma
fogueira mas do cruzamento das águas: o PH das águas devia ser bastante
distinto e criava uma subida de ar, o fumo provinha dali. Mas fiquei com essa
imagem de quando tirei a fotografia, de alguém que se tenta aquecer na neve. E
daí surgiu-me a ideia de que alguém ao pé de uma árvore pode procurar uma
espécie de aconchego, quando estás num vale, sem mais nada. Foi mais uma
sensação, uma imagem, que se tornou noutra coisa qualquer. Uma ideia muito
simples, de que ao te tentares aquecer encontras um momento tanto exterior como
interior. Nunca estive num espaço de guerra, mas imaginei aquele cenário como
uma situação em que te podes aquecer, exterior e interiormente, para ganhares esperança,
coragem para continuar.
A caminhada de ambas as personagens até à árvore
sugere a ideia de peregrinação, principalmente da personagem mais velha,
carregando as garrafas vazias às costas. A ausência de uma referência de
destino causa essa sensação. A sugestão de peregrinação foi intencional?
Para mim a ideia prende-se mais com um ritual diário
da personagem do que uma peregrinação. Tinha consciência de que esse ritual se
poderia transformar noutra coisa, devido aos elementos presentes e ao que é sugerido.
Acho que tens sempre a consciência que se pode tornar noutra coisa, algo
próximo da caminhada de Cristo com a cruz. Mas a ideia base era esse ritual, de
alguém que sem motivo, esperança na humanidade, no que o rodeia, que sem olhar
para isso sai de casa todas as noites para ir buscar água para ele e para os
vizinhos. Era mais uma ideia de comunhão. Creio que num espaço de guerra, pela
necessidade de sobrevivência, voltas a conhecer os teus vizinhos e as
comunidades tornam-se mais próximas. Aqui no Porto não conheço um vizinho. Hoje
em dia vivemos assim, ninguém se interessa muito pela vida de quem está ao
lado. Penso que nesses momentos a sociedade volta atrás por necessidade, há uma
necessidade de colaborar, porque não conseguimos viver juntos. A ideia partiu
daí, ele está a fazer uma ação, e os vizinhos farão outra, sugerindo uma ideia
de troca, de trabalho pela sobrevivência, num grupo. Escolhi esse ritual
diário, mas poderia ser qualquer outro. A busca da água era bastante
importante, porque levaria a personagem para fora do cerco de conflito,
levava-o para a natureza, para um certo apaziguamento com ele mesmo.
Mas queria sugerir essa ideia de Cristo a carregar a
cruz? O modo como ele carrega as garrafas, com aquele pau, é muito sugestivo…
Tive sempre a imagem desse homem com esse pau de
madeira, com as garrafas presas. Se a iria transformar numa imagem fílmica,
iria ter sempre essa ligação. Agora foi uma escolha de seguir essa vontade, de
ter essa imagem e de ter de viver com essa ligação e conotação, porque os
símbolos se sobrepõem às nossas ideias. Achei que não deveria abdicar dessa
imagem por causa disso. Se as pessoas lerem com essa ideia, de uma caminhada de
Cristo com a cruz, acho que há abertura para isso, para as pessoas interpretarem
assim: não conseguimos controlar o que os outros sentem. Não queria suprimir a
minha ideia com receio do que os outros pensariam.
Quando o velho encontra a criança, junto à árvore, há
varias sugestões, seja o encontro de duas personagens, o encontro de uma visão
de futuro ou de passado (conforme a perspetiva das personagens) ou de um certo
limite, de que já não existe nada para a frente. Quis deixar isso em aberto?
Para mim é mais um encontro do personagem mais velho com uma outra idade, e vice-versa,
sem a personagem mais nova ter essa perceção, porque não consegue, de que está
a falar com ele mesmo.
É quase como se acontecesse algo de sagrado, junto à
árvore. Intensifica a simbologia da guerra.
Acho que a árvore é um lugar sagrado no sentido em que lhe é permitido, naquele lugar, encontrar-se com ele mesmo. O lado sagrado será esse, de conseguirmos, termos um espaço, para conseguirmos estar connosco. Creio que hoje é muito difícil termos esses espaços, é difícil as pessoas terem esses momentos. Se calhar as pessoas antes tinham esses momentos através da religião, se calhar conseguiam isso. Os lugares ditos sagrados, como tu dizes, acho que se perderam na nossa sociedade ocidental, é muito raro as pessoas encontrarem esses lugares. Sinceramente, eu acredito que o cinema se pode tornar um pouco nesse lugar: tu entras numa sala e, quase por obrigatoriedade, tens de estar contigo mesmo, não podes falar, ou pelo menos não deves, estás num lugar de escuridão, que tem uma enorme relação com o sono e o sonho, e é-te dada uma experiência sensorial que te proporciona o confronto contigo mesmo. O cinema pode ser realmente esse lugar, em que te encontras contigo mesmo, tens o espaço e o tempo para esse encontro, podes confrontar os teus medos, erros, o passado: o cinema pode-se tornar num local sagrado se os filmes também o permitirem. E parte da experiência que eu queria proporcionar com o meu filme passa um bocado por aí, permitir ao espectador ter esse tempo e espaço para estar com ele mesmo.
Acho que a árvore é um lugar sagrado no sentido em que lhe é permitido, naquele lugar, encontrar-se com ele mesmo. O lado sagrado será esse, de conseguirmos, termos um espaço, para conseguirmos estar connosco. Creio que hoje é muito difícil termos esses espaços, é difícil as pessoas terem esses momentos. Se calhar as pessoas antes tinham esses momentos através da religião, se calhar conseguiam isso. Os lugares ditos sagrados, como tu dizes, acho que se perderam na nossa sociedade ocidental, é muito raro as pessoas encontrarem esses lugares. Sinceramente, eu acredito que o cinema se pode tornar um pouco nesse lugar: tu entras numa sala e, quase por obrigatoriedade, tens de estar contigo mesmo, não podes falar, ou pelo menos não deves, estás num lugar de escuridão, que tem uma enorme relação com o sono e o sonho, e é-te dada uma experiência sensorial que te proporciona o confronto contigo mesmo. O cinema pode ser realmente esse lugar, em que te encontras contigo mesmo, tens o espaço e o tempo para esse encontro, podes confrontar os teus medos, erros, o passado: o cinema pode-se tornar num local sagrado se os filmes também o permitirem. E parte da experiência que eu queria proporcionar com o meu filme passa um bocado por aí, permitir ao espectador ter esse tempo e espaço para estar com ele mesmo.
André Almeida Santos, Observador
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