THELMA
Joachim
Trier
NO/FR/DK/SE,
2017, 116’, M/16
FICHA
TÉCNICA
Realização: Joachim Trier
Argumento: Eskil Vogt e Joachim Trier
Montagem: Olivier Bugge Coutté
Fotografia: Jakob Ihre
Música: Ola Flottum
Interpretação: Eili Harboe, Kaya Wilkins, Henrik Rafaelsen
Origem: NO/FR/DK/SE
Ano: 2017
Duração: 116’
CRÍTICA
Thelma é uma variação inteligente, adulta, sobre o cinema de género, como Kubrick a filmar De Palma, pelo autor de Oslo, 31 de Agosto.
Ficámos abananados quando descobrimos a segunda longa de Joachim Trier, o devastador Oslo, 31 de Agosto, ainda hoje um dos grandes filmes do século XXI. O norueguês respondeu a esse pequeno clássico com uma experiência em inglês que ficou aquém das expectativas (Ensurdecedor, com Isabelle Huppert e Gabriel Byrne) e regressa agora à terra natal para uma peculiar incursão no género que prolonga os temas dos filmes anteriores: segredos, famílias, silêncios, solidões. O centro de Thelma é a adolescente que lhe dá título — uma miúda normalíssima, algo solitária, metida consigo mesma, sem grandes experiências emocionais que veio da província estudar para uma cidade grande. Nada de original não se desse o caso da miúda ser religiosa e dos pais parecerem ter um ascendente bastante grande sobre ela.
Com o tempo — que Trier continua a saber gerir admiravelmente — perceberemos o porquê da super-protecção: Thelma tem poderes que desconhece e não compreende, que surgem sempre que ela cede às emoções, se deixa levar pelos seus desejos, em suma, que vêm da sua transformação de menina em mulher. É isso que Trier desenha, de modo calculadamente preciso, ao longo das duas horas de Thelma: o descobrir da sexualidade, a procura de uma identidade própria, a tensão entre família e personalidade, comunidade e individualismo, numa idade em que tudo é vivido com uma intensidade devastadora.
Não é descabido falar de Thelma como uma versão nórdica, cerebral, exangue da Carrie que Brian de Palma filmou, como se fosse um Kubrick em modo geométrico a dirigi-lo; ou como um equivalente “de género” do magnífico Requiem de Hans-Joachim Schmid, onde a passagem à idade adulta de uma jovem religiosa desencadeava tormentos que tanto podiam ser psíquicos como demoníacos. A comparação não abona em favor de Thelma, mas é inevitável — apesar da performance impecável de Eili Harboe no papel principal [...]
Mas isto também não deve minimizar o interesse e a inteligência que Thelma realmente tem, o modo como cria quase subrepticiamente um ambiente de mal-estar sem para isso precisar de “inventar”: tudo se passa em cenários quotidianos, realistas, que o espantoso trabalho de fotografia de Jakob Ihre torna alienígenas, desconfortáveis. O problema de Thelma é só um: houve um filme chamado Oslo, 31 de Agosto e Joachim Trier deixou a fasquia demasiado alta. Thelma não chega lá, mas fica mais perto.
Jorge Mourinha, Público
ENTREVISTA AO REALIZADOR
O cineasta de Oslo 31 de Agosto e de Ensurdecedor está de regresso. Estreou na quinta-feira, Thelma um conto de terror sobre uma universitária que descobre ter poderes maléficos. Uma experiência com o carimbo Joaquim Trier, norueguês que ao DN jurou a pés juntos que faz um cinema sem amarras.
Antes de chegar aqui lia algures que Joachim Trier fez um "filme de terror lesbiano". É capaz de se rir com essa denominação?
É divertida!! Se isso aguçar a curiosidade do povo, venha! A verdade é que o filme é um pouco isso mas também é mais do que isso. Se calhar, jogo com essa cena meio de mau gosto associada a certo cinema de vampiros e de como se filma uma lésbica...Trata-se de uma tradição. Ao mesmo tempo, queria fazer um filme com uma personagem forte de uma jovem mulher. Venho de um país que ainda queimava as bruxas no século XVIII...Na Noruega há também um estigma em relação à figura da mulher com poder. Quis fazer um filme sobre uma mulher jovem com super-poderes, um pouco como se fosse uma história de vingança. O terror que o filme tem é muito alegórico. Do momento ponto de vista, é um conto moderno de crise de identidade.
Ao escolher a jovem como protestante e ela ser de uma família muito conservadora, não está também a abordar o tema da culpa?
Ela é de uma facção protestante mais radical, cada vez em maior ascensão na América e na Noruega. Eles são muito anti-gay, mas felizmente as igrejas públicas agora na Noruega já casam pessoas do mesmo sexo! Isso é muito importante, sobretudo porque ainda temos esses pequenos grupos protestantes a estigmatizar tudo isso. Lá está, quis colocar toda essa questão do conflito individual acerca da sexualidade num contexto de terror.
E é interessante a maneira como vemos os símbolos... A serpente, por exemplo.
Sim, mas no cinema um símbolo deixa de ser um símbolo. Um animal, na cabeça cristã de uma rapariga, pode ser algo muito poderoso. A mim deu-me muito gozo filmar as serpentes, é um animal lindíssimo. Apetecer tocar naquelas criaturas! Dá-me mesmo muito gozo filmar o lado sensual destes animais.
Mas em relação às cenas de sexo não quis ir pela via do "kinky"...
Sim, preferi a elegância. Quis transmitir uma certa ideia de sonho puro e transgressivo, coisa que acontece apenas nas mentes mais jovens. A Thelma é alguém que desconhece o seu lugar na vida. Estou a filmar a sua libertação.
Filma o corpo feminino com um conceito de pureza. Acredita que um corpo de uma mulher possa ser uma fonte primitiva de cinema?
Sim, de que maneira! É muito interessante essa questão, pois estou a fazer um documentário sobre Edward Munch e ele tem uma série de retratos femininos. A sua irmã morreu muito cedo e o desgosto parece ganhar uma camada sensual. Há ali também uma combinação de pele nua e pureza.
Aposta muito no suspense através da fantasia. Preza o conceito "suspensão de descrença", como se constrói isso?
Perguntam-me muito se acredito no sobrenatural, mas o que está ali é só cinema! O que me interessa é pesquisar a imaginação humana. Fiz uma série de filmes que lidavam com ocorrências reais, mas o conceito do sonho sempre fez parte do meu imaginário. Desta vez quis ir mais longe.
Sim, mas como consegue depois dar credibilidade a tudo isso?
Passa pelo facto de ela ser uma personagem real.
Mas ao apostar num tema em que converge a questão de um certo fanatismo religioso, está a tocar num tema fundamental da sociedade atual. Não acha que cada vez mais os cineastas deveriam abordar este tema? Wim Wenders fê-lo recentemente mas parece ser um tópico desconfortável...
Sim, os cineastas têm de fazer mais filmes com este tema. Thelma aborda, do ponto de vista religioso, o abuso do poder na nossa cultura. Mas é muito fácil apontar o dedo às novas religiões que estão a impor-se com atitudes fundamentalistas e de opressão aos nossos comportamentos livres. É muito mais complicado depois suster um ponto de vista sobre isso...Creio que o meu filme chegou na altura certa, sobretudo agora que o cristianismo fundamentalista também está a crescer.
O cinema nórdico parece também estar na moda. A Palma de Ouro para o sueco O Quadrado, de Ruben Ostlund, foi uma espécie de rastilho...
É difícil aferir sobre isso, prefiro acreditar que é mais o valor individual de cada um dos cineastas. Não sou muito apologista que possa estar a acontecer um movimento, mas posso afirmar que estão a surgir mais financiamentos para que se faça um cinema mais livre. Sou um cineasta com poder de montagem final - sempre tive direito ao corte final dos meus filmes! Deixam-me criar tudo o que quero fazer...É preciso continuar a apoiar um sistema que nos dá esta liberdade. Mas na América também se pode filmar recorrendo à subversão, basta olhar para Logan, de James Mangold. Houve ali contrabando: do western para o filme de super-herói. Tudo isso acontece porque no sistema americano não há liberdade. Já ninguém pode fazer cinema puro, são todos obrigados a irem para o filme de super-herói.
Depois de Ensurdecedor/Louder Than Bombs vai voltar aos EUA para filmar?
Estou interessado, mas o problema é que sou um cineasta do "final cut" e na América é complicado. Gostaria de regressar, vamos ver...Mas foi excitante explorar coisas novas com Thelma. As pessoas estão convencidas que nós temos uma estratégia, um plano para as nossas carreiras, mas na verdade limito-me a fazer os filmes que me apetece na altura em que me apetece.
Rui Pedro Tendinha em Toronto, dn.pt
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