Fernando Vendrell
Portugal, 2017, 115', M/12
PRESENÇA DO REALIZADOR
FICHA TÉCNICA
Realização: Fernando Vendrell
Argumento: João Milagre, Fátima Ribeiro
Fotografia: Mário Castanheira
Montagem: João Braz
Música: Eduardo Raon
Interpretação: Jaime Freitas, Victória Guerra, Rita Martins, João Cachola, Rui Morrison, João Lagarto, Teresa Madruga e Ricardo Aibéo
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 115’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Fantasporto - Melhor Filme Português
TRAILER
Manhã Submersa, romance de Vergílio Ferreira,
tornou-se também um clássico do cinema português, quando, em 1980, Lauro
António o adaptou. Curiosamente, o próprio escritor aceitou o desafio de
interpretar o papel do reitor, uma malévola figura do seu livro, o que revela
uma relação aberta com o cinema. Contudo, desde Lauro António que nenhum outro
realizador alguma vez ousara levar uma obra de Vergílio Ferreira ao grande
ecrã. Isso poderá estar diretamente relacionado com a natureza da sua própria
escrita. Apesar de ter começado próximo do neorrealismo, Vergílio Ferreira
derivou para uma literatura de maior fôlego reflexivo e filosófico. O que
dificulta a passagem para o cinema, em que normalmente há uma maior dependência
de uma estrutura narrativa. Aparição (1959) é o romance em que se dá a
transição entre os dois períodos. Há uma enorme carga filosófica, expandindo e
refletindo sobre as grandes questões da Humanidade, sobretudo o
existencialismo; mas, ao mesmo tempo, há uma narrativa estruturada, cheia de
elementos autobiográficos, que desemboca numa história de amor e morte. A
narrativa, aliás, serve de base para o espírito reflexivo do próprio autor; é a
partir da descrição da ação que se desenvolve o pensamento.
Isto, tanto no livro como no filme. Porque,
mérito lhe seja dado, Fernando Vendrell observou bem as dimensões da obra,
reconstruindo-as em cinema, em duas camadas. E fê-lo com elegância e bom gosto,
sem sequer recorrer ao subterfúgio da voz off, ferramenta facilitadora tão
usada em adaptações literárias, para ecoar a voz do autor. O filme situa-se em
Évora, cidade onde o próprio Vergílio Ferreira foi colocado como professor nos
anos 50 do século passado. A cidade tem um ambiente claustrofóbico, contrariado
por uma certa elite, a vários níveis à frente do seu tempo. É ali que o
protagonista, Alberto, encontra Sofia, moralmente arrojada, musa de desejo e
morte. Mas também Carolino, um aluno que adota como discípulo, mas que faz uma
leitura fatalmente perversa das suas reflexões existencialistas, o que resulta
num desfecho trágico de dupla leitura.
Em Aparição, Fernando Vendrell recupera
Vergílio Ferreira para o cinema português. E, ao mesmo tempo, resgata-se a si
próprio, enquanto realizador, 12 anos depois de Pele.
A adaptação de Aparição, por Fernando Vendrell,
é um incitamento à redescoberta da obra de Vergílio Ferreira, um dos grandes
mestres da literatura portuguesa do século XX que tem andado distante dos
escaparates.
Manuel
Halpern, visao.sapo.pt
ENTREVISTA
AO REALIZADOR
Como te
sentes tratando no grande ecrã um dos mais importantes romances da literatura
portuguesa do século XX?
Estamos no século XXI e tenho notado que há uma
espécie de tentativa de esquecimento de alguns escritores muito importantes
como Vergílio Ferreira. Apesar de ser uma obra conhecida, está em risco de
passar a uma espécie de ocultamento e havia essa responsabilidade no filme.
No
fundo, acabaste por fazer a tua análise, transpondo o livro para cinema e
juntando uma espécie de autobiografia de Vergílio Ferreira (porque o próprio
livro é autobiográfico).
Sim, essa ideia de autobiográfico é muito
importante. Do ponto de vista literário, o romance posiciona-se num momento
muito especial da vida de Vergílio Ferreira. Ele tinha escrito as suas
primeiras obras envoltas no neorrealismo e de repente abraça um cariz mais
filosófico e profundamente humanista do existencialismo. Esse momento de
viragem é determinante para a carreira futura deste escritor. O jovem Alberto
Soares está imbuído dessa experiência existencialista, dessa questão da morte.
O que é que significa ser homem? O que é que significa a vida? Incorpora também
frases e atitudes noutros personagens como o caso de Chico que perante a
questão do existencialismo diz: “mas o homem já sabe que existe desde a idade
da pedra lascada”. Ironizando, o que é importante, diz esta personagem, é que o
homem possa comer, uma preocupação eminentemente social. A questão socialista
de o homem ter condições de vida. O compromisso social do escritor está
refletido na própria obra. Nessa altura Portugal vivia num regime fascista, sob
uma ditadura. A liberdade de expressão, a divergência social, as discrepâncias
e a forma como era distribuída a riqueza eram extremamente injustas.
No
livro vemos uma reflexão sobre a vida e sobre a procura, uma busca do
protagonista pela sua pessoa e pela sua aparição. Como é que transportas esta
ideia para o filme?
A transmutação do livro para o filme é
impossível. O livro tem uma forma literária, um grau de intimidade com o seu
leitor e um grau filosófico e poético. Esse domínio de abstração é,
objetivamente, muito difícil de criar num filme. A adaptação tornou-se, para
mim, funcional quando fiz a análise do livro e senti que este impregnava
momentos e vivências com que o próprio autor se confrontava. Vergílio procurava
organizar, em matéria escrita, essas experiências e confrontá-las de uma forma
espectral, quase como fantasmas da sua vida. Essa atitude é muito
cinematográfica.
Como
foi filmar em Évora, uma das nossas mais importantes cidades? Pode ser um
cartão postal para o filme?
A Évora do filme é diferente da cidade de Évora
que nós conhecemos. É um labirinto onde Alberto Soares transita, é uma cidade
virtual e imaginária. Não há um bilhete postal de Évora. Há uma visão da cidade
funcional, ergonómica, plástica para o conteúdo narrativo e emocional do filme.
Fala-me
um pouco das tuas escolhas artísticas como a fotografia, que é muito marcante,
ou os atores. Como surgem Victoria Guerra, Jaime Freitas e João Cachola?
Trabalhei com o diretor de fotografia Mário
Castanheira que já fez filmes muito importantes. É uma pessoa muito especial
com uma carreira no cinema muito heterogénea. O Jaime já tinha entrado no filme
Cigano, produzido por mim, e considerei-o desde então um ator muito
interessante. Depois fiz um casting longo para atores e atrizes jovens e
apareceu João Cachola que se tornou uma personagem bastante forte para
interpretar Carolino. A Victoria Guerra, de quem eu já seguia a carreira,
estava com um trabalho longo, mas foi possível integrá-la no filme. Sempre a
considerei uma atriz muito corajosa e determinada e achei que seria ideal para
interpretar Sofia. Foi uma conjugação feliz.
Outro aspeto importante é que quando estava a
preparar o filme preocupei-me com as mortes de Fernando Lopes e Fonseca e
Costa, pessoas com quem trabalhei e com quem aprendi. Senti que era uma geração
que estava a desaparecer. Então fiz uma espécie de prospeção, sobre a questão
da linguagem e sobre essa forma de filmar, em jeito de homenagem. Alguns dos
atores que estão no filme, não aparecem por acaso, trabalharam com essas
pessoas. Há algo quase xamânico na forma como desenvolvi a realidade intrínseca
para o filme, para que este tivesse uma profundidade mais prospetiva das
emoções que eu queria explorar.
Tal
como o livro, o filme também é existencialista. Como é que o filme lida com as
questões da finitude humana?
O filme não é assertivo, não expressa um pensamento
único. Apenas pretende tocar e envolver o espetador dentro dessa experiência.
Não tenho um statement e sim uma visão sobre esta obra e a vida intrínseca à
mesma. O filme vai mais além, procura outras questões mais fantasmáticas, de
cariz poético, que estão implícitas na obra, mas que a obra não pode
transportar através do cinema.
E como
vês nos dias de hoje a relação das pessoas com a sua existência?
Depende muito de pessoa para pessoa, mas do
ponto de vista social, há uma procura de fazer com que as pessoas não pensem.
Este filme é de época, o romance está localizado num período onde se calhar
essa necessidade de refletir socialmente era muito mais premente. Eu acho que,
até pelo que estamos a viver hoje em dia, essa necessidade é ainda mais urgente.
O alheamento e a indiferença sobre a forma como vivemos, quer a nível pessoal,
quer a nível social, é determinante na nossa vida. A questão de termos a
tecnologia nas mãos e de os órgãos de informação penetrarem através do nosso
telemóvel não é relevante se não houver uma atitude nossa em relação à forma
como esses media estão na nossa vida. Quando falo destas questões falo também
de emoções, da forma como vivemos os nossos relacionamentos e da forma como
podemos sentir a paixão e o amor, e o filme reflete sobre isso.
Nesta
era em que vivemos, cada vez mais digital, de consumo rápido de informação, o
filme representa uma pausa para pensar e refletir. Como vês esta pausa e esta
ligação do cinema à literatura?
Esta velocidade de vida e solicitação constante
por parte dos novos media, traz transformações sociais e a meu ver está a ser
sobrevalorizada. Na realidade, ao invés de pensarem na tecnologia, as pessoas
deveriam pensar na sua forma de viver. Há sempre esta ideia de que o cinema,
principalmente o cinema português, é um cinema muito lento, demorado. Na
realidade a sensação que eu tenho é a de que este filme é muito rápido, ou
seja, demora um instante. Começa e no segundo seguinte já está a terminar. Se
as pessoas não tiverem disponibilidade para viver cada momento não têm
disponibilidade para nada.
Vergílio
Ferreira iria gostar desta adaptação?
(risos) Bom, não sei, tenho algumas reservas
sobre essa possibilidade pois não o conheci pessoalmente. Na realidade acho que
iria ficar surpreendido e esta adaptação iria levantar-lhe questões, mas também
acho que se a minha adaptação fosse feita durante a sua vida, mesmo que
Vergílio Ferreira não me condicionasse, iria ser diferente.
Elsa
Garcia, david-golias.com
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