Nabil Ayouch
França/Marrocos, 2015, 108’, M/16
FICHA TÉCNICA
Título Original / Internacional: Much Loved
Realização - Nabil Ayouch
Argumento - Nabil Ayouch
Director de Fotografia - Virginie Surdej
Montagem - Damien Keyeux
Interpretação - Loubna Abidar, Halima Karaouane, Asmaa Lazrak, Sara El Mhamdi Elaaloui, Abdellah Didane Ano - 2015
Origem - França/Marrocos
Duração - 108´
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes 2015– Quinzena dos Realizadores
Lisbon & Estoril Film Festival 2015 – Seleção Oficial
Título Original / Internacional: Much Loved
Realização - Nabil Ayouch
Argumento - Nabil Ayouch
Director de Fotografia - Virginie Surdej
Montagem - Damien Keyeux
Interpretação - Loubna Abidar, Halima Karaouane, Asmaa Lazrak, Sara El Mhamdi Elaaloui, Abdellah Didane Ano - 2015
Origem - França/Marrocos
Duração - 108´
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes 2015– Quinzena dos Realizadores
Lisbon & Estoril Film Festival 2015 – Seleção Oficial
CRÍTICAS
Tudo começou com um encontro entre
um cineasta e prostitutas de Marraquexe. Os relatos provocaram a repulsa de
Nabil Ayouch. E a ternura. Muito Amadas,
a partir de hoje nas salas, está proibido em Marrocos.
Said é o único homem que as ama. Temos
dificuldade em o classificar por isso: não tem uma “função precisa” a não ser
gostar das raparigas. Como personagem de um filme, e porque temos necessidade
de fixar uma personagem a uma razão na narrativa, de dar-lhe um papel, Said
deixa-nos desamparados. Como o justificar?
“Sim, temos dificuldade em caracterizá-lo.
É uma alma boa que atravessa o filme e não tem uma função. É certo que é chauffer,
que conduz as raparigas, mas não é um chulo. Pelo contrário, protege-as, compra-lhes
medicamentos quando elas estão doentes. Porque é que ele faz isso? Porque gosta
delas. É alguém na reserva, sempre, e gosto disso, gosto do facto de ser um
tipo de personagem que não existe no mundo ocidental. Estamos numa espécie de
antropologia invertida: um homem ao serviço”.
Said é chauffer delas, elas são prostitutas, a cidade
é Marraquexe e quem fala é o realizador de Muito Amadas, o marroquino
Nabil Ayouch. Said, as prostitutas e o carro são uma parte de Muito
Amadas. As duas ou três sequências em que Noha (Loubna Abidar) e as
suas companheiras são conduzidas por Said não estão certamente no centro das
razões que levaram à interdição deste filme em Marrocos. Mas estar com essas
personagens dentro do carro é ser tocado pelo essencial. Como acontece em
alguns filmes, é nessa intimidade que parece apenas contingente que se
evidencia o que de forma duradoura forjou as relações. É ser tocado pela
melancolia do olhar delas, por exemplo: a cidade não lhes pertence, Marraquexe
está fora do seu alcance.
“Essas cenas contam de facto a relação das
personagens com uma cidade. Não é que não lhe pertençam; é mais não terem
acesso à cidade. São raparigas que, pelo facto de não serem aceites no espaço
público, de não poderem circular livremente, são obrigadas a serem protegidas.
É essa a função do táxi, um espaço fechado que as conduz de um lugar a outro
porque elas não podem sair de casa e esperar dez minutos na rua que um táxi
passe. É-lhes impossível o confronto com a cidade. Sim, o carro é uma espécie de
protecção-prisão.” Essas sequências contam o que tem sido mais
veemente nos filmes de Nabil Ayouch. Se recordarmos ou descobrirmos Ali
Zaoua, prince de la rue (2000)
e Les Chevaux de Dieu (2012), o que se sedimenta para além
da vontade de um cineasta em responder às questões que num momento são actuais
ou urgentes na sua sociedade – rapazes da rua que vivem num bairro da lata, no
primeiro caso, bombistas suicidas no segundo – é a dramática relação entre as
personagens e o espaço que os exclui. Como Nabil Ayouch se coloca do lado das
suas personagens, a cidade (a Casablanca de Les Chevaux de Dieu, por
exemplo, que os bombistas descobrem de carro, como as prostitutas de Muito
Amadas) é presença ameaçadora, alienígena. Surge deformada em Ali
Zaoua, prince de la rue mas
sempre se pode dizer que isso, e toda a démarche onírica a que o realizador se atreve
nesse filme traumático, acontece em nome de um pacto: estar do lado das
personagens, os rapazes saturados de cola.
Os miúdos da rua, os terroristas, as
prostitutas: eis declinações de uma demanda de “paraíso”, uma ilha que os
acolha. Muito Amadas ganha peso se for visto nesse
contexto. A viagem final das prostitutas com o seu Said (Abdellah Didane)
absorverá uma dimensão mais claustrofóbica e desesperada que o filme sozinho
talvez não seja capaz de criar – porque pode criar uma ilusão de
trégua, coisa que, os filmes anteriores do realizador mostraram, não é
possível. Mais ainda: embora os três possam ser “lidos” como integrando uma
“trilogia social”, o olhar de cineasta define-se de forma mais nítida quando as
recorrências são outras que não a mera caução de documento de uma realidade e
dos seus tópicos. A ternura é uma das coisas que continua aqui.
O espelho partiu-se
Quando rodavava Ali
Zaoua, prince de la rue, Nabil ouvia, como prenúncio censório, “que
em Marrocos não havia crianças a viver da rua”. Les
Chevaux de Dieu, baseado em acontecimentos verídicos sobre a
trajectória da deriva para o fundamentalismo de um grupo de amigos de um bairro
da lata de Casablanca, foi também rodado com o sentimento de que poderia haver
problemas. Não houve. Por isso o realizador não estava preparado para o que
aconteceria a seguir à exibição do filme na Quinzena dos Realizadores de
Cannes, em Maio de 2015. “Foi uma surpresa a violência das palavras, não
esperava que chegasse a essas proporções. Pensei que haveria resistências, e
debate duro, mas nunca isso.”
Três ou quatro clips do filme começaram a incendiar as redes
sociais em Maio de 2015. O Ministério da Comunicação de Marrocos interditou o
filme, mesmo sem o ter visto, por “grave ultraje aos valores morais e à mulher
marroquina, e flagrante atentado contra a imagem de Marrocos”. Quando a equipa
regressou ao país, Nabil teve de proteger as actrizes em local secreto, para
diminuir o impacto e a agressividade das ameaças, o que não impediu Loubna
Abidar, num dia em que se aventurou no supermercado sem estar escondida por uma
burka, de ser agredida – a actriz saiu do país, refugiou-se em
França. O facto do realizador ser filho de mãe judia serviu também de arma de
arremesso.
Essa violência não é o filme, mas o filme
falava dela. Tem menos a ver com o que é explícito nas sequências de sexo ou
nos diálogos – “Peço a Deus que me dê um saudita
simpático e com uma pila pequena e imenso dinheiro para eu passar uma boa
noite”. “O filme toca numa zona sensível, e isso magoa, que é o facto de
prostituição ocupar um lugar importante na sociedade marroquina” – e as
prostitutas serem determinantes em muitos casos numa economia familiar. “E
ainda o facto de essas mulheres não serem apenas vítimas, serem guerrilheiras,
resistentes, combatentes. A ideia de mulheres fortes que vendem o corpo em
troca de dinheiro...isso não agrada. Quando se estende um espelho a uma
sociedade, ela pode escolher olhar, de forma madura, ou pode quebrar o espelho.
Aqui escolheram partir o espelho. O lado positivo é que, graças à interdição,
houve debate. Há gente que defende o filme e gente que defende que gostando ou
detestando não se pode interditar um filme sem o ter visto”.
Teatro da ternura
Tudo começara com um encontro entre o
cineasta e quatro prostitutas de Marraquexe.
“Contaram-me a história delas. Não foi num
dia, foi durante dois dias, non stop. Tocou-me tanto
que quis voltar a vê-las. Voltei duas vezes, e depois quis começar um trabalho
quase antropológico de escuta. Encontrei-me com 200 ou 300 raparigas ao longo
de um ano e meio, e foi nesse tempo que se construiu um olhar sobre elas.
Porque aquilo que me diziam punha-me num estado terrível.”
Inicialmente, esse trabalho de escuta
estaria destinado a um documentário. “Porque as palavras delas eram
importantes, suficientemente importantes para habitar um filme. Mas a coisa
evoluiu porque me dei conta de que eu tinha um olhar sobre elas. E que esse
olhar era, afinal, bastante terno, e eu que queria exprimir essa ternura. Daí
nasceu a ideia de mise-en-scène. Não podia
ser um documentário, há essa ideia de um teatro da ternura, em que essa ternura
se exprime.”
Nabil decidiu-se então por uma ficção. Mas
determinado a trabalhar com não profissionais. “Quis colocar o meu tempo e
energia a avançar como um explorador, a descobrir pedaços de verdade escondidos
pela experiência da vida das raparigas que encontrei, das lembranças que
elas poderiam ter dos bairros em que cresceram em contacto com mulheres
prostituas. Não se dirige da mesma maneira uma actriz profissional e uma não
profissional. E sabia que se dirigisse uma actriz profissional isso iria revelar
sempre limites: uma actriz que vive no mundo árabe não pode fazer tudo, sob
pena de ter de partir e ir viver para fora.” E foi então que apareceu Loubna
Abidar...
“Inicialmente ela mentiu-me”, conta o
realizador. “Disse-me que não tinha feito nenhum filme –tinha feito três ou quatro pequenos
papéis, mas eu não estava ao corrente disso. Contou-me duas horas de mentiras e
eu acreditei. No dia seguinte apareceu-me a chorar, a dizer que me tinha
mentido porque queria muito participar no filme. E aí começou um caminho que
durou um ano com ela. Esteve sempre presente ao meu lado, em volta do filme,
dava-me conselhos – ela cresceu num bairro muito popular
de Marraquexe, conhece bem o meio da prostituição, deu-me conselhos,
informação, foi uma espécie de consultora não oficial do filme. E estava
convencida a ir até ao fim como intérprete. Tinha essa convicção, e foi ela que
me convenceu disso.”
Com o grupo, Nabil encetou um “trabalho
quase teatral, stanislawskiano, um trabalho sobre a memória, sobre as palavras,
sobre os gestos, sobre os corpos, sobre a coesão do grupo” – de forma a que
também desaparecesse a diferença entre as experiências de vida das intérpretes.
“Fi-las habitar juntas semanas antes da rodagem, para partilharem a vida
comunitária.”
Esse método revela-se decisivo para a
intimidade das cenas de grupo e para a naturalidade do abandono e exposição e
humilhação das protagonistas nas sequências das orgias sauditas. É na segunda
dessas sequências que o olhar do realizador não se contém, e, através da intervenção
musical, expõe todo o seu desgosto.
“A partir do momento em que se escolhe uma
música, faz-se também uma escolha em termos de intenção. É claro que a ideia de
um score para
sobrepor ao que se vê nas imagens permite instalar essa sensação de peso. E quis
de facto isso, porque o que aquelas raparigas me contaram deu-me vontade de
vomitar por vezes. Sim, a palavra é repulsa, pela perda de dignidade, quando o
dinheiro se torna o valor único.”
O título Muito Amadas é significativo: toda a gente
no filme fala de amor e de amar, mas são os corpos que começam a falar, a
sobrepor a essas vozes o que lhes acontece, sangrando, “Ou a rejeitar o
que lhes acontece”, conclui Nabil.
Vasco Câmara, publico
Um
acontecimento cinematográfico que vem de Marrocos, recusando qualquer visão do
país em tom de "postal-ilustrado".
Terminada a temporada dos
Oscars, importa reconhecer que, antes e depois, o mercado cinematográfico
português continua marcado por uma salutar diversidade. E a observação não
envolve qualquer reticência perante o actual cinema americano — de facto, sou
dos que pensam que os prémios da Academia de Hollywood envolveram algumas
admiráveis propostas temáticas e estilísticas.
Importa também conservar os
olhos e ouvidos abertos a experiências porventura menos espectaculares, em todo
o caso marcadas por referências culturais bem diferentes. É o caso do filme Muito Amadas, assinado por
Nabil Ayouch, cineasta francês de ascendência marroquina, sobre um grupo de
prostitutas em Marraquexe, nos dias de hoje.
Banido pelo governo
marroquino [...], Muito
Amadas possui uma evidente dimensão de panfleto social. A existência das
protagonistas, interpretadas por quatro excelentes actrizes — com destaque para
Loubna Abidar, nomeada para o César de melhor intérprete feminina —, emerge num
contexto em que o machismo mais violento se cruza com a degradação de muitos
laços sociais e familiares e, em particular, com situações de fragilidade
financeira ou mesmo de pobreza.
Em todo o caso, a
contagiante energia do trabalho de Ayouch não decorre de um discurso
estritamente social, antes do modo como tal discurso encarna num metódico labor
cinematográfico. Estamos, assim, perante mais um exemplo de uma tendência
realista que, hoje em dia, podemos encontrar nos mais variados contextos —
desde as propostas dramáticas do americano J. C. Chandor (como o admirável Um Ano Muito Violento) até à
renovação da tradição russa por Sergei Loznitsa (No Nevoeiro), passando
por algumas experiências portuguesas, por exemplo de João Canijo (Sangue do
Meu Sangue).
Os contrastes dos títulos
que podemos citar são reveladores de uma dimensão essencial. Não se trata, de
facto, de defender um conceito universal, muito menos unívoco, de realismo.
Trata-se, isso sim, de reconhecer que o desejo cinematográfico de dar conta da
vida vivida envolve os mais diversos realismos, numa pluralidade capaz de nos
fornecer pistas interessantíssimas para superarmos clichés de
(des)conhecimento.
Tal fenómeno envolve uma
atitude de resistência — que, sendo estética, é eminentemente política — a
todos os formatos, nomeadamente de raiz televisiva, que tendem a reduzir a
“realidade” a padrões simplistas ou estupidificantes. Observe-se, entre nós, a
permanência dos horrores da “reality TV”, todos os dias multiplicados perante o
silêncio ensurdecedor dos discursos políticos.
No caso de Muito Amadas, está também em
jogo a recusa dos estereótipos turísticos que, no contexto europeu, tendem a
descrever o norte de África de modo pitoresco, tendencialmente anedótico. Tanto
bastaria para conferir ao trabalho de Ayouch o valor mais básico, mas também
mais essencial, de qualquer realismo: não desistir de ver e pensar a
complexidade do real.
João Lopes, Diário
de Notícias
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