MAMÃ
Xavier Dolan, Canadá,
2014, 134’, M/14
FICHA TÉCNICA
Título
Original: Mommy
Realização,
Argumento e Montagem: Xavier Dolan
Fotografia:
André Turpin
Música:
Noia
Interpretação:
Anne Dorval,
Antoine-Olivier Pilon, Suzanne Clément
Origem:
Canadá
Ano:
2014
Duração:
134’
Festivais e Prémios
Festival de Cannes - Prémio do Júri
NOTA DO REALIZADOR
Desde o meu primeiro
filme, falei muito de amor. Falei da adolescência, sequestro e
transsexualidade. Falei de Jackson Pollock e dos anos 90, de alienação e
homofobia. Os colégios internos, a palavra altamente franco-canadiana “especial”,
vacas leiteiras, a cristalização de Stendhal e o Síndrome de Estocolmo. Já
falei com muito calão e também com muitos palavrões. Já falei em Inglês, e de
vez em quando, também disse muitos disparates, demasiadas vezes.
Porque essa é a
questão quando “falamos” de coisas, creio eu, é que há quase sempre o risco
inevitável de dizer disparates. E por isso decidi falar só daquilo que sei, ou
que era – mais ou menos – próximo de mim. Temas que eu julgava conhecer
bastante bem ou pelo menos suficientemente, pois eu conhecia a minha própria
diferença e o subúrbio onde fui criado. Ou porque sabia como era vasto o meu
medo dos outros, e ainda é. Porque sabia as mentiras que contamos a nós mesmos,
quando vivemos em segredo, ou o amor inútil que continuamos teimosamente a dar
aos ladrões do tempo. Conheço suficientemente estas coisas para querer até
falar delas.
Mas se há tema, um
apenas, sobre o qual sei mais do que qualquer outro, um tema que incondicionalmente
me inspira, e que au adoro acima de tudo, seria certamente a minha mãe. E
quando digo a minha mãe, creio que me refiro à MÃE em geral, à figura que ela representa. Porque é a ela que eu
volto sempre. É ela que eu quero ver vencer a batalha, é para ela que quero
inventar problemas, para que ela tenha o mérito de os resolver a todos, é
através dela que me coloco questões, é ela que quero ouvir gritar bem alto
quando não dissemos nada. É ela que quero que esteja certa quando nós estávamos
errados, é ela, haja o que houver, que terá a última palavra.
Na época de J’AI TUÉ
MA MÈRE, sentia que queria castigar a minha mãe. Apenas cinco anos se passaram
desde então e acredito que, através de MAMÃ, agora procuro a vingança dela. Não
perguntem.
Xavier Dolan, maio
2014
CRÍTICA
Chegou
às salas Mommy, o filme
que valeu a Xavier Dolan o Prémio do Júri de Cannes: um título para
(re)descobrirmos um jovem e singular criador.
Perante o impacto da obra de
Xavier Dolan, cineasta canadiano nascido em Montreal a 20 de Março de 1989,
apetece reescrever um velho adágio sobre os méritos profissionais da
antiguidade, proclamando agora: a juventude não é um posto... O mínimo que se
pode dizer de Dolan é que ninguém ficará indiferente ao facto de, apenas com 25
anos, ele ter realizado um filme como Mamã,
colocando em cena de forma tão dramática, e também tão irónica, os eternos conflitos
de gerações.
O filme valeu mesmo a Dolan
um dos prémios mais saborosos de uma carreira curta, mas já pontuada por
diversas distinções. Assim, no passado mês de Maio, no Festival de Cannes, Mamã recebeu o Prémio do Júri, ex-aequo com o mais recente trabalho de
Jean-Luc Godard, Adeus à
Linguagem. Presidido pela cineasta neozelandesa Jane Campion, o júri aproximava,
assim, num mesmo gesto de reconhecimento e consagração, o mais jovem e o mais
veterano dos autores presentes no certame (Godard completou 84 anos no dia 3 de
Dezembro).
Aliás, importa esclarecer
que não se estava perante a revelação de um novo cineasta. Nada disso: Dolan
assinou a sua primeira longa-metragem, Como
Matei a Minha Mãe, em 2009, portanto com 20 anos. Depois disso, já realizou
mais três títulos: Amores Imaginários (2010), Laurence para Sempre (2012) e Tom na Quinta (2013), em todas assumindo também as
responsabilidades de escrita de argumento, em três deles interpretando também
uma das personagens principais (a excepção é Laurence
para Sempre, protagonizado por Melvil Poupaud).
No caso de Mamã, o nome de Dolan também
não aparece na ficha dos actores. É Antoine Olivier Pilon, de 17 anos (tinha 16
durante a rodagem), que surge na linha da frente, assumindo a personagem quase
burlesca, mas marcada por muitas componentes dramáticas, de Steve Després, um
rapaz com evidentes problemas de integração familiar e social, não poucas vezes
derivando para comportamentos violentos. No núcleo do filme está, precisamente,
a relação com a mãe, Diane Després (Anne Dorval), viúva, com crescentes
dificuldades para lidar com o filho, ao mesmo tempo que tenta manter o
equilíbrio financeiro do lar.
Estão reunidas, assim, as
componentes necessárias (e mais que suficientes...) para um psicodrama com
tanto de intimista como de perturbante. E talvez se possa dizer que, até certo
ponto, o filme é isso mesmo, encenando as atribulações de uma paisagem afectiva
marcada por muitos momentos de convulsão e, aqui e ali, breves fogachos de
apaziguamento e intensa ternura. De qualquer modo, e de acordo com uma lógica
muito enraizada nas narrativas de Dolan, tudo pode mudar com a emergência de
uma personagem inesperada. Neste caso, é Kyla (Suzanne Clément), a vizinha de
Diane e Steve, que surge como um insólito e paradoxal “anjo da guarda”, de
alguma maneira levando mãe e filho a reavaliar os seus modos de relação.
Dolan faz retratos do mundo
dos afectos em que, no limite, todos são conduzidos a essa reavaliação do seu
lugar familiar e simbólico, social ou sexual. No filme anterior, Tom na
Quinta, interpretava o Tom do título que, ao comparecer no funeral de um
outro jovem, compreendia que toda a família ignorava a sua relação amorosa com
o defunto. Agora, em Mamã,
Dolan “força” ainda mais os limites tradicionais do melodrama através de uma
história marcada por componentes psicológicas muito particulares, mas que nos
confronta com uma interrogação muito mais abrangente, por certo ligada ao
“progresso” dos nossos usos e costumes. A saber: que é feito dos valores do
espaço familiar tradicional? Ou ainda: nas nossas sociedades de aceleração de
contactos e relações, como comunicam (ou não) as pessoas de diferentes
gerações?
E se o melodrama pressupõe
uma aliança entre drama e música, então importa acrescentar que Dolan é também
um criador que revaloriza as componentes musicais da narrativa cinematográfica,
em particular o uso de canções muito populares. Em Os Amantes Imaginários recuperava, por exemplo, o lendário Bang Bang, interpretado por
Dalida. Agora, na banda sonora de Mamã,
escutamos, entre outros, Dido (White Flag), Oasis (Wonderwall) e
Lana Del Rey (Born to Die).
Quando nos sentimos tocados
por um filme, gostamos de partilhar com os outros aquilo que, precisamente,
nele mobilizou as nossas emoções e pensamentos. Mas, por vezes, ficamos também
limitados por um sentimento de prudência, porventura de pudor. Até onde
“revelar” aquilo que, afinal, os outros têm o direito de descobrir no primeiro
grau, sem qualquer informação prévia? Digamos que é um pouco como quando
revemos A Leste do Paraíso (1955), de Elia Kazan, e deparamos com
o genial aproveitamento da largura do CinemaScope, apetecendo sublinhar:
reparem como Kazan filma James Dean, tirando o máximo partido de um formato
que, na altura, era uma novidade.
Assim, gostaria de falar ao
leitor do modo como Xavier Dolan concebe, não apenas as imagens do seu filme Mamã mas também, precisamente, o modo como
trata o respectivo formato... Ao mesmo tempo, sinto que se for demasiado
explícito, estarei a roubar-lhe a possibilidade de ver/sentir a proposta de
Dolan, não em função da tal informação prévia, mas apenas através do filme.
Direi, então, que não se
trata de uma questão banalmente formal, muito menos formalista. Nada disso: no
cinema de Dolan — e, em particular, neste belíssimo Mamã — todos os elementos figurativos,
cénicos ou simbólicos são importantes para a relação que ele estabelece com as
personagens e, por extensão, com o labor específico dos actores. Neste
inusitado triângulo amistoso — a mãe, o filho e a vizinha —, tudo acontece à
flor da pele, revalorizando um realismo dos corpos que, convenhamos, não é a
lei dominante no cinema mais poderoso (povoado de “super-heróis” com corpos
mais ou menos mecanizados) nem na televisão mais corrente (esgotada em formatos
de patético determinismo psicológico). Dolan é um paciente e subtil agrimensor
dos afectos.
João Lopes, http://sound--vision.blogspot.pt