CORRESPONDÊNCIAS
Rita
Azevedo Gomes
Portugal, 2016, 150’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Realização e Argumento: Rita Azevedo
Gomes
Montagem: Patrícia
Saramago, Rita Azevedo Gomes
Fotografia: Acácio de
Almeida, Jorge Quintela
Música: Alexander
Zekke
Com: Eva
Truffaut, Pierre Léon, Rita Durão, Luís Miguel Cintra, Anna Leppänen, entre
outros
Origem: Portugal
Ano: 2016
Duração: 150’
PRÉMIOS
DocLisboa
2016 - Prémio Fundação Saramago e
Livraria Lello
Caminhos
do Cinema Português 2016 - Prémio
Melhor Realização
CRÍTICA
Perante
as imagens e sons deste "Correspondências", filme cósmico em que é
tão fácil entrar, em que sabe tão bem estar, mas que não se 'decifra', talvez
seja prudente começar pelo início. Em março de 2006, a Guerra e Paz publicou um
livro com a troca de cartas de Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de
Sena, entre 1959 e 1978. Corresponde este período ao exílio, por questões políticas,
do autor de "O Físico Prodigioso", primeiro no Brasil e, mais tarde,
nos EUA, em Santa Barbara, Califórnia, onde prosseguiu carreira académica, ali
permanecendo até à sua morte sem ter voltado a pisar solo luso. Ao livro que a
Guerra e Paz intitulou "Correspondência" — trata de uma conversa
irregular no tempo ao longo de mais de vinte anos, suspensa pelas esperas do
correio transatlântico, mas também feita de muitas outras cartas perdidas,
desaparecidas, talvez intercetadas pela PIDE — acrescentou Rita Azevedo Gomes
um "s" que a inclui, que nos inclui. Filme epistolar este, que se
estreou há dois anos na competição do Festival de Locarno e que, por fim, chega
agora às salas? Poderíamos partir desta ideia. E, contudo, outra questão se
levanta aqui: como é que se filmam cartas que são em si poemas sem matar a
poesia, e logo escritas por dois dos maiores vultos da literatura portuguesa?
Acontece que
"Correspondências" não é filme de sublinhados, nem documentário com
oráculos nem cristalização tentada de um momento histórico, pois temos sempre a
sensação de que aquilo que Rita Azevedo Gomes procura é um contacto com o
presente, com uma atualidade em que aquelas cartas-poemas parecem estar a falar
para nós. No final de julho de 2016, dias antes da partida da cineasta para
Locarno, Rita contava-nos o que a motivou. "A maneira como Jorge de Sena e
Sophia descrevem as coisas, as visitas, a expectativa, a euforia da festa e as
notícias que fervilhavam, perturbou-me porque, de repente, tudo aquilo era um
retrato do que se passava na minha casa. A minha mãe frequentava aquele mundo
de escritores e de artistas, conhecia Sophia e arrastava-me, eu miúda de oito anos, para aquele meio. Levava-me ao lançamento dos seus livros. E
eu sentia exatamente o que a Sophia diz, esse 'desejo de suprir anos de
distância em horas de conversa'. Sei que o livro acordou qualquer coisa em mim.
De repente, também a minha vida estava naquelas cartas. Mas foi difícil
encontrar uma maneira de fazer coabitar os elementos do filme com estas memórias
pessoais. Fiz para cima de vinte versões de montagem, deixei horas de material
de fora que me custou muito cortar."
"Correspondências" é um film fleuve de 2h25, habitado por textos
sublimes (um diálogo riquíssimo de cumplicidades, confissões, desabafos) mas
livre, em si próprio, de uma intenção literária. Parece em simultâneo ser o seu
próprio making of, de tal forma nos
deixa indícios do modo como foi construído. Arranca com
"Metamorfoses", de Ovídio, e passa depois à correspondência entre os
dois poetas sem a imposição de uma ordem cronológica. Os poemas ora são lidos
ora transformados em diálogos que, contudo, não perdem a sua
origem. É um filme feito de situações encenadas, de arquivos verdadeiros
(televisivos, sobretudo) e de ‘arquivos simulados’, num gesto de experimentação
em que a cineasta recorreu a técnicas digitais e a câmaras de vários géneros,
profissionais ou tão-só de telemóveis. É ainda um filme feito de encontros, de
velhos amigos e de pessoas que a cineasta foi encontrando pelo caminho. Por
aqui passam Luis Miguel Cintra, Rita Durão e Francisco Nascimento, Acácio de
Almeida e Mário Barroso, os cineastas Pierre Léon e Edgardo Cozarinsky, também
a fotógrafa e atriz Eva Truffaut, e tantos outros que Azevedo Gomes, por puro
instinto, convidou para ler as ditas cartas, fosse em português ou em
castelhano, em francês ou em inglês, em italiano ou em grego, e até em russo. A
língua-mãe dos convidados, bem como os países em que Rita, por determinada
circunstância, visitou ao longo dos quase três anos de rodagem (também fruto
das viagens ao estrangeiro de promoção do seu filme anterior, o magnífico
"A Vingança de uma Mulher"), ditaram o sabor do verbo deste 'filme
falado' , coral na sua estrutura, com 71 intervenientes (entre eles a realizadora
e um gato que entra numa cena rodada em Paris), diz o genérico final.
Será
que a vida é a luta das imagens que não morrem, como escreveu Jorge de Sena?
"Para mim" , acrescentou a cineasta, "o mais importante foi o
que estava a acontecer na rodagem, as pessoas que encontrei, o prazer que me
deu filmar e filmá-las. Acredito que a poesia é universal, venha de que parte
do mundo vier. É difícil de traduzir, mas fácil de se propagar." Além
disso, "Correspondências" é um filme sem pressas, que nos pede tempo,
tal como reza a nota de intenções que a cineasta escreveu, assim concluída:
"E o espectador — não o que tem pressa mas aquele que sabe pôr o coração
entre o pensamento e a mão — é agora o autor."
Francisco Ferreira,
Expresso
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