CONVERSA/DEBATE – dirigido a alunos de 3º ciclo e ensino secundário
IPJ, 21H30, entrada paga (sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€)
A MORTE DE CARLOS GARDEL, Portugal, 2011, 87’, M/12
BLOG DO FILME
Solveig Nordlund atreveu-se adaptar António Lobo Antunes ao cinema. Ou melhor, afeiçoou a si própria o romance “A Morte de Calos Gardel” e fez um filme visceral e emocionante.
Ponhamos as coisas no ponto certo. É impossível transpor António Lobo Antunes para cinema. A exploração espaciotemporal continuada que ele usa, desde há aos, como estrutura encantatória e carceral não tem equivalente cinematográfico possível.
O mais perto que se pode chegar, sem se vaguear no acronismo, é o que fez a realizadora deste filme, salteando sequências temporalmente disjuntas, num processo que não sinaliza as transições mas que o espectador avisado decifra sem problemas. O leque factual do romance também é largo de mais para os propósitos do filme. Solveig Nordlund restringe-o, fecha-se em torno do casal separado com um filho no hospital em risco de vida induzido pela toxicodependência, numa cunhada médica e em mais duas breves personagens adjacentes. A tragédia é aquele abeiramento da morte e a memória, o estraçalhamento interior, o acordar da culpa que vem atrás. Pela escada abaixo, como se a vida tivesse tropeçado e tudo viesse a desabar em catadupa, são histórias de adultos desencontrados nos egoísmos dos seus mundos autocêntricos. Mas ao contrário do universo do romance, não é gente para execrar. Solveig gosta deles. Lobo Antunes não. Tudo é embalado pelo tango – obsessão do protagonista masculino, herança de família, a única coisa certa na sua vida -, que o filme mostra ora como harmonia perfeita ora como sobrevivência patética. Tire-se o chapéu, a propósito, para saudar a generosidade com que Rui de Carvalho entrega a pungente dignidade do seu episódico personagem. Em “A Morte de Carlos Gardel” há muita coragem na exposição de sentimentos fundos. À flor da pele, vivida, surpreendentemente numa cineasta quem tendo nascido na Suécia, vivendo e trabalhando em Portugal há quase 50 anos, e com um lugar no cinema português desde a segunda metade da década de 70, nunca teve um empenhamento emocional tão direto. Agora é um processo de autoaniquilação e neles há quase um processo de culpabilidade dos adultos. “A Morte de Carlos Gardel” é sobre pais, não sobre filhos perdidos, uma autoanálise adulta, olhos nos olhos. Com um toque de melodrama – e desespero. Rui Morisson, Celia Williams, Teresa Gafeira e o estreante Carlos Malvarez dividem, entre si, os papéis principais de um filme a que uma competente produção de Luís Galvão Teles deu condições de visibilidade. Pudera que isto bastasse para o merecido sucesso do público.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
Anda com o livro debaixo de olho desde que foi publicado, em 1994, história próxima de um autor próximo sobre quem se debruça, entretanto, em 1998 e 2009, em dois documentários. "Mas só há cinco anos é que decidi transpô-lo para filme", afirma Solveig Nordlund. De António Lobo Antunes não foi difícil obter os direitos de "A Morte de Carlos Gardel" nem escrever a adaptação, que empreendeu sozinha. "Reduzi a história. E acrescentei coisas minhas. A segunda mulher do Álvaro, por exemplo, é diferente, no livro ela até é uma ternura, eu trato a personagem um bocadinho pior. Depois, até fiquei com alguma má consciência..." É certo, todavia, que no filme o tango está muito mais presente, "talvez porque o livro não tenha banda sonora".
Solveig não concorda comigo quanto ao olhar diverso com que romancista e cineasta olham os personagens: "Não acho que o António despreze os personagens, ele gosta deles, gosta é de uma maneira diferente do que eu gosto - aliás, o Álvaro é um bocadinho o seu alter ego, e estou convencidíssima que ele gosta de si próprio." Mas assume que tem uma ligação forte com aqueles seres, ao ponto de dizer, face ao personagem de Cláudia: "Identifico-me com ela, as palavras dela podiam ser minhas."
Na altura em que nos encontrámos (Lobo Antunes ainda não vira o filme), quando lhe pergunto se lhe importa a opinião do escritor, Solveig é desarmante: "Agora não há nada a fazer." Logo acrescentando: "Mas claro que preferia que ele gostasse." Nos intérpretes, a escolha primeira foi Rui Morisson e para o papel de Cláudia "pensei primeiro na Maria João Luís, que tinha que falar com sotaque, depois numa atriz sueca, mas acabei por escolher a Celia Williams, por casting. A 'Celia' mais nova é norueguesa [Ida Holten Worsoe] e decorou os diálogos em português foneticamente, com ajuda de auricular, pois não fala português. A Teresa Gafeira também foi uma escolha inicial, eu trabalho muito com o Teatro de Almada e conheço-a de lá. É um desperdício que o cinema português quase nunca a tenha utilizado.
Muito bem conseguida é a exequível transposição para cinema da mescla temporal de Lobo Antunes, "um trabalho de corta e cola, quer no argumento quer na montagem. No papel, os tempos já se entrecruzavam, mas depois verifiquei que nem sempre resultava. Desloquei algumas cenas de um sítio para outro", numa procura de rimas que acabaram irrepreensíveis, digo eu. E houve material que se filmou e acabou fora do filme: "Por exemplo, o livro começa com a chegada ao hospital e chove. Eu filmei a cena, só que não consegui que a chuva funcionasse bem. Então, decidi que o filme ia começar com o tango. Também filmei várias cenas que se passavam depois da morte, mas percebi na montagem que, depois daquele momento tão forte, os espectadores não iam querer saber mais nada. Ficou o final com o Rui de Carvalho", mas essa ¬é uma outra morte, uma espécie de suicídio existencial do protagonista.
"A Morte de Carlos Gardel" estreia em Portugal sem ter feito um périplo por festivais. "Não quisemos adiar a estreia para 2012. E fiz bem. Está a agradar às pessoas que já o viram, é um filme português com condições de conquistar o público. Isso é o essencial. As vendas, nos festivais, hoje em dia, não existem. Mas apostámos na Argentina, espero que o filme vá ao Festival de Mar del Plata, em novembro."
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
A obra de Solveig Nordlund, ainda que sofra com a intermitência que afecta a maior parte dos realizadores portugueses, está cheia de coisas singulares, e não se trata de uma cineasta que se deixe “apanhar” (quer dizer: “classificar”, “catalogar”) facilmente. O chamado “grande público” talvez guarde, sobretudo, a memória de “Dina e Django”, uma história de marginalidade lisboeta que foi um relativamente famoso sucesso (de estima, pelo menos) no princípio dos anos 80. Mas também se deve a Solveig um dos (apesar de tudo, raros) filmes “madeirenses” do cinema português, “Até Amanhã, Mário”, feito nos anos 90, ou, mais peculiar ainda, uma frágil mas feliz adaptação de J.G. Ballard, “Aparelho Voador a Baixa Altitude”, no princípio da década passada. Também filmou Richard Zimler, numa curta-metragem, “Espelho Lento”, com data do ano passado. Depois de 8 anos sem filmar longas-metragens (tínhamo-la deixado com “A Filha”, de 2003, talvez o mais indistinto dos seus filmes), ei-la de regresso com novo “aparelho” razoavelmente singular: uma adaptação de um livro de António Lobo Antunes, “A Morte de Carlos Gardel”, na primeira vez que o cinema português se aventura pela obra do escritor. Ajuda que se trate, como a própria Solveig sublinhou, do mais “linear” e mais “descritivo” dos relatos de Lobo Antunes, mas sobeja, ainda assim, complexidade suficiente para que o filme precise de ter uma estrutura intrincada, sobretudo na gestão dos diferentes tempos narrativos e dos pontos de vista das várias personagens. É uma história de impasse e introspecção: no tempo presente há um miúdo que está no hospital entre a vida e morte, e segue-se a ansiedade dos seus familiares e amigos (pai e mãe, separados, a tia, a madrasta, a namorada), um frenesi que se confunde com um estado de “suspensão”, uma “paragem no tempo” que implica um mergulho na revisão das várias biografias em causa. A estes “flash backs” e alternâncias temporais acresce uma espécie de tempo “imaginário”, nascido da fixação do protagonista masculino (Rui Morrison, no registo impecavelmente seco que lhe é habitual) pelas canções de Carlos Gardel, simultaneamente um bálsamo e uma maldição (ou pelo menos ele assim o sugere). As cenas que directamente exploram esta fixação são as melhores, as mais assombradas: “el dia que me quieras”, com certeza, mas sobretudo o ambiente irreal do cabaret aonde Morrison vai ouvir um “impersonator” de Gardel (Rui de Carvalho), em “playbacks” que, todas as devidas diferenças consideradas, não deixam de evocar, em registo menos alucinado, o “playback” de Dean Stockwell (uma canção de Roy Orbison) no “Blue Velvet” de Lynch. Em todo o caso, o efeito pretendido, narrativa e poeticamente, não anda longe, e é crucial. Crucial para introduzir um negrume, uma perturbação, que vem interromper o registo “claro” com que Solveig conta a sua história, uma “clareza” que tem virtudes (por exemplo, uma certa aspereza na introdução dos “flash-backs”) mas também se deixa cair, porventura demasiadas vezes, num naturalismo que parece excessivamente casual, perigosamente próxima da “espontaneidade” banal da “ficção televisiva” (a iluminação, a ausência de espessura da fotografia digital, ajuda a que se fique com essa sensação). Dentro destes limites e desequilíbrios, é proposta digna e séria, que acerta no que para Solveig talvez fosse o essencial: embeber o quotidiano comum da carga fantasmática e nocturna do “espírito” de Gardel. Semanas depois de visto o filme, essas cenas aindas nos permanecem vívidas na memória.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
ENTREVISTA A SOLVEIG NORDLUND
Onde começa esta relação com a obra de António Lobo Antunes que a levou agora a escolher esta obra em particular?
Em 1997, fui convidada pela SVT - a televisão sueca - para fazer uma introdução à obra de Lobo Antunes, que nessa altura era uma dos candidatos mais falados para o Prémio Nobel. E comecei a ler António Lobo Antunes. Li todos os seus livros e tornei-me fã da sua forma impressionista de escrever. Gostei sobretudo de "Os Cús de Júdas", "Fado Alexandrino" e "A Morte de Carlos Gardel". Com os anos fui ampliando e completando o documentário até acabá-lo em 2010 com o título "Escrever, Escrever, Viver". Entretanto tinha falado com António sobre a possibilidade de adaptar " A Morte de Carlos Gardel" para o cinema e ele deu-me carta-branca para escrever o guião.
Já trabalhou no cinema muitas obras literárias, o que a cativa neste processo de compor imagens em cima das palavras?
Já fiz várias adaptações de obras literárias para o cinema – “Até Amanhã, Mário” (de Grete Roulund), “Comédia Infantil” (de Henning Mankell), “Aparelho Voador a Baixa Altitude” (de J.G. Ballard), “O Espelho Lento” (de Richard Zimler) e agora “A Morte de Carlos Gardel” de António Lobo Antunes. Não sei porque prefiro adaptar uma obra já existente em vez de escrever uma história de raiz, que também fiz várias vezes – “Dina & Django”, “A Filha”. Penso que me considero mais protegida quando houve outra pessoa antes de mim a pensar na história e nas suas implicações. E é também um desafio traduzir uma obra de que se gosta muito para uma outra linguagem.
Onde acaba a obra de António Lobo Antunes e começa a de Solveig Nordlund?
"A morte de Carlos Gardel" é um exemplo disto. Gostei muito do livro e da emoção que transmitia. O desafio a adaptá-lo ao cinema foi tornar a história compreensível sem perder a respiração e a emoção do livro. O livro estende-se no tempo e no espaço, tive que reduzir as personagens e centrar a história ao essencial - a morte do filho toxicodependente e como esta morte transforma as pessoas à sua volta.
Qual o aspecto que a atraiu mais nesta história?
O que me atrai nesta história é a grande culpa que as personagens sentem. Não sabem agir perante os acontecimentos e procuram desesperadamente algo que dê sentido e que lhes possa fazer•perdoar. O pai procura um falso Carlos Gardel para dar sentido à sua vida depois da morte do filho.
IPJ, 21H30, entrada paga (sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€)
A MORTE DE CARLOS GARDEL, Portugal, 2011, 87’, M/12
BLOG DO FILME
Solveig Nordlund atreveu-se adaptar António Lobo Antunes ao cinema. Ou melhor, afeiçoou a si própria o romance “A Morte de Calos Gardel” e fez um filme visceral e emocionante.
Ponhamos as coisas no ponto certo. É impossível transpor António Lobo Antunes para cinema. A exploração espaciotemporal continuada que ele usa, desde há aos, como estrutura encantatória e carceral não tem equivalente cinematográfico possível.
O mais perto que se pode chegar, sem se vaguear no acronismo, é o que fez a realizadora deste filme, salteando sequências temporalmente disjuntas, num processo que não sinaliza as transições mas que o espectador avisado decifra sem problemas. O leque factual do romance também é largo de mais para os propósitos do filme. Solveig Nordlund restringe-o, fecha-se em torno do casal separado com um filho no hospital em risco de vida induzido pela toxicodependência, numa cunhada médica e em mais duas breves personagens adjacentes. A tragédia é aquele abeiramento da morte e a memória, o estraçalhamento interior, o acordar da culpa que vem atrás. Pela escada abaixo, como se a vida tivesse tropeçado e tudo viesse a desabar em catadupa, são histórias de adultos desencontrados nos egoísmos dos seus mundos autocêntricos. Mas ao contrário do universo do romance, não é gente para execrar. Solveig gosta deles. Lobo Antunes não. Tudo é embalado pelo tango – obsessão do protagonista masculino, herança de família, a única coisa certa na sua vida -, que o filme mostra ora como harmonia perfeita ora como sobrevivência patética. Tire-se o chapéu, a propósito, para saudar a generosidade com que Rui de Carvalho entrega a pungente dignidade do seu episódico personagem. Em “A Morte de Carlos Gardel” há muita coragem na exposição de sentimentos fundos. À flor da pele, vivida, surpreendentemente numa cineasta quem tendo nascido na Suécia, vivendo e trabalhando em Portugal há quase 50 anos, e com um lugar no cinema português desde a segunda metade da década de 70, nunca teve um empenhamento emocional tão direto. Agora é um processo de autoaniquilação e neles há quase um processo de culpabilidade dos adultos. “A Morte de Carlos Gardel” é sobre pais, não sobre filhos perdidos, uma autoanálise adulta, olhos nos olhos. Com um toque de melodrama – e desespero. Rui Morisson, Celia Williams, Teresa Gafeira e o estreante Carlos Malvarez dividem, entre si, os papéis principais de um filme a que uma competente produção de Luís Galvão Teles deu condições de visibilidade. Pudera que isto bastasse para o merecido sucesso do público.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
Anda com o livro debaixo de olho desde que foi publicado, em 1994, história próxima de um autor próximo sobre quem se debruça, entretanto, em 1998 e 2009, em dois documentários. "Mas só há cinco anos é que decidi transpô-lo para filme", afirma Solveig Nordlund. De António Lobo Antunes não foi difícil obter os direitos de "A Morte de Carlos Gardel" nem escrever a adaptação, que empreendeu sozinha. "Reduzi a história. E acrescentei coisas minhas. A segunda mulher do Álvaro, por exemplo, é diferente, no livro ela até é uma ternura, eu trato a personagem um bocadinho pior. Depois, até fiquei com alguma má consciência..." É certo, todavia, que no filme o tango está muito mais presente, "talvez porque o livro não tenha banda sonora".
Solveig não concorda comigo quanto ao olhar diverso com que romancista e cineasta olham os personagens: "Não acho que o António despreze os personagens, ele gosta deles, gosta é de uma maneira diferente do que eu gosto - aliás, o Álvaro é um bocadinho o seu alter ego, e estou convencidíssima que ele gosta de si próprio." Mas assume que tem uma ligação forte com aqueles seres, ao ponto de dizer, face ao personagem de Cláudia: "Identifico-me com ela, as palavras dela podiam ser minhas."
Na altura em que nos encontrámos (Lobo Antunes ainda não vira o filme), quando lhe pergunto se lhe importa a opinião do escritor, Solveig é desarmante: "Agora não há nada a fazer." Logo acrescentando: "Mas claro que preferia que ele gostasse." Nos intérpretes, a escolha primeira foi Rui Morisson e para o papel de Cláudia "pensei primeiro na Maria João Luís, que tinha que falar com sotaque, depois numa atriz sueca, mas acabei por escolher a Celia Williams, por casting. A 'Celia' mais nova é norueguesa [Ida Holten Worsoe] e decorou os diálogos em português foneticamente, com ajuda de auricular, pois não fala português. A Teresa Gafeira também foi uma escolha inicial, eu trabalho muito com o Teatro de Almada e conheço-a de lá. É um desperdício que o cinema português quase nunca a tenha utilizado.
Muito bem conseguida é a exequível transposição para cinema da mescla temporal de Lobo Antunes, "um trabalho de corta e cola, quer no argumento quer na montagem. No papel, os tempos já se entrecruzavam, mas depois verifiquei que nem sempre resultava. Desloquei algumas cenas de um sítio para outro", numa procura de rimas que acabaram irrepreensíveis, digo eu. E houve material que se filmou e acabou fora do filme: "Por exemplo, o livro começa com a chegada ao hospital e chove. Eu filmei a cena, só que não consegui que a chuva funcionasse bem. Então, decidi que o filme ia começar com o tango. Também filmei várias cenas que se passavam depois da morte, mas percebi na montagem que, depois daquele momento tão forte, os espectadores não iam querer saber mais nada. Ficou o final com o Rui de Carvalho", mas essa ¬é uma outra morte, uma espécie de suicídio existencial do protagonista.
"A Morte de Carlos Gardel" estreia em Portugal sem ter feito um périplo por festivais. "Não quisemos adiar a estreia para 2012. E fiz bem. Está a agradar às pessoas que já o viram, é um filme português com condições de conquistar o público. Isso é o essencial. As vendas, nos festivais, hoje em dia, não existem. Mas apostámos na Argentina, espero que o filme vá ao Festival de Mar del Plata, em novembro."
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
A obra de Solveig Nordlund, ainda que sofra com a intermitência que afecta a maior parte dos realizadores portugueses, está cheia de coisas singulares, e não se trata de uma cineasta que se deixe “apanhar” (quer dizer: “classificar”, “catalogar”) facilmente. O chamado “grande público” talvez guarde, sobretudo, a memória de “Dina e Django”, uma história de marginalidade lisboeta que foi um relativamente famoso sucesso (de estima, pelo menos) no princípio dos anos 80. Mas também se deve a Solveig um dos (apesar de tudo, raros) filmes “madeirenses” do cinema português, “Até Amanhã, Mário”, feito nos anos 90, ou, mais peculiar ainda, uma frágil mas feliz adaptação de J.G. Ballard, “Aparelho Voador a Baixa Altitude”, no princípio da década passada. Também filmou Richard Zimler, numa curta-metragem, “Espelho Lento”, com data do ano passado. Depois de 8 anos sem filmar longas-metragens (tínhamo-la deixado com “A Filha”, de 2003, talvez o mais indistinto dos seus filmes), ei-la de regresso com novo “aparelho” razoavelmente singular: uma adaptação de um livro de António Lobo Antunes, “A Morte de Carlos Gardel”, na primeira vez que o cinema português se aventura pela obra do escritor. Ajuda que se trate, como a própria Solveig sublinhou, do mais “linear” e mais “descritivo” dos relatos de Lobo Antunes, mas sobeja, ainda assim, complexidade suficiente para que o filme precise de ter uma estrutura intrincada, sobretudo na gestão dos diferentes tempos narrativos e dos pontos de vista das várias personagens. É uma história de impasse e introspecção: no tempo presente há um miúdo que está no hospital entre a vida e morte, e segue-se a ansiedade dos seus familiares e amigos (pai e mãe, separados, a tia, a madrasta, a namorada), um frenesi que se confunde com um estado de “suspensão”, uma “paragem no tempo” que implica um mergulho na revisão das várias biografias em causa. A estes “flash backs” e alternâncias temporais acresce uma espécie de tempo “imaginário”, nascido da fixação do protagonista masculino (Rui Morrison, no registo impecavelmente seco que lhe é habitual) pelas canções de Carlos Gardel, simultaneamente um bálsamo e uma maldição (ou pelo menos ele assim o sugere). As cenas que directamente exploram esta fixação são as melhores, as mais assombradas: “el dia que me quieras”, com certeza, mas sobretudo o ambiente irreal do cabaret aonde Morrison vai ouvir um “impersonator” de Gardel (Rui de Carvalho), em “playbacks” que, todas as devidas diferenças consideradas, não deixam de evocar, em registo menos alucinado, o “playback” de Dean Stockwell (uma canção de Roy Orbison) no “Blue Velvet” de Lynch. Em todo o caso, o efeito pretendido, narrativa e poeticamente, não anda longe, e é crucial. Crucial para introduzir um negrume, uma perturbação, que vem interromper o registo “claro” com que Solveig conta a sua história, uma “clareza” que tem virtudes (por exemplo, uma certa aspereza na introdução dos “flash-backs”) mas também se deixa cair, porventura demasiadas vezes, num naturalismo que parece excessivamente casual, perigosamente próxima da “espontaneidade” banal da “ficção televisiva” (a iluminação, a ausência de espessura da fotografia digital, ajuda a que se fique com essa sensação). Dentro destes limites e desequilíbrios, é proposta digna e séria, que acerta no que para Solveig talvez fosse o essencial: embeber o quotidiano comum da carga fantasmática e nocturna do “espírito” de Gardel. Semanas depois de visto o filme, essas cenas aindas nos permanecem vívidas na memória.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
ENTREVISTA A SOLVEIG NORDLUND
Onde começa esta relação com a obra de António Lobo Antunes que a levou agora a escolher esta obra em particular?
Em 1997, fui convidada pela SVT - a televisão sueca - para fazer uma introdução à obra de Lobo Antunes, que nessa altura era uma dos candidatos mais falados para o Prémio Nobel. E comecei a ler António Lobo Antunes. Li todos os seus livros e tornei-me fã da sua forma impressionista de escrever. Gostei sobretudo de "Os Cús de Júdas", "Fado Alexandrino" e "A Morte de Carlos Gardel". Com os anos fui ampliando e completando o documentário até acabá-lo em 2010 com o título "Escrever, Escrever, Viver". Entretanto tinha falado com António sobre a possibilidade de adaptar " A Morte de Carlos Gardel" para o cinema e ele deu-me carta-branca para escrever o guião.
Já trabalhou no cinema muitas obras literárias, o que a cativa neste processo de compor imagens em cima das palavras?
Já fiz várias adaptações de obras literárias para o cinema – “Até Amanhã, Mário” (de Grete Roulund), “Comédia Infantil” (de Henning Mankell), “Aparelho Voador a Baixa Altitude” (de J.G. Ballard), “O Espelho Lento” (de Richard Zimler) e agora “A Morte de Carlos Gardel” de António Lobo Antunes. Não sei porque prefiro adaptar uma obra já existente em vez de escrever uma história de raiz, que também fiz várias vezes – “Dina & Django”, “A Filha”. Penso que me considero mais protegida quando houve outra pessoa antes de mim a pensar na história e nas suas implicações. E é também um desafio traduzir uma obra de que se gosta muito para uma outra linguagem.
Onde acaba a obra de António Lobo Antunes e começa a de Solveig Nordlund?
"A morte de Carlos Gardel" é um exemplo disto. Gostei muito do livro e da emoção que transmitia. O desafio a adaptá-lo ao cinema foi tornar a história compreensível sem perder a respiração e a emoção do livro. O livro estende-se no tempo e no espaço, tive que reduzir as personagens e centrar a história ao essencial - a morte do filho toxicodependente e como esta morte transforma as pessoas à sua volta.
Qual o aspecto que a atraiu mais nesta história?
O que me atrai nesta história é a grande culpa que as personagens sentem. Não sabem agir perante os acontecimentos e procuram desesperadamente algo que dê sentido e que lhes possa fazer•perdoar. O pai procura um falso Carlos Gardel para dar sentido à sua vida depois da morte do filho.
Título Original: A Morte de Carlos Gardel
Realização: Solveig Nordlund
Direcção de Fotografia: Acácio Almeida
Montagem: Paulo MilHomens
Música original: Pedro Marques
Interpretação: Rui Morisson, Teresa Gafeira, Celia Williams, Carlos Malvarez, Miguel Mestre,
Joana de Verona, Elmano Sancho, Ida Holten Worsøe, Albano Jerónimo, Maria João Pinho.
Participação especial: Ruy de Carvalho
Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 87’
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