continuamos com o luxo 2ªf, 4ªf, 6ªf. na sede. 21h30. TRUFFAUT e GODARD de entrada livre.

(café, chá, bolinhos e... amêndoas também! :)

Dia 18
Pedro, o Louco, Jean-Luc Godard, França/Itália, 1965, 110’

Dia 20
Finalmente, Domingo!, François Truffaut, França, 1983, 110’

Dia 22
Eu Vos Saúdo, Maria, Jean-Luc Godard, Suíça/França, 1985, 105’


Dia 18
PEDRO O LOUCO

Jean-Luc Godard
França/Itália, 1965, 110’

Godard já fizera correr muita tinta, já tinha também posto a câmara a filmar muitas vezes quando chegou a PIERROT LE FOU, que em Portugal foi dos seus filmes o primeiro a estrear. Para além da energia investida como crítico (em 1950 na Gazette du Cinema, com Jacques Rivette e Eric Rohmer; nos Cahiers du Cinéma desde 1952) e da defesa inflamada da “Política dos Autores", tinha passado pela efervescência da Nova Vaga de que foi um dos notórios protagonistas. Já tinha proferido "tiradas" que ficaram tão célebres como a afirmação de o cinema é a verdade a 24 imagens por segundo". Tinham já acontecido, entre outros, À BOUT DE SOUFFLE, LE PETIT SOLDAT, UNE FEMME EST UNE FEMME (1961), VIVRE SA VIE (1962), LES CARABINIERS, LE MÉPRIS (1963), BANDE À PART, UNE FEMME MARIÉE e ALPHA VILLE (1965).

Para PIERROT, Godard pegou no romance policial de" Lionel White L 'Obsession, em Jean-Paul Belmondo (Ferdinand/Pierrot) e Anna Karina (Marianne Renoir) e pô-los anarquicamente em fuga na direcção do mar como uma espécie de último casal romântico. O filme não segue naturalmente o livro. Nunca assim acontece com os filmes de Godard que já na altura entendia o argumento ponto de partida para um trabalho de liberdade, em que à acção se sobrepusessem as palavras (diálogos, leituras, canções, inscrições nos fotogramas), às imagens os sons, colocando o cinema (e também a política, que o cinema é político segundo ele acreditou) no centro da questão. Neste sentido, PIERROT LE Fou (em que Samuel Fuller surge a dar a uma definição de cinema a Ferdinand antes deste pedir as chaves do Lincoln e abandonar a vida que levava com a mesma aparente facilidade de quem fecha uma porta) é um filme bastante livre.

Narrativamente, questionando o sentido de uma relação entre um homem e uma mulher. Formalmente, à procura de sentidos visuais. No fundo, a passagem do livro de arte Ferdinand lê na banheira no princípio do filme anuncia o programa de PIERROT: "Depois de chegar aos 50 anos, Velasquez já não pintava nada de concreto e preciso. Vagueava pelo mundo material, penetrava-o, como o fazem o ar e o crepúsculo...”

PIERROT não segue uma ordem canónica. Se a "história" é apesar de tudo tradicional (dois amantes que se encontram e se separam, vendo-se entretanto envolvidos num enredo policial onde cabem traficantes de armas, complots e assassínios), a forma de a “contar”, pelo contrário, procede por interrupções, foras de campo ou pela alteração da ordem temporal dos acontecimentos através da montagem. Há vários níveis de leitura, a interferência fragmentária de elementos de ordem diversa. Por exemplo, os planos de pintura ou de banda desenhada ou de palavras. Por exemplo, a aparição a dada altura de um figurante que chega, se apresenta e parte, sem que se saiba de onde veio nem para onde vai, ou o plano em que Ferdinand se vira para a. câmara e se dirige explicitamente ao espectador, como explica a Marianne.

Para além das "pausas", os contrastes são permanentes, também ao nível das cores, sobretudo o azul e o vermelho sempre presentes, marcados pelo imaginário da pop arte. O contraste começa logo na caracterização das duas personagens principais que em resumo se podem definir em termos de contemplação (Ferdinand) e de acção (Marianne). É mais do que neles, no espaço e no tempo que impossibilitam o entendimento entre eles que PIERROT se detém. Afinal, nem conseguem concordar no nome dele... a cada vez que ela lhe chama Pierrot (incitando o seu lado aventureiro?) ele responde, “o meu nome é Ferdinand" (afirmando a sua condição de intelectual?). Afinal, ela preocupa-se mais com a linha da sorte e ele com a da anca dela. É ouvir as canções, as histórias que contam um ao outro e tudo se percebe. É olhar os planos e a explosão final fará tanto sentido como a desconcertante última tirada de Belmondo: "Après tout, je suis idiot, merde, merde".
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Maria João Madeira, Europa 60 Ventos de Mudança, Cinemateca Portuguesa

pela importância deste filme e pelo conjunto de textos que recolhemos sobre ele, decidimos disponibilizá-los. siga o link :-)


Título Original: Pierrot Le Fou
Realização: Jean-Luc Godard
Argumento: Jean-Luc Godard segundo o romance de Lionel White, L 'Obsession
Direcção de Fotografia: Raoul Coutard
Montagem: Françoise Collin
Música: Antoine Duhamel
Interpretação: Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Graziella Galvani, Dirk Sanders, Jimmy Karoubi,
Roger Dutoit, Hans Meyer, Raymond Devos, Aicha Abadir, Laszlo Szabo, Samuel Fuller
Origem: França/Itália
Ano de Estreia: 1965
Duração: 110’



Dia 20
Finalmente, Domingo!

François Truffaut
França, 1983, 110’

Ponto final duma obra cinematográfica cindida em duas fases pelo seu autor, Finalmente Domingo parece, em muitos aspectos, reatar estranhamente o discurso dos primeiros filmes de Truffaut. Despreocupação por vezes na fronteira do grotesco, desvios, jogos de palavras, alusões - trata-se em boa verdade dum filme de cinéfilos para cinéfilos. As situações ficcionais nunca são de facto tomadas a sério, mas muito pelo contrário apresentadas como convencionais. E o filme constrói-se com desenvoltura, evidenciando constantemente os protótipos convencionais que vai contudo respeitando até ao desfecho. A mania antológica de Truffaut exerce-se de maneira imperceptível, ao nível formal, infringindo sistematicamente todas as regras de direcção e de montagem que só se podem aprender numa escola de cinema. Todavia Truffaut, sucessor espiritual de Bazin, contribuiu para a fixação teórica dessas «regras» que permitem a «invisibilidade» da montagem, para além de ter leccionado no I.D.H.E.C.. Aliás, o filme tem um certo ar de filme «de escola», desta feita realizado não por um aluno mas por um mestre.

Ausência dos trabalhos pesados de «desdramatização», antes o júbilo da manipulação cinematográfica. Nada de esquiva - como seja a «câmara subjectiva» - o realizador pratica ostensivamente a batota: Barbara não vê o rosto do assassino quando este mata Louison porque a câmara não o apanha, o espectador é informado no fim, não das deduções da detective amadora, mas da sua descoberta (o gabinete do advogado comunica directamente com o salão da esteticista), etc.. O espectador deve aceitar deixar-se guiar, de olhos «vendados» pelas imagens impecáveis de Nestor Almendros comunica o seu prazer em trabalhar a luz no estilo mais convencionalizado do cinema: o filme «negro», de quando Hollywood ainda não se tinha «livrado» dos mestres expressionistas. Mudanças de ângulo que não se tentam justificar, montagem rápida, o cinema enquanto comboio eléctrico.

O prazer que sentimos ao ver este filme - inesperado após vários filmes em que Truffaut se comprometia sem recuo ou pelo contrário jogava o jogo das mais cansadas metáforas sobre a ficção inseparável da vida - vem-nos duma transparência da ficção que, sem facilidades como por exemplo mostrar o estúdio (E la nave va, The ladies’ man, High anxiety) - nem didactismo - como o movimento em abismo tão banalizado desde OITO E MEIO (A NOITE AMERICANA ou até INSERTS ou O ESTADO DAS COISAS, apesar destes dois últimos não se limitarem felizmente a este discurso) - lembra permanentemente a sua natureza fílmica. A evolução da intriga assenta na capacidade, por parte dos personagens investigadores, de representar papéis - trata-se uma vez mais duma convenção presente nas boas comédias hollywoodianas de Bells are ringing a The Sting. Nada de novo neste filme, a não ser uma respiração mais leve, liberta, se não das convenções, pelo menos das suas prevenções e pretensões, uma iconoclastia amadurecida. Algures, a serenidade de quem conseguiu dar forma aos seus sonhos cinematográficos de juventude.
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Saguenail, A Grande Ilusão n.º 2/3


Título Original: Vivement dimanche
Realização: François Truffaut,
Argumento: François Truffaut, Suzanne Schiffman e Jean Aurel, segundo a novela "The Long Saturday Night", de Charles Williams
Direcção de Fotografia: Néstor Almendros
Montagem: Martine Barraqué
Música: Georges Delerue
Interpretação: Fanny Ardant, Jean-Louis Trintignant, Jean-Pierre Kalfon, Philippe Laudenbach, Philippe Morier,
Xavier Saint-Macary, Jean-Louis Richard, Caroline Sihol, Castel Casti
Origem: França
Ano de Estreia: 1983
Duração: 110’



Dia 22
Eu Vos Saúdo, Maria

Jean-Luc Godard
Suíça/França, 1985, 105’

Importa que desde já se diga, Ju Vous Salue Marie é uma das mais belas homenagens à Mulher que jamais vi. Depois dele, Godard pode emparceirar com os mais destacados «cineastas da mulher», Bergman, Antonioni, Cukor, . . ., mas com uma diferença importante, é que este suíço, que se quer maldito, vai ainda mais além.

Muitos no filme só quiseram ver a anedota (quer dizer a narrativa), a transposição para os nossos dias da Imaculada Conceição, a história da Virgem Maria. Que Jean-Luc Godard tenha escolhido uma figura querida de uma das maiores religiões do mndo para a sua homenagem, só deveria ser motivo de congratulação para os cristãos. E alguns compreenderam-na assim, como aquele teólogo jesuíta italiano, Egidio Guidobaldi (um homem de 75 anos) que considerou o filme uma homenagem à doutrina do matrimónio, contra a opinião do próprio Papa. A questão religiosa não me parece o essencial, será, no entanto, de referir a sinopse. Não esquecendo nunca que uma sinopse, se pouco diz sobre um filme, muito menos ainda se se trata de um Godard.

Maria é estudante liceal e jogadora de basquetebol na equipa da sua escola. É uma rapariga como as outras. O seu namorado, José, é motorista de taxi. O pai dela explora uma bomba de gasolina. Nada, portanto, mais banal. O extraordinário chega de avião, um sujeito chamado Gabriel que a visita, acompanhado de um «querubim», e lhe dá a entender que tinha sido escolhida para algo de especial. Efectivamente Maria fica grávida, sem intervenção de José ou de qualquer outro homem (e muito menos por qualquer inseminação artificial). José, depois de muitas hesitações, perfilha a criança, entretanto nascida (cujo nome nunca é pronunciado no filme), e esta cresce, comportando-se como um menino relativamente normal. Paralelamente, desenvolvem-se outras «estórias», como a daquele exilado de um país do leste Europeu que se dedica ao futurismo e à cosmologia.

Isto, repita-se, quase nada diz sobre o filme. É que, através da homenagem a uma mulher, é da própria vida que Godard nos fala. É da mulher mãe-natureza que se trata. A ambição deste é pois ilimitada. Se WEEK-END era um juízo sobre a nossa sociedade, agora é o próprio Cosmos que é questionado.

No filme, o autor age pela insistência e pela depuração. Se por um lado só se fala do essencial (Godard aqui abandona as suas habituais "boutades»), por outro, esse essencial é constantemente sublinhado.

O primeiro plano de JE VOUS SALUE, MARIE mostra-nos as águas (berço da vida) a agitarem-se e o último «mergulha-nos» numa boca de mulher que se amplia num buraco negro (um vórtice).

Os "leit motiv» são o corpo de Maria e a Natureza. O corpo da mulher agitando-se, o corpo da mulher em convulsões, as plantas vergando-se, as nuvens movendo-se no horizonte. O sopro que percorre o corpo de Maria é o mesmo que anima a Terra. Talvez seja preciso ser-se panteísta para o afirmar, mas a ambiência telúrica do filme é de tal modo insistente que é difícil fugir a isso. O resto, são os pobres diabos, somos nós deambulando pelo mundo a tentar compreendê-lo, como o julgamento de José na loja de pronto-a-vestir. "É incapaz de escolher bem um gravata, ou mesmo de segurar o seu cão pela trela, tem horror aos buracos. . .».

A interrogação de Godard é esta. "E se tudo estivesse programado?”. Mistério não é aquilo que não tem explicação, é aquilo que ainda ninguém conseguiu explicar. José, como nós, não percebeu e questiona. Gabriel responde que é a Lei. A Lei é-nos dada no plano seguinte, um campo de plantas floridas agitadas pelo vento. É a lei da Natureza. A dureza de Gabriel é a dureza da Natureza. A Natureza não é suave. O sentido das palavras é completado com as imagens. Imagens e palavras complementam-se, nada é gratuito, nada está a mais ou a menos.

"Ser sábio seria poder ver a vida, vê-la mesmo», diz-nos Godard em MASCULINO FEMININO. Atrevo-me a dizer que poucos foram tão longe, nessa tentativa de nos mostrar a vida, como Godard. Não a vida do dia-a-dia (sempre presente nos seus filmes), não a vida do homem, a vida da mulher, a vida dos animais, mas, simplesmente, a Vida.

(...) Trata-se de facto duma obra de uma superior dignidade e mesmo alguns dos que fizeram profissão de fé o souberam reconhecer. Com Jean-Luc Godard novas relações se estabelecem entre o cinema e o sagrado.
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André de Oliveira e Sousa, Revista Cinema, n.º 9/10, Inverno 85/86


Título Original: Je vous salue, Marie
Realização: Jean-Luc Godard
Argumento: Jean-Luc Godard
Direcção de Fotografia: Jacques Firmann e Jean-Bernard Menoud
Montagem: Anne-Marie Miéville
Música: Johann Sebastian Bach e Antonín Dvorák (compositores)
Interpretação: Myriem Roussel, Thierry Rode, Philippe Lacoste, Manon Andersen, Malachi Jara Kohan Juliette Binoche
Origem: França/Suíça
Ano de Estreia: 1985
Duração: 105’
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(lotação: 25 lugares)
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