MADAME HYDE
Serge Bozon
França/Bélgica, 2017, 95', M/14
FICHA TÉCNICA
Título original: Madame Hyde
Realização e Argumento: Serge Bozon
Montagem: François Quiqueré
Fotografia: Céline Bozon
Música: Benjamin Esdraffo
Interpretação: Isabelle Huppert, Romain Duris,
José Garcia, Guillaume Verdier
Origem: França/Bélgica
Ano: 2018
Duração: 95’
FESTIVAIS
Festival de
Locarno - Melhor Actriz
TRAILER
Conversa com Serge Bozon sobre a estreia de “Madame Hyde” e a
singularidade absoluta desta obra no cinema francês atual.
A quinta longa-metragem de Serge Bozon chama-se “Madame Hyde” e o
título não esconde o que tem atrás: trata-se de uma adaptação tresloucada e
atualizada para os dias de hoje de “Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”,
de Stevenson, um dos mais célebres livros do mundo e tantas vezes adaptado ao
cinema, mas nunca com esta liberdade de movimentos. Marquemos as diferenças:
“Madame Hyde” não se passa na época vitoriana e na burguesia, mas num arrabalde
de Lyon de classe média; a personagem central não é cientista, dá aulas num
liceu; por fim, o Dr. Jekyll muda de género e passa a feminino, chama-se madame
Géquil, professora não particularmente dotada para a docência (ensina física
numa escola técnica) e com problemas em impor a disciplina, já que é gozada nas
aulas, em particular por um dos seus alunos, Malik, um adolescente handicapado
de origem magrebina. Géquil não se deixa, contudo, ficar em segundo plano por
um motivo simples: é interpretada por Isabelle Huppert.
O filme partiu de uma ideia de Axelle Ropert, realizadora e
coargumentista habitual de Bozon em “L’Amitié” (1998) “Mods” (2003), “La
France” (2007), e no fulgurante “Tip Top” (2013), no qual Bozon já dirigira
Huppert. Madame Géquil é também a primeira personagem fantástica a chegar a
este território — e às fantasias já lá iremos. Bozon já tinha entrado na
fábula, no musical, na sátira, mas nunca abraçado assim um conto gótico, dado a
filmes de horror no qual “Madame Hyde” nem sequer se inscreve. “O que eu sei é
que tinha uma vontade enorme de fazer um filme sobre a educação em França”,
contou-nos o cineasta em Locarno do ano passado, durante o festival que valeu a
Huppert o prémio de Melhor Atriz. “Queria ser frontal sobre o assunto, mostrar
como é nobre e difícil esse ofício, e precisava de uma personagem aflita para
cumprir essa tarefa. Géquil está em final de carreira e em conflito com os
alunos e o conselho diretivo da escola. Não mudará, a menos que algo de
sobrenatural lhe aconteça. O livro de Stevenson entra aqui, isto é: injetámos
em Géquil o mito e o fantástico, numa cadeia de transmissão que tem afinal tudo
que ver com a profissão dela.”
METAMORFOSE DE HUPPERT
Um dos aspetos que mais nos impressionaram em “Madame Hyde” é que,
sem que o filme nos enfie didatismos pela goela abaixo, é metódico e
escrupuloso no modo como mostra a vida de uma sala de aulas. Foge assim da moda
de um cinema francês com preocupações sociológicas que tende a tratar as
escolas como mera figura de decoração. O próprio Bozon foi a uma dada altura da
sua vida professor de filosofia durante dois anos, “num liceu dos arredores
onde quase não havia alunos brancos e no qual o ensino era difícil. Trouxe este
conflito para o filme porque a diferença de raças e a sua interação no meio
escolar francês é um tema de fratura na sociedade do país. Mas fugi de
discursos paternalistas sobre árabes e negros vitimizados e professores
impotentes. Virei esses clichés do avesso.” Huppert, por outro lado, também se
descobre num registo completamente distinto das mulheres determinadas que lhe
conhecemos: a sua Géquil é pusilânime, vulnerável, ausente, tanto na escola
como em casa (aqui entra José Garcia, o marido bonacheirão dela e que a
professora trata com um certo desdém). Até que um dia...
Até que um dia, Géquil decide preparar-se para testar uma caixa de
Faraday. Trapalhona e avessa a experiências, fecha-se num laboratório e é
acidentalmente atingida por um feixe de raios catódicos. O corpo de Huppert
fica incandescente, a comicidade das cenas é notória, e "As Noites Loucas
do Dr. Jerryll" (“The Nutty Professor", 1963), filme de Jerry Lewis,
vem imediatamente à cabeça, como se “Madame Hyde” pudesse ser daquele um
longínquo remake. A tímida professora, uma vez fulminada, descobre possuir
incontroláveis poderes. De noite, levanta-se da cama e sai para a rua, é um
corpo elétrico atraído por misteriosos chamamentos. E dá-se um ‘Eureka!’ com
apetites pelo sobrenatural, caminho que o registo cómico e antinaturalista de
outras personagens (em especial a de Romain Duris, que faz de diretor da escola
técnica) já havia previamente preparado. Ora, Géquil, conta Bozon, “torna-se
com o acidente uma professora extraordinária que redescobre o prazer da
aprendizagem. Se em ‘Tip Top’ a Isabelle representava desde o início a
autoridade levada ao extremo, um extremo tal que ela se tornava um gag, em
‘Madame Hyde’ ela é a figura passiva que, por influência de Stevenson e do
poder do cinema fantástico, começa a virar o jogo a seu favor. Mas eu não quis
‘fazer Carpenter’, nem um cinema de género. Se a entrada do sobrenatural impede
de nos identificarmos com as personagens, em particular com Géquil [que perde o
controlo do seu próprio corpo em diabólicos ataques de sonambulismo], é porque
isso nos permite aceder mais diretamente às emoções, ao prazer estético das
próprias cenas. Não quero com isto dizer que não sou realista e que não me
preocupo com problemas sociais, muito pelo contrário, eles são bem visíveis no
filme. Não quero é tratá-los de uma forma sentenciosa e com certezas
ideológicas. É muito mais eficaz no cinema falar de um mal-estar social apenas
pelos seus sintomas.”
“Madame Hyde” é um filme com uma graciosidade de movimentos
fabulosa, sério sem querer impor a sua seriedade, profundo quando parece
superficial, a rebentar na comédia quando se espera o drama e com uma
capacidade de invenção tão bizarra que é incomparável com a de qualquer outro
cineasta francês da geração de Bozon. Queremos saber de onde isto vem (a
variação de tons, a veia cómica até agora quase inexplorada de um ator como
Duris, por exemplo). Queremos descobrir que estranha atração é esta por um
fantástico de efeitos especiais artesanais (Bozon é também um fiel ao 35mm), que
parece vir mais de James Whale e dos filmes da Universal dos anos 30 que de
qualquer outra influência contemporânea. “Preciso do que é orgânico, da
matéria, da película, e sei de onde venho: da França, não dos EUA. Prefiro os
efeitos especiais de um Franju ou de um Brisseau a todos os CGI digitais deste
mundo. Sei que estou um bocadinho isolado. Não o estaria tanto se pudesse ter
vivido e trabalhado na época do giallo e do peplum. Quanto à variação de tons
nos meus filmes, creio que isso só pode vir da minha admiração pelo cinema
clássico de Hollywood, do Hawks e do Leo McCarey, de um tempo em que não havia
esta estúpida clivagem entre filmes de autor e de arte e ensaio e cinema
popular. Tenho passado a vida a bater-me contra esta oposição.” Filme de autor,
“Madame Hyde”, no sentido em que é impossível não reconhecer de Bozon a sua
assinatura? Filme popular, com a mais popular das estrelas do hexágono? Os dois
em simultâneo. O resultado é uma experiência.’
Francisco Ferreira, Expresso, 20/05/2018
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