O QUARTO AZUL
Mathieu
Amalric
França, 2014, 76’, M/16
FICHA TÉCNICA
Título Original: La Chambre Bleue
Realização: Mathieu Amalric
Argumento: Stéphanie Cléau e Mathieu Amalric, baseado no romance "La Chambre Bleue" de Georges Simenon
Montagem: François Gedigier
Fotografia: Christophe Beaucarne
Música: Grégoire Hetzel
Interpretação: Mathieu Amalric, Léa Drucker, Stéphanie Cléau, Laurent Poitrenaux, Sere Bozon
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 76'
FESTIVAIS E PREMIOS
Festival de Cannes 2014 - Selecção Oficial – Un
Certain Regard
CRÍTICA
No
princípio a cena é ardente: um homem e uma mulher entregam-se à coreografia do
sexo como se não houvesse mais mundo. Como se a tarde adúltera daquele pequeno
quarto de hotel, azul, fosse uma redoma, uma campânula, um espaço sem antes nem
devir dentro do qual a pulsão libidinosa não tivesse entraves, nem códigos, nem
regras. Mas não há lugares isolados, mesmo nos pequenos hotéis de modestas
cidades de província onde se não mora e que concedem que os amantes se possam
encontrar sem risco de indiscrições ou sobressaltos. Porque há sempre um marido
que indaga, uma mulher que suspeita, uma criada de quarto que entrevê por porta
entreaberta, um susto imprevisto, uma fuga apressada pela porta das traseiras,
quantas vezes quase de calças na mão...
No
princípio de “O Quarto Azul” não há nada que se não saiba, da experiência, do
cinema — Claude Chabrol quantas vezes filmou situações dessas? — só que, de
muito cedo, também sabemos que aquela paixão torvelinhou noutras graves
direções. Crime sim, mesmo se, durante muito tempo, não tenhamos os contornos
exatos do que ocorreu, nem quem morreu nem quem matou.
Ancorado
numa novela de Georges Simenon — a França profunda, pequeno-burguesa e
desencantada, está lá quase por inteiro — “O Quarto Azul” não se caracteriza
pela história, mas pelo argumento, pela estrutura acrónica onde, todavia, não
nos perdemos pois há uma constante linha temporal que somos capazes de
reconstruir mentalmente. A perícia é atribuível a Mathieu Amalric e Stéphanie
Cléau, que adaptaram a novela ao cinema, ao mesmo tempo que davam corpo à dupla
de personagens centrais.
Ao
engenho do guião se atribuirá, igualmente, o sal principal da narrativa, ou
seja: o filme segue, caninamente quase, o protagonista masculino (Julien/
Mathieu Amalric), no seu labor profissional, familiar e nas escapadas lascivas,
mas é criatura que não nos interessa, que nos parece pequena e errática,
pusilânime; ao invés, é ela (Esther/ Stéphanie Cléau) que pouco vemos, que
desconhecemos para lá de uma nudez em êxtase, de um olhar em enigma, de uma
deliberada vontade de controlar a vida, que apetece mais saber. Saber, até, da
intenção de crime, da planificação de uma trama onde ela nos aparece carnívora
e ele presa, mas onde talvez haja outras aranhas a tecer as suas próprias teias
e a trocar os fios. Essa vontade de saber do espectador nunca se reduz,
todavia, ao esquematismo do whodunnit: quem é o culpado? É basto mais
largo o espectro das coisas que indaga, nevoeiro cativante onde navega de proa
franca, ultrapassando portas fechadas, o quente e o frio, fugazmente entrevendo
o abismo, o vórtice, entre as coxas de Stéphanie Cléau — exposição voraz, quase
indecorosa, turbulenta. É essa vastidão de interrogações que o torna
profundamente original no vasto universo dos filmes policiários, dos thrillers,
em particular. Para mais, numa linguagem despachada, eficaz, jamais
simplista — o filme dura 76 minutos, invulgarmente pouco, porque liberto de
toda a ganga — “O Quarto Azul” revela-se um filme surpreendente, a mostrar que
as produções de Paulo Branco continuam, no melhor dos casos, a desafiar
expectativas.
Jorge
Leitão Ramos, Expresso
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Mathieu
Amalric realiza e interpreta ao lado da sua mulher, a dramaturga Stéphanie
Cléau, esta história de dois amantes malditos que se deixam arrastar pela
paixão e se envolvem num jogo perigoso e eterno, tão comum a Hitchcock como a
Mizoguchi. “O Quarto Azul” adapta uma célebre novela de Georges Simenon,
escrita pelo belga em 1963. Conversámos com o cineasta em maio, poucos dias
depois da estreia do filme em Cannes, na secção Un Certain Regard.
As
personagens de “O Quarto
Azul” parecem cansadas, sobretudo a de
Julien Gahyde, o marido infiel que você interpreta. Ou melhor, talvez estejam
já desiludidas perante a realidade - palavra que,
aliás, é insistentemente repetida no livro de Simenon...
Desde a primeira página, sim. Eu
acho que Julien vive cada cena em estado bruto, sem se colocar questões, sem
tentar compreender o que está a fazer nem suspeitar que um dia vai ter de
prestar contas por isso. Tudo é verdade e realidade para ele. Ora, creio que é
isto que fascina em Simenon, uma espécie de cólera incontrolável que nos
pergunta: porque é que é preciso acrescentar palavras às coisas da vida que
todos nós, seres humanos, conhecemos? Para que a sociedade continue a
funcionar, as palavras são necessárias. Como escreve Georges Simenon no livro,
numa frase extraordinária que acabei por cortar do guião, “as pessoas gostam
muito de saber que agimos por uma razão precisa”. E Julien não age por uma
razão precisa.
Na
ação de “O Quarto Azul”, temos a vida que se vive e a vida que o inquérito
policial retrospetiva. O seu filme é hábil a cruzar as duas. Ora, isto faz-me
pensar noutra coisa: a justiça pode julgar mas não poderá jamais compreender
aquele casal, porque não viu o que nós vimos.
Sim, é isso. O visível não tem uma só camada. Há um duplo tempo no livro e no filme, e eu disse a mim mesmo que me poderia divertir a exaltar isso com os instrumentos do cinema. Quando adaptámos o argumento, a primeira coisa que a Stéphanie Cléau e eu fizemos foi extrair os diálogos do livro sem indicações de espaço e de tempo para averiguar se eles resistiam à época em que Simenon os escreveu, em 1963. Apercebi-me então que há um diálogo complexo entre o in e o off na estrutura do livro. E que nesse diálogo estão a sensualidade, a violência e a tragédia.
Sim, é isso. O visível não tem uma só camada. Há um duplo tempo no livro e no filme, e eu disse a mim mesmo que me poderia divertir a exaltar isso com os instrumentos do cinema. Quando adaptámos o argumento, a primeira coisa que a Stéphanie Cléau e eu fizemos foi extrair os diálogos do livro sem indicações de espaço e de tempo para averiguar se eles resistiam à época em que Simenon os escreveu, em 1963. Apercebi-me então que há um diálogo complexo entre o in e o off na estrutura do livro. E que nesse diálogo estão a sensualidade, a violência e a tragédia.
Estrutura
essa que não é comum em Simenon. As suas narrativas são quase sempre lineares.
Mas a de “O Quarto Azul” é elíptica...
A
narrativa anda ao contrário da cronologia, e isso é raro nas suas novelas. Os
factos anulam-se, ou melhor, mordem-se — para fazer referência a uma passagem
do livro que guardo no início do filme, quando Esther morde Julien e cai no
lençol uma gota de sangue. Isto agradava-me à partida como espectador: estar a
ver alguma coisa e em simultâneo a duvidar do que vejo. As respostas às
perguntas aparecem frequentemente deslocadas do tempo, e o que Julien diz não
corresponde exatamente aquilo que faz. Ou seja, julgamos que passamos o filme
todo na cabeça daquele homem, mas não estamos realmente dentro dela, por- que
nos vamos colocando questões sem parar. Isto para mim é puro prazer, um prazer
primário de espectador.
Ficamos
perante uma história de desaparecimentos?
Sim, o fim do filme salienta isso.
Aquelas personagens vão desaparecer.
Porque
é que alterou o nome da personagem que no livro de Simenon se chama Tony?
Vou
contar-lhe uma coisa também a propósito de fantasmas: durante as minhas
pesquisas para o filme, descobri, acidentalmente, que Simenon adorava Stendhal.
A coincidência disto tudo é que eu estou já há três anos a trabalhar numa
adaptação para cinema de “O Vermelho e o Negro”, certamente o projeto mais
complexo em que me meti até hoje. O que é curioso é que a cena do julgamento de
“O Vermelho e o Negro” é muito próxima da sensação que temos ao ler “O Quarto
Azul”. Foi por isso que resolvi alterar o nome da personagem e chamar Julien a
Tony. Julien Sorel é o nome do protagonista de “O Vermelho e o Negro”. Mas as
coincidências não acabaram aqui. No tribunal em que filmámos, as paredes estão
pintadas com abelhas em fundo azul. Isto não está no livro de Simenon. Mas foi
um signo incrível: há o quarto azul, que é um espaço de desejo, e no filme um
tribunal azul, que é um espaço de acusação.
Estas coincidências levam-nos para outro aspeto importante no filme: o da
relação entre o privado e o público. Que tem várias nuances: 1) é você quem
realiza e interpreta a personagem principal; 2) a personagem da amante de
Julien é interpretada por Stéphanie Cléau, que é a sua própria mulher na vida
real. Sem abuso, pode dizer-se que há um pouco da sua vida neste filme, ou não?
Sim,
e isso é perturbador. E tudo se desenrolou assim, muito depressa. Não era
suposto este filme existir. Foi o Paulo Branco, uma pessoa a quem eu devo quase
tudo no cinema, que insistiu, que me passou o livro e disse: “Pega neste, acho
que está aqui um filme a fazer e que o deverias fazer agora.”
Porquê?
Porquê?
Porque
ele está ao corrente do tormento e da obsessão que estou a viver com a
adaptação de “O Vermelho e o Negro”.
Mas
você tem trabalhado como um louco ultimamente. Filmou com Polanski, com os
irmãos Larrieu, com Wes Anderson...
Mas
sempre como ator, não como cineasta. E trabalhar como ator não é trabalhar como
um louco. Ser ator é viver num estado de irresponsabilidade extraordinário! O
verdadeiro trabalho é feito pelos outros. Agora, levantar-me às 7 horas da
manhã e pensar em planos de cinema... é outra coisa. Mas estou a desviar-me a
sua pergunta anterior, da história da autobiografia. Como é óbvio, refleti
sobre ela perante “O Quarto Azul”. Quase tive vergonha. Estar ali, expor-me
assim, expor a Stéphanie... Claro que pensei nisso. Mas depois deixei de
pensar. E sabe porquê? Graças ao género policial, graças a Simenon. Senti-me
protegido, como se o género fosse um filtro. A Stéphanie, que é dramaturga,
adaptou dezenas de textos contemporâneos ao teatro:
Dos
Passos, James Ellroy, Lobo Antunes... Está a ajudar-me também em “O Vermelho e
o Negro”. Vivemos juntos, discutimos o trabalho juntos. E as coincidências não
param: é que, quando encontrei a Stéphanie há uma dezena de anos, “O Quarto
Azul” foi um dos primeiros livros que lhe passei. Descobrimo-nos agora, com
contrato assinado, a trabalhar sobre esse livro, ela como argumentista, eu como
realizador. A ficção começou a contaminar a nossa realidade, digamos assim. As
frases de Simenon pareciam frases nossas. Começámos a pensar em rostos para as
personagens, e a Stéphanie disse-me que eu devia fazer o marido infiel.
Aceitei, nada de novo, sou ator, as pessoas conhecem a minha cara. Era preciso
que a atriz que faz de minha mulher fosse também muito conhecida — e convidámos
Léa Drucker. E a amante? E a ameaça do desconhecido? Foi Stéphanie por sua
vontade, que a interpretou, embora ela não tenha experiência na interpretação.
Mudando
de assunto: é impressão minha ou ao longo de todos estes anos, tem interpretado
muitas personagens feridas pelo sentimento amoroso? Mathieu Amalric já é sinónimo de sofrimento de amor? Tem uma explicação para isto?
Não
sei. Não sou um sinónimo de serenidade, é certo. O meu filme “Tournée’ também
falava disso, da falta de serenidade. E há alguma coisa no mundo mais forte do
que dois corpos que se atraem? Os irmão Larrieu, com quem trabalho bastante,
sabem por vezes contornar isso, descobrir a harmonia — como em “Un homme, un
vrai”, por exemplo, um filme de que gosto muito. Por isso, gosto de filmar com
eles: acho que sabem arrancar-me à minha melancolia, a um sentimento sombrio
que acho que é muito português. A Simenon interessa outra coisa: o trágico. O
trágico que se instala pela obstinação, pelo suspense. O trágico da natureza
humana, que não se altera. O livro dele tem agora 50 anos, nós adaptámo-lo aos
dias de hoje, seguimos os procedimentos da polícia e da justiça de hoje, mas
não podemos esquecer que o livro, como quase todos os de Simenon, se passa na
província. E esta é imutável.
Por falar em suspense, filmou no formato 4:3, que é o do fiIm noir americano e que quase ninguém utiliza hoje. Porquê?
Por falar em suspense, filmou no formato 4:3, que é o do fiIm noir americano e que quase ninguém utiliza hoje. Porquê?
Não
foi por uma questão de
memória do cinema, embora já me tenham falado disso. A escrita de Simenon é
tensa, densa e tive vontade de me aproximar dos atores, de cerrar o espaço, de
cercar os corpos. O 4:3 obriga-nos a filmar de mais longe, mas ganhamos em
altura nos enquadramentos e os corpos ficam mais belos. Era o formato que me
convinha.
Francisco Ferreira,
Expresso
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