MAMÃ, Xavier Dolan | 19 Maio | IPDJ | 21h30



MAMÃ
Xavier Dolan, Canadá, 2014, 134’, M/14

FICHA TÉCNICA
Título Original: Mommy
Realização, Argumento e Montagem: Xavier Dolan
Fotografia: André Turpin
Música: Noia
Interpretação: Anne Dorval, Antoine-Olivier Pilon, Suzanne Clément
Origem: Canadá
Ano: 2014
Duração: 134’

Festivais e Prémios
Festival de Cannes - Prémio do Júri




NOTA DO REALIZADOR
Desde o meu primeiro filme, falei muito de amor. Falei da adolescência, sequestro e transsexualidade. Falei de Jackson Pollock e dos anos 90, de alienação e homofobia. Os colégios internos, a palavra altamente franco-canadiana “especial”, vacas leiteiras, a cristalização de Stendhal e o Síndrome de Estocolmo. Já falei com muito calão e também com muitos palavrões. Já falei em Inglês, e de vez em quando, também disse muitos disparates, demasiadas vezes.
Porque essa é a questão quando “falamos” de coisas, creio eu, é que há quase sempre o risco inevitável de dizer disparates. E por isso decidi falar só daquilo que sei, ou que era – mais ou menos – próximo de mim. Temas que eu julgava conhecer bastante bem ou pelo menos suficientemente, pois eu conhecia a minha própria diferença e o subúrbio onde fui criado. Ou porque sabia como era vasto o meu medo dos outros, e ainda é. Porque sabia as mentiras que contamos a nós mesmos, quando vivemos em segredo, ou o amor inútil que continuamos teimosamente a dar aos ladrões do tempo. Conheço suficientemente estas coisas para querer até falar delas.
Mas se há tema, um apenas, sobre o qual sei mais do que qualquer outro, um tema que incondicionalmente me inspira, e que au adoro acima de tudo, seria certamente a minha mãe. E quando digo a minha mãe, creio que me refiro à MÃE em geral, à figura que ela representa. Porque é a ela que eu volto sempre. É ela que eu quero ver vencer a batalha, é para ela que quero inventar problemas, para que ela tenha o mérito de os resolver a todos, é através dela que me coloco questões, é ela que quero ouvir gritar bem alto quando não dissemos nada. É ela que quero que esteja certa quando nós estávamos errados, é ela, haja o que houver, que terá a última palavra.
Na época de J’AI TUÉ MA MÈRE, sentia que queria castigar a minha mãe. Apenas cinco anos se passaram desde então e acredito que, através de MAMÃ, agora procuro a vingança dela. Não perguntem.
Xavier Dolan, maio 2014

CRÍTICA
Chegou às salas Mommy, o filme que valeu a Xavier Dolan o Prémio do Júri de Cannes: um título para (re)descobrirmos um jovem e singular criador.
Perante o impacto da obra de Xavier Dolan, cineasta canadiano nascido em Montreal a 20 de Março de 1989, apetece reescrever um velho adágio sobre os méritos profissionais da antiguidade, proclamando agora: a juventude não é um posto... O mínimo que se pode dizer de Dolan é que ninguém ficará indiferente ao facto de, apenas com 25 anos, ele ter realizado um filme como Mamã, colocando em cena de forma tão dramática, e também tão irónica, os eternos conflitos de gerações.
O filme valeu mesmo a Dolan um dos prémios mais saborosos de uma carreira curta, mas já pontuada por diversas distinções. Assim, no passado mês de Maio, no Festival de Cannes, Mamã recebeu o Prémio do Júri, ex-aequo com o mais recente trabalho de Jean-Luc Godard, Adeus à Linguagem. Presidido pela cineasta neozelandesa Jane Campion, o júri aproximava, assim, num mesmo gesto de reconhecimento e consagração, o mais jovem e o mais veterano dos autores presentes no certame (Godard completou 84 anos no dia 3 de Dezembro).
Aliás, importa esclarecer que não se estava perante a revelação de um novo cineasta. Nada disso: Dolan assinou a sua primeira longa-metragem, Como Matei a Minha Mãe, em 2009, portanto com 20 anos. Depois disso, já realizou mais três títulos: Amores Imaginários  (2010), Laurence para Sempre  (2012) e Tom na Quinta  (2013), em todas assumindo também as responsabilidades de escrita de argumento, em três deles interpretando também uma das personagens principais (a excepção é Laurence para Sempre, protagonizado por Melvil Poupaud).
No caso de Mamã, o nome de Dolan também não aparece na ficha dos actores. É Antoine Olivier Pilon, de 17 anos (tinha 16 durante a rodagem), que surge na linha da frente, assumindo a personagem quase burlesca, mas marcada por muitas componentes dramáticas, de Steve Després, um rapaz com evidentes problemas de integração familiar e social, não poucas vezes derivando para comportamentos violentos. No núcleo do filme está, precisamente, a relação com a mãe, Diane Després (Anne Dorval), viúva, com crescentes dificuldades para lidar com o filho, ao mesmo tempo que tenta manter o equilíbrio financeiro do lar.
Estão reunidas, assim, as componentes necessárias (e mais que suficientes...) para um psicodrama com tanto de intimista como de perturbante. E talvez se possa dizer que, até certo ponto, o filme é isso mesmo, encenando as atribulações de uma paisagem afectiva marcada por muitos momentos de convulsão e, aqui e ali, breves fogachos de apaziguamento e intensa ternura. De qualquer modo, e de acordo com uma lógica muito enraizada nas narrativas de Dolan, tudo pode mudar com a emergência de uma personagem inesperada. Neste caso, é Kyla (Suzanne Clément), a vizinha de Diane e Steve, que surge como um insólito e paradoxal “anjo da guarda”, de alguma maneira levando mãe e filho a reavaliar os seus modos de relação. 

Dolan faz retratos do mundo dos afectos em que, no limite, todos são conduzidos a essa reavaliação do seu lugar familiar e simbólico, social ou sexual. No filme anterior, Tom na Quinta, interpretava o Tom do título que, ao comparecer no funeral de um outro jovem, compreendia que toda a família ignorava a sua relação amorosa com o defunto. Agora, em Mamã, Dolan “força” ainda mais os limites tradicionais do melodrama através de uma história marcada por componentes psicológicas muito particulares, mas que nos confronta com uma interrogação muito mais abrangente, por certo ligada ao “progresso” dos nossos usos e costumes. A saber: que é feito dos valores do espaço familiar tradicional? Ou ainda: nas nossas sociedades de aceleração de contactos e relações, como comunicam (ou não) as pessoas de diferentes gerações?
E se o melodrama pressupõe uma aliança entre drama e música, então importa acrescentar que Dolan é também um criador que revaloriza as componentes musicais da narrativa cinematográfica, em particular o uso de canções muito populares. Em Os Amantes Imaginários recuperava, por exemplo, o lendário Bang Bang, interpretado por Dalida. Agora, na banda sonora de Mamã, escutamos, entre outros, Dido (White Flag), Oasis (Wonderwall) e Lana Del Rey (Born to Die).
Quando nos sentimos tocados por um filme, gostamos de partilhar com os outros aquilo que, precisamente, nele mobilizou as nossas emoções e pensamentos. Mas, por vezes, ficamos também limitados por um sentimento de prudência, porventura de pudor. Até onde “revelar” aquilo que, afinal, os outros têm o direito de descobrir no primeiro grau, sem qualquer informação prévia? Digamos que é um pouco como quando revemos A Leste do Paraíso (1955), de Elia Kazan, e deparamos com o genial aproveitamento da largura do CinemaScope, apetecendo sublinhar: reparem como Kazan filma James Dean, tirando o máximo partido de um formato que, na altura, era uma novidade.
Assim, gostaria de falar ao leitor do modo como Xavier Dolan concebe, não apenas as imagens do seu filme Mamã mas também, precisamente, o modo como trata o respectivo formato... Ao mesmo tempo, sinto que se for demasiado explícito, estarei a roubar-lhe a possibilidade de ver/sentir a proposta de Dolan, não em função da tal informação prévia, mas apenas através do filme.
Direi, então, que não se trata de uma questão banalmente formal, muito menos formalista. Nada disso: no cinema de Dolan — e, em particular, neste belíssimo Mamã — todos os elementos figurativos, cénicos ou simbólicos são importantes para a relação que ele estabelece com as personagens e, por extensão, com o labor específico dos actores. Neste inusitado triângulo amistoso — a mãe, o filho e a vizinha —, tudo acontece à flor da pele, revalorizando um realismo dos corpos que, convenhamos, não é a lei dominante no cinema mais poderoso (povoado de “super-heróis” com corpos mais ou menos mecanizados) nem na televisão mais corrente (esgotada em formatos de patético determinismo psicológico). Dolan é um paciente e subtil agrimensor dos afectos.
João Lopeshttp://sound--vision.blogspot.pt

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