José Nascimento acompanha o seu Tarde Demais. Um filme NOTÁVEL. Hoje, 22h, Cacela-a-Velha.

Intenso e envolvente drama humano sobre uma trágica história de sobrevivência.
Numa madrugada fria e chuvosa quatro homens numa pequena embarcação de pesca naufragam no meio do Tejo com um rombo no casco. Unem esforços para tentar evitar que a água inunde o barco e acabam encalhados numa coroa de areia. Sem rádio nem sistemas de alerta esperam pela maré baixa para tentar alcançar a margem, que parece mais perto do que na realidade está, como em breve irão amargamente descobrir.
Nascimento constrói um surpreendente drama intimista no meio de uma situação de alta tensão e perturbadora angústia, quase como um thriller psicológico, em que quatro seres humanos enfrentam a morte na noite e no meio de um rio que os pode engolir para sempre. Com Vítor Norte, Carlos Santos, Nuno Melo e Adriano Luz nos principais papeis de um filme duro, sensível e amargo como são todas as tragédias pessoais.



Tarde Demais esconde uma formidável lição que estes dias tomaram de uma completa e infeliz actualidade. A constatação simples de que somos todos náufragos - uns mais do que outros, é verdade - num sistema onde os salva-vidas não saem, os helicópteros não voam e os milagres são servidos a domicílio pelos conta-gotas de soro televisivo. Brilhante e justo, Tarde Demais acabou por ser, se calhar involuntariamente (ou talvez não), um filme urgente e pedagógico: uma verdadeira lição de selvagem sobrevivência, no eterno Mar da Palha, onde vivemos e onde não parece existir qualquer hipótese de socorro ou remissão. É por isso que a canoa Era Assim - nome providencial - é o nosso (mais) verdadeiro Titanic.
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João Mário Grilo, Visão, 30/03/00


Este filme constitui uma pequena surpresa dentro do nosso meio cinematográfico. Surpresa «adivinhada», na medida em que o desenvolvimento da nossa incipiente «indústria» de cinema dava a entender que ela surgiria mais tarde ou mais cedo e que - talvez não por acaso - aparece quando a produção audiovisual busca outros percursos, interesses e histórias, tanto no espaço «nobre» do cinema (os filmes de Joaquim Leitão) como no outro, mais «popular», da televisão (a série de telefilmes da SIC). De certo modo, este filme de José Nascimento pode considerar-se como o «elo» que faltava para acabar de vez com distinções espúrias e impor o cinema «tout court» contra tendências, modas e manifestos de «mandarins», para terminar com o princípio de exclusão que cada uma das facções que imperam no nosso meio cinematográfico parece querer impor à outra.

«Tarde Demais», um filme pioneiro? Em boa verdade, devo afirmar que sim. Não porque seja uma revolução formal ou temática, mas porque lança bases e expõe mais claramente (quase em forma de programa) o que outros têm tentado e que o relativo fracasso comercial de «Inferno», de Joaquim Leitão, parecia ter posto em causa.

Em primeiro lugar, o ponto de partida. Trata-se de um «fait-divers» ainda recente (1995): o drama de quatro pescadores que encalharam no Tejo e vêem a vida em perigo com Lisboa à vista. O filme de Nascimento reconstitui o caso de uma forma dramática, onde o factor humano se impõe ao desejo de fazer uma obra de denúncia. Isto, pelo menos, durante a primeira parte. Se «Tarde Demais» fraqueja na última meia hora é exactamente por deixar transparecer aquela intenção com a actividade frustrante de quem tenta salvar os homens perdidos, esbarrando na incompreensão e na burocracia.

Em segundo lugar, a forma como José Nascimento encena a odisseia daqueles homens - e que se revela a assimilação de uma linguagem clássica do cinema talvez mais francês que americano (ao longo dessa primeira parte, o espectador reconhece, em bastantes momentos, «O Salário do Medo», de Henri-Georges Clouzot) - consegue habilmente evitar a tendência descritiva com que alguns filmes semelhantes começam. Nascimento conduz-nos de imediato para o cerne do drama. O filme principia com o barco encalhado e os quatro tripulantes interrogando-se sobre a melhor forma de saírem dali.

Esta primeira parte concentra-se inteiramente sobre estes quatro homens e as suas tentativas de fuga. No cinema português, nunca se viu desta forma o uso do grande plano ou do plano próximo para alimentar a expectativa, o «suspense», o drama. Como nos filmes «de fora», que tanto se tem tentado imitar, há uma incrível recriação do real, com a sujidade colando-se aos personagens, o perigo perceptível e verosímil para o espectador participar dele, sentindo-se também o sofrimento e o medo, o frio e o perigo.

E se mais força não tem será talvez porque nem sempre Nascimento consegue tirar dos actores (ou estes nem sempre correspondem) toda a «verdade»; não a exterior, mas a interior, aquela que não é dita, até porque palavras não podem transmiti-la. O realizador (também co-argumentista, com João Canijo) percebeu pelo menos isto, na medida em que evita o excesso de diálogos, concentrando-se nos gestos e movimentos dos personagens. A fotografia de Mário Castanheira é também um auxiliar precioso do drama, ao conseguir recriar a atmosfera desolada, fria e suja do meio em que tudo decorre.

José Nascimento, porém, parece ter receado manter todo o filme neste meio, centrar-se em exclusivo no drama daqueles homens e da sua luta pela sobrevivência. Daí que recorra ao expediente de apresentar, na segunda parte, em montagem alternada, essa odisseia e as tentativas de salvamento que o filho de um dos pescadores leva a cabo, incluindo cenas que nada acrescentam à história. Com a agravante de estas irem progressivamente tomando destaque sobre as outras, esvaziando parte da tensão de que o espectador estava, até então, possuído.

De qualquer modo, estas reservas que pomos à segunda parte de «Tarde Demais» não invalidam o resultado extremamente positivo da totalidade do filme. É uma daquelas obras que é preciso ver e em que é preciso acreditar.
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Manuel Cintra Ferreira, Expresso

ENTREVISTA
José Nascimento é uma das figuras-sombra do cinema português. Montador com créditos firmados em dezenas de filmes, tem tido como realizador um percurso bissexto, que agora conhece um novo impulso com «Tarde Demais», onde conta o trágico e patético naufrágio de uma traineira no Mar da Palha.

Desde «Repórter X» a «Tarde Demais» medeiam 14 anos, o que é muito tempo. Durante esse período, teve outros projectos?, em que é que se ocupou?
Na película, por exemplo, porque fiz a montagem de muitos filmes. Também fui professor no Conservatório, trabalhei em publicidade, fiz magazines para a televisão... Fui-me entretendo. Ao mesmo tempo, ia concorrendo. Tive quatro ou cinco projectos, que foram caindo. E houve ainda a «fase Cavaco», que constituiu um deserto...

E nunca pensou em pegar nesses projectos e dar-lhes outra saída?
Da melhor maneira. Enfim, dedico-me... e passo a outro senão há «feedback». É o curso natural das coisas. Não tenho jeito para o fado e para a queixinha.

Agora, porque levou tanto tempo a voltar a ser subsidiado?
É preciso ver que eu não pertenço a nenhum «lobbie», a nenhum clube, não tenho partido, sempre fui um «free-lancer»...

É uma questão de decisão? Decide-se não esmorecer?
Bom, eu encarei este projecto como uma prova de fogo, como uma última oportunidade. Se visse que ao fim de tantos anos tinha perdido a mão... aí havia que mudar de profissão. Depois, este projecto envolvia um desafio suplementar, que era filmar dentro de água - uma coisa dificílima, porque as marés e os «raccords» estão quase sempre em desacordo... Este filme era a minha prova dos nove. Por outro lado, esta minha «endurance» creio que virá do facto de até aqui nunca me ter assumido inteiramente como realizador, mas sim como técnico. Eu pensava - e julgo que bem - que só este percurso me permitiria estar do ponto de vista técnico à altura das oportunidades que surgissem. Para mim, não fazia sentido eu fazer um filme e ser o director de fotografia a indicar o sítio da câmara... E por isso resolvi ser paciente e ir aprendendo.
Como é que se passa de uma película algo formalista, como «Repórter X», a um filme deste género, que é uma espécie de regresso à inocência do olhar, a uma busca de realismo?
Isso tem a ver comigo, necessariamente, tem a ver com a chegada da maturidade, se quiser... E como nunca me senti obrigado a ser realizador, a ter de fazer um filme por ano, fiquei mais à vontade - não precisava de defender nenhuma espécie de «marca registada». «Repórter X» tinha a ver com artefactos da ficção, enquanto em «Tarde Demais» tratava-se de fazer uma «reconstituição» de algo que havia acontecido na realidade e, ao mesmo tempo, de saber como dar-lhe um olhar diferente sem trair a verdade emocional das coisas.

Se, por acaso, este filme lhe tivesse aparecido mais cedo, acha que estaria preparado para ele?
Do ponto de vista pessoal? Não sei... Seria outro filme, com certeza. Agora, confesso-lhe que, para mim, aprender a viver é fundamental para quem quer contar histórias - é necessário estarmos mais disponíveis perante a vida e para os outros, andarmos sem grandes expectativas...

Isso nota-se na maneira como a câmara se relaciona com as personagens, tanto em «Repórter X» como em «Tarde Demais»... No primeiro, a câmara domina a personagem; neste último, sente-se que a câmara se limita a ser fiel à verdade emocional das personagens... Aqui, a câmara está mais próxima daquilo que eu sou. «Repórter X» era um «filme de «bonecos», muito estilizado... Em «Tarde Demais», a minha atitude perante as personagens é de uma grande identificação. Por exemplo, não dei espaço a planos de recuo, e para demonstrar que os homens estão no meio do rio estive sempre perto deles, a viver o drama dos náufragos...
Isso até torna o drama mais universal e acentua o absurdo, porque vemos os náufragos a caminhar dentro de água, como se fossem Gullivers, entre as margens demasiado próximas...

Esta sensação de claustrofobia foi planeada?
Por muito que eu tenha planificado o filme, quando se chega ao sítio do naufrágio, que é no meio do Tejo, há os ventos, as marés, as correntes... E tem de se aguentar todas estas variáveis... e tomá-las em conta. Tal como tem de se tomar em conta a condição dos actores e ser-se rápido a preparar o plano, senão eles ficam gelados... Portanto, há uma urgência em filmar e uma grande vontade para que tudo saia bem à primeira. Deste modo, as condições extremas em que «Tarde Demais» foi feito obrigou-me a improvisar. E fui percebendo, à medida que ia filmando, que estava tanto melhor quanto mais próximo estivesse das personagens...

Porque é que uma história como esta o seduziu?
Li a reportagem e percebi que estavam reunidas as seguintes coisas: uma ideia de tragédia e uma espécie de comentário irónico à nossa história marítima. Na história trágico-marítima ainda havia grandeza; agora neste naufrágio de uma traineira no Mar da Palha todas as razões que levaram à perda de vidas humanas me pareciam pífias, mesquinhas, medíocres... Contra o passado mistificado era possível contar esta tragédia absurda: pescadores que morrem no Mar da Palha, diante de Lisboa, sem socorro, a cinco anos do ano 2000. Há qualquer coisa de político neste meu gesto, sem nunca ter precisado de cair na mensagem, no panfleto.
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Expresso



Realização: José Nascimento
Argumento: José Nascimento, João Canijo
Fotografia: Mário Castanheira
Música: Nuno Rebelo
Montagem: João Braz, José Nascimento
Interpretação: Vítor Norte, Adriano Luz, Nuno Melo, Carlos Santos, Ana Moreira,

Francisco Nascimento, Rita Blanco, José António Aranha, Suzana Borges
Origem: Portugal
Ano: 2000
Duração: 97’

começa na próxima 3ªf - cinema ao ar livre em Cacelha-A-Velha. :-))

SOB AS ESTRELAS EM CACELA-A-VELHA

22H, Cemitério Antigo

Entradas - sócios CCF 1€, não-sócios 2€

Dia 31 de Agosto
TARDE DEMAIS

José Nascimento
Portugal, 2000, 95’

Presença do realizador

Numa madrugada fria e chuvosa quatro homens numa pequena embarcação de pesca naufragam no meio do Tejo com um rombo no casco. Unem esforços para tentar evitar que a água inunde o barco e acabam encalhados numa coroa de areia. Sem rádio nem sistemas de alerta esperam pela maré baixa para tentar alcançar a margem, que parece mais perto do que na realidade está, como em breve irão amargamente descobrir.

Nascimento constrói um surpreendente drama intimista no meio de uma situação de alta tensão e perturbadora angústia, quase como um thriller psicológico, em que quatro seres humanos enfrentam a morte na noite e no meio de um rio que os pode engolir para sempre. Com Vítor Norte, Carlos Santos, Nuno Melo e Adriano Luz nos principais papeis de um filme duro, sensível e amargo como são todas as tragédias pessoais.


Dia 2 de Setembro
AGOSTO

Jorge Silva Melo
Portugal/França, 1991, 90’

Verão de 1964. Carlos, professor de violino no Conservatório do Porto, e o casal Dário e Alda passam férias na praia da Arrábida. Longe da guerra colonial, quando tudo parece esquecido no tempo e o twist faz as festas estivais. O expectante retomar de uma amizade, a existência de uma união harmoniosa, jogam-se entre equívocos e solidão, para além dos rituais de convívio ou dos fantasmas da ruptura.

Trata-se de uma filme que «adapta muito livremente o romance ‘La Spiaggia’ de Cesare Pavese à paisagem portuguesa: «A paisagem física é a Arrábida e a praia, banhadas pela luz deslumbrante e dourada do Verão. A paisagem humana é formada pelas pessoas que aí habitam, vivendo um vazio ‘antonioniano’ que Jorge Silva Melo transpôs para o cinema português».


Dia 7 de Setembro
SIGNIFICADO

Tiago Pereira
Portugal, 2010, 42’

Presença do realizador

A propósito de quatro irmãos músicos, fundadores da Associação Cultural d'Orfeu localizada em Águeda, constrói-se uma génese da música tradicional portuguesa para em seguida se alargar a outros contextos e colocar-se a seguinte pergunta: como seria a música portuguesa se gostasse dela própria?

Tiago Pereira quer libertar a tradição e, provocador, lança ao ar: "Kill Giacometti!". Diz-nos: "tenho que dizer que esta memória existe, mas se quiser que seja contemporânea, tenho que a tratar de uma forma contemporânea".


POLIFONIAS- PACI É SALUTA, MICHEL GIACOMETTI
Pierre-Marie Goulet
Portugal, 1997, 78’

Um filme a várias vozes que, em homenagem a Michel Giacometti, vai ao encontro de culturas populares no passado e no presente, no Alentejo e na Córsega, para testemunhar de trocas e partilhas onde ninguém perde a sua identidade nem as suas raízes, mas antes as reanima no contacto com o outro.

Múltiplos caminhos que tecem um filme de estrutura "polifónica", em que ninguém perde a sua identidade, antes a reanima no contacto com o outro. Uma viagem de vários itinerários que se cruzam no tempo e no espaço, seguindo um jogo de ressonâncias e correspondências, tal como as vozes de uma polifonia.


Dia 9 de Setembro
RUÍNAS

Manuel Mozos
Portugal, 2009, 60’

Lugares esquecidos, obsoletos, inóspitos, vazios. Não interessa aqui explicar porque foram criados e existiram, nem as razões porque se abandonaram ou foram transformados. Apenas se promove uma ideia, talvez poética, sobre algo que foi e é parte da(s) história(s) deste País

Uma experiência alucinante, sobrenatural, sobre as memórias de Portugal e dos seus vestígios. É também - e só o cartaz nos fez pensar nisso - um filme profundamente romântico, consciente de todas as stories que perdeu.


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retomamos dia 31 com...

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(e já sabem: uns dias antes actualizaremos o blog com posts dedicados a cada filme!

fiquem atentos!

continuação de boas férias, se for o caso :-)
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Dia 8 termina a Mostra de Cinema ao Ar Livre com Um Lugar para Viver. Este, o do cinema. Boas férias! Voltamos em Cacela-A-Velha dia 31!

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Um Lugar para Viver cumpre os objectivos a que se propõe: um inteligente exercício sobre as angústias quotidianas, encenado com rigor e com aquela precisão quase de marcação teatral, que constitui a grande imagem de marca do realizador. Oscilando entre um tom dramático e uma componente de alívio cómico, em doses equilibradas, o filme constrói personagens complexas (excelente direcção de actores) e resiste às facilidades de um registo patético, em que poderia cair, ao optar pelas aventuras e desventuras de um casal à procura de um ideal "lugar ao sol". Falta talvez o cinismo lúcido de "Beleza Americana", mas sobra a capacidade de narrar as pequenas surpresas de um microcosmos de reconhecível verosimilhança.
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Mário Jorge Torres, Público




O tema continua a ser a família, a paternidade e o mundo em volta. Só que em vez do deprimente 'off the road' de Revolutionary Road, em Um Lugar para Viver o casal parte vezes sem conta para descobrir o prazer de ficar.

E se em Revolutionary Road o casal tivesse partido para Paris, em vez de se deixar engolir por aquela sociedade claustrofóbica? Não se sabe ao certo o que aconteceria. Mas o filme seria outro. Ou não haveria filme nenhum. Ou então - quem sabe - tornar-se-ia em algo parecido com Um Lugar para Viver, o último filme de Sam Mendes, já após o divórcio de Kate Winslet. E às vezes são pormenores que distinguem os géneros. Em Revolutionary Road a sociedade parte-os ao não os deixar partir. Em Um Lugar para Viver a partida só serve para encontrar o mundo partido - ao contrário de Revolutionary Road, o mundo está feito em cacos, enquanto o casal se mantém indestrutível, unido perante a loucura do mundo; a viagem, a rigor, serve apenas para cumprir a máxima: "Às vezes é preciso dar uma grande volta para ficar no mesmo sítio". O primeiro é um off the road, o segundo um road to nowhere.




Tal como Beleza Americana, o filme começa com uma pouco usual cena de sexo. Também por aí se faz a diferença. A masturbação de Kevin Spacey Beleza Americana revela uma enorme solidão e um egoísmo elevado a consequências drásticas, o sexo oral praticado por Burt, em indicia um filme em espírito altruísta. É que este casal 'grávido' parte para o mundo de braços abertos, em busca porventura da felicidade que já está na sua posse. O mundo é que se revela insano e incurável de forma nada drástica. É por isso que este Sam Mendes, novamente com a família como tema, se enche, ao contrário de outros, de esperança e de optimismo: continua a não dar grande coisa pelo mundo e pela vida em sociedade, mas revela fé no indivíduo ou, se quisermos, no amor.

A dupla de actores, e em especial John Krasinsky, ajuda a criação de momentos de delírio cómico, num filme muito musical, que consegue o difícil equilíbrio se ser feliz e leve, sem ser piegas nem leviano.
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Manuel Halpern, Visão



Há um tom a roçar o burlesco no périplo de Burt e Verona em busca de um sítio propício para constituir família, ver os filhos crescer, trabalhar, envelhecer. E começam a ver onde moram os amigos e familiares perto dos quais gostariam de estar. Todavia, pouco a pouco, esse périplo torna-se um desfilar de angústias, e aquilo que parecia ser uma procura quase infantil torna-se progressivamente patético – quase, quase no limiar do desespero. Porém, o sorriso cúmplice do espectador nunca se apaga por inteiro, mercê de um equilíbrio de clima dramático que Sam Mendes consegue executar num difícil exercício. E se “Um Lugar Para Viver” não atinge os cumes de “Beleza Americana” ou de “Revolutionary Road”, não justificando, portanto, hossanas nas alturas, a verdade é que este filme consegue uma estratégia de nos conduzir, de surpresa em surpresa, pelas vielas das almas feridas com uma efectividade dramatúrgica que convém sublinhar.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


Título Original: Away We Go
Realização: Sam Mendes
Argumento: Dave Eggers, Vendela Vida
Fotografia: Ellen Kuras
Montagem: Sarah Flack
Música: Alexi Murdoch
Interpretação: John Krasinski, Maya Rudolph, Carmen Ejogo, Catherine O'Hara,
Jeff Daniels, Allison Janney, Jim Gaffigan, Samantha Pryor
Origem: EUA/Reino Unido
Ano de Estreia: 2009
Duração: 98’


EM COMPLEMENTO

UM DIA FRIO, Cláudia Varejão, Portugal, 2009, 27’

Um retrato de uma relação primeira, anterior ao mundo externo, a da família. Num Inverno em Lisboa, pai, mãe, filho e filha, traçam o percurso de um dia, a sós. Um filme que se desenvolve em torno de personagens cujo antagonista não é mais do que a própria vida, com nada (e tudo) de heróico.

Título Original: Um Dia Frio
Realização: Cláudia Varejão
Argumento: Cláudia Varejão, Graça Castanheira
Fotografia: Rui Xavier
Montagem: Cláudia Varejão, Pedro Marques
Interpretação: Adriano Luz, Ágata Pinho, Ana Rodrigues, Isabel Ruth, Maria d'Aires, Vicente Carneiro
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2009
Duração: 27’




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7 Agosto ao Ar Livre - Filme para crianças? Filme para adultos crianças. Spike Jonze no Sítio das Coisas Selvagens.

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Se O Sítio das Coisas Selvagens, que lidera a primeira fornada de filmes a chegar às salas de cinema portuguesas em 2010, pudesse servir de bitola para as estreias que se hão de seguir ao longo do ano, o argumento de falta de criatividade que tanto se usa para denegrir o cinema norte-americano era morto e enterrado em menos de um mês. A nova fita de Spike Jonze tem imaginação e alma para dar e vender, sem recorrer a fórmulas e com aquela capacidade quase única no cinema moderno de dar ao espectador um filme diferente de tudo o que vira até então. É uma adaptação do livro ilustrado infantil de Maurice Sendak, mas explode-lhe as fronteiras e o significado. A obra de origem tem apenas cerca de 40 páginas com um máximo de duas linhas de texto a referenciar a imagem de cada uma, algo manifestamente insuficiente para preencher uma longa-metragem. Assim, Jonze transformou o que era na origem um livro para crianças sobre a viagem de um garoto zangado até um mundo de monstros ternurentos num filme que, embora deixando de lado o público mais jovem, é uma peça fundamental sobre o que é a infância e sobre a responsabilização da idade adulta. Embora a linha geral do livro seja seguida, o resultado é infinitamente mais profundo.
A história é a do jovem Max (Max Records), um miúdo solitário que, zangado e frustrado com a rejeição da irmã e a atenção que a mãe (Catherine Keener) dá ao novo namorado (Mark Ruffalo), foge de casa, mete-se num barco e vai parar a uma ilha distante. Aí encontra um grupo de criaturas felpudas e gigantescas, junto do qual se faz passar por rei, e com quem, entre brincadeiras e discussões sérias, vai aprender muito sobre si e sobre o mundo em seu redor.


Jonze, que, do ponto de vista de produção, tem aqui o filme mais difícil da sua carreira (adaptação de uma obra consagrada, interferências de executivos, orçamento alargado, rodagem em exteriores, efeitos visuais complexos...), conseguiu evitar o desastre e sobreviver incólume a tudo, com um filme que não trai o livro de origem mas é 100% seu, com uma história muito humana apresentada num universo bizarro e onírico onde, em que tudo parece fazer particular sentido embora pouco pareça funcionar sobre as regras habituais.

Como qualquer filme de Spike Jonze, este também está longe de ser uma obra consensual, mas é uma experiência inolvidável para quem se queria nele perder e um filme como poucos sobre o que é ser criança e o que significa assumir as responsabilidades da idade adulta.
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Luís Salvado, Time Out



A visão de Spike Jonze é conhecida pela peculiaridade e pela bizarria de obras como Being John Malkovich (1999) e Adaptation. (2002). Em Where the Wild Things Are mantém-se o tal estatuto do realizador, numa adaptação própria do conto infantil homónimo de Maurice Sendak.
Embora com o material de origem ser infantil, este não é um filme para crianças. Apesar da sua evidente moral, Where the Wild Things Are não cede a tentações moralistas, nem tende a infantilizar ou tornar demasiado adulto o seu argumento. A preocupação de Spike Jonze não é essa. De facto, este seu trabalho é isento de preocupações. Sem se fazer escravo dos meios técnicos e com recurso a uma técnica curiosa de animatronics, o filme faz-se único no mundo cinematográfico, sem espelhar efeitos especiais. Enquanto filme do género fantástico, não esquece uma única vez o lado mais íntimo do ser humano, sucumbindo a algo cada vez mais raro: a fábula no Cinema.

Spike Jonze imerge num universo alternativo e bizarro, que faz o espectador sentir-se de novo criança, não significando isso apenas um estado feliz. Where the Wild Things Are faz-nos recordar que a infância é um processo complexo, uma viagem de crescimento emocional e mental, nunca isenta de profundos estados melancólicos e de angústia. E de medo. Medo de crescer, medo do desconhecido, medo dos estados de espíritos, genialmente retratados por grandes coisas selvagens. A ira, a frustração, o comodismo, o pessimismo, a agonia, a incerteza. É uma construção única e singular de como uma criança acaba por aprender a controlar as suas emoções, é o exteriorizar dos sentimentos e acima de tudo da frustração. Frustração familiar e pessoal, uma luta entre o corpo e a mente, uma luta contra o crescimento invasivo.


Aqui descodifica-se o cérebro de uma criança. E dentro desta criança de nove anos - bipolar, parece-nos - encontra-se o último reduto de liberdade e selvajaria. Que nos faz a nós, adultos, sentirmo-nos distantes de tal fase, nós adultos. Socialmente padronizados, formatados para uma sociedade que não se quer espontânea, nem livre. Formatados para grilhões sociais.

Tecnicamente Where the Wild Things Are é um achado. Desde a realização de Spike Jonze, passando pela sua adaptação (juntamente com Dave Eggers) do conto de Maurice Sendak, a cinematografia de tom amarelo, ocre e dourado de Lance Acord (Lost in Translation) e a banda sonora única de Carter Burwell e Karen Orzolek, tudo contribui para que esta seja uma das melhores obras que abrem o ano de 2010 nos cinemas em Portugal.

O jovem Max Records faz um excelente trabalho como protagonista, que lhe valeu uma nomeação entre o círculo de críticos de Chicago e nos Critics Choice Awards. Depois temos também excelentes trabalhos de vozes, de onde se destaca James Gandolfini como o angustiado Carol ou Catherine O'Hara como a franca Judith.

Where the Wild Things Are é provavelmente o filme familiar, mais genuíno, ingénuo e simples que tivemos oportunidade de ver. É uma viagem e tanto para nós adultos, um brilho nos olhos para as crianças. É sobretudo uma vontade incoerente de voltar a tal fase, encontrar um tal sítio de coisas selvagens, para depois voltar - ainda a tempo do jantar.
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Tiago Ramos, splitscreen-blog.blogspot.com



SOBRE O LIVRO

Os nossos monstros
Olhando para o trabalho deles - um gosto pela antropomorfia e a presença dominante da natureza no seu universo gráfico - é fácil presumir que alguma vez olharam para as ilustrações de Maurice Sendak, o autor de "Where the Wild Things Are", que Spike Jonze adaptou ao cinema. Três ilustradores portugueses ajudam-nos a enfrentar os monstros.

O novo filme de Spike Jonze, "O Sítio das Coisas Selvagens", não é só uma adaptação de um clássico da literatura infantil. É uma adaptação de um clássico da literatura americana "tout court", nos mesmos termos com que nos referimos a "Huckleberry Finn" de Mark Twain: uma encarnação da infância cujo alcance e fascínio está muito para lá da especificidade de um género.
Dizer que "Where the Wild Things Are" pertence ao cânone da literatura americana do século XX é mais temerário do que parece: não estamos a falar apenas de um livro pretensamente para crianças, mas de um livro ilustrado, onde as imagens chegam a ocupar o lugar do texto. Mas como acontece com a melhor literatura, é um livro que, nos 46 anos desde a sua publicação, não tem deixado de irradiar interpretações várias, mantendo a sua contemporaneidade intacta. Como não deixa de ser curioso que da esfera da literatura infantil tenha emergido um livro tão complexo, tão aberto, que continua a exercer influência sobre ilustradores actuais, com ou sem ligações ao universo infantil.



Na América, tem sido equiparado a uma revolução cultural: recentemente, o "Los Angeles Times" notava que o livro de Maurice Sendak foi lançado um ano antes de os Beatles arrasarem as tabelas da pop nos EUA, concluindo que "as mesmas forças que remodelaram a cultura americana no pós-guerra estavam a redesenhar os livros para crianças".

"Where the Wild Things Are" foi uma pedrada no charco: à altura, apesar do arrojo gráfico e do conceptualismo investido nalguns títulos, os livros ilustrados infantis tinham uma visão romântica e delicodoce das crianças, retratadas como seres obedientes que iam para a cama a horas e que aprendiam uma qualquer lição moral quando o livro chegava ao fim. "Por outras palavras, eram livros aborrecidos. E revelavam um completo desconhecimento sobre a natureza das crianças", disse Sendak.

Contornos freudianos
Publicado em 1963, "Where the Wild Things Are" apresenta um rapazinho chamado Max, entre os quatro e os cinco anos, vestido num fato de lobo e mal-comportado, que é mandado para o quarto sem jantar. Max fecha os olhos e uma floresta começa a crescer no seu quarto e ele navega "durante quase um ano inteiro" até chegar a uma ilha habitada por "coisas selvagens" (as "wild things"): monstros de formas exageradas, peludos e de dentes afiados. Max torna-se rei dos monstros mas, eventualmente, sente saudades de casa. Acaba por regressar, encontrando o jantar à sua espera, no quarto.

É só isto, e isto são 10 frases, 37 páginas, 338 palavras - uma obra-prima de condensação. A primeira perplexidade, quando se soube que Spike Jonze, o realizador de "Queres Ser John Malkovich?" (1999) e "Inadaptado" (2002), iria adaptar o livro de Sendak ao cinema, foi: como é que ele vai transformar uma obra tão curta numa longa-metragem?

Jonze escreveu o argumento com o escritor Dave Eggers, expandindo a história original e oferecendo a sua versão dos acontecimentos. Em "O Sítio das Coisas Selvagens", a história familiar de Max ganha contornos freudianos: o seu mau-comportamento é "justificado" pelo abandono - a irmã ignora-o, a mãe divorciada recebe a visita do namorado (no livro, o pai nunca é nomeado e a mãe está fora de campo, mas não existe a mais pequena tentação de fazer psicologia). Max foge e chega à ilha onde os monstros estão a destruir casas (da mesma maneira que o iglô de Max é destruído na primeira parte do filme). Os monstros têm nomes e diálogos que não existem no livro - a segunda parte do filme é, quase toda ela, invenção dos argumentistas, respeitando apenas o esquema original do livro, em que a acção na ilha é um espelho invertido da primeira parte. Jonze preferiu uma abordagem tradicional, respeitando o espírito original de Sendak, em detrimento da animação digital: os monstros são fantoches gigantes, criados pela equipa de Jim Henson (criador dos Marretas) e manuseados no interior por actores. Só as expressões faciais foram animadas por computador - as vozes de actores conhecidos (James Gandolfini, Forest Whitaker, Chris Cooper, Catherine O'Hara) foram gravadas em estúdio, antes da equipa partir para a Austrália, onde o segmento da ilha foi filmado.



O lado gráfico
O livro "Where the Wild Things Are" foi editado, finalmente, em Portugal pela Kalandraka no final do ano passado, sob o título "Onde Vivem os Monstros" (boa tradução, mas opta por explicitar as "wild things" como "monstros", termo que nunca é usado no original). Antes disso, já tinha conseguido chegar a ilustradores portugueses como Pedro Lourenço, José Feitor e Tiago Albuquerque. Olhando para o trabalho deles - um gosto pela antropomorfia e a presença dominante da natureza no seu universo gráfico -, é fácil presumir que alguma vez terão olhado para as ilustrações e desenhos de Maurice Sendak.

Pedro Lourenço, que em 2008 publicou "Blues Control #1" (edição Imprensa Canalha), tem trabalhado em publicidade, mas também no material editorial e auto-promocional do Lux-Frágil, da loja de discos Flur, e Teatro Praga. "Where the Wild Things Are" não fez parte das suas leituras em criança (a sua dieta foi europeia, à excepção da Hanna-Barbera e da Disney), mas descobriu-o mais tarde, pelos 20 anos, juntamente com Edward Gorey e Winsor Mackay (autor do "Pequeno Nemo"). Um pacote "com aparentes ligações ao universo infantil", mas "com um lado negro".

"O Sendak poderá ser aquele que, à primeira vista, mais se aproxima desse universo infantil. O desenho e a história remetem-nos para aí. Mas uma leitura mais atenta acabará por revelar uma obra mais ajustada a um público de outras idades ou com outro entendimento."

Mas foi "o lado gráfico" - o traço minucioso de Sendak - que mais o atraiu, ao ponto de ponderar experimentar a ilustração infantil. Começou a desenhar um bestiário de seres imaginários e foi chamando a todos os ficheiros "wherethewildthingsare"... Mais tarde, abandonou a ideia.
Outro exemplo de como Sendak exerce fascínio sobre adultos: José Feitor, ilustrador e editor da Imprensa Canalha (que tem feito trabalho sistemático de edição de livros de ilustradores num espírito "do-it-yourself", quase sempre em formato de fanzine), deparou-se com "Where the Wild Things Are" há quatro anos, quando a filha Matilde nasceu. Para além do aspecto gráfico - o desenho "tradicionalista" de Sendak, com a sua trama de traços finos, denuncia uma aproximação à gravura, para além dos "efeitos interessantes" que consegue com o seu recurso a cores pálidas, baças - encontra afinidades em termos de imaginário - "esta ideia de exploração de coisas humanas em coisas que não existem, ou em animais", resume, "uma brincadeira entre a humanização e a animalização". Os monstros de Sendak são compósitos, juntando partes de animais diferentes e, por vezes, elementos humanos. São tão grotescos quanto cómicos. Os animais têm sido recorrentes no trabalho mais recente de Feitor, que diz que se pode ver na figura animal "muito daquilo que nós somos". "As pessoas dizem que passo a vida a desenhar animais, e eu digo que não. Desenho pessoas."

Tiago Albuquerque, quem tem feito ilustração editorial para os jornais "i" e "Diário Económico", além de ocasionais incursões na ilustração infantil ("O Meu Livro de Economia", com texto de João César de Neves, e "O Meu Livro de Política", com texto de Jorge Sampaio, ambos editados pela Texto Editora), folheia o livro de Sendak pela primeira vez. Descobriu-o há um ano, através de um amigo, num ficheiro pdf. "Gosto muito dos monstros. Fazem-me lembrar estatuetas africanas - as geometrias são exageradas, em contraste com a criança. E depois, os outros livros [infantis] quase todos dizem: 'Não deves fazer isto.' Ou a criança faz qualquer coisa e isso tem consequências graves. Mas aqui as consequências são boas. Ele praticamente diz: 'Sejam selvagens.' O autor põe-se no papel da criança."




Pedro Moura, crítico e professor de BD e ilustração, autor do blogue Ler BD, onde escreveu sobre o livro de Sendak, complementa: "É um livro que não está com muitas preocupações morais e mostra o egoísmo das crianças. Não acho que haja redenção, não acho que haja aprendizagem. A mãe [de Max] é que se arrependeu e dá-lhe comida. É por isso que acho que o livro é bastante inteligente em relação ao que as crianças pensam. Dizer que é sobre evolução, aprendizagem, passagem de ritos... isso são esquemas adultos." Segundo Pedro Moura, nem sequer sabemos se os acontecimentos de "Where the Wild Things Are" são fantasia ou realidade. "O livro não procura uma resposta, não tem aqueles estratagemas parolos de mostrar que é um sonho", da mesma maneira que as crianças, "quando brincam e fingem qualquer coisa, estão de facto a experienciar".

À época da sua publicação, "Where the Wild Things Are" foi um livro polémico, condenado por guardiões da educação, que temiam que fosse demasiado assustador para crianças pequenas ou que o mau comportamento do protagonista as levasse a imitá-lo.

Max, um rapaz zangado e solitário que desafia a autoridade do mundo adulto, pode ser comparado a um desses "rebeldes sem causa" que tinham começado a povoar o cinema americano nos anos 50, e o livro de Sendak inaugurou um estilo todo seu. A relação entre palavras e imagens é inovadora: as imagens não são decorativas, nem ilustram o texto; elas preenchem o que as palavras não podem dizer e, como nota Pedro Moura, quando deixa de haver texto, sensivelmente a meio do livro, é o momento em que imaginamos que há mais barulho (quando Max e os monstros organizam uma grande algazarra). As imagens aumentam à medida que viramos as páginas, e o livro termina com meia frase e nenhuma imagem - alguém comparou o trabalho de composição de Sendak ao tipo de montagem que os realizadores da nouvelle vague francesa adoptaram.

Spike Jonze disse que queria criar com o seu filme, algo que fosse "tão perigoso quanto o livro foi na sua época". Quem dera.
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Ípsilon - Público



Título Original: Where the Wild Things Are
Realização: Spike Jonze
Argumento: Spike Jonze, Dave Eggers, Maurice Sendak (livro)
Fotografia: Lance Acord
Montagem: James Haygood, Eric Zumbrunnen
Música: Carter Burwell, Karen Orzolek
Interpretação: Max Records e Catherine Keener e vozes de James Gandolfini, Chris Cooper
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 101’



EM COMPLEMENTO

PAISAGEM URBANA COM RAPARIGA E AVIÃO, João Figueiras, Portugal, 2008, 24’

Rapaz conhece rapariga. Dino e Helena vivem um quotidiano difícil num crescendo de angústia que os encurrala na procura de uma solução urgente.

Título Original: Paisagem Urbana Com Rapariga E Avião
Realização: João Figueiras
Argumento: João Figueiras
Fotografia: Leonardo Simões, Paulo Ares
Montagem: João Figueiras
Interpretação: Dinarte Branco, Olena Radionova
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 24’



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6 Agosto. Ao Ar Livre. Histórias de Cabaret = As Histórias do Cinema de Abel Ferrara. Indie rules!

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Há, em Abel Ferrara, uma tal pulsão de cinema que, mesmo com dois cordéis, três actores, alguns amigos e um fio de argumento, ele nos enleia durante 90 minutos. É um mundo sórdido que só ele consegue tornar gracioso, humano, matriz de um imaginário quase feérico. As raparigas são todas belas, o barman quer recitar Shakespeare em vez de vender uísque marado, o contabilista tem um sistema infalível para ganhar a lotaria.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



Um belíssimo manifesto pela independência.

Abel Ferrara é um especialista do caos, esse mesmo caos (viram o episódio do "Cinema de Notre Temps" que a ARTE fez sobre ele?) que lhe inunda a vida pessoal, os processos criativos e uma data de filmes. Pois bem, há muito que ele não filmava assim o caos, a periclitância como estado permanente, o risco de a qualquer momento tudo dar para o torto.

"Histórias de Cabaret" é habitado por estas sensações de uma ponta à outra, dir-se-ia mesmo que é sobre elas; mas, e quase como uma inevitabilidade tratando-se de Ferrara, foi ele próprio extraído ao caos e à iminência do falhanço, no decurso de uma rodagem (na Cinecittà, em Roma) marcada por inúmeros problemas de produção e pela ameaça constante de tudo ficar pelo caminho.

Quer o filme se tenha alimentado dessas perturbações quer não, o efeito de espelho adensou-se. "Histórias de Cabaret" rima as angústias de Abel Ferrara como autor "independente", reflecte a dificuldade da condução a bom porto do seu "pequeno comércio", do seu "cabaret", quer dizer, do seu cinema. É a história de um "night club" nova-iorquino (reconstituído num estúdio romano, como dissemos, incluindo alguns planos de exteriores) dirigido por um Willem Dafoe, actor em estado de graça, tão entalado como optimista (a energia positiva da personagem evoca a do Ed Wood de Tim Burton, outro filme sobre as agruras da independência). Não há dinheiro para pagar a ninguém, nem às "strippers" que ameaçam entrar em greve, nem à senhoria, uma velhota a quem Dafoe deve vários meses de renda e que não se cansa de anunciar que ou ele paga ou é despejado. Está tudo à beira do fim, mas Dafoe tem razões para estar optimista: apostou tudo num esquema (confuso e aparentemente fraudulento) para ganhar a lotaria, e teve sucesso. Mas ainda o caos: nem ele nem nenhum dos seus parceiros se lembram de onde raio guardaram o bilhete premiado.




É portanto uma noite de "ou vai ou racha", num frenesi dado praticamente em "tempo real" (a duração do filme corresponde à duração da acção), o fulcro de "Histórias de Cabaret". Em suspensão (sobre o abismo, em fuga para a frente) e em "suspense" (ah mas onde está aquele maldito bilhete salvador?). O tempo preenche-se com as correrias à procura do bilhete e com as conversas de Dafoe para apaziguar os credores e convencer as meninas a subirem ao palco - e entretanto, "the show must go on", com "performers" vindos de outros filmes de Ferrara (Matthew Modine ou Asia Argento). Dafoe é uma espécie de figura paterna, mestre de cerimónias, psicólogo, intrujão por uma boa causa (a sua independência, o seu negócio, o bem-estar da "família" composta pelos funcionários do "cabaret"). Também é uma espécie de cineasta, como que um duplo do próprio Ferrara, a conduzir um filme de expediente em expediente, a arrancá-lo às garras do fracasso. Ferrara mencionou "A Morte de um Apostador Chinês", de Cassavetes, o filme onde Ben Gazzara se dispunha a tudo para preservar o seu negócio nocturno. "Histórias de Cabaret" tem outro tipo de intensidade, e um espírito de irrisão totalmente diverso da sisudez de Cassavetes. Mas é, como ele, um belíssimo manifesto pela independência, capaz de integrar, irónica e esfuziantemente, todas as suas ambiguidades e sombreados morais.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Se pensavam que este filme de Abel Ferrara se passava no sub-mundo nova-iorquino, estão moderadamente enganados. Porque, na verdade, Histórias de Cabaret (Go Go Tales), passa-se no submundo de outro submundo. Desce-se ainda mais um andar no underground do realizador. Agora estamos numa subcave da subcave, nos bastidores de um cabaret, esconso e sufocante, que já teve melhores dias (ou melhores noites). Mas não é a claustrofobia do espaço que impede o arejamento do guião. Tudo acontece na vertigem de um bungee jumping, sem rede nem sistema de pára-quedas…. Em Go Go Tales, as cenas sucedem-se nesta queda livre, ao ritmo da música e das strippers semi-nuas, que em primeiro plano ou em fundo, não param de se contorcer. E há coisas sempre acontecer, ao ponto de parecer haver um torvelinho de uma corrente de ar impossível naquela viciosa atmosfera. Primeiro são brisasinhas que sopram em várias direcções, em seguida já nos envolvemos no tufão, no ciclone de acontecimentos que se enrodilham no caminho de um empresário da noite (Willem Dafoe) que, em contra-relógio, tenta salvar o seu stripper-club. Claro que apesar da ventania, há a falta de ar do espaço fechado, dos planos esquinados, sempre apertados, do escuro, do interior, dos efeitos claustrofóbicos das câmaras de videovigilância… Tudo passa, tudo dança, tudo corre, tudo se transaciona, tudo desvaira… Não sobra um fôlego. Mas quem se lembra de vir respirar para um clube de strippers?


Há uma série de meninas despidas, ou em vias disso. São todas esculturalmente perfeitas, estilizadamente iguais, estereotipadamente despersonalizadas. Quase não têm cabeça, não se distinguem, (uma delas é Ásia Argento), apesar do dono do cabaret, dentro do seu smoking branco e manchado, especificar as suas idiossincrasias e nacionalidades, do Texas à Sibéria. Também há toda a entourage burocrática dos bastidores, o contabilista , o porteiro, o barman, o cozinheiro gourmet que prepara cachorros biológicos. E também há cachorros não comestíveis, um lulu e um rotter-weiler que também participam na lap dancing. E toda a gente se queixa. A senhoria velhota, com um cabelo louro-decadente, reclama as rendas atrasadas, as strippers ameaçam fazer greve por falta de pagamento, uma delas está grávida e o médico não recomenda que dance de saltos de arranha-céus, outra delas é apanhada na pista pelo marido (o actor italiano do momento, Riccardo Scamarcio)… No meio disto tudo, um grupo de chineses entra lá dentro por engano, e seguem o «homem-caranguejo» do restaurante do lado. Há um bilhete premiado e desaparecido de uma espécie de euromilhões, um aquário com peixes, uma máquina espacial de bronzear que pega fogo, a música imparável de Francis Kuipers …

O caos está instalado mas desinstala-se ainda mais, naquele galope desenfreado, por entre aqueles compartimentos do bas-fond, e de fundos do fundo. A cada esquina algo de Cassavetes, e de Altman, e por instantes, quando as bailarinas mostram outras vocações circenses, (uma toca piano, outra é ilusionista, um bar-man representa Shakespeare… ) parece que se rompe, por instantes, a fina parede dos estúdios Cinnecitá.
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Ana Margarida de Carvalho, finalcut-visao.blogspot.com


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Em Cannes 2001, após a projecção de "Histórias de Cabaret", tentámos entrevistar Abel Ferrara sabendo que a tarefa era quase impossível. O filme não estava ainda comprado para Portugal, o que dificultava o acesso ao 'rei dos indies', esse nova-iorquino de gema, filho de um camionista do Bronx, que agora trocou a cidade por Roma "porque a vida em Nova Iorque ficou impossível depois do 11 de Setembro". Havia um contacto no press release. Do outro lado da linha, recebemos um simpático "no problem", que em seguida se desculpou: não podia marcar dia e hora. É que Abel tem, no mínimo, vida privada tão turbulenta como os heróis dos seus filmes. São quase todos sublimes: "O Polícia sem Lei". ou "O Funeral", glórias dos anos 90, também deixaram mossa em Portugal. Mas a sorte bate-nos à porta na tarde seguinte em local mítico para os festivaleiros, o bar Le Petit Majestic. Ferrara, chega com a actriz Shanyn Leigh e uma agente de imprensa francesa que conhecemos. Pede uma cerveja com o seu slang nova-iorquino cerrado, parece uma personagem de "Os Sopranos". Introdução e pedido de conversa feitos, levamo-lo para o jardim do Grand Hotel, que fica mesmo ao lado.

Abel não fica no jardim, vai para o balcão do bar, e é aí que nos fala de "Histórias de Cabaret" e dos sete anos que esperou para o fazer. "Foi a primeira vez que tentei uma comédia e há muito de autobiográfico na personagem de Ray Ruby, um tipo que está a ver se a sorte muda. Ele é mais nostálgico e romântico do que eu, mas, no seu Paradise, não deixa de ser um sobrevivente." Acrescente-se que o Paradise de Ray.

Ruby (Willem Dafoe) é o bar de striptease de Nova Iorque onde estas histórias se passam. Um bar que Ferrara recriou por completo em Roma, nos estúdios da Cinecittà.




Nem tudo é rosa no cabaré chique com meninas de sonho que deslumbram empresários asiáticos: é que o clube está à beira da falência. Ao lado de Ray, há o 'barão', seu braço-direito na gestão do Paradise (Bob Hoskins), mas nenhum dos dois sabe como o salvar. A renda está atrasada. As bailarinas, lideradas por Monroe, uma Asia Argento que dança no varão e tem um rottweiler, ameaçam coma greve. A chegada do irmão de Ray, Johnnie (Matthew Modine), também não ajuda. Quem vai pagar o champanhe? Naquele ambiente que muitos julgariam sórdido, porém; há espaço para a maior generosidade do mundo. Viciado no jogo, Ray tem uma derradeira solução: aposta forte na lotaria. Para cúmulo, ganha o primeiro prémio. E, para cúmulo do cúmulo, perde o bilhete da taluda.

Influenciado por "Killing of a Chinese Bookie" (Cassavetes) e "Broadway Danny Rose" (Woody Allen), Ferrara diz que este filme "é a história de um gangue de azarados honestos à procura de dinheiro. Tenho o maior orgulho neles. O bar representa uma era dourada da vida de Nova Iorque que chegou ao fim e um tempo em que ainda havia respeito pelo trabalho e pelo showbiz'. Não é fácil imaginar uma screwball comedy que nos fala de produção de cinema independente do pri¬meiro ao último fotograma, mas, no fundo, "Histórias de Cabaret", filme de génio, não é outra coisa. Cinco estrelas para Abel.
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Francisco Ferreira, Expresso


Título Original: Go Go Tales
Realização: Abel Ferrara
Argumento: Abel Ferrara
Fotografia: Fabio Cianchetti
Montagem: Fabio Nunziata
Música: Francis Kuipers
Interpretação: Willem Dafoe, Matthew Modine, Asia Argento Roy Dotrice, Frankie Cee, Lou Doillon
Origem: Itália/EUA
Ano de Estreia: 2007
Duração: 96’



EM COMPLEMENTO

ALPHA, Miguel Fonseca, Portugal, 2008, 28’

O que começa como experiências em laboratório com animais conduz no futuro ao desenvolvimento de seres artificiais capazes de executar as mais diversas e complexas tarefas.
Estes seres, cuja aparência é totalmente humana, são inteligentes e versáteis: são capazes de realizar simples tarefas como regar plantas, pôr uma mesa, tratar da roupa ou alimentar um animal de estimação. Mas não só. São seres quase autónomos e podem mesmo falar e interagir connosco. Construídos para serem mais do que electrodomésticos perfeitos, são um pouco o que os clientes quiserem que sejam: podem ser meros ajudantes na lida da casa ou simples brinquedos para as crianças, mas também podem ser amantes sofisticados e apaixonados ou uma companhia perfeita para pessoas sós.
Antes de serem entregues aos clientes, as empresas desenvolvem uma espécie de estágio final dos seus produtos, supervisionado por um técnico, no qual se efectua o controlo de qualidade e onde certas capacidades são aperfeiçoadas, como a aprendizagem da língua dos clientes, por exemplo. Esta fase do processo é levada a cabo invariavelmente num meio fechado, normalmente numa casa que reproduz características-chave da casa do cliente.
Alpha é um destes seres artificiais e juntamente com Beta faz parte de um casal que está agora a poucas semanas de ser transportado para os seus futuros donos no Japão.

Título Original: Alpha
Realização: Miguel Fonseca
Argumento: Miguel Fonseca
Fotografia: Mário Castanheira
Montagem: Sandro Aguilar
Interpretação: João Nicolau, Sara Carinhas
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 28’




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5 Agosto AO AR LIVRE, um filme tremendamente emocionante e onde a banalidade não existe: OS LIMITES DO CONTROLO. Jarmush!!!!

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Os anos passam, e Jim Jarmusch, que já foi a personificação de um cinema americano jovem, rebelde e marginal, tem agora 56 anos e começa a personificar um cinema americano antigo, rebelde e marginal. É um homem antigo, Jarmusch - e isto, antes que se levante alguma dúvida, é uma coisa maravilhosa.



"Os Limites do Controlo" é um filme de um homem antigo, a tentar lembrar os valores da antiguidade (não necessariamente a dita "clássica" embora nem ela deva ser excluída) num mundo de gostos estereotipados e sem memória. É um canto pela diversidade artística e cultural, que encontra o mesmo esplendor num filme, no artesanato de uma tribo índia da América do Sul, num quadro de Juan Gris, na arquitectura madrilena, numa canção. Que faz ouvir o inglês, o espanhol, o francês, o japonês, e aprecia cada língua como se tivessem o mesmo valor de mercado.



"Os Limites do Controlo" é um lamento por um mundo obliterado pela cultura de massas, não porque tenha alguma coisa contra os objectos produzidos pela cultura de massas mas porque sofre com o esmagamento do resto - do que é residual, marginal, local, único, específico. Como diz uma frase, ouvida várias vezes e em várias línguas (num filme construído todo em rimas e repetições, e não apenas nos diálogos), "o universo não tem centro nem arestas". Mas, como se torna claro no último dos encontros do granítico Isaach de Bankolé (improvável, mas genial, mistura africana de uma disciplina de samurai com a impassibilidade de Robert Mitchum e a frieza de Lee Marvin), houve uma usurpação: alguém ocupou uma porção do universo e decidiu que aquela porção era o centro, tratando a seguir de começar a limar o que decidiu que eram as arestas. "Os Limites do Controlo" fala em nome das "arestas", e conta a história da revolta da margem contra o centro - é uma metáfora, mas Jarmusch toma-a como convém: pela sua literalidade. Uma espécie de cosmogonia (des)esperançosa, uma fábula triste e cansada mesmo quando parece divertida e a agitada.





Triste e cansada já deve ter dado para perceber, concentremo-nos no divertido e agitado. "Agitado" não é piada - "Os Limites do Controlo" não foi feito a pensar, digamos, em pessoas impacientes, tem o seu ritmo e os seus rituais e leva-os muito a sério; mas é um facto que se passam imensas coisas e imensas peripécias. Tem a estrutura narrativa de que Jarmusch mais gosta, a de uma viagem. Isaach de Bankolé, que se comporta como os assassinos contratados (tipo filme de Melville) mas durante algum tempo isso é tudo o que sabemos dele (ou seja, "que se comporta como um assassino contratado"), é despachado para Espanha numa missão cujos pormenores são omitidos ao espectador (ou, o que vai dar ao mesmo, são dados por charadas deliciosa e misticamente incompreensíveis).



Madrid, depois Sevilha, finalmente uma aldeola andaluza. Para além de esperar, sentado em cafés e esplanadas (sempre dois "espressos" ao mesmo tempo, homem de hábitos enraizados) ou em incursões no Museu Rainha Sofia (cujos quadros e objectos funcionam como os "cartoons" de "Ghost Dog", anunciando coisas que vão acontecer a seguir), tem vários encontros. Primeiro com uma rapariga, que está sempre nua (ou de gabardine transparente), saiu direitinha da primeira cena do "Desprezo" ("gostas do meu rabo?", pergunta a Isaach, e isto nunca foi citado desta maneira tão divertida), e cujo papel na "organização" permanece obscuro. Depois, uma série de encontros fugazes para sessões de "coffee and cigarettes" - quanto mais aborrecerem Jarmusch com a história de que os filmes dele têm "lógica de filme de sketches" é certo e sabido que ele não vai deixar de os fazer assim. A cada encontro, Isaach e o coadjuvante trocam umas caixinhas de fósforos (coisa arcaica) e isso é uma espécie de sinal para o próximo encontro ou para o próximo destino. Falam de pintura, de música, de ciência, de cinema (Tilda Swinton, em loura hitchcockiana: "o que de mais gosto nos filmes é quando mostram só gente sentada a conversar", assim descrevendo sinteticamente o plano em que está, e que Jarmusch depois, prolonga por mais algum tempo). Alguns são figuras familiares no "universo Jarmusch": John Hurt, Yuki Kudoh (a miúda japonesa do "Mystery Train" de há vinte anos), e Bill Murray, em vilão, a fazer-se tão oleoso quanto consegue (genial, o plano da "vanitas" com a peruca loura na caveira).


Quando acaba, na cena destinada a provar que todo o controlo tem os seus limites, "Os Limites do Controlo" está que parece uma daquelas ficções científicas distópicas sobre mundos totalitários, sobre mundos "do centro". À independência já não basta a melancolia, pede-se-lhe um pouco de ferocidade. É a novidade de "Os Limites do Controlo", filme belo e inventivo, zangado e elegante, filme de homem antigo.

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Luís Miguel Oliveira, Público


ENTREVISTA AO REALIZADOR

“ Os Limites do Controlo”, o mais recente filme de Jim Jarmusch, estreou-se na semana passada em Portugal. Jarmusch, americano do Ohio adoptado por Nova Iorque nos anos 70, assina com ele a sua primeira obra integralmente “estrangeira”: todo o filme se passa em Espanha, entre Madrid e a Andaluzia. É uma fábula, que convoca rituais de filme negro e ideais de samurai para descrever a missão de um assassino contratado. Com muitas pausas e muitas esperas – “um filme de acção sem acção”, diz Jarmusch na entrevista – preenchidas com a observação e a escuta de um mundo – pintura, música, ciência – palpitante de diversidade.



Jarmusch, que começou a filmar no princípio da década de 80, personificou a “independência” no cinema americano muito antes de o Festival Sundance e a Miramax (não exclusivamente) terem transformado essa independência numa indústria a replicar noutra escala os códigos e os processos de Hollywood. Continua a personificá-la, mais do que nunca, como uma independência de espírito. Trinta anos depois de “Permanent Vacation”, Jarmusch é como um célebre herói de Nicholas Ray (esse lendário “maverick” de quem Jarmusch colheu o testemunho, no tempo em que foi seu assistente na escola de cinema de Nova Iorque): “He hasn’t moved”. Em tradução livre, diríamos que não arredou pé. Como esta entrevista deixará perceber.



“ Os Limites do Controlo”, que título formidável... Onde é que o foi buscar?
A um ensaio de William S. Burroughs [publicado em 1975], que se chamava assim. Queria apenas usar o título, fazer um filme com esse nome, que é, de facto, formidável. Mas depois, de certa maneira, no filme acabaram por ficar alguns ecos do tema que Burroughs abordava nesse ensaio, os mecanismos de controlo da linguagem e, a partir da linguagem, de controlo do pensamento. E, claro, as fendas que se abrem nesses mecanismos, os seus limites. Mas a ideia nunca foi adaptar o ensaio, apenas ficar-lhe com o título.



Olhando para “ Os Limites do Controlo” sob determinada perspectiva, é capaz de se tratar do filme mais profundamente política que já fez.
Eu diria mais filosófico...





O que não exclui uma forte ressonância política...
Não, claro que não, ela está lá e espero que seja perceptível. Mas o tema da consciência tem uma amplitude filosófica inesgotável, preocupou todo o tipo de pensadores nos últimos milhares de anos, e é a questão essencial do filme: o que é que faz com que um indivíduo seja um indivíduo? Que tenha a sua consciência e não uma consciência ditada por outros? Que siga o seu caminho em vez de ir atrás do rebanho.



Mas é aí que justamente, transposto para o contexto contemporâneo, se torna num tema político. O seu interesse em “culturas” marginais aos grandes centros de difusão e promoção, em “jardins” como numa entrevista antiga lhes chamou, já vem de há muito tempo, mas em “ Os Limites do Controlo” é um interesse que entra em oposição clara, e até agressiva, com a chamada “cultura de massas”.
Acho que só comecei a explorar esse interesse, deliberadamente, com “Homem Morto”... Mas sim, com certeza. Desconfio, por natureza, da cultura de massas, e angustiam-me os seus cada vez mais perfeitos métodos de controlo do seu poder de persuasão. A maneira como leva as pessoas a abdicar da sua própria imaginação e a substituí-la por uma imaginação préfabricada. A decidir o que é aceitável e a pôr de lado o que não é, e a violência com que o faz. É um poder cada vez mais refinado. Eu próprio às vezes dou por mim com coisas que a cultura de massas pôs na minha cabeça. E tenho que fazer um esforço para as tirar de lá, porque não quero que elas lá estejam [risos]...



Acha que o panorama é agora mais sufocante do que há trinta anos, quando começou a filmar?
Havia ilhas, até em sentido geográfico, por exemplo em Nova Iorque [para onde foi viver nos anos 70]. Era mais fácil viver à margem. Hoje é muito mais opressivo. Além de que, pelo menos nos EUA, se se tiver alguma ambição artística, ou se se quiser criar alguma coisa movido primordialmente por um princípio artístico, a tendência é que se seja tratado como lixo.



Podia contar-lhe o que se diz em Portugal dos artistas, e dos cineastas portugueses, mas não quero angustiá-lo... Mas, portanto, "Os Limites do Controlo" narra a história da vingança da margem sobre o centro?
A vingança é inútil [uma má escolha de palavras do entrevistador propor¬cionou a "recriação" de um diálogo do filme: na cena final, Bill Murray pergunta a Isaach de Bankolé "Isto é o quê, uma vingança?" e Isaach responde, exactamente como Jarmusch, ''A vingança é inútil"]. É uma metáfora, uma metáfora de uma tomada de consciência e de uma afirmação da consciência contra todas as imagens e ideias que lhe são impostas de fora. A personagem de Bill Murray é uma representação dos poderes convencionais de todo o tipo, político, económico, cultural. Nunca pude com aquele cinismo disfarçado de pragmatismo, que agora está outra vez na moda, que nos quer convencer de que o mundo é "assim" e só "assim". O "vocês não sabem nada da vida", o "não é assim que o mundo funciona", seguido da conveniente explicaçãozinha cínica. Têm que escrever a pensar nisto, têm que fazer filmes a pensar naquilo - sempre "as massas" e, o que é igual, o "dinheiro" . Abdiquem da vossa individualidade, abdiquem da vossa imaginação. Ao diabo com essa gente toda. O discurso da personagem de Bill Murray nessa cena é um repositório desse tipo de frases feitas.



Já tinha filmado fora dos Estados Unidos ["Noite na Terra", de 1994, tem vários "sketches" rodados na Europa], mas foi a primeira vez que fez um filme inteiro no estrangeiro.
É verdade. E, no fundo, eu sei que não era preciso. Esta história podia ter sido filmada em qualquer lugar do mundo, inclusive nos EUA. Mas achei que seria inspirador lidar com outros cenários, outras culturas, debater-me com outro tipo de estranheza. E foi. Além do mais, foi óptimo passar uns meses longe destes malditos Estados Unidos, para desenjoar [risos].



E Espanha porquê?
Nenhuma razão especial, intuição simplesmente. Meti na cabeça que tinha que ir filmar em Espanha. Conhecia bem Madrid, e há anos que estava fascinado com aquele prédio de formas arredondadas que se vê no filme [um prédio vagamente reminiscente de Gaudi, mas obviamente não dele, impossível identificar o arquitecto - se algum leitor souber, faça o favor de dizer]. E Sevilha é uma das minhas cidades preferidas, é quase um fetiche [risos]. E finalmente a zona de Almeria foi o local onde foram rodados todos aqueles maravilhosos "western spaghettis" dos anos 60 e 70. Sabia que Espanha me ia dar muito com que me entreter.





Mas Espanha tem também uma coisa a que é sensível, e aliás isso está no filme: é um país "moderno", no sentido em que pertence ao "primeiro mundo", mas também é um país muito antigo, cheio de histórias e de marcas delas...
Indubitavelmente, sim. O muito novo e o muito velho coexistem plenamente. Reparou nos moinhos que se vêem na cena do comboio? Aquilo é a zona da Mancha, não há os moinhos do Dom Quixote mas há aqueles moinhos modernos, muito brancos, eólicos... E ainda. há outra coisa, que é a incrível mistura cultural que Espanha albergou. Pensar que foi um sítio onde os cristãos, os judeus e os muçulmanos viveram em paz uns com os outros... Até ao momento em que os cristãos decidiram correr com eles, claro [risos]. Mas portanto não são só as marcas do tempo que Espanha conserva, são também as marcas desse trânsito cultural. A arquitectura mourisca... E os ciganos, o flamenco...



Há muitas pequenas citações ao longo de "Os Limites do Controlo", e entre elas até há, não juro que seja a primeira vez que o faz mas nunca o fez assim, algumas autocitações, como todas aquelas cenas de "café e cigarros". Sendo sempre grave, e quase sempre sério, é um filme muito divertido, a sisudez está sempre a ser desfeita por uma brincadeira qualquer...
São autocitações, com certeza. É uma maneira de cortar o dramatismo. Queria que o filme tivesse esse tom sério e grave mas ao mesmo tempo que esse tom fosse sempre não-dramático. Uma espécie de filme de acção sem acção [risos], todo à base de pequenas situaçõezinhas.


Mas também é um filme sobre a ética e a autodisciplina. O protagonista é um parente próximo do Ghost Dog [personagem do filme homónimo, um samurai contemporâneo].
Sim, é um parente do Ghost Dog. É uma autodisciplina de praticante de artes marciais. Que, para mim, são uma coisa espiritual, muito mais do que física. Têm a ver com uma apreciação e uma aceitação da própria consciência, e a partir daí com o encontro de um posicionamento individual no mundo. O que não implica um centramento: esta personagem está sempre muito atenta ["aware"] ao mundo, muito observadora, aprende com tudo.



Mas não se distrai com nada. Também vem um bocadinho dos heróis de Jean-Pierre Melville [o realizador de "O Samurai", com Alain Delon] não vem?
Um bocadinho. Mas também de uma personagem dos romances de Donald Westlake, ou dos que assinou com pseudónimo [Richard Stark], que foi interpretada por Lee Marvin no "Point Blank" de John Boorman. Esta personagem também tinha como imperioso não se distrair com nada.


Uma das brincadeiras do filme é uma referência, sem o nomear, ao seu amigo Aki Kaurismaki. Continua a ser um cinéfilo? O que viu ultimamente que mais o entusiasmou?
Oh, sim, absolutamente. Estou sempre a ver filmes. A perspectiva de passar o resto da vida a ver filmes, seja a rever os de que gosto seja a descobrir os que nunca vi, é uma coisa maravilhosa. O que me entusiasmou recentemente?... [pausa] Ainda não o vi, mas estou ansioso pelo novo filme de Michael Mann, "Inimigos Públicos". Não sou um incondicional, mas tenho cada vez mais respeito e interesse pelo seu trabalho. De resto, ultimamente, vi uma retrospectiva Straub/Huillet de cabo a rabo, e agora ando a ver uma retrospectiva Nicholas Ray... Conheço os filmes todos de cor e salteado, mas nunca resisto a vê-los mais uma vez.

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Luís Miguel Oliveira, Público





SOBRE O REALIZADOR

Partindo do "caldo cultural" da Nova Iorque de 70, o trajecto "jarmuschiano" foi sempre no sentido de uma progressiva expansão de horizontes, geográficos e culturais - em todo o seu glorioso descentramento.



Pode-se dizer, o próprio Jim Jarmusch o diz, que "Os Limites do Controlo" é um filme sobre uma personagem que insiste - por questão de auto-disciplina espiritual - em conservar os olhos abertos ao mundo em vez de os fechar. É um pouco a história do próprio Jarmusch, que tem este apelido por causa da ascendência checa da sua família e nasceu em Akron, Ohio, em 1953. Entre "Permanent Vacation" (de 1980), o seu primeiro filme, realizado como exercício para a escola de cinema de Nova Iorque e ainda tão centrado nas subculturas novaiorquinas que ele viveu por dentro durante a década de 70 ("já foi bem bom ter vivido em Nova Iorque durante os anos 70", dizia uma personagem de "Café e Cigarros"), e "Os Limites do Controlo", o trajecto é sempre no sentido de uma progressiva expansão de horizontes, geográficos e culturais, e pela mescla, que se tornou coisa "jarmuschiana", dos mais diversos elementos oriundos das mais diversas proveniências.



No último plano de "Permanent Vacation", em prenúncio da viagem que aí começava, a câmara estava montada num barco que se afastava de Manhattan. Na verdade, a viagem de Jarmusch tinha começado alguns anos antes, quando aportou a Nova Iorque para estudar jornalismo e literatura na universidade. Mal chegou, viu uns papéis afixados nos corredores a oferecer bolsas de estudo em Paris e nem hesitou. Em Paris foi dar ao centro absoluto da cinefilia clássica, a Cinemateca Francesa, ainda dirigida por Henri Langlois, e aconteceu-lhe a coisa "maravilhosa" que não resistimos a transcrever de uma entrevista de há alguns anos: "E foi o maravilhoso nascimento de qualquer coisa em mim - uma tomada de consciência da diversidade dos filmes, e de quão bela era essa forma de arte. Vi filmes indianos de Mrinal Sen e Satyajit Ray, filmes africanos, e filmes clássicos franceses, japoneses, chineses, de todo o lado. E também aprendi imenso sobre os filmes de Hollywood por vê-los naquele contexto. (...) percebia-se simplesmente que o mundo do cinema era gigantesco".



Quando voltou a Nova Iorque matriculou-se na escola de cinema. Nicholas Ray foi lá passar os últimos anos da vida a dar aulas e Jarmusch tornou-se seu assistente - nessa condição pode ser fugazmente visto no "Lightning over Water" que Wim Wenders filmou com o moribundo realizador de "Johnny Guitar". Ray morreu em 1979 e já não viu "Permanent Vacation", o filme de fim de curso de Jarmusch que a escola recebeu muito mal. Resignado com a renitência geral, estava quase convencido de que não tinha futuro como realizador quando o filme, que tinha ido parar ao Festival de Mannheim, na Alemanha, começou a receber prémios e a ser comprado. Isto mudou a vida de Jarmusch.


Glorioso descentramento
Os filmes seguintes, "Stranger than Paradise" (1984) e "Down by Law" (1986), estabeleceram-lhe a reputação. O primeiro, que fazia o movimento entre Manhattan e a Florida com passagem pelo Ohio, seguindo um conjunto de personagens vagamente "artistas" e fundamentalmente desocupadas, partia do "caldo cultural" da Nova Iorque de 70 e de um panorama "pós-punk" tristonho e arruinado, morto sem ressuscitação possível. Desse filme passava para "Down by Law" John Lurie, agora em companhia de Tom Waits e do excêntrico (em todos os sentidos) Roberto Benigni. Se "Stranger than Paradise" era um filme de despedida, "Down by Law", rodado em Nova Orleães e nos pântanos da Louisiana, voltava-se para as raízes da cultura popular americana, e logo (Nova Orleães...) no seu mais heteróclito e miscigenado.


Em 1989, a terminar a década, Jarmusch continuou a sua investigação das culturas populares americanas em "Mystery Train", rodado em Memphis, Tennessee - onde encontrava, entre outros fantasmas, o de Elvis Presley. Na alvorada da década de 90, Jarmusch era o que havia de mais parecido com um "cineasta folk".


Perdeu-se um pouco no seu primeiro filme dos anos 90 - "Noite na Terra", cinco sketches em cinco cidades (duas americanas e três europeias), talvez o filme mais irrelevante da sua obra, desajeitada, mas tão sincera, declaração de amor simultânea por Los Angeles, Nova Iorque, Paris (onde encontrava Isaach de Bakolé, protagonista de "Os Limites do Controlo"), Roma (onde reencontrava Benigni) e Helsínquia (onde adoptava os actors de Kaurismaki). De "Homem Morto"(1995) dissemos muito mal quando estreou e nunca nos enganámos tanto. É talvez o filme mais complexo de Jarmusch, o filme com menos chaves cinéfilas (é um erro vê-lo como "revisão" do western), e profundamente radicado, via William Blake, na invenção de uma cultura "folk" que cruza o que veio dos brancos com o que veio dos índios, ou na visão/imaginação de uma América originada numa espécie de fronteira cultural. Depois dele, mas noutro estilo (e descontando o intróito de "Café e Cigarros", puro divertimento), Jarmusch só em "Flores Partidas" (2005) voltou a cruzar a América.


"Ghost Dog" (1999), e agora "Os Limites do Controlo", dois filmes "primos", exploram um desenho de personagem que é em si mesma altamente compósita, lançada num mundo (mais circunscrito no primeiro caso, um pouco mais vasto no segundo) que se tece pelas sobreposições de universos distintos (geográficos e "artísticos"), em todo o seu glorioso... descentramento. Como se diz no filme agora estreado, nem centro nem arestas (ou, se esperarem pelo último crédito, "no limits no control"): Jarmusch é uma espécie de panteísta cultural.

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Luís Miguel Oliveira, Público


Título Original: The Limits of Control
Realização: Jim Jarmush
Argumento: Jim Jarmush
Fotografia: Christopher Doyle
Montagem: Jay Rabinowitz
Música: Jay Rabinowitz (music editor)
Interpretação: Isaach De Bankolé, Tilda Swinton, Bill Murray, Gael García Bernal,



John Hurt, Paz de la Huerta, Alex Descas, Jean-François Stévenin, Luis Tosar
Origem: EUA/Espanha/Japão
Ano de Estreia: 2009
Duração: 116’



EM COMPLEMENTO

ANTES DE AMANHÃ, Gonçalo Galvão Teles, Portugal, 2007, 16’

Mário, um homem perseguido, pessimista, em fuga.
Se ao menos conseguisse chegar ao ponto de encontro combinado com o homem que lhe prometeu a salvação… uma cabina telefónica, na Calçada da Ajuda, às sete da manhã… a esperança de uma vida nova poderia sobreviver. E tudo voltaria ao normal.
Mas e se a madrugada do dia 25 se revelar tudo menos normal?


Título Original: Antes de Amanhã
Realização: Gonçalo Galvão Teles
Argumento: Gonçalo Galvão Teles
Fotografia: André Szankowski
Montagem: Pedro Ribeiro
Música: Bernardo Sassetti
Interpretação: Adriano Luz, Albano Jerónimo, Beatriz Batarda, Filipe Duarte, Joaquim Leitão
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2007
Duração: 16’



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