DIA 22 DE
JANEIRO
CÉSAR DEVE
MORRER, Paolo e Vittorio Taviani,
Itália, 2012, 76’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Realização: Paolo e
Vittorio Taviani
Ideia Original e
Argumento: Paolo e Vittorio Taviani
Com a Colaboração de
Fabio Cavalli
Fotografia: Simone
Zampagni
Montagem: Roberto
Perpignani
Música: Giuliano
Taviani , Carmelo Travia ,
Intrepretação: Cosimo
Rega, Salvatore Striano, Giovanni Arcuri,
Antonio Frasca, Juan Dario Bonetti, Vittorio Parrella, Rosario Majorana, Vincenzo
Gallo
Origem:
Itália
Ano:
2012
Duração: 76’
SINOPSE
Uma sala de teatro na
prisão de Rebibbia em Roma. Uma encenação de Júlio César de Shakespeare chega
ao fim do meio de grandes aplausos. As luzes baixam e os actores, que se
transformam novamente em presos, são acompanhados às suas celas.
NOTA
DOS REALIZADORES
Uma grande amiga
relatou-nos uma experiência teatral que tinha vivido algumas noites antes.
Disse-nos que tinha chorado, coisa que não lhe acontecia há muitos anos. Fomos
a esse teatro no interior da prisão de Rebibbia, em Roma, na Ala de Alta
Segurança.
Após passarmos por uma
séries de portões e zonas de isolamento, chegámos junto de um palco onde
estavam cerca de vinte prisioneiros, alguns deles a cumprir penas de prisão
perpétua, a recitar a Divina Comédia de Dante. Tinham seleccionado alguns
cantos do “Inferno” e estavam naquele momento a reviver o sofrimento e o
tormento de Paolo e Francesca, do Conde Ugolino, de Ulisses – todos eles no
inferno da sua própria prisão...
Cada um falava no seu
próprio dialecto, tecendo, ocasionalmente, paralelismos entre a história
poética evocada pelos cantos e as suas próprias vidas. Lembrámo-nos das
palavras e das lágrimas da nossa amiga. Sentimos a necessidade de descobrir,
através de um filme, como a beleza dos seus desempenhos nascia daquelas celas
prisionais, através daqueles marginais que vivem tão distantes da cultura.
Sugerimos Júlio César
de Shakespeare ao Fabio Cavalli, o encenador que trabalha com os prisioneiros.
Levámos o projecto a
cabo com a colaboração dos presos, filmando nas suas celas, no pátio da prisão,
nos recantos da Ala de Alta Segurança e, por fim, no palco. Tentámos contrastar
a obscuridade das suas vidas de prisioneiros com a força poética das emoções
evocadas por Shakespeare – amizade e traição, o assassínio e a angústia das
escolhas difíceis, o preço do poder e da verdade. Ir tão longe com uma obra
destas significa também examinarmo-nos, sobretudo quando uma pessoa tem de
abandonar o palco e regressar à clausura da sua cela.
Paolo e Vittorio Taviani
CRÍTICA:
Quando os irmãos Taviani se dirigiram à
prisão de Rebibbia para assistir a uma representação pelo grupo de teatro dos
detidos nunca pensaram defrontar aquela realidade. Rebibbia não é uma prisão
qualquer: é onde, numa ala de alta segurança, estão os grandes assassinos, os capi da Máfia ou da Camorra, com longas
penas por crimes graves. “Foi uma nossa amiga que nos falou daquele grupo de
teatro e nos levou lá”, disse-me Paolo Taviani numa breve conversa, no domingo
passado, em Lisboa. “E tive uma das maiores emoções da minha vida. Havia um
recluso que lia versos da “Divina Comédia' de Dante. Era o episódio de Paolo e
Francesca, os dois amantes condenados ao Inferno, o que torna o seu amor
impossível. E, antes de ler, voltou-se para o público e disse: 'Vocês julgam
conhecer bem estes versos, até os estudaram na escola, mas não. Só nós que aqui
estamos condenados a longas penas é que percebemos completamente a dor de que
fala Dante. Porque nós estamos no Inferno, nós sabemos o que é ter sido
separados das nossas mulheres e nunca mais lhes termos podido tocar.” E começou
_ a dizer os versos, mas não como Dante os escreveu, disse-os traduzidos no
dialeto de Nápoles, a verdadeira língua materna daquele homem. Foi um choque
para nós, que, como Dante, somos toscanos. Mas depois, pouco a pouco, a
harmonia, a música do dialeto napolitano, a paixão com que era lido fizeram-nos
redescobrir Dante. E ficámos emocionados até às lágrimas. Foi uma coisa tão
forte que decidimos que era preciso comunicar essa emoção. Nem sequer sabíamos
que tipo de filme queríamos fazer - mas queríamos muito fazê-lo. Sentimo-nos
regressar aos tempos de juventude, trabalhar quase sem dinheiro, embarcar numa
aventura voluntarista que nem sabíamos onde ia chegar.”
Escolheram então montar um filme em volta de
“Júlio César”, de Shakespeare. Porquê essa peça? “Primeiro porque se passa em
Roma, é uma história italiana. Depois porque os lugares que eram referidos,
eles conheciam-nos, tudo se tornava mais espontâneo.
E, depois, a peça fala de um tirano e na
decisão de o matar, de traição, de amizade, de engano, com personagens que lhes
podiam corresponder, ao ponto de, num certo momento, um dos presos me ter dito
que Shakespeare era um amigo que há quinhentos anos tinha escrito tragédias que
eles tinham vivido. E até as palavras lhes são familiares. Quando Marco António,
na célebre tirada na cena dos funerais, diz que Brutus era un uomo d’onore, esse é o termo com que os membros da Camorra se
designam entre si”.
O processo foi baseado na determinação e na
paciência, não é fácil criar laços com aquele tipo de condenados. Paolo conta
mesmo que, quando se tratou de estabelecer o elenco, foi necessário definir
relações de poder. “Houve um momento em que eu disse a um deles que ia fazer de
Octávio e ele disse-me que não. Mas porquê? Porque nós decidimos que quem o faz
é fulano. Foi preciso dizer-lhes que no filme éramos nós quem mandava. Queremos
a vossa colaboração, as vossas opiniões, mas depois o boss é só um, neste caso até somos dois, Paolo e Vittorio Taviani.
O cinema é assim. Então o ator que faz de Cássio voltou-se para nós e disse:
“Vocês têm de perceber com quem estão a falar; eu, por exemplo, já fiz três
órfãos, referindo-se aos três assassínios por que estava condenado. Respondemos
que sabíamos perfeitamente onde estávamos e quem eram eles. Mas que ou aceitavam
as regras ou, então, adeus. E fomo-nos embora. Foram tempos desesperantes,
pensámos que tinha ido tudo por água abaixo. Mas quatro dias depois
telefonaram-nos da prisão a dizer que os detidos queriam outro encontro. Fomos
recebidos com um aplauso. E aquele ator, que era um capo da Máfia, disse-nos: Aceitamos. Mas só aceitamos por uma
razão. É que quando falara, connosco no outro dia olharam-nos de frente, nos
olhos. A maior parte das pessoas não faz isso, baixa os olhos. Vocês merecem
ser capi. E a partir daquele momento
entregam-se por completo, nunca mais houve qualquer problema.”
“César Deve Morrer” é um filme que parece
seguir o processo de encenação de uma peça teatral no ambiente especial de uma
cadeia. Nunca o espectador se esquece disso, não há processo de sublimação pela
arte ou de redenção naquelas imagens, simplesmente o desfibrar de sentimentos,
a modulação humana de uma tragédia literárias muito conhecida com as histórias
de vida de quem a está a encarnar. Todavia, nada é improvisado, todos os diálogos
foram escritos e reproduzidos. “ Mas são todos verdadeiros, este é um filme em
que tudo é verdade e tudo é falso. Todas as histórias e as situações que os
reclusos contam no filme foram-nos contadas por eles antes, aconteceram”,
precisa Paolo Taviani. Depois de uma escolha, colocadas na boca deste ou
daquele no momento que pareceu dramaticamente justo, deram a “César Deve
Morrer” a peculiar sensação de que há uma possante realidade por baixo da
ficção – como se existissem várias camadas, vários extratos na sedimentação da
nossa aproximação ao filme. Quando Brutus grita que matou César, sentimos nos
olhos do intérprete que ele sabe o que isso é, que viveu o gesto do assassínio.
Esse facto dá a este filme uma enorme capacidade de perturbação, porque se
trata de algo na confluência entre o que procura um documentarista – a verdade
do real – e o que busca o ficcionista – a credibilidade do fingimento. E nós
sabemos. E isso é intensíssimo.
“César Deve Morrer” venceu o Festival de
Berlim deste ano, foi vendido por dezenas de países, está a estrear-se um pouco
por todo o mundo. Um impulso invulgar na carreira de uma dupla de cineastas
que, Paolo com 80 e Vittorio com 83, recebem, por estes dias, convites e
propostas de todo o lado.
Jorge
Leitão Ramos, Expresso, 3/11/12
ENTREVISTA A PAOLO E VITTORIO TAVIANI
Contem-nos
a história deste projecto.
Aconteceu
tudo por acaso, como com o nosso filme anterior, “Padre Padrone”, quando
conhecemos o linguista Gavino Ledda, um pastor nascido na Sardenha. Desta vez –
graças a uma conversa telefónica com uma grande amiga nossa – estabelecemos
contacto com um universo que só conhecíamos através dos filmes americanos, apesar
de Rebibbia, uma prisão nos arredores de Roma, ser bastante diferente daquelas
que víramos no ecrã. No entanto, quando a visitámos pela primeira vez, o
ambiente pesado de uma vida atrás das grades abriu alas à energia e à agitação
de um acontecimento cultural e poético: os prisioneiros estavam a recitar
alguns dos cantos de “Inferno” de Dante. Mais tarde, ficámos a saber que eram
presos da Ala de Alta Segurança, na sua maioria ligados ao crime organizado -
Mafia, Camorra, Ndrangheta – e condenados, na maior parte, a prisão perpétua.
As suas interpretações instintivas eram instigadas pela necessidade dramática
de contar a verdade e canalizadas pelo trabalho firme e regular do seu
encenador “interno”, Fabio Cavalli. Quando saímos de Rebibbia, percebemos
imediatamente que queríamos saber mais acerca deles e da sua situação; fizemos,
então, uma segunda visita e perguntámos-lhes se queriam trabalhar numa
adaptação cinematográfica de Júlio César de William Shakespeare. A resposta
imediata de Fabio e dos prisioneiros foi inequívoca: “Vamos já começar!”
Os
actores que vemos no filme são todos prisioneiros? E no que respeita às
audições, aconteceram tal e qual vemos no filme?
Os
actores que se vêem no nosso filme são todos presos da Ala de Alta Segurança.
Para sermos mais precisos, gostaríamos de acrescentar que o Salvatore “Zazà”
Striano – que interpreta o papel de Bruto – já cumpriu a sua pena na prisão de
Rebibbia. Condenado inicialmente a 14 anos e 8 meses, cumpriu 6 anos e 10
meses. É agora um cidadão livre, depois de uma amnistia geral; o mesmo se
aplica ao Estratão. O único “estranho” é um dos professores de teatro da
prisão, o Maurilio Giaffreda. No que respeita às audições, há alguns anos que
adoptámos um método bastante simples mas muito eficaz:
pedimos
aos actores que se identifiquem, como se estivessem a ser interrogados por
agentes alfandegários; depois
pedimos-lhes que se despeçam de um ente querido, e explicamos que, da primeira
vez, têm de mostrar sofrimento e, da segunda, raiva. Neste caso, fizemos uma
primeira escolha de actores e o Fabio Cavalli mostrou-nos as fotografias de
alguns presos que tinha já seleccionado e que acabaram por ser escolhidos sem
grande trabalho. Quanto aos outros, durante a audição dissemos-lhes que se
quisessem, e por uma questão de privacidade, podiam dar-nos nomes falsos;
ficámos muito impressionados por todos eles terem inistido em partilhar os seus
nomes verdadeiros, o nome dos seus pais e os seus locais de nascimento. Após
algum tempo, chegámos à conclusão que para eles o filme poderia ser uma forma
de lembrar às pessoas que vivem no exterior que eles estavam a levar as suas vidas
no silêncio da prisão.
Foi
só depois de os vermos passar à frente da câmara, um por um, que acabámos por
conhecê-los e compreendemos a realidade do seu sofrimento, a sua natureza
delirante e colérica.
Seguiram
o argumento de perto ou recorreram à improvisação, como se estivessem a filmar
um
documentário?
Seguimos
o argumento. Escrevemos um argumento como noutros filmes; depois, como é
normal, quando começámos a filmar, com a câmara ligada e os actores a dizer o
texto, o argumento tornou-se numa coisa diferente, também por causa dos locais
de filmagem, da iluminação e da falta de luz.
Com o
devido respeito por Shakespeare (que sempre foi para nós um pai, um irmão e
depois – à medida que envelhecemos – um filho), apoderámo-nos do seu Júlio
César, desmontámo-lo e reconstruimo-lo. Claro que mantivemos o espírito da
tragédia original, assim como a narrativa, mas, ao mesmo tempo,
simplificámo-la, afastando-a um pouco do ritmo das encenações clássicas.
Tentámos construir esse organismo audiovisual a que chamamos filme, que é o
filho degenerado de todas as artes que antecederam o cinema. Um filho degenerado
que Shakespeare teria, certamente, adorado! O Fabio Cavalli foi extremamente
prestável ao traduzir todas as falas para o calão do dialecto dos vários
prisioneiros-actores. Eles perceberam qual era a nossa intenção e deram-nos
interpretações inesquecíveis com vários graus de emoção e entrega. Graças a eles,
às várias verdades que expressaram e às suas interpretações inesperadas, o
argumento evoluiu. Para ser ainda mais claro, gostaria de dar um exemplo: o
adivinho, o “Pazzariello” napolitano que leva a palma da mão ao nariz e que faz
uns gestos inquietantes para pedir à plateia que fique em silêncio, não estava
no argumento.
No
entanto, ele fez-nos lembrar uma das muitas personagens loucas de Shakespeare,
um Yorik por exemplo, que se escapou de uma das suas tragédias. É quase um
tributo e um desejo daquele génio para todos nós.
Porque
escolheram Júlio César de Shakespeare?
Nunca
tivemos outra peça em mente. E a nossa escolha surgiu da necessidade: os homens
com quem queríamos trabalhar tinham um passado – recente ou distante – a ter em
conta; um passado caracterizado por más acções, erros, ataques, crimes e
relações estragadas. Daí termos de os confrontar com uma história igualmente
poderosa, mas que vai numa direcçao oposta. E nesta versão cinematográfica
italiana do Júlio César de Shakespeare, levamos ao ecrã as relações fortes e
deploráveis que os seres humanos entre si estabelecem e que incluem a amizade,
traição, poder, liberdade e dúvida. E também o assassínio. Muitos dos nossos
prisioneiros-actores foram antes “homens honrados”; e na sua denúncia, António
parafraseia os “homens honrados”. No dia em que filmámos o assassínio de César,
pedimos aos nossos actores, munidos de adagas, que tentassem encontrar o mesmo
impulso matador. Logo a seguir, apercebemo-nos do que tínhamos dito e desejámos
poder retirá-lo. Mas não foi necessário, porque eles foram os primeiros a
reconhecer a necessidade de enfrentar a realidade.
Em
consequência disso, decidimos segui-los ao longo dos seus dias e noites
extraordinariamente compridos. Queríamos que o nosso trabalho fosse levado a
cabo naquelas minúsculas celas para cinco pessoas, nos corredores, no pátio
onde passam algum tempo ao ar livre, ou enquanto esperavam pelas visitas dos
seus familiares.
Como
é que trabalharam com o Fabio Cavalli?
Para
lhe dar uma ideia da nossa cooperação e do entusiasmo do Fabio, vou contar-lhe
o que ele nos disse quando lhe apresentámos o nosso filme pela primeira vez.
“Podemos filmar a sequência da Batalha de Filipos nas colinas das traseiras da
prisão; pedimos permissão ao director para que todos os prisioneiros possam participar...”.
Mas
como esse não era o ponto de vista que queríamos adoptar para o nosso filme, o
Fabio entendeu imediatamente a nossa abordagem e aceitou-a, graças à sua
sensibilidade intelectual e ao profundo conhecimento do meio do espectáculo. Descrevemos-lhe
o que queríamos para a história e o Fabio colaborou connosco na escrita do
argumento; ajudou-nos a descobrir alguns dos cantos mais secretos da prisão,
organizou o encontro com os prisioneiros, escolhendo aqueles que eram mais
adequados para alguns dos papéis. Antes de a escolha final de actores estar
completa, ele tentou encenar algumas sequências com um grupo selecto de
prisioneiros, mas, acima de tudo, com a ajuda do seu assistente, concentrou-se
na encenação das sequências finais do filme. Numa fase mais tardia, mostrou-nos
um esboço do cenário com duas colunas romanas construídas com fibra de vidro colorida,
o mesmo material dos escudos dos soldados. E, por fim, deu um último passo:
desistiu do seu papel de encenador e tornou-se um actor que interpreta o importante
papel de encenador no filme. Ele tem um desempenho excelente... até porque os
seus actores estavam a protegê-lo! Ele disse-lhes: até ao dia de hoje, tenho
sido o vosso encenador; agora vamos trabalhar num filme e usar uma linguagem
completamente diferente. Desta vez, serão eles que nos vão dirigir”. Quando
terminámos a produção, saímos um pouco nervosos da prisão, tentando perceber se,
na realidade, o Fabio sonharia secretamente sair também para trabalhar em
companhias de teatro do “mundo livre”. Mas ficámos a saber que ele regressou a
Rebibbia, para encenar com os prisioneiros a versão original de Jílio César. “A
sequência mais bela – disse-nos ele com um sorriso provocador – é aquela em que
Bruto etá de frente para Calpurnia”. Tivemos de eliminar essa sequência porque
tínhamos um grupo de actores exclusivamente masculino.
Expliquem-nos
porque decidiram ter as personagens a falar com os vários dialectos dos prisioneiros?
Nos
meses que antecederam a rodagem, íamos com frequência a Rebibbia. Durante essas
visitas, passávamos por diferentes zonas da Ala de Alta Segurança e, através
das portas entreabertas, conseguíamos vislumbrar os presos, homens jovens e
velhos deitados silenciosamente nas suas camas. “Deviam chamar-nos observadores
de tecto – disseram-nos certa vez – já que passamos metade do dia deitados na
cama a olhar para o tecto...” Depois de ouvirmos essas palavras, éramos assaltados
por um sentimento de culpa enquanto percorríamos livremente as escadas de cima
abaixo. Mas numa manhã em particular, descobrimos numa cela mais espaçosa algo
que noz fez sorrir de espanto e cumplicidade: seis ou sete presos sentados à
volta de uma mesa a ler um texto colocado no meio da mesa. Mais tarde,
descobrimos que o texto era o nosso argumento e que aqueles homens eram os
nossos actores que estavam a traduzir as suas falas para os respectivos
dialectos (napolitano, siciliano, da Apúlia) com a ajuda de outros conterrâneos
– que não tinham sido seleccionados para o filme.
Este
trabalho foi coordenado e supervisionado – como sempre – pelo Fabio e o Cosimo
Rega (que faz de
Cássio).
Este episódio também ajuda a perceber o significado do filme. E mesmo antes,
quando vimos os testes filmados, ficámos surpreendidos pela positiva ao ouvir
Próspero e Ariel discutirem em napolitano, ou o Romeu e o Polónio segredarem,
gritarem e a dizer palavrões em Siciliano ou no dialecto de Apúlia...
Percebemos que a pronúncia errada dos dialectos que era aplicada às falas não
diminuía o tom da tragédia, mas que, pelo contrário, dava a essas falas uma
nova verdade. E escutámos essas falas com uma consciência mais profunda.
O
prisioneiro-actor e a sua personagem desenvolveram uma ligação profunda através
de uma linguagem comum e acompanharam mais facilmente o desenrolar do drama,
que, em Shakespeare, sempre teve também uma dimensão popular. Portanto, não
fomos nós que decidimos usar os dialectos, mas sim os nossos actores que se
apoderaram do argumento e adpataram-no às suas respectivas naturezas.
O
filme foi filmado integralmente na prisão? Quais foram – se é que os houve – os
maiores desafios artísticos e de produção? As autoridades colocaram algum
limite ao acesso da câmara?
O
filme foi integralmente rodado em Rebibbia. Passámos quatro semanas em
Rebibbia: chegávamos de manhã e saíamos à noite, completamente esgotados, mas
felizes e satisfeitos. Certo dia, comentámos: “Estamos a fazer este filme com a
mesmo audácia e imprudência dos nossos primeiros filmes”.
Quanto
à câmara, tivemos a liberdade de a levar para todo o lado: as várias alas, as
escadas, os cubículos, o pátio, as celas, e a biblioteca. Com uma excepção: a
zona de acesso interdito onde os prisioneiros que estão na solitária são
mantidos em isolamento. Ninguém pode vê-los, nem nós. Do exterior, um dos
guardas prisionais mostrou-nos as janelas das celas dos vira-casacas,
mergulhadas num silêncio profundo. Só suspendíamos as filmagens quando os
prisioneiros das outras alas tinham de passar pelos corredores para irem para o
pátio ou à casa de banho, ou quando alguns dos nossos actores recebiam visitas
dos familiares. Quando regressavam, estavam profundamente emocionados,
comovidos, melancólicos ou zangados. Voltavam aos seus papéis mas o olhar
parecia ir para outro lado, e perdiam a espontaneidade terna e selvagem das
suas interpretações.
O
plateau de uma rodagem é um lugar onde florescem amizades e cumplicidades e
este filme não foi excepção. Um dos guardas balbuciou: “Não se aproximem muito
deles; tenho uma excelente relação com eles, e às vezes sinto piedade e
compaixão, até amizade... Mas depois tenho de me lembrar de manter uma certa
distância e pensar naqueles que sofreram e sofrem mais do que eles, ou seja, as
vítimas e as suas famílias...”. Isto é verdade, no entanto, quando o filme
chegou ao fim e tivemos de abandonar a prisão e os nossos actores, foi uma
despedida dilacerante. Subindo as escadas de regresso à sua cela, o Cosimo Rega
– que faz de Cássio – levantou os braços e gritou: “Paolo, Vittorio: de amanhã
em diante, nada será igual!”.
Quando
decidiram que a maior parte do filme seria a preto e branco?
Porque
a cor é realista e o preto e branco é irrealista. Isto pode parecer uma
declaração autoritária, mas, pelo menos neste filme, é verdade. Quando chegámos
à prisão, sentimos que haveria o risco de caírmos num realismo televisivo e
fugimos a isso usando o preto e branco que nos deu mais liberdade para inventar
e filmar neste ambiente absurdo que era a prisão de Rebibbia, onde César não é
morto no cenário de Roma antiga, mas nos minúsculos cubículos onde os
prisioneiros passam o tempo ao ar livre. Ao usar o preto e branco, sentimo-nos livres
para filmar numa cela onde Bruto repete o seu monólogo com sofirmento e paixão:
“César deve morrer”. Optámos por imagens a preto e branco fortes e violentas
que, no final, acabam por ganhar uma cor mágica no palco, enaltecendo a alegria
furiosa dos prisioneiros espantados com o seu sucesso Mas a escolha do preto e
branco também se prende com razões narrativas: queríamos sublinhar a passagem do
tempo, o salto atrás, de uma forma fácil e directa. Esta não é, obviamente, uma
ideia nova, estamos conscientes disso, mas às vezes gostamos de trilhar
caminhos conhecidos.