NA VIA LÁCTEA
Emir
Kusturica
Sérvia/Reino Unido/EUA, 2016,
125', M/14
FICHA
TÉCNICA
Realização e
Arguemento: Emir Kusturica
Montagem: Svetolik Mića Zajc
Fotografia: Goran Volarević, Martin Šec
Música Original: Stribor Kusturica
Interpretação: Monica Bellucci, Emir Kusturica
Fotografia: Goran Volarević, Martin Šec
Música Original: Stribor Kusturica
Interpretação: Monica Bellucci, Emir Kusturica
Origem: SÉRVIA/REINO UNIDO/EUA
Ano: 2016
Duração: 125'
FESTIVAIS
FESTIVAIS
Festival de
Veneza - Selecção Oficial
CRÍTICAS
Entre história e utopia
Emir Kusturica continua a ser um cineasta apostado em encenar histórias que envolvem as convulsões dos Balcãs nas últimas décadas — em "Na Via Láctea", ele partilha o protagonismo com Monica Bellucci.
A obra cinematográfica de Emir Kusturica pode ser vista como uma incessante viagem de regresso ao mapa de um país utópico. Dito de outro modo: nascido em Sarajevo, em 1954, ele tem contado histórias e evocado tragédias que são indissociáveis do fim da Jugoslávia e do complexo processo social, político e militar que tem marcado a evolução dos Balcãs nas últimas décadas.
O seu fillme mais recente, "Na Via Láctea", é um prolongamento lógico e coerente da sua filmografia, por assim dizer cruzando o realismo das referências com a criação de uma ambiência narrativa em que o cinema se aproxima da magia e do fantástico. E não deixa de ser sintomático que o próprio Kusturica tenha decidido interpretar a personagem central. Descobrimo-lo, assim, como uma figura frágil e pitoresca que tenta manter a sua rotina — é ele que, no seu burro, distribui leite na zona rural em que vive —, num contexto em que a violência dos conflitos é cada vez mais assustadora. Mais do que isso: o seu encontro com uma mulher italiana, interpretada por Monica Bellucci, vai reavivar a noção romântica de que o amor (talvez) possa superar a guerra...
O que torna o universo de Kusturica tão diferente e perturbante é o facto de ele se afirmar como um cineasta histórico, embora o seu gosto estético, de tão exuberante, se possa considerar operático. "Na Via Láctea" ecoa, assim, filmes como "O Pai Foi em Viagem de Negócio" (1985), "O Tempo dos Ciganos" (1988) ou "Underground" (1995) — este é um cinema que, mesmo perante a eclosão do trágico, não recusa a sensualidade do espectáculo.
João Lopes, rtp.pt/cinemax
Emir Kusturica continua a ser um cineasta apostado em encenar histórias que envolvem as convulsões dos Balcãs nas últimas décadas — em "Na Via Láctea", ele partilha o protagonismo com Monica Bellucci.
A obra cinematográfica de Emir Kusturica pode ser vista como uma incessante viagem de regresso ao mapa de um país utópico. Dito de outro modo: nascido em Sarajevo, em 1954, ele tem contado histórias e evocado tragédias que são indissociáveis do fim da Jugoslávia e do complexo processo social, político e militar que tem marcado a evolução dos Balcãs nas últimas décadas.
O seu fillme mais recente, "Na Via Láctea", é um prolongamento lógico e coerente da sua filmografia, por assim dizer cruzando o realismo das referências com a criação de uma ambiência narrativa em que o cinema se aproxima da magia e do fantástico. E não deixa de ser sintomático que o próprio Kusturica tenha decidido interpretar a personagem central. Descobrimo-lo, assim, como uma figura frágil e pitoresca que tenta manter a sua rotina — é ele que, no seu burro, distribui leite na zona rural em que vive —, num contexto em que a violência dos conflitos é cada vez mais assustadora. Mais do que isso: o seu encontro com uma mulher italiana, interpretada por Monica Bellucci, vai reavivar a noção romântica de que o amor (talvez) possa superar a guerra...
O que torna o universo de Kusturica tão diferente e perturbante é o facto de ele se afirmar como um cineasta histórico, embora o seu gosto estético, de tão exuberante, se possa considerar operático. "Na Via Láctea" ecoa, assim, filmes como "O Pai Foi em Viagem de Negócio" (1985), "O Tempo dos Ciganos" (1988) ou "Underground" (1995) — este é um cinema que, mesmo perante a eclosão do trágico, não recusa a sensualidade do espectáculo.
João Lopes, rtp.pt/cinemax
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Emir Kusturica torna à guerra que lhe deu justa
fama e muito proveito.
Depois de um interregno de anos em que quase se
diria ter trocado o cinema pela música, está de volta com um filme estrepitoso
Mais de vinte anos depois de “Underground”, o
cineasta sérvio sublinha o absurdo e carrega consigo o peso da violência e o
ímpeto de um caos cinematográfico que aponta sempre para um visionarismo que
não se detém perante nenhum excesso, nenhum sarcasmo, nenhum desafio. Falei com
Emir Kusturica em setembro, durante o Festival de Veneza, onde “Na Via Láctea”
teve estreia mundial.
Nove
anos depois da sua última longa-metragem, voltou ao cinema e voltou à guerra,
como tema. Mas não é claro se é a guerra dos BaIcãs, se é outra guerra qualquer
na Europa.
A guerra tornou-se uma realidade vulgar na vida
humana. Desde os anos 90, quando se desencadeou a guerra na Sérvia que há
chamas um pouco por todo o rnundo e nunca pararam. E se olhar para a realidade de
hoje, pode ver que a guerra se tornou uma realidade a que nos vamos
acostumando. Veja: em agosto houve uma tragédia em Itália [o tremor de terra
que devastou Amatrice]. Nos primeiros dias, primeira página em todos os
jornais, logo a seguir, silêncio, a nossa atenção passou para a notícia
seguinte. A Humanidade perdeu o sentìdo da compaixão e a razão primeira foi que
a guerra é hoje um parâmetro da nossa existêncía. Neste fllme quis confrontar
esta estranha atividade que, infelizmente, também é responsável por algumas
grandes conquistas tecnológicas que usamos diariamente. A internet, por exemplo,
foi gerada como parte de uma máquina de guerra.
Estava estabelecido
desde o princípio que interpretaria o papel principal?
lnfelizmente, sim.
Porque este
filme parte da curta-metragem “Our Life” que fez para o filme coletivo “Words
With God”?
Claro. Na realidade, o projeto de “Na Via
Láctea” começou com esse segmento que está no fim deste filme. Na
curta-metragem, eu interpretava o monge que, todos os dias, carregava pedras
pelo monte acima e depois as deitava para o chão.
Uma
tarefa absurda, como uma proemssa a um deus cruel.
Sim – e não era preciso acrescentar nada. Mas
numa longa-metragem era preciso explicar porque é que ele faz aquilo. Foi a
pergunta que fiz a mim próprio. Nessa altura estava a escrever um livro onde
contava a história passada no Afeganistão durante a ocupação russa, a história
de um soldado que era salvo por uma serpente. Fui misturando elementos e tentando
construir um fllme. Foi difícil e foi demorado.
Por não
encontrar uma história?
Não é bem isso. O grande problema comigo, que
sou um realizador de detalhes, é depender muito dos locais, dos exteriores. Sou
um realizador do espaço. Sem o espaço, o meu cinema não tem valor. E por isso
que sinto muita dificuldade em trabalhar com CGI (efeitos especiais digitais).
E também é complicado saltar de um lado para o outro da câmara, separar a
ficção da realidade. Sempre considerei que o cinema era bom a capturar a
humanidade dos atores. Quando um ator passa de uma situação a outra, ele consegue
exportar os seus sentimentos, consegue exportar a radiação que a lente da
câmara capta. As duas atrizes do filme [Sloboda Micalovic e Monica Bellucci]
são excelentes, eu lá me fui encaixando, mas foi muito difícil. Fiquei a adorar
Chaplin ainda mais. Não percebo como ele conseguiu atuar e dirigir uma vida inteira.
Mas o
filme parece ter tido uma produção complicada, com os helicópteros e todos
aqueles meios. Falou-se dele durante muito tempo e nunca mais estreava...
O grande problema foi o CGI. O filme esteve
três anos em produção, dos quais dois exclusivamente para o trabalho de CGI.
Foi a primeira vez que fiz um fllme em digital e devo dizer que a qualidade é
agora muito melhor que há uns anos; a imagem, os contrastes, são agora quase
tão bons como os da película de 35 mm. O problema é que os efeitos especiais
são muito complicados de executar. É fácil optar pelo digital, mas depois
apercebemo-nos que é quase impossível fazer efeitos especiais perfeitos — e foi
tudo muito demorado. Em “Na Via Láctea”, o CGI está em toda a parte, em
pequenos detalhes que ninguém se apercebe. Por exemplo, a cena dos gansos a
saltar para o sangue não foi feito em CGI, mas a cor do sangue, a manipulação
da cor, já foi...
E o
falcão?
O falcão é verdadeiro. Foi outro dos problemas
que tive; parei, aliás, o filme a meio por não conseguir arranjar um falcão — e
ele não era dispensável, é um dos personagens. O falcão é, aliás, um bom exemplo
da diferença entre a escrita e o cinema. Num livro, é fácil escrever que ‘há
uma testemunha lá em cima no céu’ e nem sequer dizer que é um falcão, mas num
fllme tem de se mostrar, tem de haver um falcão.
Fale-me
um pouco da escotha de Monica Bellucci para o fllme...
Eu quis descongelar a imagem do ícone porque,
nos fllmes que fez, a Monica sempre representou a feminilidade de uma forma
muito decente, mas na maior parte deles, não foi muito bem posta em cena. Ela é
uma mulher a 100%, mas a questão é ver como é que essa mulher reage ao pântano,
como é que salta para a lama, essas coisas... E foi incrível, esforçou-se
imenso. Na cena com as ovelhas, estavam mais de 40 graus quando filmámos. A
cena é uma réplica da “Odisseia”, do momento em que Ulisses e os seus homens se
escondem do ciclope misturando-se com as ovelhas.
Além disso,
ela voa...
Voar é uma das minhas obsessões — escapar à
força da gravidade sempre foi um desejo. Sabe que eu comecei a voar muito cedo,
primeiro em pequenos aviões, agora tenho uni helicóptero. E a ideia de voo, no
cinema, sempre me interessou, colocar o espectador insensível à gravidade. A
cena da queda de água — que é a que mais gosto no filme — tem a ver corn isso.
Voar
como os anjos de Chagall...
Chagall foi sempre uma inspiração para mim.
Todos os quadros de Chagall se assemelham e eu acho que a Arte é isso: uma
pessoa que passa uma vida inteira a fazer a mesma coisa.
Diria
que o seu filme é um conto de fadas?
É um conto de fadas moderno. A realidade é cada
vez mais agreste e negra e os contos de fadas marcam uma distância face a ela.
É a maneira que tenho de me defender da realidade. A própria ideia de realismo
está hoje em questão. Nos anos 60, apareceu o Godard com todas aquelas ideias
sobre a objetividade do cinema — e isso é o que temos hoje nos reality shows da
televisão. Ao lado, o Truffaut e muitos autores russos sempre tiveram distância
face à objetividade, fizeram o que se podia chamar contos de fadas.
No seu
cinema há sempre uma espécie de caos que não pode ser espontâneo...
.... é um caos orquestrado...
... que
nunca percebi como era organizado...
É muito difícil, mas é a minha marca, é a força
dos meus filmes, a multiplicação das ações. Alguém me disse uma vez que, quando
se vai ao psiquiatra, quando começamos a duvidar da nossa sanidade mental, a
primeira coisa que nos pedem é para sintetizar várias linhas de pensamento numa
só. Mas também é verdade que a estabilidade do cérebro está na zona da
abstração, não na que produz racionalidade.
O caos
tem também muito a ver com a maneira como utiliza o som, que é sempre
excessivo.
Isso tem a ver com a guerra, numa zona de
guerra o silêncio não existe, há sempre um estrepitar, um eco, qualquer coisa.
Mas, de facto, eu acho que a mistura de som neste filme é um acontecimento na
História do Cinema, o tipo que a fez é genial.
E
também a música...
É do meu filho, Stribor...
Como é
que trabalhou com ele?
Não trabalhei, sabe como é, pai e filho...
Ele
acompanhou a rodagem?
Não, ia-me mandando bocados de música, sabe
como é, pai e filho, nunca encontrámos o momento certo para nos vermos... Mas
quando juntamos as minhas imagens e a m,úsica dele até parece que vivemos em
harmonia.
Jorge
Leitão Ramos, Expresso
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