COLO
Teresa
Villaverde
Portugal, 2017, 109’, M/16
FICHA
TÉCNICA
Realização - Teresa Villaverde
Montagem - Rodolphe Molla
Fotografia - Acácio de Almeida
Som - Vasco Pimentel
Interpretação: João Pedro Vaz, Alice Albergaria
Borges, Beatriz Batarda, Clara Jost, Dinis Gomes, Ricardo Aibéo, Simone de
Oliveira
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 109’
FESTIVAIS
E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Em Competição
Festival Bildrausch – Prémio Bildrausch Ring of
Cinema Art
Festival IndieLisboa – Filme de Abertura
TRAILER
CRÍTICA
Chega, finalmente, às salas o novo filme de
Teresa Villaverde, um retrato interior e familiar da crise que abalou Portugal,
A crise económica portuguesa, que teve o seu
auge durante o período de intervenção da Troika, deixou marcas profundas na
sociedade e muitas histórias. Teresa Villaverde, em Colo, filme do início de
2017 mas que só agora chega às salas, aborda a crise de forma particularmente
subtil e elegante, indo muito além dos motivos meramente económicos ou
descobrindo as suas sequelas. Colo é um filme que fala de um dos efeitos mais
graves da carência financeira - a crise dos afetos,o desmoronamento das famílias,
a queda dos pilares das pontes que unem as pessoas. E, com isso, torna o seu
filme universal e intemporal, porque as suas premissas são válidas para
qualquer crise, global ou particular.
Encontramos uma família já em queda, com um
desequilíbrio estrutural difícil de remediar: ele não tem emprego, ela trabalha
de dia e de noite para compensar. A filha, adolescente, cai no buraco que se
abre entre a ausência física da mãe e a ausência psíquica do pai. Vemo-los
derrapar numa progressiva carência afetiva, que só pode levar a uma implosão.
Os protagonistas não têm uma reação política
contra o Governo, não buscam culpados para a sua situação, não dão qualquer
sinal de consciência política, não se fala da Troika nem de nenhum governante.
Eles apenas sofrem e acumulam progressivamente as mazelas; as feridas afetivas
são ainda mais difíceis de sarar do que as financeiras. Vão caindo até que
chegam ao fundo. E, então, reinventam-se. Reconstroem-se em posições trocadas,
numa espécie de instinto de sobrevivência. E é assim que este filme em queda -
ao contrário de outros filmes negros da realizadora, como Os Mutantes - mesmo
que termine num plano rasante, dá sinais de esperança. Ainda há qualquer coisa
que se pode salvar.
Colo é um dos grandes filmes do cinema
português recente, que demorou demasiado tempo a estrear. Tem um argumento
subtil, magnífica fotografia e interpretações de excelência, sobretudo de
Beatriz Batarda e João Pedro Vaz, mas também das jovens Alice Albergaria Borges
e Clara Jost.
Manuel
Halpern, visao
ENTREVISTA À REALIZADORA
Encontrámos Teresa Villaverde há um ano no
Festival de Berlim, onde "Colo" se estreou a concurso, e atualizámos
a conversa há dias em Lisboa sobre as consequências deixadas pelo período de
crise que entretanto passou. "Colo" é a sua sétima longa-metragem, um
filme que nos interpela e em que o desemprego vai mudar o emprego do tempo de
uma família lisboeta, tornando as suas filiações quase irreconhecíveis. Mário
(João Pedro Vaz) perdeu o trabalho, a mulher dele (Beatriz Batarda), cada vez mais
exausta, é quem sustenta a casa, e isso afeta necessariamente a vida da filha
adolescente do casal, Marta (Alice Albergaria Borges), que se refugia no seu
grupo de amigos, Júlia (Clara Jost) e João (Tomás Gomes).
Não é
uma questão evidente, mas julgo que a sensibilidade e a mágoa de
"Colo" dependem acima de tudo do ritmo do filme, de um vagar dolente
que talvez não existisse quando começou a filmar.
Acho que percebo o que quer dizer. Por outro
lado, é-me difícil falar agora dos meus filmes anteriores. Eu comecei a filmar
muito nova e, para ser honesta, acho que havia dantes uma proximidade muito
grande entre mim e os personagens. Muitos deles continham uma grande raiva, uma
fúria que eu partilhava por inteiro. Dantes, queria estar perto disso, junto a
eles, no mesmo gesto de acusação. Realmente, em "Colo”, as coisas são diferentes.
Não senti que neste filme houvesse um 'inimigo'. O que há é uma situação complexa
— a crise económica — e um espanto: afinal como é que estamos a responder ao
problema? Isso aconteceu em Portugal, e não estávamos à espera. Ficámos sem
ferramentas para reagir à crise. Precisei de ganhar outra distância para
abordar o problema. "Colo" não é um filme que vá para cima das
pessoas.
Talvez
a pergunta esteja relacionada com uma perceção do tempo, que para os
personagens também mudou. O pai, Mário, perdeu o trabalho, não sabe o que
fazer...
Aquilo que se passa de mais importante na vida
dos personagens são coisas de que eles não falam: a vergonha, a insegurança, a
falta de perspetivas de futuro. São coisas caladas. E como é que nós falamos de
coisas caladas? A questão é esta. Mais de metade do filme passa-se em
interiores, naquele apartamento. Eles estão numa bolha onde muita gente também está.
Cruzam-se com poucas pessoas, não podem escapar à rotina. Essa sensação de
espaço fechado era muito importante. É por isso que tenho tão poucos grandes
planos no filme.
Mas com
os adolescentes, a Marta, a Júlia, o João, não é assim, pois não?
Com os mais novos é diferente. Parece que eles
vivem num mundo completamente à parte, como se os filhos não tivessem nada a
ver com os pais. Nem se percebe como é que vivem na mesma casa. Senti que era
necessário mostrar essa divisão e observar essa diferença de comportamentos com
pudor, sem voyeurismo. Era preciso saber estar ali, com os personagens, entre
quatro paredes.
O
argumento de "Colo" foi escrito depressa?
Sim, mais rapidamente do que é o meu hábito.
Quando comecei a escrever, estávamos completamente cercados pela ideia da crise
em Portugal. Só se falava disso — e só se via isso. Saíamos à rua, estava tudo
fechado ou à venda. Mas a crise deixa um lastro. Não desaparece assim. Antes da
rodagem, fiz uma pequena pesquisa para um documentário que tratava justamente
de como o problema do desemprego altera as relações entre pais e filhos. Vi histórias
inquietantes, como filhos que começaram a ter vergonha dos pais, por exemplo.
Nos
jornais?
Nos jornais e através de algumas entrevistas
que fiz. Lembro-me de ter falado com um psiquiatra, que me disse que lhe
apareciam em catadupa pessoas com depressão. Ele identificava rapidamente a
origem do problema. E perguntava a si mesmo para quê receitar antidepressivos
que não resolviam nada. O problema das pessoas era concreto: falta de trabalho.
E agora
o filme chega às salas, mais de um ano depois de se estrear em Berlim. Fala de
um período específico que a sociedade portuguesa atravessou. Ainda são, de
resto, bem visíveis as consequências desse período, embora pareça que hoje já
ninguém quer falar da crise...
Eu acho isso estranhíssimo. Até parece que
agora tudo desapareceu, não é? Este ano de diferença permitiu-me pensar em
muitas coisas que foram mudando. Se as coisas estão melhores hoje, mais
estranho se torna terem ficado tão más, e tão de repente, quando a crise
apareceu. Se coletivamente descemos a um buraco tão grande e se num espaço tão curto
já estamos a vir ao de cima, não será porque o mal já vinha de trás, de outra
crise, que se calhar faz parte de nós e à qual não soubemos responder? A
sociedade portuguesa ficou deprimida. Ficámos deprimidos em conjunto, sem
reação, e ao mesmo tempo cada um de nós só pensou nos seus problemas, em como
se safar. Isto é preocupante, porque, se daqui a uns anos Portugal voltar a
cair num período mau, julgo que a História vai repetir-se, que voltaremos a
ficar calados e sozinhos.
Em
"Colo", a crise não é dada de chofre. Estou a pensar na cena em que a
luz é cortada no apartamento por exemplo...
Quando o filme começa, percebemos que há
qualquer coisa de estranho naquela família, mas não sabemos ainda o que é. Nem
a própria família reconhece aquilo que está a acontecer. Um desencontro entre o
pai e a mãe, coisa sem importância alguma, ganha de repente uma dimensão
ameaçadora. Sentimos que as relações começaram a alterar-se com o cansaço, com
a perda gradual de paciência. Marta é adolescente, a crise até lhe passa ao
lado, mas o facto de ter o pai desempregado e em casa a horas em que estava habituada
a estar sozinha é uma coisa que pesa para ela: o pai tornou-se um empecilho,
está a cortar a sua liberdade. Estas pequenas coisas começam a minar aouela família.
Por outro lado, a mãe, numa altura em que é ela agora quem paga tudo, parece
cada vez mais amarga, torna-se quase um vulto que já não pertence àquela casa.
E a casa é fundamental, porque é o espaço que ainda resta. Mesmo sem luz, ainda
há a casa, é quase um personagem, uma coisa a latejar, um coração à espera que
ainda os junta a todos. E até isso depois desaparece.
A cena
do Mário na casa de banho com o balde na cabeça foi escrita por si ou foi uma
improvisação do momento?
Estava escrita.
Como é
que se lembrou de uma ideia como essa?
Pensei bastante naquilo que estava a acontecer
ao país e percebi que o filme ia viver de cenas dessas, dos silêncios, dessa
não-ação, dos não ditos. Há uma sequência de que gosto muito, quando o Mário
está o telhado do prédio, que está cheio de lixo. Tive de trabalhar muito
seriamente sobre a economia das cenas. Não houve nenhuma sequência em
"Colo" que eu tenha escrito e filmado e que não tenha entrado na
montagem. A história do banho de imersão e do balde na cabeça são características
da depressão. Foi o que eu senti que podia ter passado pela mente daquele
homem, um automatismo de alguém que, por não ter nada para fazer, pode meter-se
na casa de banho e passar horas distraído com coisas insignificantes. Depois, a
filha interrompe-o. E diz-lhe que "um balde na cabeça é um balde na
cabeça, não tem mal nenhum". De facto, não tem. Mas naquela situação é o
suficiente para criar um mal-estar.
Acha
que o ponto de vista de "Colo" começa a aproximar-se lentamente dos
adolescentes, a tender para eles, como se neles houvesse alguma escapatória,
talvez uma esperança?
Quando estou a escrever os diálogos, estou
sempre atrás de cada personagem que fala, mas — é curioso — ao longo da escrita
acho que me fui colando cada vez mais ao pai, ao Mário. Considero-o o
personagem central, e é a primeira vez nos meus filmes que tenho um homem nesse
centro. A âncora de "Colo" é o pai e o seu silêncio.
A sua
loucura?
Não sei se é loucura. Acho que ele passa a uma
dada altura para outra dimensão, quando decide partir e ajudar a amiga da
filha, que engravidou. E uma situação absurda para ele, em que tenta fazer algo
de justo, bastante arriscado e que não sabemos aonde vai dar. Já os
adolescentes vêm trazer uma energia que, de algum modo, nem faz parte do filme,
é qualquer coisa que fervilha e que quer sair dali, como um contrapeso, um
contrapoder — e isto começou a ganhar força na rodagem.
Não foi
sempre assim com a Ana Moreira e o Alexandre Pinto em ”Os Mutantes" , por
exemplo?
Sim, a força de "Os Mutantes" vinha
deles, e aquilo que eles fizeram de mais intenso são coisas que eu não lhes
posso pedir. Essa força não se pede, são eles que a dão. É próprio da idade.
Pelo menos, foi esta a experiência que adquiri em filmar com adolescentes.
O facto
de Júlia ser interpretada pela sua filha, Clara Jost, trouxe-lhe receio ou, por
outro lado, foi uma segurança?
Há uma coisa muito importante em
"Colo" que tenho de sublinhar: é que a Clara, a Alice Albergaria Borges
e o Tomás Gomes são grandes amigos na vida. Eu não tinha pensado em dirigir a
Clara. Pensei que poderia ser perigoso trabalharmos juntas, e quando a ideia
surgiu fiquei surpreendida por ela ter aceitado. A Clara está a estudar na
Escola de Cinema, quer fazer filmes, mas também já tinha entrado como atriz num
filme do Sandro Aguilar e, mais recentemente, noutro da Salomé Lamas. Para
"Colo", o casting foi feito
já muito em cima da data da rodagem. E escolhi-os por isso, por serem amigos e
porque os conheço, frequentam a minha casa. O Tomás, que é músico, acabou por
trazer a música para dentro do filme. Não era assim que eu tinha imaginado o
personagem dele. Aquela canção violenta que eles tocam - e que eu utilizei no
genérico final - é da autoria dele, e é importantíssima, é uma estridência, o
único verdadeiro grito do filme, onde se concentram no fundo as energias de
todos os adolescentes.
Porque
é que, nos seus filmes, os personagens tendem tanto a fugir da cidade, da malha
urbana, e a partir para um arrabalde, para um descampado, no caso de
"Colo" aquela cabana de pescador, junto ao rio, que será importante
no desfecho?
Acho que é um pouco incosciente, é a minha atração pela
água, pelo mar, neste caso Lisboa e o rio. A água como elemento de salvação.
Vem-me agora à cabeça o primeiro livro da Clarice Lispector, "Perto do
Coração Selvagem", em que há coisas que se resolvem à beira-mar... Também
o Mário, no filme, procura a água, a força do mar. Gosto da cabana que a Marta
e a Júlia descobrem por acaso. É pequena, bonita, pertence a um pescador. Temos
o rio, os peixes, as redes... e tudo isto para mim representa um regresso a
coisas essenciais, à natureza — é isso que nos sustém mesmo quando tudo parece
desmoronar-se à nossa volta. Para elas, a cabana não é a escola nem a casa, mas
sim um abrigo, um casulo, um aconchego que os pais da Marta nunca hão de
conhecer. Quando somos adolescentes, temos sonhos que a esmagadora maioria de
nós não consegue cumprir quando nos tornamos adultos. O direito à felicidade é
um luxo muito difícil de alcançar, e eu gostava que "Colo" também
fosse um filme sobre isso.
Francisco
Ferreira, Expresso
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