Manuel Mozos
Portugal, 2017, 104’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Manuel Mozos
argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo
Fotografia: João Ribeiro
Montagem: Pedro Filipe Marques
Interpretação: António Mortágua, Madalena Almeida, Fernanda Neves, Vítor Correia
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 104’
TRAILER
CRÍTICA
Ramiro é um daqueles tipos que só não querem que o
chateiem. Não conhecemos grande coisa do seu passado nem tardamos a perceber
que ele prefere viver com o seu cão, o "Ortigão", em vez de partilhar
vida com Patrícia, a namorada. Alfarrabista de Lisboa, frequenta à distância o
meio literário da cidade e torce o sobrolho ao pretensiosismo de certos autores
descarados que se vendem na TV. Pensa certamente nos poemas que escreveu e que
ele continua teimosamente a guardar na gaveta, longe do prelo. Na loja, negócio
que já foi parra que deu uva e que ele mantém orgulhoso, mostra aos clientes,
que não são muitos, um trato fino e cordial, mas também faz cara feia e
despacha uns quantos para a Fnac quando não reconhece neles uma afinidade de
gosto. Esse não é o caso da adolescente de barriga que, logo no início, lhe
pergunta se ele tem os "Lusíadas contado às grávidas" (!). Ramiro não
se embaraça com tal pedido (ainda para mais esgotado) , nem perde a réplica:
"Mas tenho o 'Moby Dick'!". O diálogo acaba com um "manual do
IRS" , as personagens parecem sorrir com o absurdo do que acabam de dizer
e nós sorrimos com elas. Sorrimos daquela coloquialidade forjada que, apesar
disso, não deixa de ser uma coisa 'muito cá de casa' - e que o cinema português (pesem embora as
diferenças entre os dois realizadores) nunca mais se atreveu a filmar com esta
dignidade e graça desde o desaparecimento de César Monteiro.
"Ramiro"
foi escrito para Mozos por Mariana Ricardo e Telmo Churro e o que é curioso é
que, conhecendo-o, o Ramiro do título (que António Mortágua interpreta) parece
ter sido moldado à imagem do cineasta. Não se trata de uma biografia
ficcionada. "Acontece que a Mariana e o Telmo conhecem-me, gostam dos meus
filmes", contou-nos Mozos há dias na noite da antestreia em sala, "e
escreveram uma personagem com características que eventualmente se podem colar
a mim. Eles assumiram isso. Eu li o argumento, não me importei, pelo contrário,
achei bonita esta ideia de fazer um filme sobre um tipo que se parece comigo.
Pedi-lhes para não exagerarem, porque o Ramiro é o Ramiro e o Manuel é.o
Manuel. Mas é verdade que gosto daquelas profissões, daqueles locais, daquele
mundo um bocado encapsulado em que a personagem vive e que, para mim, continua
a ser o presente. O Ramiro tem umas pechas, não sabe escrever em computadores,
não percebe nada do IRS. Mas é um tipo que lá se vai safando, por enquanto.
Temos certas semelhanças."
Voltemos
à tal menina grávida e que entra na loja de Ramiro quando o filme começa.
Chama-se Daniela (Madalena Almeida), foi educada pela avó, a Dona Amélia
(Fernanda Neves). Daniela julga ser órfã de pai e mãe, mortos num acidente: foi
o que lhe contaram. Ramiro, descobre-se depois, assumiu ser o seu encarregado de
educação quando a Dona Amélia teve um AVC. Em torno do protagonista gravitam
outras personagens, os amigos José, Vicente, Fernando, a já referida namorada
Patrícia (Sofia Marques). Ramiro conhece-os desde sempre naquele bairro
lisboeta em vias de extinção onde o café da esquina ainda existe paredes-meias
com a agência funerária. Se o tom – já se percebeu – é de comédia, ora franca
ora mais mordaz, há contudo um segredo que começa a unir Ramiro a Daniela e que
está relacionado com o passado dela. É matéria melodramática em potência,
história de faca e alguidar com um crime passional que Ramiro descobre depois
ter sido hediondo. Temos vontade de avançar por aqui, por este alarme de
violência, porque ele não é novo nas ficções de Mozos. Em "Xavier", a
sua obra-prima (com Pedro Hestnes, Canto e Castro, Isabel de Castro, Isabel
Ruth e Cristina
Carvalhal,
que também entra em "Ramiro"), pesava um luto materno. Em
"Quando Troveja" pesava o fim
de uma relação sentimental. Há sempre famílias despedaçadas e cicatrizes por
sarar no cinema de Mozos, só que esta violência — e por aqui também se mede a
generosidade do realizador — fica sempre fora de campo, é uma ameaça que paira
sobre as personagens e sobre este Portugal muito português de
"Ramiro", feito de tascas e de tipografias, de esplanadas à beira-mar
e de viagens de carro em que ainda se ouvem velhas cassetes dos Heróis do Mar.
"Realmente", diz Mozos, "há em todas as minhas ficções uma
violência escondida, coisas secretas, prenúncios melodramáticos de coisas muito
fortes que aconteceram, famílias falhadas. Neste filme, o lado negro vem da
personagem do Alfredo [Vítor Correia], o pai da Daniela. Ele não mostra
arrependimento, eu também não dou pistas porque é que ele matou a mulher, mas
há qualquer coisa em mim que não me permite filmá-lo como o 'mau da fita'. Se
calhar, nunca conseguirei fazer uma comédia pura. Nem um dramalhão. Há uma
ironia na vida que me é muito cara, nada que me faça rir às gargalhadas, mas
que me impede de fazer certas coisas. Porque a vida continua, independentemente
dos casulos que criamos para nos protegermos, e se calhar isso é o mais
importante."
Gosto
mesmo deste "Ramiro", do seu coração generoso, genuíno, tão português
e dos seus planos justos, das suas cenas afetivas, impermeáveis à pretensão.
Vi-o três vezes em projeções espaçadas, sempre com prazer, julgando partilhar a
simplicidade com que ele deve ter sido feito. Não é que haja aqui mistérios
insondáveis, peripécias extraordinárias, tãopouco 'surpresas de autor' que
tanto atraem as programações de festivais. "Ramiro" não tem nada
disso. E apenas um filme que nos abre a porta e que nos convida a ficar.
Francisco Ferreira,
Expresso
Sem comentários:
Enviar um comentário