Abbas Kiarostami: Reflexões Sobre o Cinema| Sede 08Nov2012 21:30| entrada gratuita



08 de Novembro CLOSE-UP

fICHA TÉCNICA
Título Original: Nema-Ye Nazdik
Realização e Argumento: Abbas Kiarostami
Fotografia: Ali Reza Zarrin-Dast
Montagem: Abbas Kiarostami 
Som e Sincronização: Mohammad Haqiqi, Ahmad Asghari, Hassan Zahedi e Yahangir Mirshekari
Intrepretação: Hossain Sabzian,  Mohsen Makhmalbaf, Abolfazl Ahankhah, Mehrdad Ahankhah, Monoochehr Ahankhah, Mahrokh Ahankhah, Nayer Mohseni Zonoozi, Ahmad Reza, Moayed Mohseni, Hossain Farazmand, Hooshang Shamaei, Mohammad Ali Barrati, Davood Goodarzi, Haj Ali Reza Ahmadi, Abbas Kiarostami
Origem: IRÃO
Ano: 1990
Duração: 93’ 


Sinopse: Close-Up (Nema-Ye Nazdik) é a grande obra-prima de Abbas Kiarostami, inédita e quase desconhecida em Portugal. Neste filme o realizador iraniano leva mais longe a sua arte, baralhando as fronteiras do documentário e da ficção, pondo as pessoas a interpretarem-se a si próprias, recriando acontecimentos reais, e fazendo com que a linha entre o cinema e a vida se esbata.
A história gira em torno de Hossain Sabzian, um jovem e modesto empregado de uma tipografia, que é também um cinéfilo apaixonado pela obra do realizador Mohsen Makhmalbaf, e que se faz passar por ele junto de uma família. Quando a sua burla é descoberta, Sabzian é preso e julgado por tentativa de fraude. Kiarostami visitou Sabzian na prisão, e obteve permissão para filmar o seu julgamento. O resultado é este impressionante filme que levanta questões sobre o trabalho e a vida, e ainda sobre o próprio cinema e a sua vivência no Irão.


"Close Up, E a Vida Continua, Através das Oliveiras, O Sabor da Cereja, O Vento levar-nos-á...
Diz-se de Kiarostami que faz filmes simples na mesma exacta medida da sua sofisticada elaboração. A contradição é só aparente e a premissa é absolutamente verdadeira. Close Up é exemplar dessa suposta linearidade e dessa incessante abertura. Na altura em que o filmou, em 1990, o mesmo ano de Trabalhos de Casa que, como este, com­bina registos ditos de ficção (nestes dois casos concretos, cenas de reconstituição de acontecimentos verídicos: os planos da equipa e do próprio Kiarostami em Trabalhos de Casa, todas as sequências de Close Up, à excepção de parte da do julgamento) e documentais sem que uns e outros sejam necessariamente aquilo que à primeira vista parecem, Abbas Kiarostami não tinha ainda exprimido teoricamente a sua posição relati­vamente ao cinema em que acredita. À medida em que a sua obra foi sendo vista, reco­nhecida e comentada, as entrevistas sucederam-se e com elas a explicitação dos pon­tos de vista do realizador relativamente ao seu trabalho. Vale a pena citá-lo numa entre­vista a Jean-Luc Nancy recentemente publicada:
"Acontece-me pensar: como posso fazer um filme sem dizer nada? (...) Quando se conta uma história, não se conta senão uma história e cada espectador, com a sua própria capacidade de imaginação, ouve uma história. Mas quando não se diz nada é como se se dissesse uma multiplicidade de coisas. O poder passa para o espectador: André Gide dizia que a importância está no olhar, e não no tema. E Godard diz que aquilo que está sobre o ecrã está já morto. É o olhar do espectador que lhe insufla a vida. (...) Até agora, não consegui encontrar uma definição do cinema. Se se considerar que o cine­ma tem o dever de contar histórias, parece-me que o romance o faz bem melhor. As peças radiofónicas, as séries televisivas também cumprem o propósito. Penso noutro cinema que me torna mais exigente e que é definido como a sétima arte. Neste cinema há música, história, sonho, poesia. (...) Raramente vi alguém dizer a propósito de um poema: não percebo. Mas no cinema, desde que não se tenha estabelecido uma liga­ção, um vínculo, é frequente dizer-se que não se compreendeu o filme. Ora, a incom­preensão faz parte da essência da poesia. Ela é aceite nesses termos. O mesmo se passa com a música. O cinema é diferente. Aborda-se um poema com os seus senti­mentos, e o cinema com o seu pensamento, o seu intelecto. Não é suposto poder con­tar-se um bom poema, mas é suposto fazê-lo no caso de um bom filme, quando se está ao telefone com um amigo. Penso que se o cinema deve ser considerado como uma arte maior, é preciso conceder-lhe esta possibilidade de não ser compreendido (...). Se se considera o cinema verdadeiramente como uma arte, a sua ambiguidade, o seu mis­tério são indispensáveis. A única forma de encarar um novo cinema é ponderar mais o papel do espectador. É preciso considerar um cinema inacabado e incompleto para que o espectador possa intervir e preencher os vazios, as faltas. Em vez de fazer um filme com uma estrutura sólida e impecável, é preciso fragilizá-la - sempre tendo consciên­cia que não se deve fazer o espectador fugir! A solução talvez seja justamente incitar o espectador a ter uma presença activa e construtiva. Acredito mais numa arte que pro­cura criar a diferença, a divergência entre as pessoas do que a convergência onde o mundo esteja todo de acordo".
Citação irresistível de um resistente. Mas o que tem esta longa dissertação directamente a ver com Close Up, que ainda por cima a antecede em onze anos? Tudo. Close Up não é um filme polido, é um filme com uma estrutura "imperfeita", mantém o misté­rioo e a ambiguidade, é facilmente contável à superfície, mas guarda intactas, a diferen­tes níveos, uma quantidade de leituras. Além de tudo isto, é dos filmes de Kiarostami que mais claramente convoca uma reflexão sobre o poder do cinema, encena a questão do verdadeiro e do falso, e centra explicitamente a acção num espectador de cinema que se faz passar por um realizador de cinema para escapar, mesmo que provisoriamente, a uma vida que lhe não parece fazer sentido.
Indo por partes: ainda durante o trabalho de Trabalhos de Casa (filme com o qual, de resto, Close Up rima especialmente), Kiarostami teve conhecimento de um peculiar caso de polícia, o caso de Hossein Sabzian, jovem desempregado admirador de O Ciclista, de Mohsen Makhmalbaf ("O Ciclista faz parte de mim", pede ele a Kiarostami que transmita como mensagem ao realizador do filme), que tendo-se feito passar pelo conhecido realizador iraniano Makhmalbaf junto de uma família em Teerão, tinha sido deti­do e aguardava julgamento por fraude. A partir daí, baseou-se nos factos, escreveu o argumento e dispôs-se a realizar um filme em que todas as cenas reconstituem os acon­tecimentos verídicos, excepto os (poucos) captados "em directo" e onde todos os acto­res representam os seus próprios papéis, recuperando a história e acompanhando, de algum modo também "em directo", o seu desfecho.
A longa sequência inicial desenvolve-se quase toda sobre rodas, como é hábito em Kiarostami onde o enquadramento do mundo, emoldurado pelas janelas ou por espelhos retrovisores de automóveis, é mais do que uma figura de estilo, uma imagem de marca e uma condição. Em A Vida Continua, O Sabor da Cereja e O Vento Levar-nos-á..., por exemplo, os protagonistas passam a maior parte do tempo em viagem, deslocando­-se em automóveis que funcionam como habitáculos que atravessam a paisagem, em alguns casos descrevendo repetidamente os mesmos percursos. Esses longos planos de carros em movimento encontram um paralelo na abertura de Close Up. Tudo enqua­drado, num reflexo do ecrã de cinema, tanto como do seu princípio de movimento que mais do que representação do real Kiarostami segue, como, no início, os operadores Lumière descobriram colocando a câmara no interior de uma gôndola para filmar Veneza a partir da água. A câmara fixa numa base móvel, tão simples como isso. Tão simples também como, para o final do prólogo de Close Up, em que em vez de se assistir à detenção de Sazbian na casa da família Ahankhahs, se permanece à entrada, à espera com o taxista, um plano segue o movimento aparentemente anódino de uma embalagem cilíndrica de insecticida que rola pela rua abaixo na sequência de um gesto ocasional do taxista junto a um molho de ervas e flores. Como o osso de O Vento Levar-nos-á..., em que Kiarostami retoma a mesma ideia, a captação de um movimento que deixa em suspenso o que há de vir e simultaneamente dirige o olhar para a realidade concreta, des­viando-a da acção principal.
A abertura de Close Up é também a única cena repetida em outro momento, desta vez no interior da casa e na perspectiva do pai de família, longamente filma poucas palavras e perante a observação muda do protagonista que assiste à janela aos movimentos dos outros na preparação do cerco, porque se trata de uma questão de olhar. E talvez seja uma forma apropriada para referir este filme, um filme de olhares.  Entre dois dispositivos, o jurídico e o cinematográfico; entre realizadores de cinema, Kiarostami e Makhmalbaf que acaba por integrar o filme no papel de actor; de espectadores de cinema, "traduza o meu sofrimento no seu filme" pede Sabzian a Kiaro quando aceita entrar no jogo de representação da sua própria história no seu próprio papel. As relações entre o cinema e o espectador, entre o acto de filmar e o de representar, entre a realidade e a ficção são o centro sobre o qual Close Up se constrói.
A fronteira entre o cinema e a realidade é ténue, para os espectadores e para os participantes do filme. A ficção parte da realidade e estabelece com ela um diálogo que tem múltiplas direcções. Por um lado, se todos representam o seu próprio papel, representam também o papel de um outro: Sabzian como Makhmalbaf, Makhmalbaf como actor, e até o jornalista assume a sua pretensão em alcançar o estatuto de Ornella Fallaci, conhecida jornalista iraniana, e o taxista é um aviador que passou a deslocar-se em terra. Por outro, a ficção é uma reivindicação: evidencia-se como tal quando Kiarostami se desloca à prisão para propor o filme a Sabzian e depois solicita autorização para filmar o processo junto das autoridades competentes, pedindo mesmo que antecipem a sua data por causa do plano de filmagens (!). É transparente quando o realizador convoca explicitamente a ausência de neutralidade do olhar. Na sequência do julgamento, que começa com o plano da claquete, "Cena 1, take 1 no tribunal, 10 de Dezembro", um dos sinais do mecanismo da filmagem, como os microfones que também se dão a ver, Kiarostami explica ao seu actor, ali réu, a posição das duas câmaras dis­poníveis para filmar o julgamento.
E assim, a "sequência documental", cujo rasto da diferença de grão da imagem permanece no filme, é uma das mais encenadas. A mise-en-scène é cuidadosamente pre­parada, por isso são tão explícitas as referências ao filme que se está a fazer. Se a câma­ra ocupou um papel fundamental no curso do julgamento, era necessário mostrá-la, dirá Kiarostami que acredita também que o filme acabou por ter uma influência decisiva no termo positivo do processo. Uma das câmaras filma em grande plano, especialmente dirigida para Sabzian, conforme a promessa feita por Kiarostami durante o encontro na prisão, para que ele possa dizer as coisas "em que ninguém vai acreditar".
Está também a oferecer-lhe o seu close up, a possibilidade de explicar o papel que assumiu na realidade, tirando partido da semelhança física com Makhmalbaf. Permite­-se, assim, a Sabzian cumprir o desejo de aproximar o seu mundo ao do cinema, tornan­do-se protagonista de um filme. A tocante cena final, oferece-lhe mesmo um encontro com o seu ídolo e, por instantes, a identificação total com ele. Quando volta ao "local do crime", conduzido de motoreta por Makhmalbaf, que encontra depois da libertação, Sabzian só é reconhecido pelo interfone quando pronuncia o nome do outro que vem em seu socorro, repetindo o nome. A porta é aberta e alguém dirá pouco depois, "Sr. Makhmalbaf, o outro Sr. Makhmalbaf era mais Makhmalbaf do que o Senhor". Réplica per­feita para um final que reflecte também como questão de princípio a crença, várias vezes repetida por Kiarostami, de que nunca se chega tão perto da verdade senão à mentira. Falsificar as coisas para servir a expressão das verdades é todo um programa. Inclui-se a traição, os artifícios, como o recurso ao pretenso acidente com o microfone nesta sequência final, explicitado como tal pela conversa da equipa que filma à distância, o encontro Sabzian/Makhmalbaf, de que o primeiro não estava ao corrente, e que serve com rara intensidade esse momento final. O uso que Kiarostami faz do som em todos os seus filmes, para tornar mais visível o que permanece fora de campo, é também aqui fundamental. "O impostor sou eu, a vítima sou eu", dirá ele. A sorte é nossa."
Maria João Madeira, in O Olhar de Ulisses - Resistência



Sem comentários: