MUITO AMADAS | 17 MAIO | 21H30 | IPDJ


MUITO AMADAS

Nabil Ayouch
França/Marrocos, 2015, 108’, M/16

FICHA TÉCNICA
Título Original / Internacional: Much Loved
Realização - Nabil Ayouch
Argumento - Nabil Ayouch
Director de Fotografia - Virginie Surdej
Montagem - Damien Keyeux
Interpretação - Loubna Abidar, Halima Karaouane, Asmaa Lazrak, Sara El Mhamdi Elaaloui, Abdellah Didane Ano - 2015
Origem - França/Marrocos
Duração - 108´

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes 2015– Quinzena dos Realizadores
Lisbon & Estoril Film Festival 2015 – Seleção Oficial



CRÍTICAS
Tudo começou com um encontro entre um cineasta e prostitutas de Marraquexe. Os relatos provocaram a repulsa de Nabil Ayouch. E a ternura. Muito Amadas, a partir de hoje nas salas, está proibido em Marrocos.
Said é o único homem que as ama. Temos dificuldade em o classificar por isso: não tem uma “função precisa” a não ser gostar das raparigas. Como personagem de um filme, e porque temos necessidade de fixar uma personagem a uma razão na narrativa, de dar-lhe um papel, Said deixa-nos desamparados. Como o justificar?
“Sim, temos dificuldade em caracterizá-lo. É uma alma boa que atravessa o filme e não tem uma função. É certo que é chauffer, que conduz as raparigas, mas não é um chulo. Pelo contrário, protege-as, compra-lhes medicamentos quando elas estão doentes. Porque é que ele faz isso? Porque gosta delas. É alguém na reserva, sempre, e gosto disso, gosto do facto de ser um tipo de personagem que não existe no mundo ocidental. Estamos numa espécie de antropologia invertida: um homem ao serviço”.
Said é chauffer delas, elas são prostitutas, a cidade é Marraquexe e quem fala é o realizador de Muito Amadas, o marroquino Nabil Ayouch. Said, as prostitutas e o carro são uma parte de Muito Amadas. As duas ou três sequências em que Noha (Loubna Abidar) e as suas companheiras são conduzidas por Said não estão certamente no centro das razões que levaram à interdição deste filme em Marrocos. Mas estar com essas personagens dentro do carro é ser tocado pelo essencial. Como acontece em alguns filmes, é nessa intimidade que parece apenas contingente que se evidencia o que de forma duradoura forjou as relações. É ser tocado pela melancolia do olhar delas, por exemplo: a cidade não lhes pertence, Marraquexe está fora do seu alcance.

 “Essas cenas contam de facto a relação das personagens com uma cidade. Não é que não  lhe pertençam; é mais não terem acesso à cidade. São raparigas que, pelo facto de não serem aceites no espaço público, de não poderem circular livremente, são obrigadas a serem protegidas. É essa a função do táxi, um espaço fechado que as conduz de um lugar a outro porque elas não podem sair de casa e esperar dez minutos na rua que um táxi passe. É-lhes impossível o confronto com a cidade. Sim, o carro é uma espécie de protecção-prisão.” Essas sequências contam o que tem sido mais veemente nos filmes de Nabil Ayouch. Se recordarmos ou descobrirmos Ali Zaoua, prince de la rue (2000) e Les Chevaux de Dieu (2012), o que se sedimenta para além da vontade de um cineasta em responder às questões que num momento são actuais ou urgentes na sua sociedade – rapazes da rua que vivem num bairro da lata, no primeiro caso, bombistas suicidas no segundo – é a dramática relação entre as personagens e o espaço que os exclui. Como Nabil Ayouch se coloca do lado das suas personagens, a cidade (a Casablanca de Les Chevaux de Dieu, por exemplo, que os bombistas descobrem de carro, como as prostitutas de Muito Amadas) é presença ameaçadora, alienígena. Surge deformada em Ali Zaoua, prince de la rue mas sempre se pode dizer que isso, e toda a démarche onírica a que o realizador se atreve nesse filme traumático, acontece em nome de um pacto: estar do lado das personagens, os rapazes saturados de cola.
Os miúdos da rua, os terroristas, as prostitutas: eis declinações de uma demanda de “paraíso”, uma ilha que os acolha.  Muito Amadas ganha peso se for visto nesse contexto. A viagem final das prostitutas com o seu Said (Abdellah Didane) absorverá uma dimensão mais claustrofóbica e desesperada que o filme sozinho talvez não seja capaz de criar  porque pode  criar uma ilusão de trégua, coisa que, os filmes anteriores do realizador mostraram, não é possível. Mais ainda: embora os três possam ser “lidos” como integrando uma “trilogia social”, o olhar de cineasta define-se de forma mais nítida quando as recorrências são outras que não a mera caução de documento de uma realidade e dos seus tópicos. A ternura é uma das coisas que continua aqui.
O espelho partiu-se
Quando rodavava Ali Zaoua, prince de la rue, Nabil ouvia, como prenúncio censório, “que em Marrocos não havia crianças a viver da rua”. Les Chevaux de Dieu, baseado em acontecimentos verídicos sobre a trajectória da deriva para o fundamentalismo de um grupo de amigos de um bairro da lata de Casablanca, foi também rodado com o sentimento de que poderia haver problemas. Não houve. Por isso o realizador não estava preparado para o que aconteceria a seguir à exibição do filme na Quinzena dos Realizadores de Cannes, em Maio de 2015. “Foi uma surpresa a violência das palavras, não esperava que chegasse a essas proporções. Pensei que haveria resistências, e debate duro, mas nunca isso.”
Três ou quatro clips do filme começaram a incendiar as redes sociais em Maio de 2015. O Ministério da Comunicação de Marrocos interditou o filme, mesmo sem o ter visto, por “grave ultraje aos valores morais e à mulher marroquina, e flagrante atentado contra a imagem de Marrocos”. Quando a equipa regressou ao país, Nabil teve de proteger as actrizes em local secreto, para diminuir o impacto e a agressividade das ameaças, o que não impediu Loubna Abidar, num dia em que se aventurou no supermercado sem estar escondida por uma burka, de ser agredida  a actriz saiu do país, refugiou-se em França. O facto do realizador ser filho de mãe judia serviu também de arma de arremesso.
Essa violência não é o filme, mas o filme falava dela. Tem menos a ver com o que é explícito nas sequências de sexo ou nos diálogos  “Peço a Deus que me dê um saudita simpático e com uma pila pequena e imenso dinheiro para eu passar uma boa noite”. “O filme toca numa zona sensível, e isso magoa, que é o facto de prostituição ocupar um lugar importante na sociedade marroquina” – e as prostitutas serem determinantes em muitos casos numa economia familiar. “E ainda o facto de essas mulheres não serem apenas vítimas, serem guerrilheiras, resistentes, combatentes. A ideia de mulheres fortes que vendem o corpo em troca de dinheiro...isso não agrada. Quando se estende um espelho a uma sociedade, ela pode escolher olhar, de forma madura, ou pode quebrar o espelho. Aqui escolheram partir o espelho. O lado positivo é que, graças à interdição, houve debate. Há gente que defende o filme e gente que defende que gostando ou detestando não se pode interditar um filme sem o ter visto”.
Teatro da ternura
Tudo começara com um encontro entre o cineasta e quatro prostitutas de Marraquexe.
“Contaram-me a história delas. Não foi num dia, foi durante dois dias, non stop. Tocou-me tanto que quis voltar a vê-las. Voltei duas vezes, e depois quis começar um trabalho quase antropológico de escuta. Encontrei-me com 200 ou 300 raparigas ao longo de um ano e meio, e foi nesse tempo que se construiu um olhar sobre elas. Porque aquilo que me diziam punha-me num estado terrível.”
Inicialmente, esse trabalho de escuta estaria destinado a um documentário. “Porque as palavras delas eram importantes, suficientemente importantes para habitar um filme. Mas a coisa evoluiu porque me dei conta de que eu tinha um olhar sobre elas. E que esse olhar era, afinal, bastante terno, e eu que queria exprimir essa ternura. Daí nasceu a ideia de mise-en-scène. Não podia ser um documentário, há essa ideia de um teatro da ternura, em que essa ternura se exprime.”
Nabil decidiu-se então por uma ficção. Mas determinado a trabalhar com não profissionais. “Quis colocar o meu tempo e energia a avançar como um explorador, a descobrir pedaços de verdade escondidos pela experiência da vida das raparigas que encontrei,  das lembranças que elas poderiam ter dos bairros em que cresceram em contacto com mulheres prostituas. Não se dirige da mesma maneira uma actriz profissional e uma não profissional. E sabia que se dirigisse uma actriz profissional isso iria revelar sempre limites: uma actriz que vive no mundo árabe não pode fazer tudo, sob pena de ter de partir e ir viver para fora.” E foi então que apareceu Loubna Abidar...
“Inicialmente ela mentiu-me”, conta o realizador. “Disse-me que não tinha feito nenhum filme –tinha feito três ou quatro pequenos papéis, mas eu não estava ao corrente disso. Contou-me duas horas de mentiras e eu acreditei. No dia seguinte apareceu-me a chorar, a dizer que me tinha mentido porque queria muito participar no filme. E aí começou um caminho que durou um ano com ela. Esteve sempre presente ao meu lado, em volta do filme, dava-me conselhos  ela cresceu num bairro muito popular de Marraquexe, conhece bem o meio da prostituição, deu-me conselhos, informação, foi uma espécie de consultora não oficial do filme. E estava convencida a ir até ao fim como intérprete. Tinha essa convicção, e foi ela que me convenceu disso.”
Com o grupo, Nabil encetou um “trabalho quase teatral, stanislawskiano, um trabalho sobre a memória, sobre as palavras, sobre os gestos, sobre os corpos, sobre a coesão do grupo” – de forma a que também desaparecesse a diferença entre as experiências de vida das intérpretes. “Fi-las habitar juntas semanas antes da rodagem, para partilharem a vida comunitária.”
Esse método revela-se decisivo para a intimidade das cenas de grupo e para a naturalidade do abandono e exposição e humilhação das protagonistas nas sequências das orgias sauditas. É na segunda dessas sequências que o olhar do realizador não se contém, e, através da intervenção musical, expõe todo o seu desgosto.
“A partir do momento em que se escolhe uma música, faz-se também uma escolha em termos de intenção. É claro que a ideia de um score para sobrepor ao que se vê nas imagens permite instalar essa sensação de peso. E quis de facto isso, porque o que aquelas raparigas me contaram deu-me vontade de vomitar por vezes. Sim, a palavra é repulsa, pela perda de dignidade, quando o dinheiro se torna o valor único.”
O título Muito Amadas é significativo: toda a gente no filme fala de amor e de amar, mas são os corpos que começam a falar, a sobrepor a essas vozes o que lhes acontece, sangrando,  “Ou a rejeitar o que lhes acontece”, conclui Nabil.
Vasco Câmara, publico 


Um acontecimento cinematográfico que vem de Marrocos, recusando qualquer visão do país em tom de "postal-ilustrado".
Terminada a temporada dos Oscars, importa reconhecer que, antes e depois, o mercado cinematográfico português continua marcado por uma salutar diversidade. E a observação não envolve qualquer reticência perante o actual cinema americano — de facto, sou dos que pensam que os prémios da Academia de Hollywood envolveram algumas admiráveis propostas temáticas e estilísticas.
Importa também conservar os olhos e ouvidos abertos a experiências porventura menos espectaculares, em todo o caso marcadas por referências culturais bem diferentes. É o caso do filme Muito Amadas, assinado por Nabil Ayouch, cineasta francês de ascendência marroquina, sobre um grupo de prostitutas em Marraquexe, nos dias de hoje.
Banido pelo governo marroquino [...], Muito Amadas possui uma evidente dimensão de panfleto social. A existência das protagonistas, interpretadas por quatro excelentes actrizes — com destaque para Loubna Abidar, nomeada para o César de melhor intérprete feminina —, emerge num contexto em que o machismo mais violento se cruza com a degradação de muitos laços sociais e familiares e, em particular, com situações de fragilidade financeira ou mesmo de pobreza.
Em todo o caso, a contagiante energia do trabalho de Ayouch não decorre de um discurso estritamente social, antes do modo como tal discurso encarna num metódico labor cinematográfico. Estamos, assim, perante mais um exemplo de uma tendência realista que, hoje em dia, podemos encontrar nos mais variados contextos — desde as propostas dramáticas do americano J. C. Chandor (como o admirável Um Ano Muito Violento) até à renovação da tradição russa por Sergei Loznitsa (No Nevoeiro), passando por algumas experiências portuguesas, por exemplo de João Canijo (Sangue do Meu Sangue). 
Os contrastes dos títulos que podemos citar são reveladores de uma dimensão essencial. Não se trata, de facto, de defender um conceito universal, muito menos unívoco, de realismo. Trata-se, isso sim, de reconhecer que o desejo cinematográfico de dar conta da vida vivida envolve os mais diversos realismos, numa pluralidade capaz de nos fornecer pistas interessantíssimas para superarmos clichés de (des)conhecimento.
Tal fenómeno envolve uma atitude de resistência — que, sendo estética, é eminentemente política — a todos os formatos, nomeadamente de raiz televisiva, que tendem a reduzir a “realidade” a padrões simplistas ou estupidificantes. Observe-se, entre nós, a permanência dos horrores da “reality TV”, todos os dias multiplicados perante o silêncio ensurdecedor dos discursos políticos.
No caso de Muito Amadas, está também em jogo a recusa dos estereótipos turísticos que, no contexto europeu, tendem a descrever o norte de África de modo pitoresco, tendencialmente anedótico. Tanto bastaria para conferir ao trabalho de Ayouch o valor mais básico, mas também mais essencial, de qualquer realismo: não desistir de ver e pensar a complexidade do real.
João Lopes, Diário de Notícias

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