A MORTE
DE ESTALINE
Armando Iannucci
FRA/GB/BE/CA, 2017, 107’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Título original: The Death of Stalin
Realização: Armando Iannucci
Argumento: Armando Iannucci, David Schneider e
Ian Martin. Adaptação da novela gráfica com o mesmo nome, de Fabien Nury e
Thierry Robin
Montagem: Peter Lambert
Fotografia: Zac Nicholson
Música:
Christopher Willis
Interpretação: Steve Buscemi, Simon Russell Beale,
Jeffrey Tambor
Origem: FRA/GB/BE/CA
Ano: 2017
Duração: 107’
TRAILER
CRÍTICA
Armando
Iannucci, criador de séries como "The Thick of It" e
"Veep", assina uma arrasadora sátira política, bem negra e grotesca,
em "A Morte de Estaline".
Há uma cena em “A Morte de Estaline”, de
Armando Iannucci, em que os membros do Politburo mais chegados ao ditador
comunista o encontram no chão do escritório da sua dacha, fulminado por uma
síncope, e um deles grita: “Chamem os médicos!”. Ao que outro responde: “Não há
médicos. Matámo-los todos.”
Esta réplica dá o tom ao filme e poderia, à
primeira vista, parecer um exagero justificado pelo clima de sátira
política decapante que domina “A Morte de Estaline”. Mas quando pensamos
que entre 1952 e 1953, pouco antes de morrer, Estaline ordenou uma enorme purga
entre os médicos de Moscovo, sobretudo judeus, acusando-os de uma conspiração
para assassinar a liderança soviética, mandando despedir e prender centenas deles, muitos dos quais
foram torturados e executados, percebemos que a fita até peca por defeito.
Muita da ferocidade cómica de “A Morte de
Estaline” já existe na banda desenhada com o mesmo título, dos franceses Fabien
Nury e Thierry Robin, que Iannucci adapta nesta fita. Mas o britânico,
conhecido pelos retratos corrosivamente desopilantes dos bastidores do poder
que traçou em séries como “The Thick of It” (exibida pela RTP2 sem que muita
gente desse por ela) ou “Veep”, aquela passada em Inglaterra e esta nos EUA,
torna-a ainda mais intensa e descarada no seu humor selvático. Para Armando Iannucci, os absurdos de prepotência, de crueldade e
desumanidade dos regimes totalitários prestam-se muito mais a ser fustigados
pela sátira do que os ridículos crónicos e exasperantes das sociedades
democráticas. E essa sátira deve ser bem à medida das malfeitorias daqueles:
negra e espessa como alcatrão, e a ferver.
“A Morte de Estaline” é um filme que começa em
pânico de morte e fica com esta mudança dramática metida até ao fim. Depois de
Estaline morrer, os homens do seu círculo político íntimo, e que na noite
anterior, depois de um jantar regado a “vodka”, tiveram que aguentar com um
daqueles “westerns” de que o ditador comunista tanto gostava, começam a
preparar o funeral, e reúnem-se, conspiram, contabilizam lealdades, fazem e
desfazem alianças e tentam eliminar-se uns aos outros, para treparem ao
pedestal do poder supremo e sucederem-lhe à frente da gloriosa URSS. Enquanto isso, mandam prender, libertar, torturar ou fuzilar pessoas com
a leveza de quem encomenda géneros numa mercearia, estabelecendo um clima de
terror ora surreal, ora ridículo. A certa altura, o Malenkov de Jeffrey Tambor
diz: “Já nem sei quem está vivo e quem foi morto”.
Não é fácil fazer comédia com o horror totalitário, mas Armando Iannucci
consegue-o de forma brilhante em “A Morte de Estaline”, uma sátira grotesca
servida por um muito britânico, macabro e mortífero humor negro, que comunga de
uma tradição de séculos, vinda do Jonathan
Swift de “Uma
Singela Proposta”, continuada por caricaturistas, humoristas e cineastas,
e que chegou, entre outros, até aos Monty
Python. A
frenética e incessante dinâmica conspirativa do enredo leva o filme a
mata-cavalos, e a galeria de bufões criminosos, de Beria a Malenkov e Molotov,
passando pelo filho desatinado e alcoólico de Estaline e por um marechal
Jukov (Jason Isaacs) bruto como as casas, afadiga-se a despedir-se
solenemente do falecido e a conspirar para chegar a ditador no lugar do
ditador. A tropa mexe, o NKVD agita-se e o povo que veio velar Estaline é
recebido a tiro.
A escolha de actores também foi de estalo, com
realce para Michael Palin num atarantado Molotov, Steve Buscemi no exasperado
Khrushchev, Jeffrey Tambor num vaidoso e manhoso Malenkov, e sobretudo Simon Russell Beale no temido e depravado Beria (o seu gosto
por estuprar raparigas adolescentes fica sugerido numa rápida cena), que manda
gente para a tortura ou para a morte com o modo casual de um chefe de
repartição que despacha ofícios, e dando sempre uma sugestão sádica: “Mata-a
antes de o matar a ele, mas certifica-te que ele vê.” Beale aparece pouco no cinema e anda
mais pelos palcos, sobretudo a fazer Shakespeare, e o seu Beria é um modelo de
como interpretar um monstro moral e um assassino de massas numa sátira negra de
breu ao mais escabroso terror concentracionário. Em “A Morte de Estaline”, há
sempre um arrepio por trás de cada gargalhada.
observador.pt