Hou Hsiao-Hsien
TW/CN/HK/FR, 2015, 105’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Hou Hsiao-Hsien
Argumento: Acheng, Chu Tien-Wen, Hsieh Hai-Meng
Director De Fotografia.: Mark Lee Ping-Bing
Montagem: Liao Ching-Song
Música: Lim Giong
Interpretação: Chang Chen, Shu Qi, Zhou Yun, Tsumabuki Satoshi
Origem: Taiwan/China/Hong Kong/França
Argumento: Acheng, Chu Tien-Wen, Hsieh Hai-Meng
Director De Fotografia.: Mark Lee Ping-Bing
Montagem: Liao Ching-Song
Música: Lim Giong
Interpretação: Chang Chen, Shu Qi, Zhou Yun, Tsumabuki Satoshi
Origem: Taiwan/China/Hong Kong/França
Ano: 2015
Duração: 105’ FESTIVAIS e prémios
Festival de Cannes - Melhor Realizador,
Melhor Banda Sonora
Golden Horse Fjlm Festival (Taiwan) — Melhor Realizador, Melhor Filme, Melhor
Fotografia, Melhor Banda Sonora, Melhor Guarda Roupa e Caracterização
CRÍTICAS
Esta
assassina passa mais tempo a observar do que a assassinar. E há muito tempo que
não víamos tão imaculada concepção plástica: o ecrã a explodir em cores, os
vermelhos a dialogar com os dourados, e logo a seguir ligá-los aos verdes da
natureza.
Sete
anos sem longas-metragens de Hou Hsiao-Hsien - desde A Viagem do Balão
Vermelho, de 2008, em si mesmo um filme cheio de peculiaridades - conferem
a A Assassina uma aura de “regresso”, e como regresso o filme foi
saudado no Festival de Cannes 2015, onde este foi um dos filmes de maior
destaque e de onde Hou saiu com o prémio de melhor realizador. Mas se é o “regresso de um cineasta”,
de um grande cineasta, poucas coisas nele, se algumas, se podem qualificar
enquanto “regresso”: tal como no filme de 2008, que foi rodado em Paris, Hou
continua em viagem, sendo de notar que desde o seu primeiro filme rodado fora
de Taiwan (As Flores de Xangai, em 1998) se vêm acumulando os filmes de
Hou feitos em territórios estrangeiros. Viagem que neste caso o leva à China
continental, à indústria da República Popular, cada vez mais um polo
aglutinador das cinematografias chinesas e em cada vez mais frequentes colaborações com
cineastas de Taiwan (como Hou) e de Hong Kong. Viagem, ainda, porque A
Assassina mergulha em géneros (o wuxia) e épocas históricas (o
século IX) estranhos ao essencial da obra de Hou, que nunca trabalhou a partir
de uma lógica de género e se tem vários filmes históricos eles tendem a
concentrar-se no século xx, sobretudo retratando as primeiras décadas de Taiwan
depois do fim da Guerra Civil chinesa.
Portanto, tudo é novo, tudo é território desconhecido, para Hou e para o
espectador. Nem a “história de Taiwan” nem um daqueles melodramas
contemporâneos, familiares (como Um Tempo
Para Viver, um Tempo Para Morrer, 1985) ou intimistas (como o segmento
“actual” de Três Tempos, de 2005, o
último momento em que Hou filmou um “aqui e agora” de Taiwan). Em vez disso, a
antiguidade chinesa, entre a história e a mitologia, e as suas representações
artísticas - Hou referiu que uma das suas principais inspirações em A
Assassina tinha sido a pintura clássica chinesa, e a este aspecto já
voltaremos. E portanto, nem a sombra de Ozu nem a de Antonioni, influências
(sobretudo o japonês) visíveis em diversos momentos da obra de Hou - se
quisermos fazer o jogo das associações cinéfilas diríamos que A Assassina lembra
mais o Yokihi com que Mizoguchi, na fase final da carreira, filmou a
antiguidade chinesa a partir
de uma heroína feminina, com a dimensão sacrificial da personagem e coexistir
com a observação dos rituais do poder e um sentido estético de uma precisão
milimétrica.É o
aspecto que mais imediatamente salta os olhos: a imaculada concepção plástica
de A Assassina, a maneira como faz o ecrã explodir em cores, pôr os
vermelhos a dialogar com os dourados, e logo a seguir ligá-los aos verdes da
natureza. Mas há muito tempo que não víamos cores assim, tão fortes e definidas sem que isso
seja ostensivo, com uma
lógica de tableau vivant, de quadro vivo, perfeitamente dominada e
administrada, até no que convoca em termos de uma fixidez – importante enquanto
sugestão da dinâmica das estruturas do poder na China da época, e importante
enquanto matéria, assumidamente “museológica” se quisermos, que se oferece ao
olhar da protagonista, essa “assassina” que passa mais tempo a observar do que
a “assassinar” (é, de resto, toda a questão narrativa do fìlme: Nie Yinniang é
uma assassina exímia que tem apenas o terrível defeito de se comover com as
suas supostas vítimas, a ponto de se tomar incapaz de executar o
trabalho). A aproximação de Hou à
História, nesse sentido, tem o que seu quê de rosselliniano tal como o mostra
um filme como a Tomada do Poder por Luís
XIV , especialmente: ela é ao mesmo tempo muito neutra, e muito descritiva
( a quantidade de pequenos rituais, como a preparação de um banho, por exemplo,
com que Hou preenche cenas inteiras), e construída a partir de uma
objectividade que tomas as tradições representativas (a pintura, como disse
Hou) como fonte de reconstituição mais credível. Por outro lado, a relação com
um olhar preciso - o da protagonista - vai introduzindo cambiantes nesta
espécie de neutralidade: é reparar na quantidade de véus e cortinas que a
partir de certa altura se vão colocando entre a câmara e a matéria filmada, sinalizando a posição furtiva da
assassina mas ao mesmo individualizando, e de certa forma idealizando até ao
risco de evanescência, o olhar sobre todo aquele rigor de composição.
Composição:
já mais do que uma vez dissemos que é um dos valores mais em crise no cinema
contemporâneo. Uma das coisas admiráveis de A Assassina é esse reencontro
com um cinema que faz da composição plástica um valor central, e não numa
perspectiva decorativa mas realmente significativa, puxando as possibilidades
(de definição, sobretudo) da imagem digital a um ponto que raramente se tem
visto. Mais, parece mesmo um filme feito a pensar primordialmente num ecrã de
grandes dimensões (o da sala de cinema), tal a complexidade das composições e a
importância dos detalhes e das proporções (aquele plano no início pré-genérico,
ainda o filme é a preto e branco, em que as figuras humanas são apenas pequenas
“manchas” num enquadramento dominado pelas copas das grandes árvores e por uma
imponente estrutura arquitectónica). É algo que também se tem tomado raro.
Mas aqui chegados, que é do wuxia e das artes marciais? Não é que A
Assassina seja um filme em trompe l’oeil e passe o tempo a esconder-se do
que anuncia ser - todo o universo está lá, todos os ingredientes estão lá. Mas
Hou não faz um filme de género, faz uma interpretação do género. Há alguns
duelos, impecavelmente coreografados, mas são poucos, e são rápidos. Mas o
coração do filme não é a acção, é a relutância em passar à acção, em abdicar
dos “sentimentos humanos”, como na introdução diz a mentora da assassina à
assassina, apontando-lhe um defeito. O filme atrasa, hesita, adia: é a
característica mais singular do seu trabalho sobre o tempo, esse constante
adiamento da “acção”, sempre trocada pela “contemplação”. Embora trabalhe o
século IX, a preocupação de A Assassina com a compaixão e com a
disposição para a compaixão, com a recusa de uma impiedade pragmática trocada
pelo seu exacto oposto, não deixa de parecer um comentário a este século XXI em
que, da China ao Ocidente, se impõem os valores do individualismo e da lei do
mais forte, na economia como na vida social. Há uma nobreza e um abandono na
personagem principal que, isso sim, resiste e continua sempre a resistir à
mácula. Não é, portanto, com uma elipse que se passa dos últimos planos na
corte do alvo da assassina aos planos em que ela cai definitivamente em
desgraça junto da mentora: apenas a expressão de algo que não aconteceu, em
nome da compaixão. E por isso A Assassina pode terminar a trazer-nos ao
espírito, se perdoarem a referência “ocidental”, a dissipação do final de uma
peça com A Tempestade de Shakespeare.
Luís Miguel
Oliveira, Público
A
Assassina, do taiwanês Hou Hsiao-hsien, é uma autêntica maravilha
visual (e sonora), uma espécie de oferta aos sentidos e à imaginação que não acontece frequentemente na vida de um
espectador. A décima quinta longa metragem do mestre HHH abre com duas
sequências a preto e branco. O papel que desempenham é ao mesmo tempo dramático
— apresentando a heroína, uma aristocrata do século IX educada na arte de
combater e de matar — e plástico — sublinhando, no formato antigo de uma imagem
quase quadrada (o 1:1.33), a proximidade com a pintura chinesa clássica, na
qual a tinta, o pincel e o branco do papel fazem nascer um mundo simultaneamente
naturalista e metafísico. O filme continua depois a cores, mas sem se
distanciar desta referência decisiva.
Situado num contexto histórico marcado por uma grande desordem, numa época de
inumeráveis rebeliões dos potentados locais contra o poder central do
imperador, A Assassina é um filme de artes marciais. Mas é um filme de
artes marciais que não se parece com nenhum outro. E que, não se parecendo com
nenhum outro, expõe, no entanto, verdade do género por inteiro.
O seu motivo principal é o dilema da mestra guerreira Yinniang, dilacerada
entre o dever de levar a cabo a sua missão assassina e a tentação de ceder aos
sentimentos que a ligam ao seu sobrinho, hoje governador irredentista e que foi
designado o seu alvo a abater.
O cineasta trabalha de maneira inventiva e rica de significações e
interrogações a matéria dos seus planos, alternando os enquadramentos largos
com enquadramentos extremamente largos (que modificam a percepção dos
primeiros). Satura as imagens de elementos heterogéneos, mas que se combinam de
maneira sugestiva — tecidos, vegetais, rostos e trajes, peças de mobiliário —
para engendrar, literalmente, uma nova matéria visual, que não pode existir
senão no cinema. Multiplica os movimentos de câmara lentos como carícias, que
acompanham movimentos circulares, que diríamos dançantes, ou descrevendo
ambientes que reconfiguram o próprio sentido das acções. Organiza passagens
harmoniosas, ou, ao contrário, em ruptura, mas sempre com uma enorme força,
entre o interior e o exterior e entre o dia e a noite.
E, sobretudo, radicaliza ao extremo o motivo rítmico do cinema de artes
marciais, inspirando-se aqui mais nos clássicos de espadachins japoneses do que
no cinema de género de Hong Kong. Deste modo, as aventuras guerreiras, os
idílios, as conspirações e as manobras tornam-se simultaneamente uma verdadeira
pesquisa sobre o próprio género, pesquisa levada a cabo com os meios da mise
en scène, a procura do código secreto de um cinema inteiro, aberto para o
horizonte utópico comum do espectáculo e da beleza, da tradição e da
modernidade.
Jean-Michel
Frodon, Slate.fr / Medeia Magazine