DIA
26 DE MARÇO
4:44 ÚLTIMO DIA NA TERRA,
Abel Ferrara, EUA, 2011, 85’
FICHA
TÉCNICA
Escrito e Realizado
por Abel Ferrara
Montagem: Anthony Redman A.C.E.
Director de Fotografia:
Ken Kelsch A.S.C.
Música: Francis
Kuipers
Interpretação: Willem Dafoe,
Shanyn Leigh, Natasha Lyonne, Paul Hipp, Dierdra McDowell
Origem: EUA
Ano: 2011
Duração: 85’
SINOPSE
Num apartamento em
Nova Iorque, um casal tenta lidar com o inevitável: o fim do mundo – anunciado para
as 4:44 da madrugada do dia seguinte.
NOTAS DO REALIZADOR
Gostaria
de aproveitar esta oportunidade para citar uma passagem do nosso novo filme
4:44 ÚLTIMO DIA NA TERRA, em que surge o Dalai Lama a falar, na sua maneira
inimitável, sobre o homem e a natureza:
“Nós,
seres humanos, somos quase como o criador ou aquele que controla o mundo; através
da tecnologia, através da ciência, podemos fazer qualquer coisa, tudo... nós
não dominamos a natureza. Penso que nós, seres humanos, acreditamos que estamos
um bocado acima da natureza. Penso que isso é errado. Afinal de contas, nós
fazemos parte da natureza e, como tal, é bastante claro que temos a
responsabilidade de tomar conta do ambiente, da natureza, porque, em última
análise, nós fazemos parte da natureza e do seu equilíbrio e, em consequência
disso, podemos alterá-lo de forma dramática...”
Aquilo
que aprendi é palavra por palavra, fragmentado, através de diferentes idiomas, gramatical
ou não, dentro ou fora de contexto: quando o mensageiro é puro a mensagem
prevalece.
- Abel, Nova Iorque
TRAILER
CRÍTICA
Num pós-apocalipse cinematográfico, quem encontrar este filme ficará a
saber da consciência que tivemos do fim. Era uma vez a intimidade...
A última vez que o vimos errava pelas ruas de Nova Iorque, dealer, pedinte, fura-vidas. Era assim que Ben e Josh Safdie, em Vão-me buscar Alecrim (2009), viam Abel Ferrara: fantasma de uma cidade e de um tempo, Nova Iorque dos anos 1970. Vão-me buscar Alecrim, assinalaram os Safdie, não era sequer um “filme de época” e isso é que era bonito: a forma como o espírito de algo que já desapareceu se materializava, vindo ao encontro dos cineastas - ou então assim: o olhar dos cineastas não conseguia evitar encontrar em cada esquina da cidade sinais de um mundo e de um cinema extintos.
A última vez que o vimos errava pelas ruas de Nova Iorque, dealer, pedinte, fura-vidas. Era assim que Ben e Josh Safdie, em Vão-me buscar Alecrim (2009), viam Abel Ferrara: fantasma de uma cidade e de um tempo, Nova Iorque dos anos 1970. Vão-me buscar Alecrim, assinalaram os Safdie, não era sequer um “filme de época” e isso é que era bonito: a forma como o espírito de algo que já desapareceu se materializava, vindo ao encontro dos cineastas - ou então assim: o olhar dos cineastas não conseguia evitar encontrar em cada esquina da cidade sinais de um mundo e de um cinema extintos.
É assim que voltamos a encontrar o
cineasta Abel Ferrara: feiticeiro, traficante, demiurgo - como fantasma de
um mundo que acabou.
Alguns dos seus filmes - estamos a
pensar em The Blackout (1997) ou New Rose Hotel (1998) - parecem correr o
risco de se extinguirem durante a projecção. Como se nesse momento se
tornasse manifesta a sua fragilidade, a sua impossibilidade. Como se algo
de funesto, um sentimento de catástrofe, se tivesse agarrado ao (seu) cinema, a
uma forma de o produzir - uma vez que o gesto quixotesco só pode sobreviver
(mal) pactuando com acrobacias produtivas que fazem da montagem de um filme uma
sucessão de enxertos em corpo exangue. É preciso ver, por isso, 4.44 Último
dia na Terra: filme-catástrofe, literalmente, mas investido de tanto poder
fundador. Eis o que Ferrara faz com um apartamento e com dois actores: sinais
do que foi o cinema na terra.
Há hora marcada para o mundo acabar:
4:44. “The end will
be sudden and global”. Intervenções de Al Gore, sobre o
aquecimento global, e do Dalai Lama, sobre a falta de respeito pela Natureza,
na televisão. Que mostra o mundo a iniciar a sua procissão em direcção ao
apocalipse. (De forma menos explícita e mais interior: o pós-2001 e a crise
financeira como cenários reais que, dizia Ferrara numa entrevista publicada
neste suplemento em Abril, estiveram na origem do filme). Para passar a
“mensagem” ambientalista, o realizador participa no tráfico de materiais de
arquivo, forma muito directa e básica (é a economia da série B) de construir o
sentimento de fim e, ao mesmo tempo, de aligeirar o peso do preaching - como se
o despachasse.
O essencial passa-se no interior de
um apartamento nova-iorquino, com dois actores, Willem Dafoe e Shanyn Leigh, e
o som de sirenes lá fora. Pontuais, e fabulosas, excursões a um terraço deixam
entrar o vento e o cheiro da catástrofe, algo que é doce, a aceitação, entrega.
Sim, é o mais sereno filme-catástrofe de que há memória, mesmo se o vemos à
beira da angústia porque nunca temos a certeza se tem condições para continuar.
E assim, depois de reinventar, com uma facilidade que faz parecer cansado
qualquer blockbuster destes tempos, a ficção científica apocalíptica
(bastam-lhe para isso sons de sirenes na cidade; basta-lhe filmar Dafoe a
deambular por Nova Iorque), Ferrara reinventa o “filme de casal”. Com uma
intensidade que no cinema dele só tem paralelo, embora com outro tom, com a energia
leonina do par Drea de Matteo e Lillo Brancato, Jr., nesse It's a Wonderful
Life on coke que é a obra-prima ''R Xmas (2001). A intimidade como a última
coisa na terra.
Shanyn Leigh (Skyie) pinta, Willem
Dafoe (Cisco) uiva, como outros uivantes personagens/actores ferrarianos, como
Harvey Keitel ou Christopher Walken... Na relação entre Cisco e Skyie,
autorizam-nos a dizê-lo declarações dos actores e do realizador, ecoam
sinergias, por assim dizer, da relação entre Ferrara e a sua companheira dos
últimos anos, Shanyn Leigh - o budismo dela a travar o consumo de drogas dele.
A movimentação dos actores, a relação que improvisam, até as telas que ela
pinta - e a cocaína que Cisco consome - não podem ser tomados por folclore ou
tiques de um certo cinema novaiorquino (Cassavetes, por exemplo) que viajou de
forma exploratória pelos sentimentos. É, antes, um património. A pose está
ausente, o minimalismo é regenerador. Sem “statement” algum, uma ficção
científica conta como foi, “era uma vez”... o cinema na terra. No
pós-apocalipse cinematográfico, quem encontrar este Ferrara ficará a saber da
consciência que tivemos de um fim.
Skyie a
Cisco: “All we have is each other. All we have is each other. I love you. And we''re angels. Already”. À volta de 4.44 Último dia na
Terra, nos ecrãs de cinema portugueses, só há estilhaços.
Vasco Câmara, Ípsilon