ATÉ VER A LUZ| Basil da Cunha| 2013 | 03.12.13 | Auditório do IPDJ, 21:30

DIA 3 DE DEZEMBRO
FICHA TÉCNICA
Título Original: Até ver a luz
Realização e Argumento: Basil da Cunha
Interpretação: Ana Clara Baptista de Melo Soares Barros, Susana Maria Mendes da Costa, José Zeferino da Cruz, Pedro Ferreira, João Veiga, Nelson da Cruz, Duarte Rodrigues
Montagem: Renata Sancho, Basil da Cunha, Emilie Morier
Som: Filipe Tavares
Fotografia: Patrick Tresch
Decoração: Carlos Baessa De Brito
Origem: Portugal/Suiça
Ano: 2013
Duração: 95’
M/16


SINOPSE
Acabado de sair da prisão, Sombra volta à sua vida de dealer no bairro da Reboleira. Entre o dinheiro emprestado que não consegue recuperar e aquele que deve, uma iguana pouco comum, uma pequena vizinha sempre por perto e um chefe de gang que duvida da sua boa fé, Sombra começa a pensar que, de facto, mais valia ter ficado dentro…

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CRÍTICA
Retrato de um bairro da Reboleira, em percentagens indefinidas de “teatro” e de “vida”, sem ceder à tentação do “documento social”, trocado por algo de mais sonhador.
Até ver a Luz é a primeira longa-metragem do realizador suíço-português Basil da Cunha, depois de um punhado de filmes de formato curto que deixaram rasto em festivais importantes mas não chegaram ao circuito comercial nacional. É um filme “de bairro”, em todas as acepções da palavra. Foi rodado num bairro da Reboleira, nos arredores, nem por isso muito bem afamados, de Lisboa, de onde praticamente só sai no fim (e para “ver a luz”), com o concurso de actores amadores recrutados no local, num processo criativo que Basil da Cunha descreveu, em entrevistas, como sendo “colectivo” - ou maneira de ser também um filme “deles”, dos habitantes do bairro. Este ponto de partida e esta atitude (querer fazer com que o filme nasça “de dentro”) aproximam-se de uma tangente a muito do que Pedro Costa fez, de Ossos em diante, com o bairro e os habitantes das Fontaínhas, e nem é difícil encontrar outro ponto de contacto (com um filme como Ossos, justamente) no tratamento do som ambiente, feito de camadas que se sobrepõem (televisores ligados, conversas, ruídos domésticos) e assim traduzem a “porosidade” das casas e dos espaços do bairro, uma textura sonora que é um dos aspectos mais conseguidos de Até ver a Luz. Até porque é um som de um realismo falsamente “naturalista”, pelo contrário muito elaborado, muito fabricado - ninguém julgue que é mera coincidência o facto de às tantas se ouvirem, de um televisor, os diálogos de um filme de samurais de Akira Kurosawa (José Luís Guerin, no seu “filme de bairro”, En Construccion, utilizava um filme de Hawks, Na Terra dos Faraós, com um propósito semelhante). 


Não é mera coincidência porque Até ver a Luz, no fundo, é um filme de “samurais” (Basil da Cunha até o descreveu exactamente assim) mesclado com filme de gangsters, encenado e representado em jeito de teatro amador, na melhor acepção do termo. Dos samurais de Kurosawa e dos gangsters do cinema americano, das “vizinhanças” de Spike Lee (e dos seus “filmes de bairro” como Do the Right Thing) e das actualizações dessas tradições de samurais e gangsters que encontramos nalguns Takeshis Kitanos ou no Ghost Dog de Jim Jarmusch - que são estas duas, finalmente, as referências que mais nos cruzam o espírito durante o visionamento de Até Ver a Luz. Ainda assim, não é a pista completa: se as peripécias do protagonista Sombra, e as suas manobras para arranjar o dinheiro que deve ao “gang” quase burlesco que anda atrás dele, são importantes, tão importantes como elas são as “paragens”: as cenas de refeição, as discussões sobre coisa nenhuma, os intróitos com personagens que, estando ali, pouco ou nada têm a ver com o círculo duvidoso em que se movimenta Sombra e os seus amigos/inimigos (o encontro com a “tia”, ou a miudita que ficará depositária do lagarto de estimação de Sombra). É por aí que se fecha o círculo, se compõe o retrato do “lugar”, em percentagens indefinidas de “teatro” e de “vida”, sem nunca ceder à tentação do “documento social”, trocado por algo de muito mais sonhador: a luz do sol, mas também o céu, porque é pelos telhados da Reboleira que mais andam estes “gatos-samurais”, estes “cães-fantasma”, de Basil da Cunha.

ENTREVISTA COM BASIL DA CUNHA
Fale-nos do seu método e da sua forma de considerar uma filmagem.
Cada um dos meus filmes é fruto de um trabalho de artesão. Sempre foram fabricados em família, com e sobre as pessoas que me rodeiam, seja na Suiça ou em Portugal. Os actores, a maioria amigos ou vizinhos, acompanham-me há alguns anos.
Escrevi e filmei "Até Ver a Luz" em estreita colaboração com as pessoas que vivem no bairro da Reboleira. O filme está construído à volta de e com as pessoas e pretende  ser uma espécie de reinterpretação da sua vida. As pessoas transformam-se em personagens, a ficção permite sublimar o real, por mais duro ou absurdo que seja.

De que se alimenta o seu desejo de fazer cinema?
Uma coisa é certa, na origem da maioria dos meus filmes há uma vontade de devolver a sua dignidade àqueles a quem ela é frequentemente negada. É o que está na origem: devolver a sua beleza àqueles que amo. Os meus filmes nunca partem de uma ideia ou conceito. Não decido escrever a partir de um tema definido. O ponto de partida é o desejo de filmar aquela pessoa, de encenar uma situação, ou aproveitar aquele músico fantástico cuja música pode enriquecer todo o filme... Depois há, claro, todas as histórias que ouves e alimentam a tua imaginação. Pouco a pouco, desenha-se uma história que está ao serviço de todos esses elementos no centro do filme, nos quais acreditas.

"Até Ver a Luz" cria um universo visual original, que nos propõe uma mistura de géneros cinematográficos. Poderia falar-nos disso?
É um filme de género num universo realista. O filme oscila entre o policial e o documentário.
O espectador vai partilhar o quotidiano cheio de sarilhos de um dealer que acaba de sair da prisão, mas também o universo e a cultura de um bairro muito particular de Lisboa.  O universo narrativo do policial é utilizado para permitir a compreensão da evolução da personagem. Mas o género esbate-se por momentos para ceder o lugar a personagens surpreendentes: uma iguana, uma menina que parece estar sempre por perto, uma tia protectora, um amigo aluado mas um pouco profeta, um bruxo...
O meu desejo é ultrapassar um certo cinema social unidimensional e condescendente.  Quero misturar a realidade com a qual trabalho com uma linguagem cinematográfica que dê espaço a universos poéticos e relações de carinho autenticas entre as personagens. O tom do policial hiper-realista conjuga-se com momentos de branda loucura, com a absurdidade poética do quotidiano. Cria-se então um desfasamento poético.


Como trabalha com os actores?
Não me interessa recriar a realidade e não espero que os meus actores imitem a realidade. Tenho esperança que aconteçam coisas frente à câmara. A vida. Senão é uma seca. A rodagem é para mim uma altura de liberdade. É o momento da procura e do perigo porque, mesmo que tenhamos esperança de chegar a algum lado, nunca sabemos bem como.  E é isso que filmamos: o caminho. No fundo, a essência do meu trabalho é criar um espaço no qual se possa viver.
Os actores nunca ensaiam e não leem o guião. Só conhecem as intenções da cena, algumas deixas essenciais e o resto é como o jazz, uma espécie de improvisação orquestrada. Criam um género de reinterpretação da sua própria vida. Aí, o meu trabalho é surpreende-los a cada take, reinventar os instrumentos com os quais vão jogar para viver algo genuíno.
A regra nas minhas rodagens é que a relação de forças entre o cinema e a vida do bairro dê a vantagem à segunda, porque mesmo que a moldemos e a encenemos, vamos deixar-la existir.  Por isso é que trabalhamos com uma pequena equipa de quatro pessoas: o director de fotografia, o director de som, um amigo que faz um pouco de tudo e eu. O resto é feito pelos moradores do bairro que ajudam aqui e ali, quando podem, e que cumulam assim várias profissões do cinema. É importante que aconteçam mais coisas frente à câmara do que atrás.

Mas tinha um guião escrito?
Para "Até Ver a Luz", como para "Os Vivos Também Choram", ou até "À Coté", (e ao contrário de "Nuvem") havia um guião com diálogos que serviu sobretudo para esclarecer e resolver questões de narrativa. É muito útil já ter pensado nas elipses, nos fora de campo, antes de filmar. Mas não usamos esse guião com os actores antes da rodagem, e muito menos durante. Só tinha guardado uma folha com uma frase para cada cena.

No final de contas, o filme é parecido com o que tinha em mente quando escreveu o guião?
Felizmente isso nunca me aconteceu. Claro que a essência é a mesma. Mas aquilo que me dão é sempre melhor que aquilo que poderia ter escrito.


SOBIBOR, 14 DE OUTUBRO 1943, 16 HORAS| Claude Lanzmann| 2001 | 26.11.13 | Auditório do IPDJ, 21:30


DIA 26 DE NOVEMBRO
FICHA TÉCNICA
Título Original: Sobibor, 14 Octobre 1943, 16 heures
Realização: Claude Lanzmann
Argumento: Claude Lanzmann
Montagem: Chantal Hymans, Sabine Mamou
Fotografia: Caroline Champetier, Dominique Chapuis
Som: Benard Aubouy
Com: Yehuda Lerner, Claude Lanzmann
Origem: França
Ano: 2001
Duração: 98’

SINOPSE
O título do filme diz-nos o lugar, hora, dia, mês, ano e hora da única revolta bem sucedida num campo de extermínio nazi na Polónia. 365 prisioneiros conseguiram escapar, mas apenas 47 deles sobreviveram às atrocidades da guerra. Claude Lanzmann conheceu Yehuda Lerner durante as filmagens de Shoah, em Jerusalém em 1979. Neste documentário, Lerner dá o seu testemunho ao realizador.



Este filme extraordinário surgiu como material que inicialmente seria destinado para o documentário  Shoah, considerando, Lanzmann, que o seu conteúdo merecia uma longa metragem independente. O filme é dominado por uma entrevista, gravada em 1979, com Yehuda Lerner, um sobrevivente da revolta do campo de concentração de Sobibor, na Polónia, em Outubro de 1943, às 16:00h, na qual 600 prisioneiros fizeram uma fuga desesperada pelo arame farpado. Menos de 60 prisioneiros escaparam - Lerner foi um deles. Num preâmbulo demorado, Lanzmann afirma que acredita que a fuga de Sobibor representa a “reapropriação de poder e violência pelos judeus”. 
A história é contada no tom direto e factual, próprio de Lerner: um audacioso plano que, ironicamente depende na pontualidade obsessiva dos guardas alemães e fidelidade aos seus horários de inspeção. Quando Lerner reconta como ele e os seus camaradas enganaram um guarda a virar as costas, matando-o com um machado afiado até à exaustão, temos um verdadeiro momento de suspense. E quando Lanzmann lhe pergunta como a memória do acontecimento o faz sentir, o entrevistado é cândido o suficiente para responder “alegria”. Um filme extraordinariamente poderoso e comovente. 

CRÍTICA
“O resultado – Instrutivo, fundamental e perturbador – mérito ao mesmo nível que Shoah. Para ser visto e revisto. 
Oliver de Bruyn, Le Point

Através de uma sobriedade dolorosa, Claude Lanzmann coloca um ponto final á face misteriosa da história para lembrar a magnitude do crime e do horror.
Frédéric Bonnaud, Les Inrockuptibles 

“Yehuda Lerner, participante e instigador da insurreição dos prisioneiros do campo de Sobibor (sucedida a 14 de Outubro de 1943), foi entrevistado por Claude Lanzmann no final dos anos setenta, durante a preparação do que viria a ser SHOAH.
Mais tarde, Lanzmann sentiu que a história e o depoimento de Lerner mereciam um filme só para eles. “Por SOBIBOR passa a vontade de combater o mito da ‘bondade’ com que os judeus se sujeitaram ao extermínio pelos nazis. Foi ‘um massacre de inocentes’, diz Lanzmann, mas de ‘inocentes’ que foram enganados até ao momento de entrarem nas câmaras de gás”
Luís Miguel Oliveira

EM SEGUNDA MÃO| Catarina Ruivo| 2012| 19.12.13| Auditório do IPDJ, 21:30h

19 DE DEZEMBRO
FICHA TÉCNICA
Realização: Catarina Ruivo
Argumento: António Pedro Figueiredo, Catarino Ruivo
Interpretação: Pedro Hestnes, Rita Durão, Luís Miguel Cintra, Vasco Apolinário, Marcello Urgeghe, Ricardo Aibéo, João Grosso, Joana de Verona ,António Pedro Figueiredo
Som: António Pedro Figueiredo
Montagem: Catarina Ruivo
Ano: 2012
Duração: 114’
Origem: Portugal
M/12

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SINOPSE
Jorge é um solitário escritor de romances de cordel. À noite olha através das janelas iluminadas as pessoas nas suas casas e pensa que elas, sim, são felizes.
Um dia o acaso, pensa ele, leva-o até à casa onde vive Laura com o seu filho André, e através das grandes janelas Jorge descobre a montra de uma vida perfeita.
Mas as vidas perfeitas só o são quando vistas de fora. De perto nada é o que parece: o anterior marido de Laura desapareceu misteriosamente e estranhos telefonemas perturbam a imperturbável Laura. Jorge não se assusta, quer protegê-la. Inventa um homem feito à medida de Laura, um homem para ela amar e consegue entrar naquele mundo maravilhoso que julga conhecer.

CRÍTICA
Jorge (Pedro Hestnes) vive só, no quarto de uma pensão obscura que tem um rececionista mais obscuro ainda. Ganha mal a vida, que estes são tempos de crise, a escrever romances de cordel. Recebe prostitutas no quarto, mas não estamos certos se a realidade foi substituída pela ficção do novelista, se o presente é passado e se a vida de Jorge, que neste filme está projetada num pretérito poético, também não foi já trocada pela morte — até porque Em Segunda Mão”, sem o desejar, ganhou carga testamentária com o desaparecimento do seu protagonista. Até que Jorge, homem pobre, peeping tom à sua maneira, conhece numa praia deserta Laura Castro Lima (Rita Durão), filha de homem abastado. Jorge sobe na vida. Tenta aprender a viver entre ricos. Confronta-se com as grandes janelas da casa de Laura, que para ele são paredes invisíveis. Há um momento em que a escala de planos de Catarìna Ruivo se altera, alterando também um flime que, até aí, nos seduzira a baralhar a nossa perceção da realidade: é quando, num jantar com o pai da nova namorada, Jorge, interrompido por um campo-contra- campo, se sente comprado — e Hestnes cora de vergonha. Com uma ironia subtilíssima (vejam-se os papéis de Ricardo Aibéo e de João Grosso, notáveis), Catarina Ruivo, através do seu herói desconfortável, sublinha a luta de classes e critica a violência do dinheiro, a perda de valores dos dias em que vivemos. “Em Segunda Mão” exige-nos tempo para chegar ao seu tempo fragmentado. Perde-se e reencontra-se. A nível de direção de atores, é um triunfo ganho pelo rosto extraordinário de Hestnes, com uma vulnerabilidade: capaz de devorar tudo o que o rodeia. Não a perca.
Francisco Ferreira, Expresso.
A terceira longa-metragem de Catarina Ruivo segue os passos de Jorge (Pedro Hestnes), um amargurado escritor de novelas eróticas de cordel, com vontade de mudar de vida e de personalidade. Um dia, Jorge conhece Laura (Rita Durão), que vive só, com o filho, após o abandono do marido. Jorge molda um homem para Laura amar. Sobe na vida, ganha acesso a outra classe social. Um mar de ilusões, já que esta é também a história de uma relação de amor em falência e de um homem insatisfeito e vulnerável que se engana a si próprio — o último composto por Pedro Hestnes, numa interpretação sublime.
Porquê este título, “Em Segunda Mão”? Faz-nos pensar que a vida de Jorge, o protagonista do filme, já foi vivida.
O Jorge é alguém que está fora do mundo. Não se atreveu ainda a entrar no turbilhão da vida. E, quando se atreve, é como se começasse a viver uma vida em segunda mão, a vida de outra pessoa.
Num diálogo lá para o fim, ele vai perguntar se ainda pode ter a sua vida de volta. Respondem-
-lhe que ela já está ocupada...
Como uma montra. Ele olha para as janelas como montras de vida perfeitas e escolhe uma, em segunda mão, através de Laura. No fundo, não chega a conhecê-la. Para mim era muito importante começar o filme dentro da cabeça do Jorge e do seu caos interior. Ele vive como um espectador. Além de que, depois, descreve as suas próprias fantasias nos romances de cordel. Só que não há vidas perfeitas. No outro dia li um texto de um sociólogo que dizia que não há regras para a felicidade porque a felicidade é uma coisa extremamente pessoal. Ou seja, se quisermos, podemos inventar um mundo perfeito para nós. O Jorge, além de passar o tempo a inventar mundos perfeitos nos seus livros, decide que se quer apropriar da felicidade através de outra pessoa. Vê em Laura algo que ele pensa que é a felicidade, e quer vestir essa vida, como um fato feito à medida. O problema é que os fatos dos outros raramente nos ficam bem.
Porque é que o Jorge escreve livros de cordel?
Deu-me muito gozo entrar nesse universo. Nessa literatura de ‘pronto a vestir’. Eu lembrava-me dessas revistas quando era miúda, “Sabrina” e a “Bianca”. Já não existem foram substituídas por livros de bolso, alguns best sellers. Li muitos antes de escrever o argumento, têm regras muito precisas e uma mecânica própria. 


Mas o Jorge por vezes tem tiradas poéticas que não têm nada desses livros...
Pois não, são excertos de poemas do António Botto.
“Em Segunda Mão” é um filme composto por muitos detalhes, vozes diferentes que serão provavelmente todas de Jorge: a voz que ele dita para o gravador que usa para trabalhar, por exemplo. O tratamento do tempo é singular, o passado e o presente confundem-se. Houve um investimento importante da sua parte na escrita do argumento. Como é que este se processou?
Eu queria estar sempre dentro da cabeça da personagem, na sua perceção da realidade e na sua perceção do tempo, que são ambas fragmentárias. O argumento que escrevi com o António Pedro Figueiredo, foi construído a partir de camadas. Começou por uma linha simplista, a de alguém que se engana na maneira com procura a felicidade, e depois foi recebendo personagens, que se tornaram mais densas e contraditórias. Foi um processo longo. Há outra coisa a salientar: todas as personagens foram escritas para os atores que as interpretam.
Escrever um filme também é escrever um pouco da nossa biografia? Estou a lembrar-me da personagem de Laura, que tem um filho chamado André. A Rita Durão ‘já foi mãe’ de um André num fllme seu, “André Valente”...
Acho que sim. “Em Segunda Mão” é o meu filme mais pessoal. Há esta coisa das janelas, por exemplo: desde miúda que adoro olhar para as janelas, como o Jorge. Às vezes tenho a ilusão de que, quando as coisas me estão a correr pior, poderia ser mais feliz se mudasse de casa. Isto tem também tudo que ver com o cinema. Está refletido no cinema que faço. Aquele prédio em que vive o Jorge tem janelas que parecem fotogramas, são como quadradinhos de luz em que se passam vidas e eu gosto muito disso, de olhar para a vida das pessoas. A autobiografia está presente. Antes de entrar na Escola de Cinema, trabalhei na Relógio d’Água. Foi nessa editora que filmei os encontros de Jorge com o editor dele, um papel que eu tinha pensado para o Paulo Branco, mas que ele recusou. A personagem do editor desenvolveu-se e foi João Grosso quem fez o papel, num trabalho que me deixou muito feliz. A relação de Jorge com o editor, essa sim, é quase uma relação de amor.
Jorge é uma personagem que vlve do fingimento enquanto escritor. Assina sob o pseudónlmo de uma mulher, Clarice B.
É uma mistura de Clarice Lispector e de Agnès B.
Por outro lado, Pedro Hestnes, ele que nos deixou algumas das personagens mais frágeis e inadaptadas do cinema português, era alguém com dificuldade ‘em fingir’, como se a interpretação fosse indissociável da vlda, da mesma experiência.
Por isso foi tão importante ter o Pedro Hestnes no papel. O Jorge é um vencido da vida e o Pedro, que sempre teve uma predileção pelos vencidos, traz-lhe outras coisas, uma adolescência tardia que inquieta, um desconforto permanente que comove. Antes da rodagem, tive longas conversas com o Pedro, sobretudo ao telefone, mas não falávamos do filme. Falávamos de livros, de outros filmes, do que pensávamos da vida. “Em Segunda Mão” foi feito assim. A direção de atores e a construção das personagens começaram fora do filme.
Como é que ele lidou com a personagem?
As coisas com o Pedro Hesrnes só se passavam através de uma relação pessoal — ou não se passavam de todo. Quanto maior era a intimidade, melhor as cenas resultavam. Uma das coisas que me impressionaram mais foi a sua relação com o texto — e a personagem de Jorge tem bastante para dizer neste filme. EÏe precisava de decorar o texto até à exaustão, mas isso significava não usar nada da sua livre vontade. “Porque as palavras contam”, disse-me. O seu processo de trabaçho era complexo: ele apropriava-se do texto até sentir que as palavras já faziam parte de si próprio. Quando fiz este filme o Pedro já estava muito frágil fisicamente. Ninguém tinha noção da sua doença. Foi tudo muito rápido. Durante a rodagem, ele estava muito feliz por trabalhar. terminámos o filme depois da sua morte. É para mim incontornável pensar agora que a personagem de Jorge foi escrita para um Pedro Hestnes que foi envelhecendo e que o seu corpo foi traindo.
Já me falou da relação de Jorge com o seu editor, talvez o único momento da vida do primeiro em que a razão predomina sobre o desejo. Nessa relação, há uma coisa em jogo: dinheiro. Gostava que me falasse deste elemento essencial no filme.
Volto à questão da felicidade. Da ilusão de felicidade que o valor do dinheiro cria e que a vida com Laura proporciona a Jorge. Lembro-me que o Pedro Hestnes me disse que estava muito contente com o argumento porque o achava antiburguês.
Há uma cltação de um filme de Fassbinder...
“O medo devora a alma...”
Há outros que a influenciaram?
Há momentos. Sem querer fazer um filme de género, não quis deixar de brincar com isso. “Em Segunda Mão” tem um potencial de thriller e de filme negro. A escuridão e a ameaça estão sempre presentes na fotografia. Há um plano do Jorge e da Laura na casa dela que ‘roubei’ do “Fallen Angel”, de Otto Preminger.
No travelling final, Jorge sai de campo — e não mais voltaremos a ver Pedro Hestnes,no clnema. Um plano de adeus?
Foi um plano que filmámos no início da rodagem. Não sei se é de adeus. Talvez o seja. Pode ter várias leituras. Também acho que é um plano de libertação.
Francisco Ferreira, Expresso.



HANNAH ARENDT| Margarethe Von Trotta| 2012 | 12.11.13 | Auditório do IPDJ, 21:30


DIA 12 DE NOVEMBRO
FICHA TÉCNICA
Título Original: Hannah Arendt
Realização: Margarethe Von Trotta
Argumento: Pam Katz, Margarethe Von Trotta
Montagem: Bettina Böhler
Fotografia: Caroline Champetier
Música: André Mergenthaler
Interpretação: Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen
Origem: Alemanha/Luxemburgo/França
Ano: 2012
Duração : 113’
M/12

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SINOPSE
Após assistir ao julgamento do nazi Adolf Eichmann, a filósofa política Hannah Arendt atreve-se a escrever sobre o Holocausto em termos inauditos. O seu trabalho provoca imediatamente escândalo mas Arendt mantém-se firme ao ser atacada tanto por inimigos, quanto por amigos.HANNAH ARENDT é um retrato do génio que abalou o mundo com a sua tese sobre a “banalidade do mal”. Incluído na Selecção Oficial do Festival Internacional de Cinema de Toronto e do New York Jewish Film Festival

CRITICA
"Todo o filme sobre Hannah Arendt medita sobre a razão e a forma como o mal absoluto foi cometido no mundo dos seres humanos.(...) O filme de Margarethe von Trotta é notável. Todo o talento cru da realizadora de A HONRA PERDIDA DE KATHARINA BLUM (1975) está presente nesta obra, mas com um apuramento formal e uma forma cinematográfica superior."
Nuno Ramos de Almeida, Jornal i

"HANNAH ARENDT é um filme precioso, capaz de mostrar como a percepção da história envolve sempre um jogo dialéctico entre passado e presente, ideias herdadas e ideias contemporâneas. Vê-lo e discuti-lo deveria ser uma prioridade democrática."
João Lopes, Diário de Notícias

"Ver o filme de Margarethe von Trotta sobre Hannah Arendt e as tribulações do relato do julgamento de Einchmann em Jerusalém torna-se obrigatório. Para nos fazer pensar."
Clara Ferreira Alves, Expresso

"Uma interpretação extraordinária de Barbara Sukowa no filme mais importante agora em exibição entre nós: retrato de mulher e filme de ideias sobre um tempo que passou.
(…)
Encarnada de modo extraordinário por Barbara Sukowa, Hannah Arendt é uma mulher fiel apenas ao seu intelecto e aos seus amigos, que se recusa a diluir ou adoçar o seu raciocínio apenas para ser politicamente correcta. Arendt bem pode querer separar as águas do pessoal e do profissional mas o affaire Eichmann e a sua noção de rigor intelectual imparcial apenas vieram sublinhar a lição que o seu professor, Martin Heidegger, aprendera tarde demais: a vida real e a vida da mente não são a mesma coisa e há que escolher e assumir as consequências. O pensamento da filósofa pode ter afectado o mundo, mas exigiu um preço pessoal - e é também aí que Von Trotta e Sukowa ganham o filme, ao recusar “separar as águas” e pintá-la como alguém intocável, ao tornar Hannah Arendt numa apaixonante meditação sobre o pensamento como algo de profundamente cinematográfico, até sedutor e sexy - e melhor “filme de recrutamento” para pôr a cabeça a mexer é difícil de imaginar.
O que, aliás, leva a outra e importante questão: será que, hoje, em 2013, o que Arendt escreveu há 50 anos teria gerado tal sururu? Só fazer essa pergunta bastaria para tornar este num filme central para os tempos que vivemos. Felizmente, faz muitas mais."

Jorge Mourinha, Ípsilon


ENTREVISTA COM A REALIZADORA
"Os seus filmes propõem quase sempre um confronto intenso com figuras históricas importantes
– Rosa Luxemburgo, Hildegard von Bingen, as irmãs Ensslin… O que é que a estimulou em Hannah Arendt?
A questão de como fazer um filme sobre uma mulher que pensa. Como observar uma mulher cuja principal acção é pensar. Claro que também tinha medo de não lhe fazer justiça. Isso fez com que o retrato cinematográfico fosse bem mais difícil do que, por exemplo, o de Rosa Luxemburgo. Ambas as mulheres eram indivíduos altamente inteligentes e únicos, ambas eram dotadas na sua capacidade para o amor e a amizade e ambas eram pensadoras e oradoras provocadoras. A vida de Hannah Arendt não foi tão dramática quanto a de Rosa Luxemburgo – mas foi importante e comovente.
Para saber mais sobre ela, não só li os livros e as cartas dela, mas também tentei encontrar pessoas
que a tivessem conhecido. Através destas muitas conversas, descobri gradualmente o que queria dizer sobre ela e que tempo da vida dela melhor serviria os meus propósitos. Por vezes, tinha mesmo muito medo dela. De repente, parecia tão áspera e arrogante. Só depois da famosa conversa entre ela e Günter Gaus é que me convenci finalmente de que Hannah Arendt era uma pessoa verdadeiramente encantadora, espirituosa e agradável. Depois de os ver juntos, compreendi o que Gaus quis dizer quando disse mais tarde numa entrevista que ela era o tipo de mulher por quem uma pessoa imediatamente se apaixona.
A sua investigação teve lugar enquanto trabalhava no argumento que começou a escrever em 2003 com a argumentista americana Pam Katz. Em 2006, decidiu centrar o filme, que nessa altura tinha como título de trabalho A controvérsia, nos quatro anos em torno do julgamento de Eichmann de 1961.
Queríamos contar a história de Hannah Arendt sem diminuir a importância da sua vida e do seu trabalho, mas também sem recorrer à estrutura muito alargada de um filme biográfico típico. Após Rosenstraße e Die andere Frau, HANNAH ARENDT é a minha terceira colaboração com Pam Katz. Fomos, por isso, capazes de escrever o argumento numa espécie de “pingue-pongue”, discutindo continuamente o trabalho por e-mail, telefone e em pessoa, em Nova Iorque, em Paris e na Alemanha. A nossa primeira questão foi: o que é que escolhemos mostrar da vida de Hannah Arendt? O caso amoroso com Martin Heidegger (que muitos provavelmente esperavam)? A fuga da Alemanha? Os anos em Paris ou os anos em Nova Iorque? Depois de nos debatermos com todas estas possibilidades, tornou-se finalmente claro que concentrarmo-nos nos quatro anos em que ela escreveu sobre Eichmann era a melhor maneira de retratar a mulher e o seu trabalho. O confronto entre Hannah Arendt e Adolf Eichmann permitiu-nos não apenas aclarar o contraste radical entre estes dois protagonistas, mas também ganhar uma compreensão mais profunda dos tempos negros da Europa do século XX. Ficou famosa a declaração de Hannah Arendt “Ninguém tem o direito de obedecer”. Com a sua recusa firme em obedecer a outra coisa que não o seu
próprio conhecimento e crenças, não podia ser mais diferente de Eichmann. O dever dele, como ele próprio insistia, era ser fiel ao juramento de obedecer às ordens dos seus superiores. Na sua fidelidade cega, Eichmann renunciou uma das principais características que distinguem os seres humanos de todas as outras espécies: a capacida de de pensar por si mesmo. O filme mostra Hannah Arendt como uma teórica política e pensadora independente em luta contra exactamente o seu oposto: o burocrata submisso que não pensa de todo e que, em vez disso, opta por ser um subordinado entusiástico.

O material de arquivo a preto e branco do julgamento permitiu-lhe captar, de forma incisiva, o carácter “não-pensante” de Eichmann.
Só se consegue mostrar a verdadeira “banalidade do mal” observando o verdadeiro Eichmann. Um actor só distorce a imagem, nunca a tornaria mais nítida. Enquanto espectador, pode-se admirar o brilhantismo do actor, mas inevitavelmente não se compreenderia a mediocridade de Eichmann. Ele era um homem incapaz de formular uma única frase gramaticalmente correcta. Pela maneira como falava, era possível ver que ele era incapaz de pensar de forma significativa acerca do que estava a fazer. Há só uma cena com a Barbara Sukowa que tem lugar no verdadeiro tribunal e aí, porque tinha de ser um actor, só se vêem as costas de Eichmann. Filmámos todas as outras cenas de tribunal na sala de imprensa, onde o julgamento foi, de facto, mostrado em vários monitores. Isso foi uma maneira de usar o verdadeiro
Eichmann, através do material de arquivo, em todos os momentos importantes. Mas também tínhamos acabado por acreditar que, uma vez que Arendt era um fumadora inveterada, ela teria passado mais tempo na sala de imprensa do que no tribunal. Dessa forma, podia seguir o julgamento e fumar ao mesmo tempo. Muitos dos outros jornalistas também assistiram ao julgamento nos ecrãs de televisão e enviaram relatórios ao mesmo tempo. A propósito, muito tempo depois de termos escrito esta sequência, conseguimos finalmente falar com a sobrinha de Arendt, Edna Brocke, que estava com ela em Jerusalém na altura. Ela confirmou que “a tia Hannah” tinha, de facto, passado a maior parte do tempo na sala de
imprensa, porque podia fumar lá!
HANNAH ARENDT não seria um filme seu se não víssemos igualmente Hannah Arendt como mulher, amante e amiga. Se não compreendêssemos melhor a complexidade desta grande pensadora.
O filme é também sobre a vida dela em Nova Iorque, a vida com os amigos, o amor por Martin
Heidegger – mesmo estando convencidos de que Heinrich Blücher foi uma figura bem mais importante
na vida dela. Ela chamava a Heinrich as suas “quatro paredes,” querendo dizer a sua verdadeira
“casa”. Heidegger foi o primeiro amor de Hannah e ela continuou ligada a ele, apesar da sua
filiação com os nazis. Mesmo no início da minha investigação, Lotte Köhler, a única amiga ainda
viva de Hannah Arendt, deu-me o livro da correspondência publicada entre Heidegger e Arendt.
Mas assegurou-se de me dizer que Arendt tinha mantido todas as cartas dele na gaveta da
mesa-de-cabeceira. Num flashback, mostramos Arendt a encontrar-se com Heidegger, durante uma visita à Alemanha. Este encontro aconteceu mesmo, apesar de, apenas algumas semanas antes de se encontrarem, ela ter escrito uma carta ao seu amigo e mentor, Karl Jaspers, em que chamava assassino a Heidegger. A sobrinha de Arendt disse que a tia explicava a relação com Heidegger insistindo que “Algumas coisas são mais fortes do que um ser humano.”

Para o papel de Hannah Arendt escolheu novamente Barbara Sukowa. Porquê?
Vi Barbara Sukowa no papel de Hannah Arendt logo do início e, felizmente, consegui ultrapassar alguma resistência inicial a atribuir-lhe o papel. Não teria feito este filme sem a Barbara. Precisava de uma actriz que eu pudesse ver a pensar. A Barbara era a única em quem se podia confiar para dar resposta a este difícil desafio.
É evidente como a Barbara Sukowa se sai bem, entre muitas cenas, no discurso de oito minutos no fim do filme. Poucos realizadores arriscariam tentar manter a atenção do público durante tanto tempo. Porque é que tomou essa decisão?
Muitos sentiam que um filme sobre Hannah Arendt devia, na verdade, começar com um discurso.
Mas começamos com uma conversa entre amigas a falar dos seus maridos. Queríamos que o discurso final fosse o momento em que o público compreende finalmente as conclusões que o seu pensamento trouxe à luz. Só depois de se ter assistido a ela a compilar as suas percepções sobre o carácter de Eichmann e de se ter visto como ela foi atacada por elas de forma tão brutal e frequentemente tão injusta, é que se está disposto a ouvi-la durante tanto tempo. Nessa altura, já nos apaixonámos por ela, bem como pela sua maneira de pensar. E a interpretação da Barbara é simultaneamente tão inteligente e tão emocional que nos tira o fôlego. Dirigimo-nos gradualmente em direcção a este momento, dando lentamente oportunidade ao público de compreender os elementos constitutivos dos pensamentos complexos de Arendt e de entender o que ela queria dizer com a banalidade do mal. O discurso é o clímax intelectual e emocional de todo o filme.
A equipa está a abarrotar de mulheres fortes: Pam Katz como co-argumentista, Bettina Brokemper como produtora, Caroline Champetier como directora de fotografia, Bettina Böhler como montadora… Coincidência ou uma decisão consciente?
Não planeei isso dessa maneira, simplesmente aconteceu. Mas por outro lado, talvez não seja coincidência. Mas Hannah Arendt era o oposto de uma feminista e HANNAH ARENDT também não é o típico “filme de mulher.” É um filme feito por pessoas altamente dedicadas e profissionais, que se comprometeram a contar uma história que faz jus à vida de Hannah Arendt.
De acordo com Karl Jaspers, professor e amigo de Hannah Arendt, “só nos podemos aventurar na esfera pública, quando confiamos nas pessoas”. Cada um dos seus filmes é uma aventura. Como é que isso se aplica a HANNAH ARENDT?
No espírito de Hannah Arendt: confiando que o público passe da ignorância e espanto para o desejo de compreender e, em última instância, chegue a essa compreensão."