Elizabeth Taylor. Profissão: Movie Star. O GIGANTE, 4ªf, 22h, Sede. Entrada livre!

Liz Taylor morreu? Não: sabemos bem quanto as movie stars são eternas.

5 obras-primas do cinema protagonizadas por uma estrela tão cintilante em vida como em qualquer ecrã que a projecte. Seja acompanhada por James Dean, Paul Newman, Montgomery Clift, Richard Burton ou Marlon Brando, a senhora do olhar violeta arranca nestes clássicos papeis inesquecíveis e arrebatadores.

De entrada – melhor dito, de passagem! – livre, nas traseiras da sede se o clima o permitir, uma intervenção aberta à comunidade - e não só a cinéfila!

Este ciclo constitui uma oportunidade extraordinária de sermos confrontados com filmes adultos, o que rareia hoje em dia; filmes profundos, a contrariar avatares e outros; filmes densos, porque nem só de espuma se faz os dias. Sustentados por magníficos argumentos e ainda mais especiais diálogos, vivem da arte de bem fazer cinema que quase se escapuliu do cinema actual. Contamos convosco nesta homenagem a uma das maiores entre as maiores estrelas de cinema de todos os tempos.




TÃO ÍNTIMO COMO UMA CARTA DA FAMÍLIA, O GIGANTE É UMA OBRA-PRIMA.
Sam Lesner, Chicago Daily News



O Gigante é um filme lendário, pertencente ao que hoje em dia já ganhou a designação de “cult movie”. Por várias razões, mas essencialmente porque se trata do último título interpretado por James Dean, constituindo com A Leste do Paraíso e A Fúria de Viver uma trilogia difícil de esquecer.

Retirado de um best-seller de Edna Ferber, The Giant esteve em preparação e rodagem durante três anos, procurando a Warner com esta gesta reeditar o sucesso de E Tudo o Vento Levou, para o que convidou Georges Stevens, um dos maiores cineastas americanos, para o dirigir, dando-lhe todas as possibilidades para ele erguer a superprodução pretendida. Através de uma panorâmica de três décadas, que ocupa duas gerações dos Benedicts, uma família de latifundiários norte-americanos, Stevens (que ganhou um Oscar com o seu trabalho, ao nível do seu melhor: Shane ou Um Lugar ao Sol), arranca um poderoso retrato de uma época e de um Estado, ritmado por um fôlego épico indesmentível (ainda que se possa apontar, aqui e ali, uma lentidão excessiva, um ou outro momento de lassidão), excelentemente interpretado por um elenco notável, onde serão de referir, não só os protagonistas, de entre os quais Elizabeth Taylor e o genial James Dean, mas também secundários tão brilhantes como Mercedes McCambridge ou Sal Mineo. A música de Dimitri Tiomkin é outro elemento que ajuda a explicar o sucesso desta obra que se mostra hoje em dia um «must» da história do cinema.
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Sete, Novembro 1987



Edna Ferber especializou-se na escrita de longas sagas familiares, muitas das quais se passavam no Oeste americano. O seu romance Cimarron (1929) foi duas vezes adaptado ao grande ecrã por Hollywood e o mesmo aconteceu com Show Boat (1926), cuja acção decorre nos Estados do Sul. Em O Gigante, escrito em 1950, Bick Benedict (Rock Hudson), um dos maiores criadores de gado do Texas, casa com uma donzela, bela e espirituosa, de Maryland, que dá pelo nome de Leslie (Elizabeth Taylor). A irmã de Bick deixou, em testamento, algumas propriedades a Jett Rink (James Dean), um seu antigo empregado. Este acaba por descobrir petróleo nas suas terras e torna-se escandalosamente rico. No entanto, a sua vida pessoal é um desastre e a bebida servir-Ihe-á de consolo, já que ama Leslie, sem nunca ser correspondido. À medida que Bick e Leslie vão envelhecendo, o que mais os preocupa é encontrar a pessoa ideal para gerir o rancho, após a sua morte. A filha de ambos (Carroll Baker) oferece-se para conduzir os destinos do rancho, mas depara-se com a oposição da mãe. Para desalento de Bick, o seu filho (Dennis Hopper) desposou uma mulher de ascendência mexicana e tornou-se médico, em vez de criador de gado.

Ao longo das suas mais de três horas, O Gigante faz jus ao seu título, em parte graças aos desempenhos excelentes do seu elenco, entre os quais se destaca a interpretação de James Dean, que viria a falecer tragicamente num acidente de automóvel, pouco depois do término das filmagens. O realizador George Stevens consegue captar a imensidão da paisagem texana e, para a época, a película aborda de forma interessante as diferenças tanto entre classes, como entre raças.
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EB, 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer




Título original: Giant
Realização: George Stevens
Argumento: Fred Guiot e Ivan Moffat, segundo romance de Edna Ferber
Fotografia: William C. Mellor e Edwin Du Par
Música: Dimitri Tiomkin
Interpretação: Ellzabeth Taylor, Rock Hudson, James Dean, Mercedes McCambridge,
Carroll Baker, Chill Wills, Rod Taylor, Dennis Hopper, Sal Mineo, Earl Holliman

Origem: EUA
Ano: 1956
Duração: 201'
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2ªf, 30, IPJ - MEL - URSO DE OURO BERLIM 2010.


MEL: OS DISCURSOS DOS DISCÍPULOS
Um filme turco cheio de palavras ausentes nesta história sobre um menino gago, o seu pai único, as abelhas, o faisão e a poesia a germinar no silêncio da contemplação.

Há uma expressão muito culinária (e extremamente destituída de poesia) que diz que não se fazem omeletas sem ovos. Para o realizador turco, Semih Kaplanoglu, que ganhou o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, parece que não se faz poesia sem Mel, Leite e Ovos - os títulos da sua trilogia, em flashback. Mel é o terceiro deste tríptico poético, que, na verdade, é o primeiro. Semih acabou pelo princípio, a sua história de Yusuf, o homem poeta, e vai agora, em retrospetiva, até à sua infância. Aquela fase em que ainda tudo é inicial, inteiro e limpo. E a poesia parece fazer ligação direta com a alma, através do olhar de uma criança. Yusuf tem uma relação difícil com as palavras escritas, nas aulas gagueja, quando lê em voz alta - tanto ou mais embaraçoso numa sala de aula do que aos reais microfones. Mas esse retraimento verbal compensa-o com a sua imensa capacidade de olhar o menino deste lugar remoto, numa aldeia da Turquia rural, na província de Rize (costa do mar Negro). Que é, como se sabe, a matéria-prima mais primordial de um poeta em construção. E todo o filme é-nos transmitido através daquilo a que o próprio realizador chama, paradoxalmente, "realismo espiritual". Sempre na perspetiva de quem vê o mundo a um metro do chão. E é nesta perpendicularidade, entre a verticalidade das árvores enormes da floresta onde o pai assaltava colmeias, e o olhar horizontal no miúdo, que se encontra um ponto qualquer onde se formam as "origens da alma", na palavras do realizador. Ou se vai incubando, fermentado, acumulando, cozinhando com leite, mel e ovos, o armazenamento vocabular e sensorial de um poeta que ainda não sabe que o será porque ele apenas é um poeta em construção. Assim como todas as crianças nos seus dramas de pequena escala, os insetos que observam, os embaraços na escola, o confronto com os colegas, as náuseas que lhe provocam o leite, a admiração pelo pai recoletor de mel que sobe as altitudes das árvores, e a ele, só a ele, lhe fala baixinho numa cumplicidade terna - porque se um miúdo é filho único um pai também é pai único - e, então, temos um pequeno contentor humano de emoções, a aprender as coisas dos adultos: a humilhação, a vergonha, o riso dos outros, a perda, os equívocos (os equívocos são tramados), e os mistérios da vida que são enigmas muito mais enigmáticos, fascinantes ou dolorosos para quem os inaugura.

Um filme de pausas
E depois há o silêncio, puro e absolutamente encantador, que sempre se diz que estimula a capacidade de olhar, reparar e ver. Mas, curiosamente, também de ouvir. E falar de sons, como o zumbido das abelhas, o dardejar de asas do falcão, o passo indolente da mula, as cordas que esticam e se retesam para a escalada das árvores, o rumorejo do rio, do vento nas árvores, num filme que enfatiza formalmente o silêncio (o realizador não usa banda sonora extradiegética) não é de todo um paradoxo. Porque a própria ausência de ruído enfatiza os pequenos rumores, como se lhes ampliasse os decibéis, ressalta-lhes o protagonismo, e onde há pouco verbo resta-nos muito espaço cerebral para dedicar à contemplação desta natureza colonizada ainda pelos primordiais ruídos.

O realizador encontrou este pequeno ator (Boras Altas, de 7 anos) enquanto este passava alegremente de bicicleta. A personalidade do miúdo era diametralmente oposta à do contemplativo, tímido e contido personagem, por isso, conta Semih, ele teve de fazer um trabalho minucioso com o miúdo. Ainda por cima não tem filhos, não sabe lidar com crianças, mas teve uma ajuda de um "treinador [sic] de atores infantis". Diz-se que a palavra pode ter a valência de mil imagens e não o contrário, e produzir um efeito impactante, mas a pausa - no momento certo, na hora e no local certos produz um efeito ainda mais estrepitante. Por isso, este é um filme de pausas cheias de poesia lá dentro. E a poesia, como se sabe, é feita da mesma matéria com que se constroem os sonhos. E não por acaso o filme acaba com o miúdo a dormir, no meio da imensa e misteriosa floresta, cheio de "brancos pavores", tão líquidos como o rio que corre ali perto. E cita-se uma frase maravilhosa em latim, que condensa todo o filme - soa muito melhor em latim, mas a tradução impõe-se: Altissima quaeque flumina minimo sono labi, os rios mais profundos correm sempre com menos ruído.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão



"Mel", encerra a ‘trilogia de Yusuf’, criada pelo realizador turco Semih Kaplanoglu, um dos nomes mais respeitados daquela cinematografia, embora praticamente desconhecido em Portugal. Foi também com essa trilogia que Kaplanoglu, de 48 anos, se impôs nos festivais de cinema internacionais, primeiro com "Ovo", exibido em 2007 na Quinzena dos Realizadores de Cannes (e, por cá, na primeira edição do Festival do Estoril), depois com "Leite", que competiu em Veneza 2008 (o IndieLisboa mostrou-o em Portugal) e por fim com "Mel", que agora chega às salas. "Mel" foi surpreendentemente premiado a ouro no Festival de Berlim do ano passado, que Werner Herzog presidiu. E deixamos uma questão meramente factual antes de avançarmos mais: quantos cineastas se podem orgulhar de ter apresentado três filmes consecutivos nos três festivais mais importantes do mundo?

A trilogia em causa é pouco habitual. Há quatro anos, Kaplanoglu, que é também romancista, estava a trabalhar num texto sobre um rapaz que vivia com a mãe numa região rural, algures nas profundezas da Anatólia, num tempo de sonho e de lenda difícil de datar. Esse rapaz chamava-se Yusuf. Aos 18 anos, era um poeta promissor que começava a ensaiar os primeiros versos. Foi nessa altura, a meio do texto, que Kaplanoglu se perguntou: como será Yusuf com a idade de 40 anos? E o que terá sido ele em criança? "Num fim de semana", disse o cineasta em Berlim, "decidi lançar-me para a trilogia. Comecei pela personagem adulta, pois senti-a mais próxima de mim. As suas inquietações podiam ser as minhas: donde venho, quem sou, para onde vou..."

Nascia "Ovo" e começava aqui uma trilogia contada da frente para trás. Nesse filme de 2007, Yusuf é um homem maduro que deixa a grande cidade para voltar à sua aldeia natal quando lhe morre a mãe. Em "Leite, Yusuf é um rapaz solitário da província que ajuda a mãe nos afazeres domésticos enquanto acaba o liceu, numa altura em que as suas primeiras obras de fim da adolescência começam a ver a luz do dia, em obscuras publicações literárias. Por fim, chegamos a: "Mel", o filme mais secreto dos três - talvez porque, aqui, Yusuf é uma criança. Apesar desta lógica aparente, nada é líquido nesta trilogia, que jamais nos dará os seus segredos de barato. É que, efetivamente, não estamos certos que o Yusuf de "Ovo", de "Leite" e de "Mel" sejam exatamente a mesma personagem em três fases diferentes da vida. Digamos que se tratam antes de três variações poéticas sobre a mesma figura, provavelmente baseadas na biografia ou em memórias pessoais do realizador.

Em "Mel", Yusuf tem apenas 6 anos. Acabou de entrar na escola, está a aprender a ler, mas enfrenta alguns problemas de gaguez. Mais importante do que isso: Yusuf tem um pai que é apicultor e do qual pouco ou nada se sabia nos filmes anteriores. No primeiro plano do filme, o pai sobe a uma árvore para recolher o mel de uma colmeia, segundo um método tradicional, já em desuso. É um trabalho de risco. O mel, neste filme, é de certa forma uma metáfora da natureza e do espírito da floresta, como o milagre da vida, que se produz a si próprio e sem explicação. Acontece que o ramo da árvore à qual o pai de Yusuf lança a sua corda ameaça quebrar-se, deixando-o suspenso entre a vida e a morte. O que vem depois é um longo flashback, narrado a partir do universo interior da criança (o mundo é visto pelos seus olhos), sobre o percurso da sua aprendizagem. Até que Yusuf descubra que a morte de um pai, afinal, não é o fim do mundo, somente uma etapa decisiva da existência.

Kaplanoglu é um cineasta sensível que se dirige ao âmago da natureza humana, para um cinema pictórico e contemplativo, solto das regras comuns da narrativa. É um devoto confesso da luz artificial, da película em 35 mm, e trabalha com atores não profissionais (o miúdo deste filme, Bora Altas, é um achado), em longuíssimos planos-sequência. Estamos a falar de um cinema em que a sensibilidade à luz (ou a influência - revelada pelo cineasta em Berlim - da pintura de Vermeer) pode ser mais importante do que a definição de uma personagem ou do que a explicação dos seus gestos. Aquilo que mais interessa a Kaplanoglu é a criação de um hino à beleza da natureza e da criação, toda uma cosmogonia de imagens e sons a priori inatacável e em que a ação das palavras é com frequência interdita.

Mas bastará tudo isto para fazer um grande filme? Se o cinema de Kaplanoglu é solene e impõe respeito, resultando invariavelmente em planos de uma beleza arrebatadora (esperamos que a qualidade da cópia de 35mm a exibir assim o comprove), não deixa contudo de levantar problemas. É que "Mel", um filme sobre a infância e a dor da perda paterna, viagem simbólica à inocência e às origens da Humanidade, é de tal modo controlado ao milímetro, de tal modo compenetrado na composição dos seus elementos, que nos deixa a sensação do 'belo pelo belo', de um filme deslumbrado pelo seu próprio gesto estético. O talento cinematográfico existe, mas será que ele não está sempre a correr o risco de se sufocar a si próprio? Resta-nos um filme bonito - talvez até em demasia -, mas autossatisfeito. Para ver - definitivamente - e para dividir.
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Francisco Ferreira, Expresso




CONTÉM DECLARAÇÕES DO REALIZADOR

Mel" encerra a "Trilogia Yussuf" de Semih Kaplanoglu. Continuamos a andar para trás: depois de já ter sido quarentão e adolescente, Yussuf é agora um miúdo em crescimento na Turquia rural. O princípio, diz Kaplanoglu, é aquilo que fica connosco até ao fim.

Depois de "Yumurta" (2007), regresso de um poeta à sua terra natal após a morte da mãe, e de "Süt" (2008), retrato de um adolescente dividido entre a escrita e o pobre trabalho que sustenta a sua família, Semih Kaplanoglu fecha a sua trilogia sobre Yussuf (personagem que é também o seu alter-ego) com "Mel", retrato da emancipação de uma criança na Turquia rural, que foi Urso de Ouro em Berlim em 2010.

Continuando a olhar para trás, Kaplanoglu mostra-nos desta vez a infância em estado puro que guardamos pela vida fora: a curiosidade da descoberta dos sentidos, a vontade da expressão individual e a timidez que a impede de se soltar, e o eterno elo de admiração da criança pelo seu pai, sob o olhar atento da mãe. O pai de Yussuf, apicultor, procura novas fontes de mel para o sustento familiar, pequenas incursões feitas na companhia do filho, de olhos e ouvidos abertos para cada gesto. Mas será após uma partida solitária para longe que, na ausência da referência paterna, os sentidos de Yussuf se abrirão mais ao confronto entre o isolamento interior no seu diminuído lar, o encontro com as palavras na escola e o puro estado da natureza que circunda a casa. Há um mundo que o chama e que ele abraça, na descoberta da vida e da ausência.



"Em 2005", diz-nos Kaplanoglu, "escrevi um conto sobre um aspirante a poeta de 18 anos que vivia no campo e enviava os seus poemas a jornais literários [segmento da história que filmaria em "Süt", segunda parte da trilogia]. Mas perguntei-me o que aconteceria a essa personagem na sua idade adulta e na sua infância, se poderia continuar a escrever poemas com 40 anos de idade ou se teria de fazer outra coisa para ganhar a vida".

A história da "Trilogia Yussuf", que tem o seu ponto alto em "Mel", é, portanto, a do crescimento invertido de um homem que foi criança, a de um longo caminho de emancipação face à presença espiritual do pai e o amor presente da mãe. A luta de Yusuf pela independência confunde-se com a procura da sua forma de expressão no mundo - a poesia e o uso das palavras. "Ao falar com Orçun, o meu co-argumentista, e com Hande, o meu montador, pensámos numa trilogia", diz-nos o realizador. É uma trilogia ao contrário: "Decidi começar do ponto que conhecia melhor - os 40 anos -, por estar a passar por problemas semelhantes [retratados em "Yumurta"]. Depois de uma certa idade, concentramo-nos mais no passado do que no futuro, talvez por haver uma aproximação à morte ou porque o tempo que já vivemos ser maior do que aquele que vamos viver", explica.

Atrás da cortina
Além de um reflexo dos seus dilemas posteriores, a infância de Yusuf é também a descoberta do mundo que alimentará os sentidos: a imensa floresta onde se situa a sua casa abre o caminho para a aprendizagem das sensações e das palavras que as descrevem. Apesar de ser o último filme da trilogia, "Mel" é também o primeiro: os outros dois filmes começam aqui, quando Yusuf era pequeno.



Mas dizer Yusuf é outra maneira de dizer Semith. A poesia não é apenas a forma de expressão do protagonista: é a forma de expressão do próprio realizador. "Uso um método de simplificação nos meus filmes que aprendi com a poesia. Penso muitas vezes em como tornar a poesia relevante numa forma de arte como o cinema. A expressão poética dos meus filmes é uma consequência desse esforço", diz ao Ípsilon. Toda a "Trilogia Yussuf" revela uma paciente busca do tempo certo de expressão, uma relação cuidada entre a exposição de um sentimento e a escolha de adereços e de palavras numa paisagem natural de imagens. "A poesia é aquilo que fazemos das nossas experiências a partir do que guardamos na nossa linguagem. Não se trata só de colocar os nossos sentimentos em palavras, tem também a ver com o silêncio."

Através da infância de Yussuf, Kaplanoglu tentou ir ao encontro do sentido inicial que se perde ao longo da vida. "A vida põe uma cortina à frente dos nossos sentidos, impede-nos de tocar, cheirar e ver. Quando fiz o filme, tentei encontrar uma maneira de remover essa cortina, queria descrever não só a infância de Yussuf mas também a da humanidade. Pensei muito em como descrever essa pureza, pois julgo que a perdemos nas nossas relações. Falamos muito não por nos darmos bem, mas porque não conseguimos estabelecer uma verdadeira ligação uns com os outros", sublinha.

O esforço do realizador turco passa também por um método de filmagem assente ainda nas suas formas naturais: sem pós-produção, através de uma rodagem integrada no seu ambiente natural - a província de Rize, na Turquia -, procurando uma conjugação natural de luz e vida nos elementos que compõem a imensidão da paisagem e da floresta. "Interesso-me muito pela natureza", afirma o realizador, "observo-a e tento envolver-me com ela. O sentido do tempo, o nascer e o pôr do sol, as estações, tudo isso tem um efeito em mim. Sinto que não consigo criar se não traduzir isso naquilo que faço."

Todo o seu trabalho vai no sentido de uma necessidade de espiritualidade e de depuração que é o contrário da vida moderna, urbana que nos aliena dos sentidos. "A nossa percepção não está apenas relacionada com o cinema, depende também da quantidade de poesia que lemos, do nosso envolvimento com a arte e a filosofia, e da nossa relação com a espiritualidade. A vida moderna não nos permite questionar a nossa existência e a criação, há uma indolência dominante em relação a isso", argumenta Kaplanoglu.

Um cinema da esperança
Os contornos da "Trilogia Yussuf" relembram os de uma outra descoberta - a do mundo de Apu, jovem personagem do cinema do indiano Satyajit Ray. Também Apu era um aspirante a escritor dividido entre um profundo e desejo de criação e as responsabilidades da vida diária, de que depende a sobrevivência familiar. A procura de uma paz de espírito entre os acessórios materiais da vida é comum ao cinema de Ray e Kaplanoglu. Contudo, é num cinema mais metafísico e já distante de Ray que Kaplanoglu acaba por encontrar as suas influências mais decisivas. "'O Espelho' (1975), de Tarkovski, teve um grande impacto em mim: as sementes e as ideias do que queria fazer no cinema vêm daí, tal como de 'Andrei Rublev' (1966)", diz o realizador. "Foram filmes que marcaram a minha relação com o cinema."



Mas se é o movimento de Tarkovski que marca o tempo do cinema de Kaplanoglu e a sua busca de abstracção, o realizador turco refere ainda a porta aberta pelos filmes de Ingmar Bergman: "Ao criar as minhas personagens, fiz referência à forma de ver de Bergman. Ele coloca as questões mais substanciais e dolorosas sobre a existência do homem moderno. Os seus filmes provam que o cinema pode contar a história da sua insuficiência espiritual, não apenas vagueando pelos corredores sombrios da alma humana, mas dando-nos uma esperança que faz parte do mundo e que nos leva para a própria essência da criação."

Como Bergman, Kaplanoglu vai até à raiz de uma vida. Na sua inocência, Yussuf mostra-nos que aquilo que nos forma nunca nos abandonará. Ele sabe que poderá sempre encontrar aquilo que procura na árvore onde o pai ia buscar o mel para levar para casa.
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Francisco Valente, Público





Título Original: Bal
Realização: Semih Kaplanoglu
Argumento: Semih Kaplanoglu e Orçun Köksal
Direcção de Fotografia: Baris Özbiçer
Montagem: Ayahan Ergüse, Semih Kaplanoglu, S.Hande
Interpretação: Boras Altas, Erdal Besikçioglu , Tülin Özen
Origem: Turquia
Ano: 2010
Duração: 103’


COMENTÁRIO DO REALIZADOR

A TRILOGIA YUSUF
MEL é o terceiro filme da minha “Trilogia Yusuf”. A ideia para esta trilogia começou a formar‐se quando estava a rever um guião, que tinha escrito há muito tempo, sobre a história de Yusuf durante os seus anos de universitário em SÜT / MILK. Enquanto estava a elaborar esta personagem dei por mim a especular sobre como seria o seu futuro enquanto adulto (YUMURTA/EGG) e acerca de como teriam sido o passado e a infância do rapaz (BAL/MEL). Estas ideias ajudaram a moldar a trilogia. Comecei com YUMURTA/EGG, talvez porque a minha intenção fosse ir descobrindo a personagem em camadas, até chegar ao centro. Toda a trilogia pode ser vista como um extenso flashback. Nenhum dos filmes pode ser considerado de época: todos eles decorrem na actualidade, em diversos ambientes e escalões económicos turcos. Perguntam‐me se todos estes Yusufs são, efectivamente, a mesma personagem. Opto por não responder para não denunciar os seus segredos, a relação directa e indirecta entre os filmes, os mistérios da trilogia.
AS MINHAS PRÓPRIAS EXPERIÊNCIAS PASSADAS
Descrevi as minhas próprias experiências passadas enquanto delineava a personagem de Yusuf, pelo que se pode dizer que Yusuf tem partes de mim. Fiz várias referências à minha própria infância e juventude enquanto trabalhava nos três argumentos e acredito que fui capaz de lidar com os problemas na vida de Yusuf, as suas demandas e desafios, de forma realista. A minha infância serviu, igualmente, como ponto de partida para o guião de MEL. As minhas dificuldade na escola enquanto tentava a aprender a ler e escrever, as minhas perguntas às quais os adultos nunca responderam, a intensa crueldade e a riqueza da natureza… De certa forma, uma criança forma a sua personalidade enquanto descobre, com curiosidade, o mundo. Um mal‐entendido ocasional que conduz a erros ingénuos, sonhos, alegrias e remorsos permite‐lhe chegar à verdade. Espero que MEL nos permita chegar à verdade de Yusuf.
LUGAR INCOMUM
Para Yusuf e para o seu pai Yakup, a floresta representa um local encantado que encerra muitos dos mistérios no seu âmago. A floresta é um reino mágico no qual os dois se entretêm a esconder‐se, apenas para tornarem a reaparecer. Não é um local banal por onde eles deambulam apenas por ser um meio de subsistência. A floresta constitui um outro mundo, com gigantescas árvores e repleta de várias criaturas misteriosas, como a mula e o falcão que os acompanham durante as suas incursões à floresta. Foi bastante difícil de encontrar um sítio onde existissem largas e gigantescas árvores, com grandes troncos. Dei o meu melhor para encontrar um sítio adequado tanto para a colocação de uma colmeia como para a recriação do universo visual que queria para MEL. Trabalhámos em diversas florestas, especialmente naquelas em que existem colmeias há séculos. Localizavam‐se entre 30 e 40 km de distância umas das outras e a diferentes alturas, muito acima do nível do mar, todas elas com diferentes tipos de árvores.
YAKUP, O APICULTOR
O pai de Yusuf é um apicultor que recolhe o mel das colmeias, considerado o melhor mel e característico da região. Este mel terapêutico é a essência de um mundo antigo e de uma natureza imaculada. A sua profissão está prestes a desaparecer. O seu trabalho inclui colocar colmeias especialmente desenvolvidas, no topo das árvores, nas zonas montanhosas. É uma profissão exaustiva e perigosa. A admiração que Yusuf devota ao pai deve‐se, seguramente e em parte, ao invulgar ofício que este desempenha. Na minha opinião esta tem qualquer coisa em comum com a futura vocação de Yusuf – a poesia.
O DESAPARECIMENTO DO PAI
Não nos é possível dizer que a figura paterna não está presente na vida de Yusuf, na trilogia, já que nos é possível ver em MEL o quão forte é o seu laço com o pai. A ideia aqui é a forma como Yusuf experiencia o desaparecimento do seu pai, como lida com isso. Do ponto de vista da psicanálise, a perda prematura do pai pode fazer com que Yusuf construa a sua relação com a autoridade através da mãe, como se pode assistir em SÜT/MILK. Talvez esta seja a razão subjacente da sua fragilidade, timidez, insegurança e eventual redescoberta como acontece em YUMURTA/EGG. Mas todas estas características são pormenores de psicologia, com os quais eu não me preocupo nas minhas histórias. Estou a tentar retratar uma situação e reflectir sobre ela a um nível mais espiritual. Em vez de dissecar a nossa existência num laboratório de psicologia e reduzir a vida a uma sucessão causa efeito, estou a tentar atingir algum tipo de patamar mais elevado.
FILMAR NA COSTA DO MAR NEGRO
MEL foi rodado na pequena cidade de Çamlıhemşin. Fica na província de Rize, na costa do Mar Negro, no noroeste da Turquia. A minha motivação para esta escolha é a sua paisagem natural. Era a única região que tinha o tipo de cenário florestal que eu procurava. As condições geográficas da região acabaram, no entanto, por nos dar algumas dores de cabeça durante as filmagens. Só conseguíamos deslocar-nos até certo ponto e depois tínhamos de percorrer o restante caminho a pé até chegarmos ao local das filmagens, que ficava ainda bastante distante. Filmámos num terreno muito íngreme, no qual era difícil mantermo‐nos sequer em pé. Além disso, a costa do Mar Negro conta ainda com um clima muito instável. Chuva, sol e nevoeiro conseguem, muitas vezes, a proeza de fazer uma aparição durante a mesma hora. Tivemos, portanto, alguns problemas em manter a continuidade das cenas. Quando revejo o meu diário constato que choveu em 39 dos 48 dias de rodagem na floresta.
A HUMANIDADE DA INFÂNCIA
Se tivéssemos de classificar a actualidade como a idade adulta da Humanidade, então diria que os cenários onde MEL foi filmado estão ainda a viver a infância da Humanidade. Trabalhámos em aldeias montanhosas que em breve serão abandonadas por pessoas que ainda tentam construir a sua vida, de acordo com a tradição ancestral de comunhão com a natureza. Em lugares como este estamos a assistir à destruição dos recursos naturais, um problema para o qual devemos encontrar resposta o mais rapidamente possível.
A GAGUEZ DE YUSUF
Tendo acabado de entrar para a escola, Yusuf está a aprender a ler e escrever. Quando está a sós com o pai, o menino é capaz de ler, lentamente, pronunciando bem todas as palavras. Nas aulas, no entanto, Yusuf sente‐se demasiado pressionado e tende a gaguejar. Quando os colegas gozam com que ele, o jovem retrai‐se em silencio e solidão. Da mesma forma que o não ser aceite no serviço militar, após terminar o liceu, determina o destino de Yusuf em SÜT / MILK; o momento em que este não é capaz de ler na aula, em frente aos colegas, assinala um ponto de ruptura na sua infância. Ser elogiado por ser capaz de ler correctamente na aula, é algo de muito importante para um aluno da primeira classe. Falhar e transformar‐se numa piada para os colegas faz com que Yusuf se encerre em si mesmo e passe a desenvolver uma relação com as palavras e a poesia.
À PROCURA DO JOVEM YUSUF
Procurámos o Yusuf em várias cidades, vilas e aldeias durante mês. Fomos a todas as escolas primárias e entrevistámos os alunos da primeira da classe. Estava à procura da versão infantil do Yusuf de YAMURTA/EGG e SÜT/MILK. Não me sentia absolutamente convencido com nenhum dos meninos que tinha encontrado até então. Após dois meses de busca resolvi mudar de localização. Era uma decisão arriscada. Todo o trabalho feito por mim e pelos responsáveis de casting seria desperdiçado, assim como o seriam todas as outras crianças já seleccionadas para papéis secundários. Mudámos para uma nova localização a cerca de 100 km de distância inicial e deitámos mãos à obra. Existiam muito poucos habitantes e eram, na sua maioria, idosos devido ao desemprego e às migrações. Os poucos jovens que restavam também não me pareceram particularmente promissores. Um dia, no meu caminho de regresso de um dos locais de rodagem vi o Boras Altas a andar de bicicleta. Saí do carro e apresentei‐me. Senti imediatamente que aquele era o Yusuf de que tinha andado à procura. Uma criança sensível e inteligente com um mundo só seu.
TRANSFORMAR BORAS EM YUSUF
Durante as filmagens de MEL o Boras Altas tinha sete anos. O Boras tem uma personalidade muito diferente da que tinha delineado para Yusuf. O Boras é muito sociável, o que é completamente incompatível com aquilo que pretendia para Yusuf. Precisava que ele representasse e foi‐me bastante difícil transformá‐lo no Yusuf. Trabalhámos muito e fomos muito pacientes. Expliquei‐lhe tudo, cena a cena, o melhor e mais detalhadamente que consegui. Desenvolvemos uma ligação baseada na confiança. Posso dizer que trabalhei com ele da mesma maneira que trabalho com os actores adultos. O Boras foi suficientemente corajoso para se submeter a mim e eu nunca abusei da sua confiança nem da admiração que sentia por mim. Aprendi muito a tentar fazer uma criança tão jovem concentrar‐se no seu papel. Como não tenho filhos, também não tenho experiência com crianças. Nunca me esquecerei do empenho e entusiasmo do Boras e das outras crianças. Gostaria de destacar a ajuda da actriz Tülin Özen e do treinador de actores infantis Kutay Sandikçi que me ajudaram a conseguir os melhores desempenhos possíveis destas crianças.
REALISMO ESPIRITUAL
Aprendi e experimentei diversas coisas nos últimos quatro anos, ao longo da pré‐produção, produção e montagem da trilogia Yusuf. Foi também um período em que tentei moldar o meu estilo de realização, ao qual chamo “realismo espiritual”.
Durante este período, questionei não só os elementos de composição cinematográfica, tais como os elementos visuais, os actores, o som, os cenários e o tempo, mas também a equipa técnica, os recursos financeiros e a formas como os gasto. E aprendi algumas lições. Fazer um filme é uma descoberta ou, até mesmo, definir‐se a si mesmo através do espelho desse filme. Não apenas para o realizador, mas para todos os elementos da equipa. Por exemplo, a minha mãe ‐ que desempenhou papéis secundários em YUMURTA/EGG e SÜT/MILK – viu a casa de YUMURTA/EGG e disse que se parecia muito com a nossa casa antiga, onde passei a minha infância. Isto levou-a a partilhar comigo vários episódios dos quais nunca tínhamos falado, histórias de família de que eu não tinha conhecimento. Mais tarde utilizei alguns deles em SÜT/ MILK e MEL.

o 2º da trilogia de Semih Kaplanoglu: LEITE, na sede, 4ªf, 21h30. (Mel, que completa a trilogia, é dia 30, no IPJ)

A entrada é livre, o chazinho/cafezinho+bolinho é a 50 cêntimos :-)

LEGENDAS EM PORTUGUÊS. Lotação 25 lugares.


Parte 2 de uma trilogia que decorre inversamente a vida do poeta Yusuf, Leite nos propõe uma experiência sensorial não diria nova, mas que é tendência na imagem cinematográfica dos diretores que se inserem na linha do cinema artístico. Um cinema que utiliza recursos naturais da própria paisagem, como a iluminação, Semih rechaça o artificialismo dos recursos comuns próprios do cinema comercial. Ademais, não é um filme difícil de digerir, pela sua beleza paisagística que atrai os olhares contemplativos. No entanto, é um filme que deve se desprender dessa visão superficial (que sobrepõe a imagem à estória) por estar carregado de símbolos em sua narrativa imagética.

Na verdade, me pergunto como metaforizar certos conceitos num cinema que procura aderir às teorias do olhar contemplativo característicos nas obras de diretores como, por exemplo, Tarkovsky. Se Tarkovsky prescinde das metáforas, mesmo que seu cinema seja um artifício poético, onde e como a semiótica poderá identificar e definir os signos de um filme que nasce de um paisagismo exacerbado, ou seja, principalmente do superficialismo da imagem. Se Semih consegue conceber seus próprios signos em suas imagens, então é preciso que eu faça uma revisão no meu olhar cinematográfico. Não é isso, no entanto, uma crítica, mas uma dúvida de um leigo como eu.

Voltando ao filme...

É importante destacar a beleza das imagens realçadas principalmente pelos cenários e pelas cores leitosas bem característicos do filme e que claramente aludem ao título. Como disse, não há iluminação artificial, mas para compor a cena bastam a iluminação natural do cenário, mesmo que não haja, e isso acontecerá em algumas das cenas já no final. O céu é um elemento bem recorrente, mas sempre aparece manchado pelas enormes nuvens esbranquiçadas. Semih prefere os cenários grandiosos, espaçosos, mas não relega de todo os cenários internos, nem prescinde do closer ou do primeiro plano.

A beleza do filme está entranhada, também, na simplicidade de sua narrativa. Para os olhares despretensiosos, o filme parece o registro de um adolescente que deambula aqui e ali, escrevendo poesias e trabalhando para a mãe. Mas a temática adolescência possibilita um universo de temas que se pode explorar e discutir, ou que serve de motivo para dissertações e estudos científicos sobre o assunto. O que, no entanto, descarta essa possibilidade, é a apatia e a inexpressividade do jovem protagonista Yusuf. Personagem, eu diria, atípico, que não encerra características universais presentes na juventude, Yusuf não sai à procura de nada, não se preocupa em se satisfazer fisicamente, ou satisfazer os vícios de sua efervescência hormonal, não questiona nada e não tem grandes pretensões. Na verdade, não parece se preocupar com muita coisa, exceto com sua mãe, que, viúva, se ver apaixonada de novo em determinada parte do filme.

Se Yusuf, portanto, não atende às características do típico jovem em crise existencial ou de identidade, ou se seus hormônios explosivos não o impelem à tentativa de satisfazer prazeres físicos, então ele personifica, nos moldes de uma visão romântica do artista, um poeta errante. Ou seja, Semih traz ao mundo um personagem um tanto metafísico. Se os problemas de Yusuf não são terrenos, ou melhor típicos, então são problemas artísticos que se encerram unicamente na arte. Mas Semih não explora a arte de Yusuf, ele simplesmente o persegue e o registra. A verdade é que Yusuf é um personagem alegórico, sim. É um poeta errante bastante humano e, ao contrário do que eu falei, não se encerra na arte. Talvez isso seja uma peculiaridade característica. Se assim for, Yusuf é um personagem bastante peculiar e traz à tona certas problemáticas do nosso mundo.

(...) É interessante observar que essa incomunicabilidade [do protagonista] não serve unicamente para atestar um problema recorrente na juventude ou na sociedade atual, mas para suscitar a preocupação de se encontrar um silêncio, que hoje é incomum, nessa mesma sociedade. Tomando como voz o próprio Semih, ele nos atenta, em entrevista, que o silêncio em seu filme não é o silêncio absoluto de todas as coisas, mas um silêncio que ressalta o murmúrio da natureza, e ratifico com minhas palavras, que serve como oportunidade para se escutar o que não se diz entre os homens. Não estou sendo aqui naturalista como o filme, apenas analisando uma leitura possível aos meus olhos.

Desse silêncio onde paira o espírito da incomunicabilidade, os planos terão obrigação de nos atentar à paisagem, já que os personagens não nos têm muito a oferecer. Por isso, Semih capta paisagens naturais, na maioria das vezes, ao mesmo tempo em que situa seus personagens no início desse plano. Muitas vezes, os próprios personagens observam essa paisagem junto aos espectadores. Nesse sentido, é um filme bastante contemplativo, apesar de que os personagens estão, quase sempre, à vista, para que não nos esqueçamos de sua estória.

Quanto ao tempo, o filme segue um ritmo um tanto quanto peculiar, apesar de seguir uma tendência artístico-cinematográfica atual, com planos fixos e extensas tomadas. Semih tenta estender o tempo perceptivo com seus planos fixos e demorados, mas quebra esse ritmo com alguns cortes que eu não diria dispensáveis para sua diegese. Em alguns diálogos, principalmente nos que os personagens se situam em espaços diferentes, o corte é bastante recorrente. Essa é uma grande diferença entre Semih e, por exemplo, Tsai Ming-Liang. Este último aproveita os cenários de forma que os cortes sejam completamente descartáveis, mas permitindo aos personagens que interajam entre si ou se comuniquem. Esses cortes, no filme de Semih, conferem uma certa dinamicidade que o filme prescindiria, devido a sua estética e a sua ideia inicial. Mas Semih não se preocupa em seguir parâmetros ou tendências.

Leite é um filme do qual não despontará nenhuma epifania. Mas vale a pena vê-lo, seja pela beleza de sua simplicidade, seja pela simplicidade da própria narrativa ou da própria estória, ou mesmo pela experiência memorialística, mas nesse sentido, será imprescindível ter em mãos os dois outros filmes que completam a trilogia de Yusuf.
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cemmilpalavras.blogspot.com




Título Original: Süt
Realização: Semih Kaplanoglu
Argumento: Semih Kaplanoglu, Orçun Köksal
Interpretação: Melih Selçuk, Basak Köklükaya, Riza Akin, Saadet Isil Aksoy
Fotografia: Özgür Eken
Montagem: François Quiqueré
Origem: Turquia / França / Alemanha
Ano: 2008
Duração: 102’

Um filme em aberto, como toda a boa POESIA. 2ªf, 21h30, IPJ.

Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€

Como todos sabemos, estamos numa época em que a poesia está a morrer. Alguns lamentam o facto enquanto, ao mesmo tempo, outros dizem “a poesia merece morrer!”. Apesar de tudo, ainda existe quem escreva poemas e pessoas que ainda os apreciem.Que significado tem escrever poesia quando as pessoas já não a lêem? Esta é a minha questão para o público. É também uma questão para mim: que significa fazer filmes quando os filmes estão a morrer?
Lee Changdong


O que realmente interessa em Poesia não é tanto o que se vê, mas a forma como se vê. Ou melhor, há uma diferença entre ver e observar. Daí que a poesia seja isso mesmo, a diferença entre ver e observar, olhar com atenção para o que nos parece banal, observar pormenores nunca antes apercebidos, observar com sentimento. A dada altura diz-se que «não é difícil escrever um poema, difícil é ter coração para o escrever». Da mesma forma que para fazer um filme com uma história com um cerne semelhante a esta não era preciso muito, mas o difícil era fazê-lo com o mesmo olhar e sentimento. Um sentimento tão honesto e verdadeiro que não passou despercebido no Festival de Cannes 2010, onde ganhou o prémio para Melhor Argumento, entregue a Chang-dong Lee, argumentista e realizador de Poesia. Este é o seu primeiro filme a estrear nas salas de cinemas portuguesas, o que nos deixa a pensar no que talvez tenhamos perdido até agora.

O olhar de Chang-dong Lee é peculiar. É o olhar simples e poético sobre uma forte história. Coisa rara no cinema. Porque se havia material para se criar um thriller intenso a partir de uma tragédia na comunidade que se estende à família ou um melodrama sobre uma mulher que perde aos poucos a sua mente sã, Poesia altera esses padrões de género e destaca um olhar frio, às vezes cínico, sobre uma história de julgamento moral. A busca de Mija pela inspiração poética através da observação do quotidiano é a mesma que o cineasta impõe ao espectador. Se a personagem é forçada a observar o banal com outros olhos, também o espectador acaba por observar os acontecimentos factuais. Observar não é fácil. Quando observa uma simples maçã, a protagonista fica desapontada com a inspiração que não vem. Daí que se apercebe que a realidade e a dor dá material o suficiente para sentir e observar o mundo com outros olhos.

É notável a sensibilidade e simplicidade com que o realizador filma. O tom é naturalista, sem grandes recursos estilísticos, nem música, nem sentimentalismos extravagantes. Onde um simples jogo de badmington ou olhar para uma maçã acabam por ganhar poesia. Jeong-hie Yun, estrela sul-coreana, regressa depois de 15 anos de interregno. É ela que carrega o filme com a sua interpretação alineada, expressiva e solene, numa personalidade cheia de nuances. Se a dada altura, a sua interpretação remete para algo semelhante a Mother (2009), na verdade Chang-dong Lee acaba por trazer um olhar frio sobre essa temática forte. Porque Poesia é um exercício de exposição das personagens, dos humanos, dos sentimentos. Um filme sobre fragilidade, uma espécie de poesia incómoda, mas realista.

A poesia não é simplesmente aquilo que é belo, mas também aquilo que é sombrio, negro. A poesia é o que se sente. A forma como se escreve, como se vê, como se exprime o que sente. Poesia escreve-se entre imagens e entre silêncios, na forma como uma mulher acalma as suas dores pessoais na escrita de um poema ou a cantar num karaoke. Observar não é fácil, é preciso ter alma, ser delicado, subtil. É preciso sentir. E Poesia sente-se como uma auto-reflexão belíssima e encantadora, daí que não se escreva muito sobre ele. Não é para falar, é para sentir.
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Tiago Ramos, cinema2000



Há mais de uma década que esperávamos por um filme de Lee Chang-dong nas salas portuguesas. Mais vale tarde do que nunca, dirão os escassos chang-dongianos que possam estar desse lado. Até agora, ninguém tinha ainda dado 'tempo de antena' português a este belíssimo contador de histórias, atento aos obstáculos da vida e à beleza dos sentimentos. É preciso acertar o relógio: Lee é simplesmente um dos maiores vultos do cinema sul-coreano contemporâneo, um homem sensível que tem trabalho para descobrir com urgência. Falamos de um cineasta de 56 anos, antigo professor de liceu e romancista de nível reconhecido no seu país, que chega tarde ao cinema, já na casa dos quarenta.

"Green Fish" (1996), primeira obra, traz-nos um rapaz que deixa a tropa e volta à sua cidade natal, acabando por envolver-se em más companhias. "Peppermint Candy" (2000), extraordinário segundo filme, apresenta-nos a um homem, meio zombie, que o desespero leva ao suicídio durante um encontro de amigos. Estes constroem depois o relato da sua vida em flashback. A história recente da Coreia está em jogo. Chang-dong, que trabalha a escrita dos seus argumentos ao ínfimo detalhe e com talento natural para o fazer, começa a aceder a uma forma especial de melodrama que sentimos evoluir em lentíssima gestação. As suas personagens tendem subtilmente para a redenção, no sentido mais católico do termo, aspeto que não diríamos descobrir num cineasta coreano. O filme estreia na Quinzena de Cannes: é um êxito, Chang-dong 'entra no mapa'.

Está na competição de Veneza, em 2002, com esse improvável Romeu e Julieta chamado "Oasis", filme de um amor louco entre um jovem delinquente e uma paraplégica: novo mergulho no melodrama. Entre 2003 e 2004, surpresa: Lee entra na política e assume a pasta de ministro da Cultura do seu país. Tanto quanto sabemos, bateu-se a sério, o sr. ministro, e deu o que pôde para defender o novo e o que faz a diferença. Os coreanos não brincam com coisas sérias. Em 2007, volta às câmaras e a Cannes (competição) com "Secret Sunshine", história de uma jovem viúva com um filho de cinco anos. Tratam de refazer a vida na terrinha do pai da criança. Ela monta uma escola de piano. Mas o miúdo desaparece e o caminho da cruz da heroína começa: novo melodrama bate à porta. Uma vez mais, o cristianismo, a sua discussão e a sua dúvida, parecem ser a solução. Jeon Do-yeon, superstar na Coreia, deixa a Croisette com o prémio de melhor atriz. Chang-dong volta a Cannes dois anos depois, para o júri oficial presidido por Isabelle Huppert. Em 2010, está de novo na competição pela Palma de Ouro com este "Poesia" e volta a sair premiado (Melhor Argumento, não admira). Chegamos finalmente ao seu quinto e último filme. E pedimos desculpa pela demora da apresentação, mas como já se percebeu, Chang-dong impõe respeito.

Nas 2h20 de "Poesia", a sra. Yang Mija está em 99% dos planos. Yang Mija é interpretada por Yun Jeong-hie, uma extraordinária atriz coreana, muito popular desde os anos 60, que Chang-dong conta ter feito para cima de 300 filmes. A atriz retirou-se depois (não filmava há 16 anos) e só Chang-dong a convenceu a voltar a trabalhar. "Poesia" começa ao longo de um rio, com o cadáver de uma miúda do liceu a boiar e que depois sabemos ter-se suicidado. Logo a seguir, somos apresentados à senhora. É uma avó sexagenária. Educa o seu problemático neto, Jongwook, sozinha, numa cidade de província, já que a mãe do rapaz adolescente separou-se do marido e foi para Pusan. Seria injusto contar o que se passa depois porque "Poesia" é um filme extremamente emocional sobre uma senhora idosa a quem sucede uma série de provações. Também ela entrará numa igreja e olhará para a figura de Cristo. Fará o que pode para estar à altura das circunstâncias. Digamos apenas que, no hospital, pouco antes de a vermos inscrever-se num curso de poesia que lhe vai colorir os dias, ela recebe tristes notícias sobre o seu estado de saúde. E acrescentemos ainda que o neto Jongwook, juntamente com o seu bando de amigos, está na origem do suicídio da rapariga que vimos a boiar no rio no primeiro plano.

Não é possível deixarmos de recordar outras avós recentes do cinema contemporâneo que se sacrificam pelos netos, como as duas avós de "Lola", do filipino Brillante Mendoza, que à sua maneira é um 'filme gémeo' deste. Também à avó de Lee Chang-dong faltam as palavras e a memória, que a sua doença começa a fazer desaparecer, como se ela vivesse dessincronizada do mundo atual. Há um plano de pura mise en scene em que este aspeto é bem visível: o neto olha para um programa de entretenimento na TV e a avó, que o observa em silêncio, parece ficar aterrada, pois é incapaz de o compreender.

"Poesia" é um filme de uma ternura rara sobre a vida quotidiana. Tem personagens simples e pouco romanescas, como a sra. Yang Mija, para quem uma maçã - dirá ela depois de uma aula de poesia - "não foi feita para ser contemplada, mas para ser comida." Mas a avó de Lee Chang-dong descobrirá outro caminho. Antes da câmara voltar à água do rio onde o ciclo da vida acaba e recomeça.
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Francisco Ferreira, Expresso



ENTREVISTA AO REALIZADOR
Durante o processo de criação de um filme, quando é que escolhe o título? Quando e como lhe surgiu a ideia de fazer um filme sobre poesia usando literalmente o título “Poesia”?
Normalmente escolho o título do filme bastante cedo. Se não o fizer, não me consigo convencer de que o filme será feito. Há uns anos, ocorreu um caso em que vários rapazes de uma pequena cidade da província violaram uma rapariga de uma escola secundária. Durante algum tempo fiquei a pensar neste acto de violência mas sem ter a certeza de como iria contar esta história num filme. Em primeiro lugar, pensei numa história de um conto de Raymond Carver, “So Much Water So Close to Home”, mas pareceu-me um pouco vulgar. Então, uma manhã, num quarto de hotel em Tóquio, estava a ver televisão quando o título “Poesia” me surgiu. Acho que era um programa de televisão feito para turistas que passam noites em claro a jogar. Enquanto observava o televisor a emitir música meditativa por cima de paisagens extremamente típicas de pássaros a voar sobre um rio calmo, enquanto pescadores lançam as suas redes de pesca, percebi que este filme que lidava com este crime insidioso não podia ter outro título senão “Poesia”. A protagonista e o enredo foram concebidos quase ao mesmo tempo.
A minha companhia durante essa viagem foi um velho amigo que é poeta. Quando lhe falei do título e da história em que tinha pensado nessa noite criticou-o como sendo um projecto extremamente imprudente. Mas, estranhamente, as suas palavras reforçaram a minha convicção.

Quando pensou pela primeira vez em trabalhar com Yun Junghee? O público coreano vai reconhecê-la ou existe uma geração que já não o vai fazer?
Concordo que o público mais jovem, na casa dos vinte anos, não conheça muito bem Yun Junghee. A falha geracional no cinema coreano é muito profunda. Desde início, ou quando pensei numa mulher com cerca de sessenta anos, lembrei-me de Yun Junghee. Surgiu tão naturalmente como se fosse um facto inquestionável. Não teve qualquer importância que ela tenha estado afastada do cinema nos últimos 15 anos. O nome da personagem principal é Mija, o verdadeiro nome de Yun Junghee. Não foi intencional mas sim uma coincidência.

Quando é que pensou no tema da “demência”?
“Demência” foi uma palavra que me apareceu quase ao mesmo tempo que pensei nos três elementos centrais do filme: o título, “Poesia”; uma personagem feminina com cerca de 60 anos a tentar, pela primeira vez na sua vida, escrever um poema; e uma idosa a criar sozinha um rapaz adolescente. Ao mesmo tempo que a nossa protagonista aprende poesia, começa a esquecer-se das palavras. A demência claramente alude à morte.



O poeta que dá a aula nunca fala das técnicas de escrita de poesia, mas enfatiza a sua atenção em “ver as coisas verdadeiramente”. Da mesma forma, podemos relacionar poesia e cinema?
Sim. “Ver bem as coisas” refere-se à poesia, mas também se refere ao cinema. Alguns filmes ajudam-nos a ver o mundo sob uma outra luz. E alguns filmes deixam-nos ver apenas aquilo que queremos ver, enquanto outros nos impedem de ver o que quer que seja.

Ao longo da aula de poesia e do grupo “Love Poetry”, a poesia torna-se o elemento central deste filme. Acredito que a estrutura desta película tem uma relação muito próxima com a poesia. A razão pela qual prefiro este filme em relação aos seus outros filmes deve-se à fluidez que liga cada momento ao outro. É justo defini-lo como um filme “aberto”?
Como uma página com um poema, pensei num filme com muito espaço vazio. Este espaço vazio pode ser preenchido pelos espectadores. Nesse sentido, pode dizer-se que este é um filme “aberto”.

Creio que este filme tem um eco visual. Por exemplo, uma flor funciona desta forma com a flor vermelha, referindo-se ao sangue. Existe ainda a bacia de loiça no lavatório para a qual Mija olha. E depois, o poeta durante a aula de poesia explica que esta pode ser encontrada até mesmo num lava-loiças. Como se o filme estivesse a encontrar a sua própria rima. Da mesma forma, a queda do chapéu de Mija na água evoca o suicídio da jovem.
Como referiu, a flor vermelha está relacionada com o sangue. A beleza está muitas vezes associada à imoralidade. E as flores que por vezes são consideradas bonitas acabam por ser artificiais. O chapéu caindo ao rio evoca o suicídio da rapariga mas, acima de tudo, dá pistas sobre o próprio destino de Mija.

Outro tema relacionado é também o facto de a narrativa do filme ser deixada em branco. Para onde foi a Mija depois de deixar um poema escrito? Na última parte, quando ouvimos a sua voz a ler o poema, sentimos apenas a sua ausência mas não fazemos ideia do local para onde terá ido. Terá cometido suicídio?
Também quis manter isso em falta para que o público completasse. Ainda assim existe uma pista. A corrente do rio no final do filme sugere emocionalmente que Mija aceitou como seu o destino da rapariga. Tal como os pensamentos evocados pelos alperces caídos no chão.

Quando diz que os destinos de Mija e da rapariga se sobrepõem tem alguma relação com o último poema de Mija, “O Canto de Agnes”? A voz dela a ler o poema muda para a de Heejin. Sugere que estas duas personagens se tornam numa só?
Agnes é o nome de baptismo da rapariga morta. Assim, o único poema que Mija deixa ao mundo é escrito em nome da jovem. Em vez dela, Mija diz aquilo que a rapariga queria dizer ao mundo. Por isso podemos dizer que as duas se tornam numa só através de um poema.

Colocou a questão: “O que é a poesia num tempo em que a poesia se encontra a morrer?” E comentou ainda que essa é uma questão direccionada para o cinema num tempo em que também o cinema está a morrer. Os seus pensamentos sobre a poesia estão reflectidos no final do filme?
Quis apenas lançar esta questão aos espectadores. O público tem agora a chave para a resposta a esta pergunta. No entanto, um dos meus pensamentos sobre a poesia é a de que ela entoa em nome das emoções e pensamentos de alguém. Se alguém me perguntar porque é que eu faço filmes, eu posso responder: “Estou a contar a sua história por si”.
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Claude Mouchard





Título Original: Poetry (Shi)
Realização: Lee Changdong
Argumento: Lee Changdong
Fotografia: Kim Hyun Seok
Montagem: Hyun Kim
Interpretação: Yun Junghee, AN Naesang, Kim Hira, Lee David
Origem: Coreia do Sul
Ano: 2010
Duração: 139’



O CANTO DE AGNES
Mãe...
Como é isso por aí?
Sentes-te muito só?
Ainda vês o clarão avermelhado
Do anoitecer?
Os pássaros ainda cantam
A caminho da floresta?
Aceitas esta carta
Que não me atrevi a mandar?
Posso transmitir-te
A confissão que não ousei fazer?
Passará o tempo
Fenecerão as rosas?
É chegada a hora
De dizer adeus
Como o vento que se demora
Para depois partir
Como sombras
Às promessas que nunca chegam
Ao amor selado até ao fim
Às ervas
Que me beijam os tornozelos
Aos minúsculos passinhos
Que me seguem
É chegada a hora
De dizer adeus
Agora que a noite cai
Voltar-se-á a acender alguma vela
Aqui rezo
Ninguém chorará
E para que saibas
Quanto te amei
A longa espera
Em pleno escaldante dia de Verão
Um velho caminho
Que lembra o rosto do meu pai
Até a mais solitária flor silvestre
Timidamente se recolherá
Quão profundamente amei
Como estremeceu o meu coração
Ao ouvir tua ténue canção
Abençoo-te
Antes de atravessar
Este sombrio rio
Com o último fôlego da minha alma
Começo a sonhar
Uma soalheira e luminosa manhã
Mais uma vez acordo
Ofuscada pela luz
E te encontro
À minha frente
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6ªf, dia 20, IPJ, 22h - ALTERAÇÃO DE FILME! Entrada livre.

por pedido da Associação Académica da Universidade do Algarve, em lugar do anunciado El, de Buñuel, daremos o primeiramente programado para o passado dia 6 que houvera sido substituído pelo Curta a Rir! no Museu Municipal:


O DESPERTAR DA MENTE, Michel Gondry


Anda alguém a tentar mexer com as nossas cabeças, pelo menos desde que "Queres Ser John Malkovich?" (1999) abriu a caixa de Pandora. Era nesse filme, lembram-se?, que Malkovich "himself" descobria horrorizado que lhe estavam a ocupar o cérebro. Tanto "Queres Ser John Malkovich?" como, agora, "O Despertar da Mente", carregam a mesma assinatura, a do argumentista-prodígio Charlie Kaufman, e, para todos os efeitos, é dentro da cabeça dele que estamos. Reconhecem-se os sinais: as convulsões narrativas, as neuroses angustiadas, o esbatimento entre real e virtual, a demonstração algo laboratorial da triste comédia da condição humana. É assim que se pode identificar um universo autoral "kaufmaniano" antes mesmo de se falar do realizador dos seus argumentos, qualquer que ele seja, foi assim que começou a infiltrar-se, como um vírus, no cinema americano. Sobre "O Despertar da Mente", por exemplo, afirmou: "Não parti do princípio que ia escrever uma história de amor. Mas é intencional a minha fúria contra o romance convencional de Hollywood, porque isso deu cabo de mim quando eu estava a crescer, e a minha experiência não tem nada a ver com essas coisas." Fica o programa: um outro mundo é possível.

Não será por acaso que, para a sua hipótese de uma "alter-Hollywood", Kaufman se tenha aliado a realizadores com a folha (quase) limpa: Spike Jonze, Michel Gondry e até George Clooney ("Confissões de Uma Mente Perigosa"). Todos eles se estrearam na realização com argumentos de Kaufman, mas para a linhagem que aqui vem ao caso bastará convocar os dois primeiros: tanto Jonze como Gondry vêm do universo dos videoclips, tanto um como outro ambicionavam a transição para o cinema. Spike Jonze foi o primeiro a dar o salto, com "Queres Ser John Malkovich?" (seguiu-se "Inadaptado", em 2003). Foi ele quem proporcionou o encontro entre Kaufman e o francês Michel Gondry, que até tinha vindo para Hollywood com filmes como "Regresso ao Futuro" e "O Feitiço do Tempo" na cabeça. Estava-se mesmo a ver que os labirintos narrativos de Kaufman não andavam longe das pretensões de Gondry. O francês até trazia uma ideia sugerida por um amigo - e se um dia alguém recebesse uma carta a dizer que tinha sido apagado da memória de uma pessoa próxima? -, mas Kaufman contra propôs-lhe "Human Nature" (comercialmente inédito em Portugal). Foi a estreia desastrada de Gondry no cinema em 2001, filme contra-natura inscrito na evolução darwiniana da espécie humana, entre ci¬vilização e macacada, como que exibindo restos de bizarria que tinham ficado de fora de “Queres Ser John Malkovitch” (onde a culpa também era do macaco). Havia pêlo a mais (sic), artifício a rodos, e o espectador era deixado no limbo, sem nunca entrar no que mais parecia um videoclip de Gondry em versão longa - estavam lá marcas habituais, como o regresso à natureza e a vontade de efabulação que explorou no seu trabalho com Bjork ("Human behaviour", "Isobel", "Bacherolette", entre outros dips). Gondry anotou 40 páginas com tudo o que tinha falhado em "Human Nature" e, ao que parece, tentou apagar qualquer conotação com o filme: no recém-editado DVD "The Work of Director Michel Gondry", compilação dos seus trabalhos na área do videoclip e da curta-metragem, não há qualquer rasto da sua primeira longa-metragem, mas há dois "teasers" a anunciar "O Despertar da Mente" - um falso "spot" publicitário sobre a Lacuna Inc., empresa especializada em apagar "memórias perturbadoras", e um breve episódio em que Jim Carrey conduz a sua cama por uma L.A. nocturna cantando Elvis.

Nada que fizesse prever uma espera gratificante. Desenganem-se, pois: "O Despertar da Mente" (tradução menoríssima para o originalmente poético, e "dever", "Eternal Sunshine of the Spotless Mind") é filme para juntar ao panteão onde reinam "Punch-Drunk Love", de Paul Thomas Anderson, e "O Amor É Um Lugar Estranho", de Sofia Coppola, aí onde a comédia romântica ganhou rédeas para a experimentação e renovação.

(...) "O Despertar da Mente" abre espaço à virtualidade, transitando entre o real e o consciente.
Por aqui, era de imaginar o fácil recurso a proezas técnicas: é o que, até agora, se reconhecia a Michel Gondry, que nos seus videoclips e anúncios publicitários (o seu "spot" para a levi's, em 1994, é o mais premiado de todos os tempos, facto consumado no "Guiness Book of Records") parece sempre obcecado com a busca de um novo efeito visual. Gondry é uma espécie de Mr. Gadget, o último de uma linhagem de inventores, um prestidigitador em permanente prospecção de truques. Os seus vídeos são um prodígio de dinamitação da narrativa em favor de malabarismos técnicos, jogando com estratégias especulares e caleidoscópicas. Foi assim que Spike Jonze resumiu o método de Gondry: "Ele põe o público a olhar para um sitio enquanto está a fazer o truque noutro". Por seu lado, Gondry, e todos aqueles que o clamam como "um génio", têm propagado a sua capacidade para tornar possível o impossível. "limito-me a pegar numa ideia e a tentar puxá-Ia até ao extremo", diz ele, o que deixa antever pouco mais do que piscadelas de olho ao "state of the art".

Mas é preciso dizer que "O Despertar da Mente" é um trabalho de contenção. Mesmo não dispensando as bizarrias dos seus autores - o universo liliputiano e o brique-à-braque de Gondry ou a auto-humilhação crónica dos anti-heróis de Kaufman -, nunca se atreve fora dos limites do realismo e do "low-tech". Entre o interior e o exterior da cabeça de Joel Barish, entre o presente e o passado revivido, a transição é sempre encenada - é a palavra - com simples jogos de iluminação - as luzes apagando-se atrás de Joel à medida que ele sai da memória – e com as entradas e saídas das personagens delimitando a mudança de tempo (o "décor" é, muitas vezes, partilhado).

love story. Por falar em contenção, Jim Carrey é envolvente no seu minimalismo e vulnerabilidade. Não é só a cabeça dele que arrisca desaparecer: são as contorções a que o seu rosto nos habituou. Numa composição de desespero surdo, Jim Carrey apaga-se a si próprio, da mesma forma que Kate Winslet, enquanto tempestuosa incendiária de paixões, parece escapar ao cânone da sua filmografia.

É ver como, mesmo no labirinto mais intricado, duas solidões correm sempre uma para a outra. Só que, neste caso, não se trata de um "boy meets girI", mas de um "boy meets girl again". Afinal, também era assim em "The Philadelphia Story/ Casamento Escandaloso" (1940), de George Cukor, em que Cary Grant e Katharine Hepburn, após o falhanço da primeira união, faziam o seu périplo de aprendizagem, entre peripécias e obstáculos, até voltarem a ser um par - mais perfeito, como se presume.

"O Despertar da Mente" é, portanto, um filme sobre a segunda oportunidade, uma calorosa "love story". Seria injusto reservar para Kaufman todas as expensas de autorismo. Ao que parece, nas medidas a adoptar após a frustração de "Human Nature", Gondry incluiu a necessidade de ser mais infiel ao argumentista. É o que talvez explique que "O Despertar da Mente" não vá desembocar no cinismo e cepticismo habituais nos “scripts” de Kaufman. É o regresso à infância, enfim, que servirá de refúgio ao par de “O Despertar da Mente”, com Carrey a regredir em tamanho.
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Kathleen Gomes, Público, 21/5/04


SOBRE JIM CARREY

O homem de borracha é também um mestre do minimalismo subtil. Apogeu de um percurso singular, “O Despertar da Mente" é Jim Carrey como nunca o vimos: magnífico de despojamento.
Uma relação chega ao fim: ela resolve apagá-lo (literalmente) da memória; ele, corroído pela dor, decide fazer o mesmo; mas, a meio do processo, arrepende-se... É assim que corre o "boy meets girl" de "O Despertar da Mente". E se (como não podia deixar de ser) a premissa para este ensaio sobre o amor já é bizarra q.b., o mais surpreendente poderá ser mesmo a escolha do protagonista. É que no papel de Joel Barish, um homem tímido e calado, mais um exemplo das colecções ambulantes de inseguranças, temores e neuroses "made in" Kaufmanlandia, encontramos nem mais, nem menos do que... Jim Carrey.

Tímido e calado? Sim, não é bem o que se espera de quem ainda não há muito detinha o epíteto de "herdeiro de Jerry Lewis". Não que o canadiano não nos tivesse presenteado já com alguns golpes de rins - bem vistas as coisas, Carrey é capaz de ser uma das estrelas mais experimentais de Hollywood - mas em nenhuma das "reinvenções" anteriores tinha ousado ir tão longe como no filme de Gondry. Que é como quem diz, arriscar a sua composição mais vulnerável e minimal, apagando todas as marcas exteriores de uma "persona" excessiva.

Olhando para trás, "O Despertar da Mente" pode muito bem significar não só o apogeu como o corolário lógico de um percurso singular. No início (que não é bem o início, pois para trás ficavam dez anos de participações secundárias em filmes como "Peggy Sue Casou-se", de Francis Ford Coppola, ou "Earth Girls Are Easy", de Julien Temple), Carrey abanou o mundo com um humor físico tão particular quanto extremo: perante o frenesim lunático e a elasticidade de um corpo aparentemente nas tintas para as leis da plausibilidade, parecia estar o hipotético elo perdido entre humanos e "cartoons".

Foi assim em "Ace Ventura: Detective Animal" (onde se "rebobinava" a si próprio e falava pelo anus...), "A Máscara" (operando segundo a lógica de um "cartoon", o veiculo ideal para um desenho animado de carne e osso) ou "Doidos à Solta" (primeiro "opus" de Peter e Bobby Farrelly), um trio de êxitos comerciais que transformou o actor em supervedeta e fez de 1994 "o ano de Carrey". Os primeiros sinais de que o futuro não se faria apenas de comédias tontas e patetas alegres Vieram logo a Seguir, com "O Melga" (1996), sátira ácida de Ben Stiller, a revelar o lado "negro" de Carrey. De repente, sem perder a hiperactividade maníaca, o "clown" infantilizado deixava entrever sombras de uma perturbação inquietante, inscrevendo-se numa fascinante "terra de ninguém", próxima de uma espécie de burlesco malévolo.

Apesar do "flop" de bilheteira, estava aberto o caminho para Carrey poder continuar a frustrar expectativas dinamitando uma imagem que já se lhe colara como segunda pele. Passos seguintes, ainda mais decisivos: "The Truman Show" (1998) - fábula premonitória, por Peter Weir, sobre manipulação mediática, a prenunciar "Big Brothers" e outros horrores televisivos do género - e, principalmente, "Homem na Lua" (1999), de Milos Forman, extraordinário "biopic" dedicado a Andy Kaufman, génio iconoclasta da "stand-up comedy". Ao cruzarem comédia e drama, funcionaram como reforço de uma disponibilidade para correr riscos e tentar territórios inexplorados.

Como se Carrey se tivesse apercebido de que, por mais entusiasmante que pudesse ser (a sensação única de que, com ele, tudo é permitido e nada impossível), o "boneco" construído atingiria a saturação ao permanecer num mesmo nível "de superfície". Por isso, ofereceu-lhe uma segunda dimensão (até ai apenas vislumbrada em "O Melga"), acrescentando-lhe gravidade. Conclusão: dois "tours de force" magníficos, que lhe valeram um par de Globos de Ouro, embora a Academia se tenha teimosamente esquecido dele.

No entanto, todo esse virtuosismo assentava ainda em elementos característicos de um "carimbo" próprio, como a expressividade exagerada ou o esgar de fazer inveja a Jack Nicholson. No primeiro caso, reconhecíamos o "tonto" inocente e puro (afinal, era o único que não sabia que a sua vida não passava de um programa de TV) de outras aventuras. No segundo, estava bem patente a energia selvagem de um corpo quase irreal, em transfiguração permanente, multiplicando-se por um sem-número de identidades e máscaras.

Uma voracidade cimentada no pequeno ecrã, entre 1990 e 94, no "show" que o tornou conhecido, "In living Color", série afro-americana de comédia em "sketches" criada pelos irmãos Wayans, onde Carrey, "o tipo branco", compôs uma galeria de excêntricos (entre eles, um bombeiro horrivelmente desfigurado, cujos conselhos pouco recomendáveis provocaram a fúria de vários grupos de protecção civil).

Se o que se lhe seguiu - um regresso a material mais ligeiro, com melhores ("Ela, Eu e o Outro", em 2000, reencontro com os Farrelly) ou piores (o fraquinho "Bruce, O Todo-Poderoso", no ano passado) resultados - pareceu um retrocesso, pode ser visto agora como recuperação de fôlego, uma pausa antes de um gesto do mais puro radicalismo.

Em “O Despertar da Mente”, as transmutações de uma carreira são levadas às últimas consequências, com o actor a despir-se de tudo o que se associa à sua essência de “performer”. O Jim Carrey que conhecemos não está aqui: a “tomada” foi desligada e nos eu lugar surge uma figura triste e torturada, vestida em tons cinzentos, com barba por fazer e um olhar que alterna entre a angústia e o desespero.

Quem for à procura de caretas, contorções e espasmos ou dos tiques de um “número de actor”, descobrirá apenas uma comovente interioridade, feita de subtileza e contenção (o underacting” de certo modo ensaiado em três anos, em “The Majestic”, fantasia capriana assinada por Frank Darabont, mas que aí surgia algo tolhido pelo artificialismo do empreendimento). Mais do que nunca, após este assombroso acto de “desaparecimento”, importa exigir, de uma vez por todas, o Óscar.
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Vasco T. Menezes, Público, 21/5/04




Título Original: Eternal Sunshine of a Spotless Mind
Realização: Michel Gondry
Argumento: Charlie Kaufman
Interpretação: Jim Carrey, Kate Winslet, Mark Ruftalo
Direcção de Fotografia: Ellen Kuras
Montagem: Valdís Óskarsdóttir
Música: Jon Brion
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2004
Duração: 108’
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Filmar uma necrópole pode ser um manifesto poético? Pode: A CIDADE DOS MORTOS de Sérgio Tréfaut é 2ªf, IPJ, 21h30. Venha conferir!

Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€.

Estreou a 14 de Abril e já o estamos a dar. Espectáculo!...

SINOPSE
A Cidade dos Mortos, no Cairo, é a maior necrópole do mundo. Um milhão de pessoas vivem dentro do cemitério - em casas tumulares ou nos edifícios que cresceram em redor. Dentro do cemitério há de tudo: padarias, cafés, escolas para as crianças, teatros de fantoches... A Cidade dos Mortos estende-se por mais de dez quilómetros ao longo de uma auto-estrada, mas não deixa de ser uma aldeia, com mães à caça de um bom partido para as filhas, rapazes a correr atrás das raparigas, disputas entre vizinhos. Preparado e rodado ao longo de cinco anos (2004-2009), este filme (site) procura dar a ver a alma invisível do cemitério.



CRÍTICAS

Depois de uma realidade que lhe estava próxima (Os Lisboetas, 2004), Sérgio Tréfaut viaja até latitudes bem mais longínquas, mas não tão sombrias como se poderia supor: um lugar de morte cheio de vida, no Cairo. Foram cinco anos, oito viagens ao Cairo, meses seguidos a viver na cidade egípcia, lições de árabe, muitos obstáculos, muitos pedidos oficiais rejeitados, muita burocracia de repartição, muito "do you have a permit?", muitas boas intenções goradas, um passo à frente e logo dois atrás, perda de parte das rushes originais, algumas hesitações... e finalmente a decisão de filmar clandestinamente a maior necrópole do mundo, onde as moradas dos defuntos são também habitadas por vivos. Ao rodar o documentário A Cidade dos Mortos, que conquistou o grande prémio Documenta Madrid 2010 e passou por mais de uma dezena de festivais internacionais, Sérgio Trefaut pensou em desistir, parecia-lhe "um filme amaldiçoado". Afinal uma superstição que não existe entre o milhão de habitantes daquele cemitério, que se encheu de famílias, e escolas, e mercados, e cafés, e disputas entre vizinhos, e teatros de fantoches, e namoros, e casamentos, e música, e crianças que jogam à bola usando jazigos como balizas... E vida, em suma.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão



Os habitantes de um cemitério do Cairo, que vivem juntos dos vermes e da prodridão, contam, e assim se contam: "a nossa cidade".

Serge Tréfaut contou já em entrevistas a aventura que foi a rodagem deste documentário sobre uma cidade paralela que se formou dentro de uma cidade (o Cairo, que circula à volta e não querendo reparar). É uma cidade entre túmulos ou dentro de túmulos em que se monta uma casa que várias vezes é preciso desmontar por causa de um funeral - e a seguir volta a pôr-se a mesa ou a fazer a cama sobre o local onde jaz, novinho em folha, o morto. É uma cidade paralela: o cemitério do Cairo.

Devido às idas e vindas (Portugal-Egipto) espaçadas no tempo, contou o realizador, essa "cidade" parecia resistir a deixar-se fixar e à sua singularidade no documentário; e as figuras não conseguiam ascender à condição de personagens. Tréfaut lançou, então, mão de um artifício - a voz "off " de um coveiro. Sabemos como a voz "off" costuma ser bengala nos documentários, mas aqui ela revelou-se preciosa: enche "A Cidade dos Mortos" de espírito(s), do espírito de um lugar, algo que, filtrado pelo olhar de Tréfaut, aparece com uma energia pícara (e às vezes até algo próximo de um certo neo-realismo fantasista: a sequência em que o circo chega à cidade, ao cemitério, podia vir de "La Strada", de Fellini). E visivelmente serena e orgulhosa, como nas cenas de um casamento que o realizador decidiu autonomizar da longa-metragem, porque corria o risco de ocupar nela demasiado espaço, e funciona como um bónus na sessão de cinema: "Waiting for Paradise".

Os habitantes deste cemitério, que vivem próximos dos vermes e da podridão, contam, e assim se contam: "a nossa cidade". Sempre entre a vida e a morte, é algo que se tacteia, sem se fixar. "A Cidade dos Mortos" mantém sempre a dualidade como horizonte - é uma forma de se manter sempre ao alcance dos espíritos -, não forçando nunca um duelo ou uma vitória: uma espécie de toca-e-foge que vai da podridão da carne, do cheiro das "ruas", para a corrida hormonal dos rapazes que fazem o "cruising" atrás das raparigas.
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Vasco Câmara, Público



ENTREVISTAS AO REALIZADOR

Não nos mostra um único funeral neste cemitério cheio de vida.
A morte não é ver um cadáver a apodrecer; o problema está na relação que temos com aqueles que já não estão connosco. O que gosto mais, passado algum tempo, é a questão da espiritualidade, que não é óbvia. O que transmito no filme é um amor das pessoa pelas pessoas, um carinho pela vida, e não mais que isso. Acho maravilhoso que aqueles habitantes que têm um contacto diário com a morte e com aquilo que está na origem das fraudes acerca da perda da espiritualidade e da religião tenham uma visão tão serena do universo que causa a fraude. Lidam com a morte muito frente a frente com a vida.

Como foi recebido nesta cidade?
Há todo o lado do Estado que é muito complicado. É um filme clandestino, que nunca obteria permissão para ser filmado. Qualquer pessoa que ponha uma câmara na rua do Cairo precisa de autorização. Não houve suborno, de modo algum, mas tínhamos uma conversa amena quando nos abordavam. Essa proibição de rodagem tem consequências nas próprias pessoas. Filmei apenas as que me autorizaram, com quem dialoguei bastante tempo e compreenderam o meu propósito. Têm uma enorme consciência dos abusos que são feitos pelas televisões em fazer daquilo um antro de miséria.

Não a viu como tal?
Não é uma coisa terrível. No Cairo, logo ali ao lado, há o bairro dos habitantes do lixo. Depois tem outros bairros construídos sem condições, com prédios inacabados, onde morria imensa gente. A Cidade dos Mortos tem uma qualidade de vida muito superior. Acontece de tudo, é divertido e desmistificador por isso.

Como fez a ponte com essas pessoas? Aprendeu árabe?
Comecei por aprender árabe. Não chega, leva muito tempo. Cheguei ao Cairo pela primeira vez em Novembro de 2004 e fiz várias viagens até começar a filmar em Agosto de 2007. Tentei relacionar-me por vários caminhos. São vários cemitérios e redes enormes. Almocei e jantei em casa daquelas pessoas que entram no filme.

Chegou a dormir no cemitério?
Dormi uma noite numa casa. Convidaram-me, mas era complicado para elas. Uma jornalista italiana fez daquilo um caso extraordinário porque transformou um túmulo num bed&breakfast. Foi para Itália e quando voltou chegou à fronteira e não entrou mais. Dentro do período do Mubarack não se podia brincar com o fogo. Havia locais onde podíamos ficar e outros não. Depois disseram-me que era melhor ficar no hotel e assim fiz, mas comia e vivia todos os dias lá.

Gostou da experiência?
Totalmente. Sinceramente se tivesse que escolher um lugar para morar no Cairo era aqui, não tenho a menor dúvida. As pessoas são simpáticas, tem vida. Os meus amigos no Cairo estão lá.

Eles já viram o filme?
Vão vê-lo proximamente. Vou ao Cairo nos próximos meses fazer uma apresentação. O que acontece ao passar o filme no Egipto, e a Al Jazeera pede-mo há muito tempo, é que há uma parte que não quero passar na televisão porque fiz um compromisso com eles. Depois de verem talvez autorizem.

Qual é a cena?
A dos rapazes no carro. Não sei se os pais, as mães e as namoradas vão achar muita graça àquela conversa. É um pouco de mais. Tirando isso, já foi convidado para ser apresentado na grande biblioteca de Alexandria.

Pediu-lhes que fossem espontâneos?
Tudo é uma mistura de construir e espontâneo. Neste caso queria filmá-los no carro. Eles deram voltas ao cemitério e ia uma câmara atrás. Eu nem estava no carro. As conversas dele são o mais autêntico possível. Tal como a conversa da casamenteira, é o mais genuíno possível.

Como chega a esta história?
Já se fez muita reportagem mas eu não conhecia, tal como muita gente. Um amigo azucrinou-me para lá ir. Também achava tão esquisito que pedi para me explicar melhor. Peguei no avião e fui. Quando acordei no hotel na primeira manhã estava a 500 metros do cemitério. É muito intrigante, visualmente não se compreende que é um cemitério, é como uma aldeia. Ser intrigante é um desafio.

Saiu-lhe muito dinheiro do bolso?
Do bolso salvo seja, porque felizmente sou produtor também e consigo articular as coisas. Não ganhei dinheiro, e os documentaristas não ganham dinheiro, é muito árduo, mas sobrevive-se. O orçamento total deve rondar os 150 mil euros, feita com muitas equipas e várias viagens. A última vez estive lá três meses. Gerir 70 a 80 horas de material pede muitas horas de montagem.

Tem retratado muito os fenómenos da imigração. Aqui não deixa de filmar um certo espírito ambulante.
Talvez. Há o lado da história, um certo cinema antropológico. Muitos vão fazer filmes sabe-se lá onde, como Joris Ivens, um dos meus mestres. Há pessoas que são capazes de experimentar isso sem aprender a língua ou sem perder muito tempo, e fazem filmes muito bons, não estou a fazer crítica nenhuma. Mas eu não sou capaz. Preciso de mergulhar naquele universo e criar relações com as pessoas. Existiu essa cumplicidade que levou muito tempo e custou muito.

Teve problemas depois da conclusão?
Não. O Egipto é um país onde tudo pode ser e tudo não pode ser. Para mim é importante mostrar lá o filme porque gostava que possibilitasse uma quase reconciliação catártica. Ultrapassando o tabu de viver com os mortos, por decisão de Nasser, quando as cidades do Mar Vermelho foram bombardeadas, abrindo esse precedente, os milhares chegaram ao milhão. Os números variam entre os 700 mil e 1,7 milhões de habitantes.

(...) No Cairo trabalhou clandestinamente. Arriscaria fazer algo parecido em Portugal para levar algo avante?
No Cairo não autorizam e faz-se. Aqui não se entra facilmente em muita coisa. Quando o "Lisboetas" saiu fui convocado pelo SEF para uma sessão de branqueamento. Os poucos minutos que se mostram no SEF levaram meses a conseguir autorização, e queriam que fôssemos filmar os ingleses, franceses. Não queríamos isso. Diziam que estávamos a perturbar os pobres coitados que lá estavam, proibiram-nos de filmar os funcionários. Depois já podia filmar onde quisesse. Então pedi-lhes para me autorizarem a filmar nos locais onde se fazem os interrogatórios nos aeroportos. Nunca recebi resposta.

Continua a achar que o documentário está reservado ao espaço da memória?
Há dificuldades a nível das autorizações e dos financiamentos. A televisão quer um arquivo morto, não quer retratar a realidade contemporânea, reflectir o nosso mundo. Há uns anos tive um projecto que apresentei ao Jorge Weimans. O filme seria 15 dias com Alberto João Jardim, que vende no mundo inteiro, como Berlusconi. "Ah, nem pensar nisso". O ICA e a Gulbenkian também incentivam a criatividade mas preocupam-se muito mais em fazer um arquivo morto. Uma vez queriam que fizesse uma série de filmes sobre artistas. Eu pago para que não façam. Os artistas têm galerias, eles que se desemerdem a fazer os seus filmes.
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Maria Ramos Silva, Jornal I



O primeiro elemento importante de “A Cidade dos Mortos” é a revelação de uma realidade insólita. Como é que a descobriu?
Aquela realidade não é desconhecida – até vem em guias turísticos. O que se passou foi que várias pessoas me desafiaram a ir filmá-la e durante muito tempo não lhes dei atenção, primeiro porque era longe e depois por me parecer tão gigante que era pouco crível. Até que um dia fui ver com os meus próprios olhos e foi imediato. Pensei: é um desafio que quero tentar. Em milhões de aspectos: a língua, a cultura...

Como é que um documentarista se aproxima daquela realidade?
É um problema que se coloca em qualquer filme. Quando fiz “Lisboetas” também tive de encontrar soluções para entrar em comunidades que não têm acesso fácil e fui pela via das comunidades religiosas, das associações. Neste caso, eu sabia que várias pessoas tinham tentado filmar naquele local e só tinham conseguido ‘roubar’ imagens durante uma reportagem de dois dias. Não é o meu estilo, eu tenho de conseguir intimidade e relação com as pessoas, que, penso eu, o filme mostra que existem. Tentei entrar nas redes, quer dizer, os coveiros, os grupos religiosos, as mesquitas, as escolas, os cafés... Veja-se, por exemplo, os mercados: eles têm os seus próprios guardiões. Toda a gente diz para não filmar os mercados, que é perigosíssimo e acaba-se sendo assaltado. Só que, ao fim de algum tempo, é o próprio guardião daquele espaço que começa a tomar conta de nós.

O filme foi feito exactamente quando?
Fui pela primeira vez ao Cairo em Novembro de 2004, as filmagens foram realizadas ente Agosto de 2007 e 2009, em várias fases. Antes de começar a filmar fiz várias viagens e fui estabelecendo relações, almocei em casa de coveiros durante semanas, fui arranjando assistentes egípcios. É preciso dizer que, na fase de financiamento do filme, muitos produtores internacionais mostravam interesse, mas diziam: “Só me meto numa coisa no Egipto com autorizações”. Porque o Egipto tem uma péssima reputação. Tentei, por todos os meios, obter as autorizações para filmar, coloquei vários embaixadores de vários países a escreverem cartas a ministros – e nada. Tive de fazer um filme clandestino. “A Cidade dos Mortos” é um filme clandestino. De vez em quando a polícia aparecia e nós fazíamos de conta que íamos visitar alguém...

Mas porquê clandestino?
Durante o regime de Mubarak, havia uma obsessão pela autorização de filmar. Era a primeira coisa que uma peixeira perguntaria, num mercado, se a estivéssemos a filmar. E a polícia tinha direito de parar as filmagens imediatamente. O regime queria que se falasse das pirâmides, dos monumentos, mas da cidade dos mortos não. E as pessoas na rua tinham medo de falar para uma câmara. Conquistar a confiança foi um processo difícil.

E por isso não filma nenhum funeral?
Não. É por convicção pessoal. Comecei a filmar seis meses depois de a minha mãe morrer e acho que ligar uma câmara no enterro de uma pessoa é uma coisa intrusiva, que não se faz. Era fácil, pagando – os pobres aceitam. Mas mostrei como eram os túmulos, não querendo cair num tom demasiado explicativo, National Geographic...O que eu queria era dar uma dimensão espiritual daquele lugar e daquelas pessoas. E, sobretudo, ultrapassar um tabu que não é só ocidental, pois no Egipto também existe. Para os cairotas, aquilo é uma mancha negra, uma vergonha, foi preciso muito tempo até que se admitisse que era um lugar que existia.

E existe desde quando?
No filme, o narrador explica que começou com o êxodo rural, o Cairo passou de 4 para 20 milhões de habitantes nos anos 60/70. Existe uma tradição antiga, no Egipto, de as famílias virem visitar os mortos, trazerem uma tenda ou construírem uma casinha e virem habitar durante uma semana com os mortos. Inicialmente, aquilo eram habitações temporárias que foram ocupadas,. Mas é apenas uma gota de água face aos subúrbios clandestinos e mal construídos do Cairo, onde a qualidade de vida é muitas vezes pior do que no cemitério. Há outros cemitérios habitados no mundo, nas Filipinas e em El Salvador. No Egipto tem uma característica especial por causa das tradições faraónicas e pré-faraónicas de construir edifícios para os mortos lá viverem. Aquele cemitério tem uma cidade inferior com os subterrâneos onde as pessoas estão lado a lado umas das outras.

Há planos do filme em que nem parece que estamos num cemitério...
A Inês Gonçalves, que fez a fotografia num período do filme, disse-me.” Sérgio, isto é impossível, uma pessoa chega aqui e por nada deste mundo acredita que é um cemitério.” Mas é. Cada casota daquelas é uma casota funerária, cada uma delas tem X mortos enterrados. Se mostrasse aquela realidade de um modo estritamente observacional não se perceberia nada.

Essa é uma das questões que o filme levanta: ao contrário de que acontecia nos seus outros trabalhos, em “a Cidade dos Mortos” o olhar é exterior, não consegue cumplicidade com as pessoas que mostra...
Deixe-me invocar em minha defesa o testemunho de Samir Farid, que é o papa da crítica egípcia e que me disse que nunca foi feito um filme sobre aquela realidade, nem por estrangeiros nem por egípcios. Conseguir que as pessoas no cemitério se abrissem era um dia sim e um dia não – por causa do medo. Mas tive dois ou três aliados de pedra e cal que até tentavam convencer os outros.

Um filme como este tem potencialidade comerciais?
Já circulou em 15 festivais, foi vendido para a televisão sueca, finlandesa, espanhola, o ARTE, mas do ponto de vista comercial não é significativo. Do ponto de vista de comunicação e de divulgação é. A própria Al Jazeera quer o filme e estamos a negociar, porque há uma cena que não autorizo que seja mostrada no Egipto – a cena com os jovens no carro. Foi um acordo que fiz com eles: deixavam-me filmar desde que não fosse mostrado lá. Aquelas histórias das malandrices que podem fazer nos túmulos não é um assunto que queiram que passe na televisão. E nas universidades que têm estudos islâmicos o filme está por todo o lado, dos Estados Unidos a França e a Beirute...
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



NOTAS SOBRE A RODAGEM - SÉRGIO TRÉFAUT

Fazer um filme é como travar uma guerra. «A cidade dos Mortos» foi o filme mais difícil que produzi e realizei até hoje. Os desafios e obstáculos diários foram tantos, sobre tantas frentes de batalha, que eu poderia passar dias a contar aventuras surreais… Mas, em jeito de introdução, de uma forma esquemática, aqui ficam as principais frentes de uma longa guerra…

1º OBSTÁCULO: A DISTÂNCIA
Depois de ter concluído alguns documentários sobre universos que me eram próximos (Outro País, Fleurette, Lisboetas), decidi que era o momento certo para tentar o que muitos outros tinham feito ao longo da vida: descobrir e filmar realidades distantes. Mas não parti procurando me enganar a mim próprio. Fui aos cemitérios do Cairo para falar daquilo que me interessa: da relação dos homens com a vida e com a morte, de pessoas de quem gosto e que admiro (e que podem viver em qualquer latitude), da alegria e do entusiasmo que podem ter pela vida, em condições adversas.

2º OBSTÁCULO: A LÍNGUA E OS REFERENTES
Em 2004, quando arranquei este projecto, não falava uma palavra de árabe e nunca tinha vivido em países de cultura muçulmana. Acredito que o modo de pensar de um grupo, seja ele qual for, é indissociável da gramática, da estrutura da língua, da musicalidade, do léxico e hábitos de comunicação. Fui oito vezes ao Cairo, vivi vários meses seguidos na cidade, tive aulas de árabe, dei aulas de documentário, transitei entre várias classes sociais, rodeei-me de egípcios. O lugar onde passei mais tempo foi, naturalmente, no cemitério. Hoje creio ter esquecido o pouco que tinha aprendido da língua, que à época me permitia seguir partes de uma conversa e dar indicações para a rodagem. Em contrapartida, ainda sinto orgulho por conhecer a vida quotidiana nos cemitérios melhor do que a maioria dos egípcios - que só vão lá para funerais e celebrações.
Além da língua, o obstáculo cultural é enorme. Uma pessoa não tem como chegar a um sítio destes e «querer filmar». É todo um longuíssimo e complicado processo.

3º OBSTÁCULO: AUTORIZAÇÕES E CUMPLICIDADES
A primeira pergunta que nos fazem quando falamos em filmar no Cairo é «Do you have a permit?». No Egipto, o sistema burocrático e as autorizações para qualquer coisa são um inferno. Ingenuamente, pensei que as minhas «boas intenções», ou o meu respeito pelas pessoas, longe do sensacionalismo, poderiam facilitar. Afinal eu não trabalhava para uma televisão que vende miséria social. Puro engano. No início, passei semanas ridículas, arrastando-me de repartição em repartição para receber sempre informações contraditórias e inconclusivas. O Embaixador de Portugal, muito simpático e diligente, chegou a escrever cartas a pelo menos três ministros egípcios para apresentar o meu projecto e solicitar autorizações. O Embaixador nunca recebeu qualquer resposta. Esse silêncio, muito egípcio, foi bastante melhor do que uma recusa. Mais tarde, também tive aconselhamento diplomático francês e espanhol. Cheguei a fazer uma pré-selecção de potenciais co-produtores locais, todos eles entusiasmados com a hipótese de entrarem neste projecto e serem o parceiro que legalizaria tudo no Egipto. Nada deu certo. Finalmente abri os olhos e percebi que nunca poderia obter uma autorização para este filme. As autoridades queriam documentários sobre pirâmides e faraós, não sobre cemitérios habitados a respeito dos quais pesam os maiores preconceitos. Além disso, qualquer produtor local que se viesse a envolver corria o risco, durante o reino de Mubarack, de ver a sua produtora fechada.
Após várias tentativas frustradas, voltei ao Cairo, pela quarta vez, acompanhado de um amigo câmara italiano, tão louco quanto eu, e decidi que tinha de conseguir filmar. Em poucos dias fomos adoptados por uma família de coveiros e penetrámos finalmente no universo do cemitério. Nessa viagem filmámos, por exemplo, a travessia da caravana de fantoches no Cemitério Sul. Eu já via aquela caravana de fantoches desde a minha primeira viagem e, pelo menos isso, eu não podia perder! Claro que na primeira noite em que filmávamos uma festa (um mulid), fomos interpelados e proibidos de filmar pela polícia. Mas no dia seguinte recomeçámos. Esse era o ritmo da nossa filmagem. Uma permanente guerra. E passo por cima de milhares de episódios para poder transmitir apenas a ideia de conjunto.
Quando uma pessoa vai à guerra tem necessariamente de encontrar aliados. Nesse campo, o meu assistente de realização, Mohamed Siam, foi exemplar no incansável trabalho de estabelecer uma rede de contactos, visitando diariamente pessoas que viviam a 10 quilómetros umas das outras. Dentro desta rede, havia pessoas que, elas próprias, eram a porta para toda uma comunidade: coveiros, guardiões de cemitérios, sheiks, donos de cafés, guardas do mercado, etc. Mesmo assim, todos os dias sentíamos que a guerra recomeçava. A conquista das personagens era permanente. Às vezes, aqueles em casa de quem almoçávamos num dia, no dia seguinte já tinham receio de ser filmados. As reportagens feitas por televisões sensacionalistas criaram enormes dificuldades ao acesso a lugares como este.

4º OBSTÁCULO: CONCEITO E DRAMATURGIA
A realidade visual do lugar, aos olhos de um ocidental, não lembra em nada um cemitério. Ao chegar ao Cairo, a fotógrafa Inês Gonçalves disse-me imediatamente: ninguém vai perceber que isto é um cemitério! E não nos passava pela cabeça estar a filmar enterros às escondidas. Tinha demasiado respeito pelas famílias para ligar uma câmara no meio de um funeral. Todas aquelas casas tumulares e mausoléus em ruas de terra batida, pareciam de facto uma aldeia deserta de filme mexicano ou de far-west. Para não falar dos mercados apinhados de gente e zona de lojas…. Das ruas cheias de barbeiros…
Assim, percebi que com um filme estritamente observacional sobre o lugar (essa era a minha primeira intenção) nunca chegaria a bom porto e também não conseguiria transmitir aquela diversidade. Passei à segunda hipótese: um filme que seguiria os preparativos de um casal de noivos para o casamento, que decorreria dentro do cemitério e alteraria a vida de dois jovens. Mas, após ano e meio de espera de uma boda interminavelmente adiada, os jovens não chegaram a casar em tempo. Pelo meio do caminho, fui filmando alguns casamentos, para tentar preparar-me e perceber como era… Passei à terceira hipótese: um filme em que alguns habitantes do cemitério, por quem eu tinha maior fascínio, falavam-me do lugar. Por último, hipótese final, percebi que a tudo isto faltava a voz mágica de um coveiro, que falasse com a propriedade de quem sempre viveu ali e que amava aquele lugar mais do que todos os outros.

5º OBSTÁCULO: AS QUESTÕES TÉCNICAS
As câmaras com que filmei estavam quase sempre estragadas, desfocavam a imagem, ou mais tarde eram usadas por uma directora de fotografia habituada a rodar em película, que considerava a câmara de vídeo quase como um brinquedo e, para meu desespero, não colocava o olho no visor… Assim, uma parte muito importante dos rushes deste filme têm problemas de definição. Esse problema veio ainda a agravar-se quando se perderam inesperadamente uma parte dos originais do filme, e apenas ficou o material digitalizado em final cut. Parecia um filme amaldiçoado. Por vezes pensei em desistir, como tantos realizadores que tentaram filmar esses cemitérios. Mas já tinha ido longe demais. E os contratos de produção, o tempo e a energia investidos, obrigavam-me a finalizar um trabalho. Se hoje levo o filme às salas de cinema é sobretudo pelo interesse antropológico, humano e filosófico. Foi esse mesmo interesse, acredito, que permitiu ao filme ser exibido em vários festivais internacionais e televisões.




Realização: Sérgio Tréfaut
Montagem: Pedro Marques
Narração: Ashraf Fakhouri
Fotografia: Nancy Abdel-Fattah, Inês Gonçalves, Carlo Lo Giudice
Som: Sameh Gamal
Origem: Portugal
Ano: 2010
Duração 63’
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