ESTREIA NACIONAL - 3 DEZEMBRO - CABRA MARCADO PARA MORRER


3 DEZEMBRO – 21H30 - IPDJ
ESTREIA NACIONAL

CABRA MARCADO PARA MORRER
Eduardo Coutinho, Brasil, 1985, 119’, M/12

No  dia 3 de Dezembro celebra-se 30 anos da estreia do emblemático filme.

FICHA TÉCNICA
Direção e roteiro EDUARDO COUTINHO
Fotografia FERNANDO DUARTE (1964), EDGARD MOURA (1981)
Montagem EDUARDO ESCOREL
Som direto JORGE SALDANHA
Produção executiva ZELITO VIANA
Produtor associado VLADIMIR CARVALHO
Narração FERREIRA GULLAR, TITE DE LEMOS, EDUARDO COUTINHO
Música ROGÉRIO ROSSINI



O filme se constrói através de um constante diálogo entre os seus dois tempos: 1962/64 e 1981/82. No Cabra-60, o cinema pretendia engolir a realidade. O projeto do CPC da UNE tinha uma vocação pedagógica, baseada num conceito intelectual do que seria a arte popular. A vida, luta e morte dos camponeses seriam encenadas por eles mesmos, orientados por uma cartilha estética que lhes era completamente estranha, embora repleta de ótimas intenções. A história de João Pedro Teixeira seria recontada segundo os cânones de uma dramaturgia do martírio, com personagens claramente divididas entre patrões e empregados, exploradores e explorados, vilões e heróis. Apesar de algu­mas cenas absorverem diálogos improvisados pelos próprios atores, as imagens remanescentes nos mostram uma decupagem clássica, enquadramentos às vezes eisensteinianos. O roteiro previa uma narração musical conduzida por um “cantador”, figura célebre da cultura popular nordestina que estava sendo resgatada pelos filmes do Cinema Novo. Enfim, uma visão politicamente romântica da realidade camponesa.
Já no Cabra-80, é a realidade que se apresenta para engolir o cinema. Trata-se agora não mais de prover o povo com a reconstituição artística de suas experiências, mas de buscar no povo a emoção e as lembranças de um tempo estilhaçado. O novo propósito é recolher os fios de uma memória que se dispersou, tanto no povo quanto na cabeça do realizador. Se o Cabra-60 era fruto da vontade de um grupo (o CPC) de expressar a vivência popular, o Cabra-80 é o desejo de um homem (Coutinho) de abrir-se à vivência popular propriamente dita.
Por duas vezes, Coutinho e o montador Eduardo Escorel apresentam imagens de uma página do roteiro do Cabra-60, o que contrasta com a ausência de qualquer roteiro em 1981, como afirma oralmente o diretor. Em seu novo périplo, Coutinho distancia-se do monolítico para recolher o con­traditório. Encontra não só pessoas que se mantiveram fiéis a seus velhos ideais, como outras que abdicaram das aspirações coletivas em troca de prosperidade individual ou da paz da retirada. Não teme topar com meias-verdades que se expressam por meio de silêncios, expressões constrangidas ou clichês sentimentais. Cabra saiu à procura de gente real, não de estereótipos sociais.
Essas diferenças, contudo, não justificam os argumentos de muitos críticos que, em 1984 e depois, apontaram no uso do material de 1964 uma crítica ao formalismo do cinema de esquerda da época.
Esta foi, sem dúvida, uma interpretação estreita, que não levava em conta o dado mais importante do arcabouço de Cabra Marcado para Morrer, ou seja, o contexto. O projeto do Cabra-60 era a quin­tessência do cinema político do momento, assim como o Cabra-80 era a retomada do mesmo cine­ma político segundo os imperativos do seu tempo. No Brasil de 1964, tentava-se construir um país mais justo e um cinema que unisse criatividade e utilidade. No Brasil dos anos 1980, procurava-se romper o silêncio de um regime opressor e fechar feridas.
Além disso, a equipe de 1964 não dispunha de som direto, nem o cinema verdade tinha plantado raízes no Brasil. Eduardo Coutinho ainda não fizera sua passagem transformadora pelos programas Globo Repórter, que o ensinariam a se aproximar das pessoas e a compreender que a sua pers­pectiva fazia parte do processo do documentário e, como tal, deveria ser explicitada. Cabra-80 é o resultado de todas essas transformações, no país e no cineasta.
O filme se articula não como tese sociológica ou exposição intelectual, mas como uma história con­tada unicamente por quem a viveu (ou a ela sobreviveu, gente do campo e gente de cinema). Não há qualquer depoimento de autoridade ou estudioso, nenhum “explicador” a aportar um discurso “de fora”. A narração off comparece em três vozes distintas. Coutinho dá sua perspectiva pessoal sobre o trabalho feito em cada fase do filme; o poeta nordestino Ferreira Gullar, autor de um folheto de cordel que forneceu o título do filme, situa as informações de contexto geral; o também poeta Tite de Lemos lê os textos de imprensa, encarnando, a grosso modo, a voz do inimigo. Essas diferenças personalizam e conferem à narração uma dramaticidade ligada aos conteúdos, em lugar da “voz de Deus” neutra e autoritária que se impõe nos documentários clássicos.
Neste filme, Coutinho inaugura uma de suas marcas, que é a presença freqüente diante da câmera, sempre muito próximo do entrevistado. Cabra é uma sucessão de encontros explícitos do documen­tarista com seus interlocutores. O que assistimos, portanto, é não apenas a aventura de uma história que se costura através de encontros em cinco estados brasileiros, mas também a aventura de um filme que vai se articulando passo a passo, com uma equipe plenamente corporificada diante de nós.
Há momentos culminantes nessa exposição do processo. Um deles é na delicada entrevista com José Mariano, o ex-lavrador que interpretou João Pedro no filme de 1964 e agora insiste em se desassociar de qualquer movimento reivindicativo. Coutinho interrompe a conversa para corrigir um problema de som e acaba perdendo o elã de Mariano. É visível o desespero do diretor ante o iminente fracasso da entrevista, muito embora ele próprio ofereça leitura distinta da cena (ver en­trevista). Daí Coutinho pode ter retirado uma lição: jamais interromper um diálogo espontâneo por razões técnicas. Outro momento crucial é a segunda intervenção de Abraão, o filho mais velho de Elizabete, jornalista de perfil psicológico visivelmente problemático. Ele se refere a “discussões” com Coutinho sobre dinheiro, o que faz supor algum tipo de pagamento pelo acesso à família. Em futuros filmes, Coutinho passaria essa informação de modo ainda mais claro ao espectador, indi­cando sua convicção de que o documentário é sempre uma negociação – nos sentidos metafórico e também contábil.
Cabra veicula uma reflexão implícita sobre a influência das circunstâncias na verdade passível de ser colhida por um documentário. Elizabete é vista em três diferentes “personagens”, de acordo com a situação. Junto ao autoritário Abraão, na primeira entrevista de 1981, ela soa reticente e in­timidada. Cautelosamente, enaltece a abertura política que tornou possível sua reaparição pública. No dia seguinte, ao reencontrar a equipe, está calorosa e consciente do que a câmera espera dela. Mas, ainda aí, seu depoimento é formal, como em qualquer reportagem da televisão. Só bem mais tarde, ao despedir-se do pessoal da filmagem, quando dá o trabalho por terminado – sem perceber que a câmera continuava a filmá-la de dentro do carro –, ela assume uma postura que se acostuma­ra a dissimular nos longos anos de clandestinidade: põe em dúvida a atual democracia com miséria e sem liberdade, e, recobrando os gestos de líder política, reafirma a necessidade de prosseguir na luta até o fim.
A franca exposição desse processo, entre outras coisas, faz de Cabra bem mais que um simples do­cumentário. Nele está contida toda uma teoria dessa modalidade de cinema, algo que modificaria profundamente as atitudes dos documentaristas brasileiros nos anos a seguir.
Cabra Marcado para Morrer desdobra seis grandes linhas narrativas que se intercalam e se comple­mentam. São elas:
- A história das filmagens de Cabra-60;
- As memórias de Elizabete a respeito de seu passado com João Pedro e a Liga de Sapé;
- A história da desapropriação do engenho Galiléia, ocorrida em 1959;
- Os relatos do que sucedeu com cada um após o golpe de 1964;
- A busca dos filhos dispersos de Elizabete;
- A revelação da real identidade de Marta/Elizabete na cidadezinha do Rio Grande do Norte.
O tratamento documental não é o mesmo para todas essas linhas narrativas. A memória das fil­magens da década de 60 tem feições mais próximas do documentário expositivo clássico, em que as imagens se ordenam segundo um fluxo previsto em roteiro de montagem e são balizadas pelo texto do(s) narrador(es). Já as lembranças de Elisabete e do pessoal de Galiléia fluem ao sabor das entrevistas, embora reeditadas em conformidade com a sucessão de blocos do filme. É um compor­tamento exemplar do documentário interativo.
Por outro lado, os encontros de Coutinho com os filhos dispersos de Elisabete no Rio e em São Paulo abrem no filme uma nova janela sobre os resultados da imigração, com seu cortejo de cartas, mágoas e desintegração. Esse material está mais próximo da reportagem de televisão como pratica­da no Globo Repórter. A eficácia do filme depende, aí, do impacto emocional do encontro. É quando Coutinho mais interfere dentro do quadro, posto que a cena é produzida pela presença da câmera. Não se trata de flagrar, mas de deflagrar, como no receituário do cinema-verdade.
Cabra condensa, portanto, várias modalidades de documentário na tentativa de se resolver como narrativa, a única possível para sua complexa tarefa. O diretor expressa claramente essa busca numa de suas peregrinações à cata dos filhos de Elisabete. Na entrada de uma fábrica, o porteiro pergunta-lhe o canal de televisão para que trabalha. Coutinho responde por aproximações: “É tipo TV. É reportagem, mas é cinema”. Naquele momento, de fato, as linguagens ainda eram um objeto de pesquisa e experimentação na cabeça do documentarista.
A montagem de Cabra, fluente e clara, abre camadas de significação para além do que cada imagem representa em primeira instância. É curioso, por exemplo, que as cenas ficcionais em preto-e-branco de Cabra-60 ilustrem os relatos orais de fatos reais, de tal maneira que as enxergamos um pouco como ficção, um pouco como “provas” do que está sendo contado. O estatuto do cinema como ferramenta historiográfica pode ser discutido a partir desse caso modelar. Marc Ferro já havia dis­corrido sobre o teor documental que a ficção assume com o tempo, razão pela qual se pode afirmar que todo cinema tende a se transformar em documentário. Por outro lado, o coeficiente de realidade do que nos é mostrado em Cabra-80 não nos impede de perceber a forma dramatúrgica com que Coutinho elabora seu filme, às vezes muito próxima do que entendemos como ficção.
Vejam-se as tomadas em que a câmera simula a queda de João Pedro Teixeira no local onde foi as­sassinado, assim como o ponto de vista de quem o tocaiava à margem da estrada. Ou o convite a que velhos camponeses de Galiléia repetissem a última frase de Elizabete no filme de 1964: “Tem gente lá fora!”. Ou, ainda, o momento em que um dos atores do velho filme, agora operário no interior do estado de São Paulo, parece dublar a si próprio na cena da construção de um alpendre. O crítico Jean-Claude Bernardet, autor de uma das melhores análises de Cabra 2, chamou a atenção para o papel do espetáculo como fornecedor de coerência e significação à história. A presença em quadro do projetor cinematográfico em vários momentos do filme (desde a seqüência de abertura, por sinal) sublinha essa mediação do espetáculo. É de filme a filme que Cabra fecha uma fratura da História. Suturar o filme interrompido confunde-se com fechar um fosso da realidade.
O trabalho intertextual alcança também a literatura, a partir de mais um acaso recolhido. O filho de um lavrador havia guardado consigo, por 17 anos, dois livros deixados pela equipe em Galiléia. Um deles, Kaputt, de Curzio Malaparte, narra no prólogo a história – um tanto legendária – de como Malaparte teria contrabandeado seus manuscritos através da Europa em guerra e escapado da Gestapo com a ajuda de camponeses.
As muitas ressonâncias de Cabra Marcado para Morrer colocam-no na mesma linhagem de docu­mentários como À Chacun son Borinage, de Wieslaw Hudon, que em 1978 reencontrou os mineiros belgas cuja greve Joris Ivens e Henry Storck haviam documentado em 1933; e Aran, de Georges Combe (1979), que registrou mudanças culturais na ilha irlandesa em que Robert Flaherty filmou O Homem de Aran, em 1934. Coutinho, porém, não se limitou a revisitar o cenário de um filme alheio. Sua aventura foi um acerto de contas consigo mesmo, a recuperação de um fantasma para o mundo dos vivos.
Carlos Alberto Mattos, O homem que caiu na real, 2003

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