RAMIRO | 24 ABR | TEATRO DAS FIGURAS | 21H30 | PRESENÇA DO REALIZADOR


RAMIRO
Manuel Mozos
Portugal, 2017, 104’, M/12


FICHA TÉCNICA
Realização: Manuel Mozos
argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo
Fotografia: João Ribeiro
Montagem: Pedro Filipe Marques
Interpretação: António Mortágua, Madalena Almeida, Fernanda Neves, Vítor Correia
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 104’



TRAILER



CRÍTICA
Ramiro é um daqueles tipos que só não querem que o chateiem. Não conhecemos grande coisa do seu passado nem tardamos a perceber que ele prefere viver com o seu cão, o "Ortigão", em vez de partilhar vida com Patrícia, a namorada. Alfarrabista de Lisboa, frequenta à distância o meio literário da cidade e torce o sobrolho ao pretensiosismo de certos autores descarados que se vendem na TV. Pensa certamente nos poemas que escreveu e que ele continua teimosamente a guardar na gaveta, longe do prelo. Na loja, negócio que já foi parra que deu uva e que ele mantém orgulhoso, mostra aos clientes, que não são muitos, um trato fino e cordial, mas também faz cara feia e despacha uns quantos para a Fnac quando não reconhece neles uma afinidade de gosto. Esse não é o caso da adolescente de barriga que, logo no início, lhe pergunta se ele tem os "Lusíadas contado às grávidas" (!). Ramiro não se embaraça com tal pedido (ainda para mais esgotado) , nem perde a réplica: "Mas tenho o 'Moby Dick'!". O diálogo acaba com um "manual do IRS" , as personagens parecem sorrir com o absurdo do que acabam de dizer e nós sorrimos com elas. Sorrimos daquela coloquialidade forjada que, apesar disso, não deixa de ser uma coisa 'muito cá de casa'  - e que o cinema português (pesem embora as diferenças entre os dois realizadores) nunca mais se atreveu a filmar com esta dignidade e graça desde o desaparecimento de César Monteiro.
"Ramiro" foi escrito para Mozos por Mariana Ricardo e Telmo Churro e o que é curioso é que, conhecendo-o, o Ramiro do título (que António Mortágua interpreta) parece ter sido moldado à imagem do cineasta. Não se trata de uma biografia ficcionada. "Acontece que a Mariana e o Telmo conhecem-me, gostam dos meus filmes", contou-nos Mozos há dias na noite da antestreia em sala, "e escreveram uma personagem com características que eventualmente se podem colar a mim. Eles assumiram isso. Eu li o argumento, não me importei, pelo contrário, achei bonita esta ideia de fazer um filme sobre um tipo que se parece comigo. Pedi-lhes para não exagerarem, porque o Ramiro é o Ramiro e o Manuel é.o Manuel. Mas é verdade que gosto daquelas profissões, daqueles locais, daquele mundo um bocado encapsulado em que a personagem vive e que, para mim, continua a ser o presente. O Ramiro tem umas pechas, não sabe escrever em computadores, não percebe nada do IRS. Mas é um tipo que lá se vai safando, por enquanto. Temos certas semelhanças."

Voltemos à tal menina grávida e que entra na loja de Ramiro quando o filme começa. Chama-se Daniela (Madalena Almeida), foi educada pela avó, a Dona Amélia (Fernanda Neves). Daniela julga ser órfã de pai e mãe, mortos num acidente: foi o que lhe contaram. Ramiro, descobre-se depois, assumiu ser o seu encarregado de educação quando a Dona Amélia teve um AVC. Em torno do protagonista gravitam outras personagens, os amigos José, Vicente, Fernando, a já referida namorada Patrícia (Sofia Marques). Ramiro conhece-os desde sempre naquele bairro lisboeta em vias de extinção onde o café da esquina ainda existe paredes-meias com a agência funerária. Se o tom – já se percebeu – é de comédia, ora franca ora mais mordaz, há contudo um segredo que começa a unir Ramiro a Daniela e que está relacionado com o passado dela. É matéria melodramática em potência, história de faca e alguidar com um crime passional que Ramiro descobre depois ter sido hediondo. Temos vontade de avançar por aqui, por este alarme de violência, porque ele não é novo nas ficções de Mozos. Em "Xavier", a sua obra-prima (com Pedro Hestnes, Canto e Castro, Isabel de Castro, Isabel Ruth e Cristina
Carvalhal, que também entra em "Ramiro"), pesava um luto materno. Em "Quando Troveja"  pesava o fim de uma relação sentimental. Há sempre famílias despedaçadas e cicatrizes por sarar no cinema de Mozos, só que esta violência — e por aqui também se mede a generosidade do realizador — fica sempre fora de campo, é uma ameaça que paira sobre as personagens e sobre este Portugal muito português de "Ramiro", feito de tascas e de tipografias, de esplanadas à beira-mar e de viagens de carro em que ainda se ouvem velhas cassetes dos Heróis do Mar. "Realmente", diz Mozos, "há em todas as minhas ficções uma violência escondida, coisas secretas, prenúncios melodramáticos de coisas muito fortes que aconteceram, famílias falhadas. Neste filme, o lado negro vem da personagem do Alfredo [Vítor Correia], o pai da Daniela. Ele não mostra arrependimento, eu também não dou pistas porque é que ele matou a mulher, mas há qualquer coisa em mim que não me permite filmá-lo como o 'mau da fita'. Se calhar, nunca conseguirei fazer uma comédia pura. Nem um dramalhão. Há uma ironia na vida que me é muito cara, nada que me faça rir às gargalhadas, mas que me impede de fazer certas coisas. Porque a vida continua, independentemente dos casulos que criamos para nos protegermos, e se calhar isso é o mais importante."
Gosto mesmo deste "Ramiro", do seu coração generoso, genuíno, tão português e dos seus planos justos, das suas cenas afetivas, impermeáveis à pretensão. Vi-o três vezes em projeções espaçadas, sempre com prazer, julgando partilhar a simplicidade com que ele deve ter sido feito. Não é que haja aqui mistérios insondáveis, peripécias extraordinárias, tãopouco 'surpresas de autor' que tanto atraem as programações de festivais. "Ramiro" não tem nada disso. E apenas um filme que nos abre a porta e que nos convida a ficar.
Francisco Ferreira, Expresso



 


 

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