7 Agosto ao Ar Livre - Filme para crianças? Filme para adultos crianças. Spike Jonze no Sítio das Coisas Selvagens.

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Se O Sítio das Coisas Selvagens, que lidera a primeira fornada de filmes a chegar às salas de cinema portuguesas em 2010, pudesse servir de bitola para as estreias que se hão de seguir ao longo do ano, o argumento de falta de criatividade que tanto se usa para denegrir o cinema norte-americano era morto e enterrado em menos de um mês. A nova fita de Spike Jonze tem imaginação e alma para dar e vender, sem recorrer a fórmulas e com aquela capacidade quase única no cinema moderno de dar ao espectador um filme diferente de tudo o que vira até então. É uma adaptação do livro ilustrado infantil de Maurice Sendak, mas explode-lhe as fronteiras e o significado. A obra de origem tem apenas cerca de 40 páginas com um máximo de duas linhas de texto a referenciar a imagem de cada uma, algo manifestamente insuficiente para preencher uma longa-metragem. Assim, Jonze transformou o que era na origem um livro para crianças sobre a viagem de um garoto zangado até um mundo de monstros ternurentos num filme que, embora deixando de lado o público mais jovem, é uma peça fundamental sobre o que é a infância e sobre a responsabilização da idade adulta. Embora a linha geral do livro seja seguida, o resultado é infinitamente mais profundo.
A história é a do jovem Max (Max Records), um miúdo solitário que, zangado e frustrado com a rejeição da irmã e a atenção que a mãe (Catherine Keener) dá ao novo namorado (Mark Ruffalo), foge de casa, mete-se num barco e vai parar a uma ilha distante. Aí encontra um grupo de criaturas felpudas e gigantescas, junto do qual se faz passar por rei, e com quem, entre brincadeiras e discussões sérias, vai aprender muito sobre si e sobre o mundo em seu redor.


Jonze, que, do ponto de vista de produção, tem aqui o filme mais difícil da sua carreira (adaptação de uma obra consagrada, interferências de executivos, orçamento alargado, rodagem em exteriores, efeitos visuais complexos...), conseguiu evitar o desastre e sobreviver incólume a tudo, com um filme que não trai o livro de origem mas é 100% seu, com uma história muito humana apresentada num universo bizarro e onírico onde, em que tudo parece fazer particular sentido embora pouco pareça funcionar sobre as regras habituais.

Como qualquer filme de Spike Jonze, este também está longe de ser uma obra consensual, mas é uma experiência inolvidável para quem se queria nele perder e um filme como poucos sobre o que é ser criança e o que significa assumir as responsabilidades da idade adulta.
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Luís Salvado, Time Out



A visão de Spike Jonze é conhecida pela peculiaridade e pela bizarria de obras como Being John Malkovich (1999) e Adaptation. (2002). Em Where the Wild Things Are mantém-se o tal estatuto do realizador, numa adaptação própria do conto infantil homónimo de Maurice Sendak.
Embora com o material de origem ser infantil, este não é um filme para crianças. Apesar da sua evidente moral, Where the Wild Things Are não cede a tentações moralistas, nem tende a infantilizar ou tornar demasiado adulto o seu argumento. A preocupação de Spike Jonze não é essa. De facto, este seu trabalho é isento de preocupações. Sem se fazer escravo dos meios técnicos e com recurso a uma técnica curiosa de animatronics, o filme faz-se único no mundo cinematográfico, sem espelhar efeitos especiais. Enquanto filme do género fantástico, não esquece uma única vez o lado mais íntimo do ser humano, sucumbindo a algo cada vez mais raro: a fábula no Cinema.

Spike Jonze imerge num universo alternativo e bizarro, que faz o espectador sentir-se de novo criança, não significando isso apenas um estado feliz. Where the Wild Things Are faz-nos recordar que a infância é um processo complexo, uma viagem de crescimento emocional e mental, nunca isenta de profundos estados melancólicos e de angústia. E de medo. Medo de crescer, medo do desconhecido, medo dos estados de espíritos, genialmente retratados por grandes coisas selvagens. A ira, a frustração, o comodismo, o pessimismo, a agonia, a incerteza. É uma construção única e singular de como uma criança acaba por aprender a controlar as suas emoções, é o exteriorizar dos sentimentos e acima de tudo da frustração. Frustração familiar e pessoal, uma luta entre o corpo e a mente, uma luta contra o crescimento invasivo.


Aqui descodifica-se o cérebro de uma criança. E dentro desta criança de nove anos - bipolar, parece-nos - encontra-se o último reduto de liberdade e selvajaria. Que nos faz a nós, adultos, sentirmo-nos distantes de tal fase, nós adultos. Socialmente padronizados, formatados para uma sociedade que não se quer espontânea, nem livre. Formatados para grilhões sociais.

Tecnicamente Where the Wild Things Are é um achado. Desde a realização de Spike Jonze, passando pela sua adaptação (juntamente com Dave Eggers) do conto de Maurice Sendak, a cinematografia de tom amarelo, ocre e dourado de Lance Acord (Lost in Translation) e a banda sonora única de Carter Burwell e Karen Orzolek, tudo contribui para que esta seja uma das melhores obras que abrem o ano de 2010 nos cinemas em Portugal.

O jovem Max Records faz um excelente trabalho como protagonista, que lhe valeu uma nomeação entre o círculo de críticos de Chicago e nos Critics Choice Awards. Depois temos também excelentes trabalhos de vozes, de onde se destaca James Gandolfini como o angustiado Carol ou Catherine O'Hara como a franca Judith.

Where the Wild Things Are é provavelmente o filme familiar, mais genuíno, ingénuo e simples que tivemos oportunidade de ver. É uma viagem e tanto para nós adultos, um brilho nos olhos para as crianças. É sobretudo uma vontade incoerente de voltar a tal fase, encontrar um tal sítio de coisas selvagens, para depois voltar - ainda a tempo do jantar.
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Tiago Ramos, splitscreen-blog.blogspot.com



SOBRE O LIVRO

Os nossos monstros
Olhando para o trabalho deles - um gosto pela antropomorfia e a presença dominante da natureza no seu universo gráfico - é fácil presumir que alguma vez olharam para as ilustrações de Maurice Sendak, o autor de "Where the Wild Things Are", que Spike Jonze adaptou ao cinema. Três ilustradores portugueses ajudam-nos a enfrentar os monstros.

O novo filme de Spike Jonze, "O Sítio das Coisas Selvagens", não é só uma adaptação de um clássico da literatura infantil. É uma adaptação de um clássico da literatura americana "tout court", nos mesmos termos com que nos referimos a "Huckleberry Finn" de Mark Twain: uma encarnação da infância cujo alcance e fascínio está muito para lá da especificidade de um género.
Dizer que "Where the Wild Things Are" pertence ao cânone da literatura americana do século XX é mais temerário do que parece: não estamos a falar apenas de um livro pretensamente para crianças, mas de um livro ilustrado, onde as imagens chegam a ocupar o lugar do texto. Mas como acontece com a melhor literatura, é um livro que, nos 46 anos desde a sua publicação, não tem deixado de irradiar interpretações várias, mantendo a sua contemporaneidade intacta. Como não deixa de ser curioso que da esfera da literatura infantil tenha emergido um livro tão complexo, tão aberto, que continua a exercer influência sobre ilustradores actuais, com ou sem ligações ao universo infantil.



Na América, tem sido equiparado a uma revolução cultural: recentemente, o "Los Angeles Times" notava que o livro de Maurice Sendak foi lançado um ano antes de os Beatles arrasarem as tabelas da pop nos EUA, concluindo que "as mesmas forças que remodelaram a cultura americana no pós-guerra estavam a redesenhar os livros para crianças".

"Where the Wild Things Are" foi uma pedrada no charco: à altura, apesar do arrojo gráfico e do conceptualismo investido nalguns títulos, os livros ilustrados infantis tinham uma visão romântica e delicodoce das crianças, retratadas como seres obedientes que iam para a cama a horas e que aprendiam uma qualquer lição moral quando o livro chegava ao fim. "Por outras palavras, eram livros aborrecidos. E revelavam um completo desconhecimento sobre a natureza das crianças", disse Sendak.

Contornos freudianos
Publicado em 1963, "Where the Wild Things Are" apresenta um rapazinho chamado Max, entre os quatro e os cinco anos, vestido num fato de lobo e mal-comportado, que é mandado para o quarto sem jantar. Max fecha os olhos e uma floresta começa a crescer no seu quarto e ele navega "durante quase um ano inteiro" até chegar a uma ilha habitada por "coisas selvagens" (as "wild things"): monstros de formas exageradas, peludos e de dentes afiados. Max torna-se rei dos monstros mas, eventualmente, sente saudades de casa. Acaba por regressar, encontrando o jantar à sua espera, no quarto.

É só isto, e isto são 10 frases, 37 páginas, 338 palavras - uma obra-prima de condensação. A primeira perplexidade, quando se soube que Spike Jonze, o realizador de "Queres Ser John Malkovich?" (1999) e "Inadaptado" (2002), iria adaptar o livro de Sendak ao cinema, foi: como é que ele vai transformar uma obra tão curta numa longa-metragem?

Jonze escreveu o argumento com o escritor Dave Eggers, expandindo a história original e oferecendo a sua versão dos acontecimentos. Em "O Sítio das Coisas Selvagens", a história familiar de Max ganha contornos freudianos: o seu mau-comportamento é "justificado" pelo abandono - a irmã ignora-o, a mãe divorciada recebe a visita do namorado (no livro, o pai nunca é nomeado e a mãe está fora de campo, mas não existe a mais pequena tentação de fazer psicologia). Max foge e chega à ilha onde os monstros estão a destruir casas (da mesma maneira que o iglô de Max é destruído na primeira parte do filme). Os monstros têm nomes e diálogos que não existem no livro - a segunda parte do filme é, quase toda ela, invenção dos argumentistas, respeitando apenas o esquema original do livro, em que a acção na ilha é um espelho invertido da primeira parte. Jonze preferiu uma abordagem tradicional, respeitando o espírito original de Sendak, em detrimento da animação digital: os monstros são fantoches gigantes, criados pela equipa de Jim Henson (criador dos Marretas) e manuseados no interior por actores. Só as expressões faciais foram animadas por computador - as vozes de actores conhecidos (James Gandolfini, Forest Whitaker, Chris Cooper, Catherine O'Hara) foram gravadas em estúdio, antes da equipa partir para a Austrália, onde o segmento da ilha foi filmado.



O lado gráfico
O livro "Where the Wild Things Are" foi editado, finalmente, em Portugal pela Kalandraka no final do ano passado, sob o título "Onde Vivem os Monstros" (boa tradução, mas opta por explicitar as "wild things" como "monstros", termo que nunca é usado no original). Antes disso, já tinha conseguido chegar a ilustradores portugueses como Pedro Lourenço, José Feitor e Tiago Albuquerque. Olhando para o trabalho deles - um gosto pela antropomorfia e a presença dominante da natureza no seu universo gráfico -, é fácil presumir que alguma vez terão olhado para as ilustrações e desenhos de Maurice Sendak.

Pedro Lourenço, que em 2008 publicou "Blues Control #1" (edição Imprensa Canalha), tem trabalhado em publicidade, mas também no material editorial e auto-promocional do Lux-Frágil, da loja de discos Flur, e Teatro Praga. "Where the Wild Things Are" não fez parte das suas leituras em criança (a sua dieta foi europeia, à excepção da Hanna-Barbera e da Disney), mas descobriu-o mais tarde, pelos 20 anos, juntamente com Edward Gorey e Winsor Mackay (autor do "Pequeno Nemo"). Um pacote "com aparentes ligações ao universo infantil", mas "com um lado negro".

"O Sendak poderá ser aquele que, à primeira vista, mais se aproxima desse universo infantil. O desenho e a história remetem-nos para aí. Mas uma leitura mais atenta acabará por revelar uma obra mais ajustada a um público de outras idades ou com outro entendimento."

Mas foi "o lado gráfico" - o traço minucioso de Sendak - que mais o atraiu, ao ponto de ponderar experimentar a ilustração infantil. Começou a desenhar um bestiário de seres imaginários e foi chamando a todos os ficheiros "wherethewildthingsare"... Mais tarde, abandonou a ideia.
Outro exemplo de como Sendak exerce fascínio sobre adultos: José Feitor, ilustrador e editor da Imprensa Canalha (que tem feito trabalho sistemático de edição de livros de ilustradores num espírito "do-it-yourself", quase sempre em formato de fanzine), deparou-se com "Where the Wild Things Are" há quatro anos, quando a filha Matilde nasceu. Para além do aspecto gráfico - o desenho "tradicionalista" de Sendak, com a sua trama de traços finos, denuncia uma aproximação à gravura, para além dos "efeitos interessantes" que consegue com o seu recurso a cores pálidas, baças - encontra afinidades em termos de imaginário - "esta ideia de exploração de coisas humanas em coisas que não existem, ou em animais", resume, "uma brincadeira entre a humanização e a animalização". Os monstros de Sendak são compósitos, juntando partes de animais diferentes e, por vezes, elementos humanos. São tão grotescos quanto cómicos. Os animais têm sido recorrentes no trabalho mais recente de Feitor, que diz que se pode ver na figura animal "muito daquilo que nós somos". "As pessoas dizem que passo a vida a desenhar animais, e eu digo que não. Desenho pessoas."

Tiago Albuquerque, quem tem feito ilustração editorial para os jornais "i" e "Diário Económico", além de ocasionais incursões na ilustração infantil ("O Meu Livro de Economia", com texto de João César de Neves, e "O Meu Livro de Política", com texto de Jorge Sampaio, ambos editados pela Texto Editora), folheia o livro de Sendak pela primeira vez. Descobriu-o há um ano, através de um amigo, num ficheiro pdf. "Gosto muito dos monstros. Fazem-me lembrar estatuetas africanas - as geometrias são exageradas, em contraste com a criança. E depois, os outros livros [infantis] quase todos dizem: 'Não deves fazer isto.' Ou a criança faz qualquer coisa e isso tem consequências graves. Mas aqui as consequências são boas. Ele praticamente diz: 'Sejam selvagens.' O autor põe-se no papel da criança."




Pedro Moura, crítico e professor de BD e ilustração, autor do blogue Ler BD, onde escreveu sobre o livro de Sendak, complementa: "É um livro que não está com muitas preocupações morais e mostra o egoísmo das crianças. Não acho que haja redenção, não acho que haja aprendizagem. A mãe [de Max] é que se arrependeu e dá-lhe comida. É por isso que acho que o livro é bastante inteligente em relação ao que as crianças pensam. Dizer que é sobre evolução, aprendizagem, passagem de ritos... isso são esquemas adultos." Segundo Pedro Moura, nem sequer sabemos se os acontecimentos de "Where the Wild Things Are" são fantasia ou realidade. "O livro não procura uma resposta, não tem aqueles estratagemas parolos de mostrar que é um sonho", da mesma maneira que as crianças, "quando brincam e fingem qualquer coisa, estão de facto a experienciar".

À época da sua publicação, "Where the Wild Things Are" foi um livro polémico, condenado por guardiões da educação, que temiam que fosse demasiado assustador para crianças pequenas ou que o mau comportamento do protagonista as levasse a imitá-lo.

Max, um rapaz zangado e solitário que desafia a autoridade do mundo adulto, pode ser comparado a um desses "rebeldes sem causa" que tinham começado a povoar o cinema americano nos anos 50, e o livro de Sendak inaugurou um estilo todo seu. A relação entre palavras e imagens é inovadora: as imagens não são decorativas, nem ilustram o texto; elas preenchem o que as palavras não podem dizer e, como nota Pedro Moura, quando deixa de haver texto, sensivelmente a meio do livro, é o momento em que imaginamos que há mais barulho (quando Max e os monstros organizam uma grande algazarra). As imagens aumentam à medida que viramos as páginas, e o livro termina com meia frase e nenhuma imagem - alguém comparou o trabalho de composição de Sendak ao tipo de montagem que os realizadores da nouvelle vague francesa adoptaram.

Spike Jonze disse que queria criar com o seu filme, algo que fosse "tão perigoso quanto o livro foi na sua época". Quem dera.
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Ípsilon - Público



Título Original: Where the Wild Things Are
Realização: Spike Jonze
Argumento: Spike Jonze, Dave Eggers, Maurice Sendak (livro)
Fotografia: Lance Acord
Montagem: James Haygood, Eric Zumbrunnen
Música: Carter Burwell, Karen Orzolek
Interpretação: Max Records e Catherine Keener e vozes de James Gandolfini, Chris Cooper
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 101’



EM COMPLEMENTO

PAISAGEM URBANA COM RAPARIGA E AVIÃO, João Figueiras, Portugal, 2008, 24’

Rapaz conhece rapariga. Dino e Helena vivem um quotidiano difícil num crescendo de angústia que os encurrala na procura de uma solução urgente.

Título Original: Paisagem Urbana Com Rapariga E Avião
Realização: João Figueiras
Argumento: João Figueiras
Fotografia: Leonardo Simões, Paulo Ares
Montagem: João Figueiras
Interpretação: Dinarte Branco, Olena Radionova
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 24’



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